Há fundamento constitucional para o banimento do Telegram?

 

Há fundamento constitucional para o banimento do Telegram?

A proibição do Telegram se justifica como um ato extremo para resguardar a integridade do processo eleitoral

Por Estefânia Barboza e Gustavo Buss

 

Os últimos anos forneceram exemplos concretos de como o discurso político ocupou novos espaços na arena digital. De um lado, a internet permitiu às grandes empresas estabelecerem suas plataformas de mídia social. De outro, essas plataformas permitiram aos novos canais independentes operarem com substrato apenas em suas vontades particulares. Dentro de suas “bolhas”, esses grupos encontram território novo e descontrolado de onde podem disseminar informações manipuladas. Daí porque a revolução digital representou uma grave ameaça à democracia constitucional; isto é, ao criar uma arena onde o poder político pode maximizar sua autoridade com pouca ou nenhuma responsabilidade.

À medida que a comunidade internacional tomou conhecimento do problema e de suas implicações, um termo específico ganhou amplo destaque: “fake news” (que se traduz por notícias falsas). No entanto, apesar de seus méritos em destacar a questão da rotulação de mentiras como notícias, a imprecisão do conceito rapidamente revelou um obstáculo. Qualquer oponente que se visse em desacordo com uma determinada história veiculada em noticiários poderia confortavelmente gritar “fake news” para desacreditar de modo inerente tais informações. Assim, “fake news” tornou-se sinônimo de “toda história tem dois lados”.

Uma definição mais apropriada pode ser avançada através do conceito de desinformação. Em primeiro lugar, ele revela melhor os limites do seu objeto, compreendendo qualquer informação falsa, manipulada ou enganosa. Além disso, ele está associado a uma estratégia de propaganda política que se beneficia da arena digital descontrolada para desafiar o Estado de Direito, a democracia e os direitos fundamentais. É de suma importância compreender que a disseminação da desinformação por meio de plataformas digitais não é meramente acidental, mas um ato premeditado. Pela mesma razão, ela também exige uma resposta constitucional concreta.

No Brasil, a ameaça de propagação da desinformação como estratégia de propaganda se intensificou com a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Durante sua campanha, nos dias críticos que antecederam as eleições, grupos de WhatsApp viram um aumento abrupto de mensagens falsas e enganosas promovendo Bolsonaro e denegrindo seus oponentes. Com isso, a Justiça Eleitoral intensificou seus esforços de combate à desinformação. Para as eleições municipais de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assinou acordos de parceria com 48 instituições públicas e privadas, incluindo grandes plataformas de mídia social, para aumentar a moderação de conteúdo e limitar propagandas falsas ou enganosas.

O esforço dos atores judiciais para minar a rede de Bolsonaro não foi recebido de modo passivo. Ao contrário, o presidente tentou responder às restrições impostas pelas grandes plataformas a si e aos seus aliados. Tanto assim que ele editou, em 2021, uma medida provisória que dificultava a remoção de conteúdos que violassem os padrões de comunidade das plataformas digitais, que foi posteriormente anulada pelo Senado. O cenário descrito tornou-se ainda mais agravante à medida que a nova retórica dos ataques passou a visar diretamente a Justiça Eleitoral. Dessa forma, às vésperas de uma nova eleição presidencial em 2022 com Bolsonaro atrás nas pesquisas, o novo inimigo mudou para a própria eleição democrática e sua rede protetiva.

Apesar do esforço significativo das principais plataformas para implementar novas medidas de moderação de conteúdo, a ameaça é flagrante. Ela se intensifica por existirem atores que se recusam a fortalecer o controle sobre conteúdos compartilhados na rede. No contexto brasileiro, o Telegram surgiu como o novo reduto para os apoiadores de Bolsonaro. Além disso, a falta de mecanismos rígidos de governança tornou sua moderação de conteúdo inconsistente e pouco transparente. Nesse contexto, os usuários passaram a se sentir à vontade dentro da plataforma para compartilhar qualquer coisa, sabendo que não podem ser responsabilizados se o Telegram continuar a não cooperar com as autoridades nacionais. Ao mesmo tempo, isso criou um nicho de mercado para a plataforma, que se anuncia como a única mídia social livre de controle, aumentando seu apelo dentro da comunidade extremista da qual não deseja se afastar.

Uma nova controvérsia surgiu recentemente quando Luís Roberto Barroso, na posição de presidente do TSE, ameaçou banir o Telegram do país se ele se recusar a cooperar com as autoridades eleitorais. É uma postura firme da sua parte, mas não se trata de um exemplo isolado. O governo alemão também vem pressionando a plataforma para remover conteúdos extremistas e implementar uma regulação mais rígida de conteúdo, chegando a considerar a proibição do aplicativo de mensagens criptografadas. Portanto, a pergunta é: existem fundamentos constitucionais para o banimento do Telegram?

A resposta deve começar com uma necessária reavaliação da soberania constitucional. Em um mundo pré-digitalizado, o elemento principal para afirmação da autoridade do Estado emanava de suas fronteiras territoriais. Dessa forma, o ato de governar significava exercer o poder de regulação social dentro de tais fronteiras. No entanto, a internet exigiu uma redefinição dessa soberania, conceito que já vinha sendo desafiado pela globalização. A partir de uma perspectiva territorial clássica, é impossível afirmar onde as plataformas digitais começam e onde terminam; elas estão em todos os lugares e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Consequentemente, governar sobre o território digital tornou o poder público imponente, já que o setor privado passou a concentrar o poder em suas mãos, principalmente porque ele se impõe como único codificador das arenas artificiais que cria.

Para as autoridades preocupadas com a obediência constitucional, as demais possibilidades limitam-se a dois eixos de regulação: (i) o de controle sobre as pessoas que utilizam a plataforma; e (ii) o de controle sobre os atores que integram sua estrutura hierárquica de domínio. Dentro do primeiro, apesar dos esforços para criminalizar quaisquer condutas desviantes, a criptografia e a privacidade do Telegram impedem tentativas de identificação dos criminosos sem uma cooperação formal. Assim, a única alternativa viável é a regulação da plataforma em si, visando obrigá-la a cumprir as regras do jogo democrático.

Como ressaltado anteriormente, a soberania na era digital é desafiada pela falta de territorialidade estrita da internet. Ainda que uma empresa internacional geralmente detenha a plataforma, seu domínio digital pode estar abrigado em qualquer lugar do mundo. O Telegram, por exemplo, atua no Brasil sem qualquer representação legal. Nesse contexto, o exercício de governança torna-se um desafio diante da impossibilidade de fiscalização sobre uma arena digital tornada inacessível por seu detentor. Ademais, o controle sobre a plataforma se torna ainda mais inviabilizado quando não há um representante legal da plataforma no país que possa se adequar à legislação local e atender às decisões judiciais porventura proferidas.

Destarte, a proibição do Telegram se justifica como um ato extremo para resguardar a integridade do processo eleitoral. Se a liberdade não pode ser usada como desculpa para violar a lei, ela tampouco pode ser usada para salvaguardar uma plataforma desregulamentada na qual a lei está sendo ativamente violada. Quando o Telegram permite que os apoiadores de extrema-direita do presidente Bolsonaro divulguem desinformação propositalmente, ele se torna um ator eleitoral preeminente e passa a estar sujeito à supervisão dos órgãos de controle eleitorais. Além disso, como sua posição revela uma recusa à cooperação com o poder público, principalmente com a Justiça Eleitoral, torna-se indispensável uma resposta adequada. Caso contrário, uma omissão do TSE poderia colocar em risco a própria integridade constitucional e a continuidade democrática.

A desinformação proferida no Telegram por Bolsonaro e seus apoiadores verbaliza ideais de desobediência civil e desconfiança eleitoral. Se a Constituição exige estabilidade democrática, a resposta à ameaça digital da desinformação deve preceder seu objetivo final de desmantelamento democrático. Aceitar a recusa à cooperação clamada pela plataforma sem que se impeça concretamente a ameaça identificada é um reconhecimento inadmissível da incapacidade judicial de impor a ordem constitucional na arena digital. Portanto, a resposta do TSE revela a única alternativa disponível para a reafirmação da legislação eleitoral. Diante da posição intransigente do Telegram, a proibição do aplicativo durante o processo eleitoral revela-se não apenas justificada, mas sobretudo necessária.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/fundamento-banimento-telegram-27022022

Julgamento com perspectiva de gênero: a ADI 6138 e o STF

 

Julgamento com perspectiva de gênero: a ADI 6138 e o STF

Trecho da Lei Maria da Penha alvo de questionamento protege as mulheres mais vulnerabilizadas pela violência

Por Estefânia Barboza, André Demetrio e Clara Maria Roman Borges

ADI 6.138/DF, ajuizada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), entrou na pauta de julgamentos do STF, com previsão de ir ao plenário no próximo dia 16 de março. A ação busca declarar inconstitucional o artigo 12-C, incisos II, III, e parágrafo primeiro, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Tais dispositivos permitem à autoridade policial afastar o agressor quando comprovada a existência de risco iminente ou atual à integridade ou à vida da vítima. Nesse ponto, é obrigatória a comunicação ao juiz no prazo máximo de 24 horas, para mantimento ou revogação da medida aplicada.

A AMB sustenta que a atribuição de poder à autoridade policial para afastar o agressor, conforme dito anteriormente, institucionaliza o Estado policial, desrespeita a separação dos Poderes (art. 2º da CF), mitiga o devido processo legal (art. 5o, incisos XV e LIV da CF), vulnerabiliza o direito à inviolabilidade de domicílio (art. 5o, inciso XI da CF), e desrespeita a reserva de jurisdição (art. 2º da CF). Portanto, a AMB entende que este dispositivo é incompatível com o texto constitucional e deve ser declarado inconstitucional pela Suprema Corte.

Nesse contexto, informações não faltam para retratar a gravidade que é ser mulher no Brasil. Conforme dados do Atlas da Violência, 3.737 mulheres foram assassinadas em 2019, e segundo a Nota Técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um crescimento de 22,2% nos feminicídios entre 2019 e 2020. Além disso, verifica-se que no período pandêmico, existiu uma diminuição no número de medidas protetivas e de urgência, principalmente no Acre (-31,2%), no Rio de Janeiro (-28,7%) e no Pará (-8,2%).

Diante desse cenário, é sabido que o Estado brasileiro assumiu compromissos internacionais para a promoção da igualdade de gênero e para a criação de mecanismos que coíbam a violência doméstica e familiar contra mulheres. Citam-se, como exemplos, a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), das Leis 13.104/2015 e 14.188/2021, que estabeleceram as qualificadoras do homicídio e da lesão corporal, quando praticados em razão da condição do sexo feminino, e a tipificação da violência psicológica contra a mulher, bem como a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Voltamos então, ao problema inicial, que basicamente envolve o conflito entre a reserva de jurisdição e a integridade física, vida e dignidade da mulher. Veja-se, que, conforme a leitura minuciosa do dispositivo legal, trata-se de medida de exceção, estabelecendo-se requisitos para sua prática: i) comprovação de risco iminente ou atual à mulher; ii) decretada por autoridade policial somente quando o município não for sede de comarca; e iii) obrigatoriamente informar a autoridade judicial para decidir sobre as medidas instauradas no prazo máximo de 24 horas.

Pois bem, considerando os dados do CNJ, observa-se que as comarcas estão localizadas em apenas 48,5% dos municípios brasileiros, e que 90,3% da população reside nesses municípios-sedes da Justiça estadual. Por outro lado, verifica-se que esses números não são homogêneos, e demonstram a discrepância entre estados, por exemplo, Tocantins (71,7%), Paraíba (77,4%), Piauí (77,6%), Rio Grande do Norte (81,5%) e Roraima (82,4%). Consequentemente, esses elementos ilustram que considerável parte da população desses estados não conta com estruturas físicas do Judiciário, o que certamente dificulta o acesso à Justiça.

Tal diagnóstico nos permite trazer algumas indagações para o debate público: será que todos os municípios possuem uma estrutura razoável que possibilite à autoridade policial submeter de imediato a um juiz o pedido de medida protetiva de afastamento do lar para dar prosseguimento ao atendimento da mulher vítima de violência doméstica e familiar? Quantas vítimas residem em municípios com difícil acesso? Fato é, que considerando as realidades do Brasil, nem todo município brasileiro deve dispor de uma rede de atendimento para auxiliar essas demandas.

Essa discussão também denota a importância em observação do “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021”, fundamentado pelas Resoluções do 254 e 255, do CNJ. Esse documento busca responder de maneira equânime à aplicabilidade de direitos fundamentais, e é efeito de uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Barbosa de Souza e outros versus Brasil.

O protocolo é estruturado em três eixos: i) na primeira parte apresenta os conceitos fundamentais para se promover uma perspectiva de gênero; ii) na segunda fase, descreve procedimentos metodológicos para incluir uma lente de gênero no direito, e por fim, iii) identifica como o gênero permeia questões específicas na prática da justiça, como por exemplo, na Justiça estadual.

Sob o olhar desse protocolo, os poderes públicos devem adotar procedimentos que incidem perspectivas de gênero sob um olhar interseccional, tanto na produção, como na aplicação do direito. No caso em concreto, observa-se que o direito à vida e à integridade física e psíquica da mulher devem prevalecer sobre as supostas mitigações e violações levantadas na ADI.

Relembremos que, conforme leitura dos incisos II e II do artigo 12-C, tal medida excepcional somente é permitida quando o município não for sede de comarca, isto é, atingindo exclusivamente vítimas residentes em lugares longínquos, onde o Estado não se faz presente e os direitos fundamentais, principalmente das mulheres não brancas e pobres, costumam ser negligenciados.

Na mesma linha, o texto legal especifica que a medida de afastamento do lar decretada por autoridade policial deverá ser submetida ao crivo do juiz em 24 horas, para que seja verificado o seu cabimento e a necessidade de sua manutenção. Nesse caso, observa-se uma semelhança com a situação de flagrância de um crime, em que a autoridade policial tem o dever de agir e prontamente prender o agente para fazer cessar a prática delitiva e para preservar as provas que estão em seu poder, podendo inclusive adentrar o domicílio sem autorização do dono ou ordem judicial. Por outro lado, de acordo com o art. 310, do Código de Processo Penal, igualmente tem a obrigação de submeter no prazo de 24 horas o auto de prisão em flagrante ao juiz, que realizará uma audiência de custódia para decidir se relaxa a prisão por ilegalidade, decreta a prisão preventiva ou concede liberdade provisória.

Pode-se argumentar que a prisão em flagrante está expressamente autorizada no art. 5º, LXI, da CF, enquanto o afastamento do lar em casos de violência contra mulher não ganha literalidade no texto constitucional e por esse motivo tais institutos devem ser compreendidos de formas diversas. Entretanto, o direito à vida e à integridade física, que servem de fundamento para autorizar o imediato afastamento do agressor do lar, quando ele representa risco atual ou iminente à integridade da vítima, encontram-se expressamente  assegurados no texto constitucional. Inclusive esses direitos servem de fundamento para autorizar a legítima defesa, ou seja, para afastar a ilicitude da conduta da pessoa que se utiliza moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente a direito seu ou de outrem, conforme prevê o art. 25, do Código Penal.

Ressalte-se que o afastamento do lar decretado pela autoridade policial não tem natureza de medida cautelar, que visa a garantir o resultado do processo ou impedir que o agressor continue a praticar violência contra a vítima durante a instrução criminal, mas tem por objetivo fazer cessar o risco imediato de novas agressões, as quais podem naturalmente terminar na tragédia do feminicídio. Ademais, esse ato administrativo colocará o agressor à disposição do juiz para que decida fundamentadamente sobre a decretação ou não de uma medida protetiva de afastamento do lar, assim como argumenta Aury Lopes Jr. ao discorrer sobre a prisão em flagrante. Portanto, entende-se que o art. 12-C, da Lei Maria da Penha, não mitiga as garantias da reserva de jurisdição e do devido processo legal, uma vez que a medida de afastamento do lar será realizado de forma emergencial pela autoridade policial, mas em seguida será decidida pelo juiz e submetida ao contraditório, como ocorre nos casos de prisão em flagrante.

Além disso, é preciso ter claro que o art. 150, § 3º, II, do Código Penal, define que não haverá crime quando a qualquer hora do dia ou da noite se adentra o domicílio de alguém para impedir uma prática delituosa iminente ou que já se encontra em andamento. Isso significa que a autoridade policial, ao afastar do lar o agressor, não violará ou vulnerabilizará o domicílio, porque só executará essa drástica medida nos casos em que houver risco atual ou iminente à vida ou à integridade da vítima, isto é, quando houver risco atual ou iminente de um crime contra a mulher com quem o agente coabita, tal como autoriza a própria legislação penal.

Por fim, considerando a realidade de nosso país, a discrepância entre municípios, a obrigatoriedade constitucional de se proteger o direito à dignidade, à vida, à integridade da mulher, e que o dispositivo em discussão é extremamente limitador sobre quais casos é possível sua aplicabilidade, entendemos que é chegada a hora de julgar com perspectiva de gênero, e declarar constitucional o artigo 12-C, incisos II e III da Lei Maria da Penha, principalmente porque se destina a proteger as mulheres mais vulnerabilizadas pela violência na sociedade brasileira, aquelas que são pobres, não brancas e sobrevivem abandonadas pelo poder público nos municípios recônditos do Brasil.

A norma impugnada vai justamente de acordo com a obrigação constitucional (art. 226,  § 8º) do Estado brasileiro de coibir a violência no âmbito das relações de família e contra a mulher, buscam assegurar pilares fundamentais do Estado brasileiro, a igualdade, a liberdade, a dignidade e a integridade física e moral das mulheres.

Não há qualquer justificativa para que, em eventual ponderação entre direitos fundamentais ou entre estes e garantias fundamentais, possa se imaginar que a garantia da reserva de jurisdição ou que a inviolabilidade do domicílio possam se sobrepor à proteção da pessoa humana. Ao contrário, a reserva de jurisdição e a inviolabilidade do domicílio só existem porque são garantias à pessoa humana contra o abuso do Estado, não cabendo outra interpretação que possa subverter seu sentido.

 

ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
ANDRÉ DEMETRIO – Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Graduando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/julgamento-com-perspectiva-de-genero-adi-6138-stf-19022022?amp

Constitucionalismo Multinível: do global à megacidade

Constitucionalismo Multinível: do global à megacidade

Por Estefânia Barboza, Gustavo Buss e Lucas Henrique Muniz da Conceição

 

Historicamente, o período posterior às duas Guerras Mundiais representou um importante momento para o constitucionalismo, direcionado à transcendência das fronteiras nacionais que limitavam o desenho de Estado então prevalente. Em função dos resultados devastadores provocados pelo conflito generalizado de nações soberanas, foi necessária uma abertura a novos fóruns supranacionais de discussão. Nesse contexto, a globalização caminhou ao lado da densificação, em nível constitucional, dessa estrutura internacional cuja baliza principal era a de proteção aos direitos humanos inalienáveis e inerentes a todas as pessoas, independentemente de sua posição geográfica.

Se o problema colocado naquele momento histórico parecia centrado em considerações a respeito do equacionamento entre a soberania dos Estados unitários e a autoridade dos organismos internacionais emergentes, hoje o constitucionalismo se vê tomado por uma nova reflexão, de ordem interna. Em uma análise recente, as Nações Unidas apontam um relevantíssimo prospecto acerca do crescimento das megacidades (consideradas aquelas cidades com população superior a 10 milhões de habitantes).[1] O número de megacidades, que era de 10 em 1990, deve alcançar 43 em 2030. Ademais, o número de pessoas vivendo nesses espaços urbanos deve subir de 153 milhões, em 1990, para 752 milhões em 2030.

No entanto, não é apenas o crescimento populacional que conclama maior atenção do constitucionalismo. Em particular, é preciso reconhecer que essas grandes cidades abrigam a maior parte da população refugiada e da população deslocada dentro de cada jurisdição nacional. A questão da pobreza também se acentuou, na medida em que deixou de ser um problema atrelado às comunidades rurais, passando a emergir como uma das questões centrais na discussão acerca da urbanização.

O constitucionalismo sempre se colocou como interlocutor primário na organização do território, da população e da política, mas sempre mantendo rígida a unidade construída em torno do conceito de soberania nacional. O modelo federativo, que é adotado no Brasil, parece ser tensionado pela realidade emergente nas megacidades, que reclamam maior autonomia constitucional para enfrentamento dos inúmeros desafios que se colocam em âmbito local e cuja tutela pelo governo federal acaba sendo deficitária.

Em verdade, as megacidades revelam uma propensão à defesa de posições políticas mais progressistas que, muitas vezes, acabam se colocando contrárias aos interesses do governo central. Como há uma natural infusão de pessoas provenientes das mais distintas realidades, os espaços urbanos em grandes cidades podem favorecer posições de tolerância baseadas em um histórico de convívio plural. Entretanto, se essas cidades não ostentarem alguma margem de autonomia diferenciada, poderão perder a capacidade de gestão efetiva de suas populações.

Dessa forma, o presente artigo propõe uma reflexão sobre o significado do federalismo constitucional a partir da experiência proporcionada pelas megacidades, que emergem enquanto verdadeiros espaços de ressignificação constitucional da importância urbana. É preciso repensar o status ocupado pelas cidades na ordem constitucional, já que são formalmente integrantes do pacto federativo, ainda que usualmente esquecidas nas considerações e arranjos políticos. A partir da discussão proposta por Ran Hirschl,[2] se mostra relevante a densificação dos argumentos basilares para o reposicionamento do governo urbano municipal no desenho constitucional federativo.

 

O nacionalismo neoconservador

Como ponto de partida, é pertinente apontar a posição relevante ocupada pelo pensamento neoconservador na construção de um ideal de nação soberana que dialoga diretamente com as pretensões globalistas, de um lado, e pluralistas, de outro. Isso porque, da mesma forma como se construiu uma retórica de luta contra os fóruns internacionais, vistos como elemento de ameaça à autonomia nacional, o reconhecimento de maior autonomia constitucional às administrações municipais esbarra em semelhante oposição. Repensar o pacto federativo perpassa, assim, pela desconstrução do ideal de nação unitária em que se assenta o nacionalismo hoje conclamado pelas novas lideranças neoconservadoras.

Conforme enfatiza Hirschl, diversos países estão experienciando um número crescente de ataques contra atores que defendem valores cosmopolitas, supostamente contrários à verdadeira identidade, cultura e valores do país.[3] As novas lideranças neoconservadoras vocalizam uma retórica de “nós primeiro”, que privilegia o particularismo sobre o universalismo. Ainda pior, a prevalência do particularismo nacionalista se revela contrária à tutela dos direitos humanos, pois qualquer pretensão de proteção igualitária e homogênea de direitos acaba obstada por lideranças nacionais que lhe são contrárias.

Durante a presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, foi possível observar seu empenho na desconstrução de tratados internacionais e, inclusive, na retirada do país de alguns organismos internacionais importantes. No Brasil e inspirado por esse mesmo ideal, Jair Bolsonaro afirmou, em 18 de agosto de 2018, quando era candidato, que retiraria o Brasil da ONU se eleito, sob o argumento de que a instituição não teria serventia e seria uma reunião de comunistas.[4] Ainda que não tenham se concretizado parte das ameaças, o discurso contrário aos organismos internacionais é perigoso, justamente porque retira a aparência de legitimidade de órgãos protetivos que seriam capazes de emitir decisões contrárias àquelas do presidente.

Hirschl e Shachar denominam esse novo movimento global de neossecessionismo, pois articulado como um novo movimento separatista, de fuga dos fóruns internacionais.[5] O exemplo ilustrativo é o do Brexit no Reino Unido, onde se observa uma tendência de reconstrução constitucional do nacionalismo, em detrimento da abertura histórica à globalização. O território, dessa forma, permanece como elemento central no jogo político contemporâneo, como expressão de poder que inflama o discurso neoconservador erigido em torno do nacionalismo patriótico. Em paralelo a esse movimento, há também o uso do direito internacional por regimes autoritários como explicado por Ginsburg, criando inclusive ordens internacionais paralelas de modo a efetivar seus projetos autoritários.[6]

Pipa Norris e Ronald Inglehart enfatizam que a retórica empregada pelos novos governos autoritários está assentada na divisão estanque entre uma comunidade nacional que compartilha valores e atitudes específicas, em oposição ao movimento de globalização usualmente atrelado a ideais progressistas.[7] De início, é fácil perceber que as novas lideranças autoritárias se colocam absolutamente contrárias a qualquer abertura internacional que possa significar um controle sobre suas condutas. Para tanto, se valem de uma retórica que aponta a comunidade internacional como alheia os valores específicos que informam a cultura nacional.

Esse movimento, porém, não é restrito no âmbito internacional. Em geral, o autoritarismo está associado a discursos que restringem a autonomia de outras instâncias de controle interno estabelecidas no texto constitucional. Se o presidente fala em nome do povo, sua guinada antidemocrática se revela justamente em uma retórica de deslegitimação das outras instituições fundamentais à democracia, como o legislativo, o judiciário, agências reguladoras, órgãos de fiscalização, universidades públicas, para citar algumas das mais importantes.

A discussão sobre autonomia municipal, nesse contexto, está umbilicalmente atrelada à dinâmica de poder tipicamente associada ao autoritarismo centralizador. Isso porque, para o líder nacional, é mais interessante que todas as instâncias atuem fortemente balizadas pelos seus ideais e, de preferência, sob o seu controle. Assim, da mesma forma como a comunidade internacional pode representar uma ameaça, uma administração municipal que se oponha ao governo federal e implemente políticas públicas dissonantes pode atentar à unidade nacional reclamada.

A pandemia de Covid-19 trouxe um exemplo ilustrativo, pois as duas megacidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, logo tiveram de se desvencilhar da ideologia predominante no governo federal, para implementar políticas eficazes de combate à pandemia. Dependentes da economia e do turismo, as duas cidades logo demonstraram a necessidade de medidas enérgicas e técnicas para enfrentamento da doença e contenção do seu avanço.

De outro lado, Jair Bolsonaro editou em 20 de março de 2020 a Medida Provisória de nº 926, que previa a concentração de competências na figura do presidente para determinar o alcance das medidas restritivas que cada município começava a implementar. O STF, no julgamento da ADI nº 6.341, deu nova interpretação à passagem da MP nº 926, para reafirmar a competência concorrente dos entes federados em matéria de saúde pública, preservando as atribuições de cada esfera de governo.[8]

Depois da decisão proferida pelo STF, que apenas ressalvou a competência concorrente dos entes federados para enfrentamento de questões de saúde pública, algo evidente no texto constitucional, o próprio presidente passou a argumentar que lhe fora retirada a competência para enfrentamento da pandemia.[9] Seu discurso, que sempre havia sido contrário às medidas de isolamento social e de vacinação impostas pelos governos estaduais e municipais, passou a reforçar a autonomia administrativa de outras esferas de governança como um ponto positivo.

A lógica de embate contra o globalismo tipicamente associada a contextos de autoritarismo nacionalista também pode ser identificada na disputa travada contra as administrações municipais. O discurso do corrompimento dos administradores e da desconexão com os valores nacionais mais importantes é empregado também contra as megacidades, vistas como espaços de volatilidade política, propensos à eclosão de mobilizações que desafiam a autoridade central.[10] O nacionalismo unitário, de forte inspiração neoconservadora, se converte, também, em um mecanismo de oposição à emergência de megacidades autônomas.

 

O constitucionalismo e as megacidades

É preciso reconhecer, ao lado da pressão exercida por lideranças nacionalistas na contenção de outras esferas administrativas, o papel do constitucionalismo nesse processo. De modo geral, a questão espacial ocupa uma posição de destaque dentro da casa de máquinas da Constituição. Para Hirschl e Shachar, a devoção ao que denominam de estatismo espacial se converte em um problema para efetivação de direitos básicos universais.[11] Isso porque construções como a de territorialidade e de soberania nacional passaram a ser empregadas como subterfúgio para a defesa de interesses privados contrários ao avanço de políticas públicas internacionais universais para enfrentamento dos novos e emergentes problemas transfronteiriços. As megacidades, da mesma forma, se veem limitadas dentro desse quadro constitucional.

O conceito de constitucionalismo costuma ser empregado para descrever uma limitação imposta ao Estado, como um conjunto de obstáculos ou impedimentos que a administração deve observar. Não significa que não se reconheçam dificuldades práticas envolvidas na garantia da eficácia dessas restrições legais frente a avanços autoritários que ameaçam o equilíbrio constitucional. Trata-se, entretanto, de uma perspectiva negativa, com destaque para a função limitadora da Constituição, que impede o exercício absoluto do poder através da estipulação de um regime consistente de direitos fundamentais, assim como pela separação dos poderes, tanto horizontal, como vertical. O direito se revela, nesse quadro, como um elemento indispensável de contenção a balizar a atuação judiciária de controle em respeito ao rule of law.[12]

Essa dimensão negativa do Constitucionalismo enquanto limitação do poder, somente pode ser compreendida com remissão ao específico desenho de Estado que inspira o constitucionalismo liberal. Retomando a clássica definição proposta por Max Weber, o Estado consistiria em uma comunidade humana que reivindica, de forma satisfatória, o monopólio da coação física legítima dentro de um determinado território.[13] É dizer, a relação entre Estado e seus membros parte de uma posição de dominação, revestida de uma pretensão de legitimidade, vez que o exercício da força é indissociável da legitimidade virtual agregada.

A virtualidade da pretensão de legitimidade é um fator central para o constitucionalismo contemporâneo. Em Weber, embora a existência do Estado dependa da sua capacidade de assegurar a obediência de seu povo, a reivindicação de legitimidade de seus atos pode ser meramente formal. Assim, a concepção weberiana se imiscua da distinção entre democracias florescentes e ditaduras opressivas, considerando que em ambos os tipos de regime há a reivindicação de alguma forma de legitimidade.[14]

Quando o Estado é contemplado como uma fonte de poder bruta, que se reveste de uma aparente legitimação, cresce o receio de que esse poder possa ser arbitrariamente empregado em desfavor daquelas pessoas sobre as quais se estende sua circunscrição. Sob essa infusão, é racional que o constitucionalismo seja apresentado e entendido como uma forma de limitação do Estado e proteção de liberdades individuais. Os princípios constitucionais são usualmente interpretados para reforçar sua dimensão negativa, impedindo a ação estatal autoritária e arbitrária através da garantia de direitos substantivos que seriam intransponíveis.

Contudo, para além da perspectiva negativa, o constitucionalismo também estabelece um sistema que distribui entre diversos atores institucionais prerrogativas recíprocas de controle e fiscalização. Dessa forma, há uma dimensão positiva e proativa que é destacada. O equívoco da visão puramente negativa do constitucionalismo residiria no pressuposto de que as pessoas desejam permanecer sozinhas, refutando a intervenção estatal para consagração da sua dignidade própria. Para Waldron, tal característica revela a face antidemocrática do constitucionalismo negativo, favorecendo uma decisão de design constitucional em detrimento da deliberação racional em fóruns democráticos.[15]

Para além do déficit democrático, tal visão empobrece a concepção de Estado insculpida na Constituição. Embora o modelo weberiano seja capaz de compreender de forma coesa as reivindicações de autoridade e legitimidade em nível institucional, ele falha ao não considerar o Estado em seu contexto mais amplo. É preciso introduzir considerações acerca do objetivo precípuo que levam à edificação dessa estrutura institucional de monopólio do poder, qual seja, a realização do bem-estar social para todas as pessoas circunscritas à sua jurisdição.

Parte-se, portanto, de uma consideração estatal diferenciada, vinculada ao seu conceito aristotélico, em que a instituição administrativa se conectava a uma perspectiva ampla, considerando os objetivos centrais de ação coletiva e organização social.[16] Em especial, é importante destacar que essa reflexão sobre o sentido de Estado dentro do constitucionalismo tem repercussão direta sobre aquilo que se compreende como republicanismo e, em especial, sobre o desenho federativo que lhe embasa.

Assim, é possível tensionar as bases próprias ao modelo constitucional liberal, em busca do espaço a ser ocupado pelas megacidades. Segundo Hirschl, a questão acerca da autonomia municipal acaba não encontrando guarida dentro de textos constitucionais, sendo muitas vezes silenciada.[17] De um lado, o governo central é relutante em entregar o poder às cidades, que podem se posicionar como competidoras no controle sobre parcelas populacionais importantes. De outro, o constitucionalismo, preocupado com o Estado e a soberania nacional, acaba se concentrando sobre os mecanismos de centralização de poder típicos da unidade federativa.

Em que pese exista, de fato, pouca densificação do papel dos municípios e, em especial, das megacidades na estrutura federativa brasileira, é imperativo destacar que nossa Constituição traça algumas diretrizes relevantes. Destarte, ela estabelece competências privativas e concorrentes em que o Município deve atuar para proteção dos interesses locais. Também reafirma a centralidade do plano diretor para regulação urbanística, bem como estipula a competência estadual para instituição de regiões metropolitanas, com agrupamento de municípios para organização e execução de políticas públicas coordenadas.

Nesse contexto, é possível reconhecer alguma importância para os municípios dentro do desenho constitucional brasileiro. Não há, porém, ressalvas acerca da autonomia para as megacidades, ao contrário de exemplos próximos, como em Buenos Aires e na Cidade do México. Permanece existindo uma tendência acentuada de centralização no nosso modelo federativo, com destaque principal, inclusive em nível normativo constitucional, para o governo federal. No entanto, cada vez mais é possível observar a emergência dos grandes aglomerados urbanos como redutos de visões políticas mais inclusivas e progressistas, particularmente destoantes de um contexto de emergência autoritária observado no âmbito mundial.

 

Cidades-santuário

Para compreensão da dinâmica de características dos espaços urbanos municipais, em particular das megacidades, é relevante retomar o desenvolvimento do direito urbanístico brasileiro. Edésio Fernandes explica que o Brasil passou por um processo de urbanização rápida, combinando processos de exclusão social e segregação espacial com o crescimento dos centros urbanos brasileiros.[18] Destarte, a urbanização brasileira se vincula intimamente com o aumento dos índices de pobreza, gerando custos sociais e ambientais relevantes para o país e a sociedade.

Tais características de segregação e urbanização se devem a diversos fatores que interagem ao longo do tempo. A exemplo, as dinâmicas formais e informais do mercado de terras, a centralização político-institucional, o autoritarismo político-social, a burocratização e a corrupção endêmica denotam algumas das facetas que contribuíram para o alastramento da pobreza no país. Para compreensão e formulação de respostas adequadas ao problema, segundo Fernandes, seria necessária uma perspectiva transdisciplinar, considerando a aglutinação dos conceitos de cidade e cidadania.[19] Nessa toada, a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades se tornam pontos cruciais, até para compreensão dos movimentos políticos emergentes em contextos de forte urbanização.

Em seu artigo 182, a Constituição brasileira institui o plano diretor como o instrumento básico da política urbana, tornando-o obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes. A urbanização imposta no contexto constitucional exige da administração local a adoção de políticas de ordenamento territorial das cidades, seu processo de criação e renovação, assim como o estabelecimento de espaços de uso comum e espaços destinados à prestação de serviços públicos. Permanece, contudo, existindo diversas complexidades vinculadas ao aumento populacional urbano, que tensionam o papel das megacidades na consagração de direitos sociais básicos. É preciso, sob esse enfoque, repensar o design constitucional a partir de uma concepção de Estado pautada na promoção do bem-estar comum.

A consideração do constitucionalismo sob o ponto de vista dos direitos humanos, considerando uma perspectiva multinível para as atribuições do Estado no cenário global, implica a reformulação do papel das megacidades na proteção de cidadãos, o que ilumina a sua nova importância no paradigma constitucional. Dada a necessidade de repensar a teoria democrática e o constitucionalismo liberal a partir dessa nova concepção de Estado, enfatizar o papel constitucional das megacidades pode se tornar uma nova forma de promover valores fundamentais e promover maior igualdade entre os entes federativos e suas respectivas obrigações constitucionais.

Muitas cidades têm investimento acentuado em políticas de promoção aos direitos humanos, com particular ênfase em instrumentos de convívio plural. Até por isso, são vistas como verdadeiras cidades-santuário. Hirschl enfatiza que essa propensão dos governos municipais decorre, em grande parte, da necessidade de enfrentamento próximo das questões migratórias.[20] O influxo de diferentes pessoas, provenientes dos mais diversos contextos, todas em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles, torna o perfil demográfico das megacidades particularmente plural. Por conseguinte, a construção de políticas públicas nesses contextos acaba revelando uma maior abertura ao pluralismo e enfatizando um perfil progressista e humanitário.

É possível, até mesmo, destacar uma articulação internacional de megacidades que ganha relevância nos últimos anos. Isso porque muitas das questões colocadas como importantes marcos para as futuras gerações, como aquelas decorrentes das mudanças climáticas e da desigualdade social, já se revelam extremamente aflitivas em grandes aglomerações urbanas. Enquanto vários governos nacionais desejam suavizar o tom e frear a intensidade das políticas públicas de combate que são buscadas, são justamente os administradores municipais os mais interessados no avanço da agenda. O exemplo ilustrativo vem da Conferência do Clima da ONU (COP26), pois em 10 de novembro de 2021 diversos países firmaram um acordo para incentivar a venda de carros não poluentes até 2040, consolidando uma frota de veículos limpos, que não foi assinada pelo Brasil ou pelos Estados Unidos, mas que conta com as cidades de São Paulo e Nova York na lista de signatários.[21]

Portanto, resta possível identificar que a governança municipal possui uma inclinação natural à solução de problemas concretos e locais, que dialogam diretamente com os anseios da sua população. Até por isso, as megacidades, de perfil demográfico plural, precisam endossar políticas públicas que efetivamente tutelem essa diversidade e promovam a inclusão. Questões relacionadas à pobreza, à poluição e à imigração são todas muito sensíveis à administração municipal e, dessa forma, se convertem em políticas públicas naturalmente destoantes daquelas sustentadas por um governo federal pouco preocupado com a complexidade inerente aos grandes agrupamentos urbanos e mais preocupado com discursos políticos demagógicos.

 

Uma pessoa, um voto?

Se as cidades têm uma importância destacada em nível internacional, na proteção de direitos básicos humanitários, é necessário enfrentar a questão relacionada à falta de poder político dessas grandes comunidades. De acordo com o artigo 14 da Constituição brasileira, “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. De fato, a igualdade do valor do voto é um dos elementos indispensáveis para a salvaguarda do valor democrático inscrito no projeto constitucional liberal. Isso significa que todas as pessoas, independentemente de suas qualidades individuais, participam do processo eleitoral em condições de igualdade. Ely destaca que o princípio que assegura a cada pessoa um voto é uma marca do republicanismo, informando aquilo que, em diversas constituições, se concebe como democracia.[22] Daí porque afirmar que a igualdade política é um imperativo mínimo dentro da estrutura constitucional.

No entanto, Hirschl destaca que o agrupamento de pessoas em grandes centros urbanos pode impor um desafio adicional ao modelo democrático sustentado na igualdade de votos, a exemplo do estado de São Paulo, onde o voto de um cidadão tem um décimo do peso do voto de um cidadão dos estados de Roraima, Acre ou Amapá.[23] Em que pese a Constituição brasileira tentar manter uma distribuição de assentos políticos condizentes com a distribuição populacional do país, são impostos níveis mínimos e máximos, bem como uma distribuição equitativa para o Senado Federal, que acabam tornando desiguais os pesos de votos depositados conforme a circunscrição geográfica.

O resultado concreto desse sistema de distribuição do peso político para o sistema eleitoral constitucional acaba desembocando em uma sub-representação das megacidades, e a consequente super-representação de áreas de baixa densidade populacional. A possibilidade de quebra discricionária da igualdade política é uma ameaça latente e que, há muito tempo, é enfatizada nos Estados Unidos. Conforme descreve Vickrey, a ameaça de gerrymandering se concretiza em face de sistemas distritais justamente porque, a despeito da existência de supostas regras de zoneamento, haverá sempre uma margem de discricionariedade na definição das fronteiras distritais que possibilita a tentativa de deturpação do peso dos votos.[24]

Tais exemplos são importantes, pois permitem evidenciar como, na maior parte das vezes, as tentativas de alteração do peso proporcional do voto tendem a desfavorecer as megacidades e grandes centros urbanos, em favor de comunidades rurais pouco povoadas. Há, assim, uma colisão entre visões políticas distintas, usualmente opondo os ideais progressistas urbanos à tradição rural conservadora. Até por isso, qualquer tentativa de alteração da igualdade política se revela particularmente sensível ao valor democrático que deveria inspirar o constitucionalismo.

A necessidade de redesenho constitucional do papel ocupado pelas megacidades perpassa, invariavelmente, pela discussão acerca da representação política das populações ali residentes. Um exemplo interessante é o da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, que aprovou uma lei para garantia da igualdade de votos, especialmente fundamentada na necessidade de proteção da população negra. Com receio da criação de distritos que diluíssem completamente as comunidades étnico-raciais, foi proposta a adoção de um sistema de distritos majoritários e minoritários pré-delineados. Entretanto, a análise dos resultados eleitorais posteriores à reforma legislativa denota que as áreas urbanas mais densas, que concentram a maior parte da população não branca, permaneceram sub-representadas nos quadros políticos estadual e nacional.[25] Isso porque são desenhados distritos de modo a concentrar a população não branca e minimizar seu valor proporcional.

É imperativo que se reconheça, ao menos, a particular fragilidade do sistema atualmente prevalente, que enuncia um princípio de igualdade política fundado na máxima “uma pessoa, um voto”, mas que entrega à população urbana, principalmente nas megacidades, uma máxima distinta: “uma pessoa (urbana), meio voto”.[26] No Brasil, mesmo sem a adoção do modelo distrital, tal ressalva é importante, dada a quebra proporcional imposta aos grandes centros populacionais.

A redução da importância do voto dado pelos residentes de megacidades e grandes centros urbanos, especialmente diante do significado político que carregam, prejudica a implementação da melhor representatividade política. O desenho constitucional, no que concerne ao pacto federativo e à posição ocupada pelos municípios, deve também estar consciente dos problemas atinentes à igualdade política, que se encontram ameaçados pela quebra de equiparação de votos dados em um ou outro contexto geográfico. Ainda mais aflitiva é essa constatação quando se evidenciam os interesses políticos por trás da inclinação à sub-representação de populações urbanas usualmente plurais.

 

Em busca de autonomia federativa para as cidades

Considerando os efeitos da globalização sobre o conceito de Estado cunhado na Constituição, faz-se necessário também repensar o constitucionalismo a partir de uma premissa global e também local. Isso implica a necessária internalização de que a disputa acerca da interpretação e aplicação dos direitos fundamentais positivados no texto constitucional deve ocorrer em todos os níveis de governança administrativa. Trata-se de uma premissa básica inscrita na Constituição brasileira, que reconhece a abertura hermenêutica e normativa dos princípios e normas que tratam de direitos fundamentais no âmbito internacional.[27] Seguindo a conclusão de que o constitucionalismo e seus princípios derivam diretamente da nossa concepção de Estado, faz-se necessário investigar quais os impactos suportados na tutela de direitos fundamentais constitucionais quando a noção de Estado extrapola os limites regionais e internacionais.

Portanto, considerando o bloco de constitucionalidade brasileiro em toda sua complexidade, é possível argumentar que o paradigma constitucional contemporâneo reconhece a multiplicação de assembleias específicas e parciais, que tratam de temas diferenciados em diversos níveis de jurisdição, todos pautados na defesa de direitos fundamentais. Contudo, é necessário reconhecer que essa diversidade de espaços não se vincula somente com o ambiente internacional e transnacional, uma vez que também está presente internamente ao ordenamento jurídico a partir da separação vertical e horizontal de poder.

O modelo federativo brasileiro já reconhece a pluralidade de ordens normativas, legitimando a existência de diferentes esferas, em diferentes níveis, para o exercício dos poderes delineados na Constituição. A federação brasileira é composta pela união indissolúvel dos estados e municípios, além do Distrito Federal, que compartilham poderes e funções legislativas e executivas. Consciente dos problemas de sobreposição de competências que poderiam emergir, a Constituição também estabelece divisões de competência e temas que serão afetos à concorrência entre os entes federados. De modo geral, a inspiração central desse modelo reside na necessidade de subdivisão administrativa em níveis que permitam a estratificação de interesses, dos mais gerais e universais, aos mais locais e concretos.

A globalização, enquanto fenômeno sociológico, opera de forma exógena à clássica afirmação da soberania nacional, para introduzir questões de cooperação e articulação internacional relevantes em um contexto de forte intercâmbio socioeconômico entre os diferentes países. Por vezes, essa abertura internacional é tensionada, em face da emergência de discursos neoconservadores fortemente marcados pelo nacionalismo e patriotismo. O ponto principal da oposição ao sistema internacional residiria na tutela de direitos humanos e na criação de organismos de fiscalização.

Entretanto, cumpre destacar que, no âmbito nacional, são esses mesmos elementos que qualificam o embate contra a autonomia dos entes federativos. Isso porque muitos municípios passaram a se vincular às obrigações e compromissos estabelecidos em políticas públicas definidas no plano internacional, reforçando a importância das grandes metrópoles na tutela de direitos fundamentais, ao contrário das posições e preferências ideológicas do governo federal.[28]

Trata-se de um dos pontos centrais destacados na obra de Hirschl, quando afirma a necessidade de empoderamento constitucional das megacidades.[29] O crescimento da população urbana em grandes centros, vinculado com o fenômeno da globalização, repercute em um aumento das obrigações das metrópoles para prover recursos, infraestrutura e serviços de forma eficiente. Essas obrigações estão intimamente relacionadas com compromissos globais de proteção ambiental, manutenção da saúde pública e erradicação da pobreza.

O aumento das obrigações e responsabilidades das megacidades, vinculado com o fenômeno da globalização e a crescente urbanização em países do Cone Sul, indica a necessidade de repensar o papel das megacidades na arquitetura constitucional, principalmente no que toca ao princípio federativo.

As megacidades precisam de poder para proteger seus interesses, pois o interesse do Estado soberano tenderá, normalmente, à dominação política e à supressão da autonomia municipal que possa se revelar atentatória aos seus interesses ideológicos. Ademais, conforme pontua Hirschl, é preciso reconhecer que as cidades são uma importante esfera administrativa para a solução de problemas concretos, em uma escala manejável e com maior proximidade e engajamento.[30] Problemas como o da habitação, da imigração e da proteção ambiental demandam construções específicas e locais, que considerem as características específicas da população afetada e que se operacionalizem de modo efetivo.

Portanto, é possível observar que a edificação de uma administração pública eficiente e a concretização das garantias fundamentais colocadas na Constituição reclamam por uma administração municipal forte e autônoma. O pacto federativo, nesse sentido, deve ser repensado, e o próprio design constitucional poderia ser aprimorado. As megacidades e grandes centros urbanos, enquanto verdadeiras cidades-santuário na frente de implementação de direitos humanos e de articulação internacional para manutenção do bem-estar público, deveriam encontrar maior independência constitucional.

Ademais, sob o ponto de vista da representação política, é indispensável o redesenho do sistema eleitoral com atenção para o valor da igualdade constitucional, especialmente na proteção do equilíbrio representativo nos votos depositados em aglomerações urbanas. Para Hirschl, é o momento de valorização das cidades e dos seus residentes para enfrentamento dos desafios impostos contemporaneamente à governança constitucional.[31]

Em momentos de líderes populistas que defendem a voz do povo anti-instituições, em que grupos conservadores anticonstitucionalismo liberal cooptam não só os legislativos nacionais, mas também os espaços criados pelo direito internacional, é extremamente importante o debate do voto igual, já que não há democracia majoritária que não atenda previamente as condições de igualdade. Assim, a autonomia constitucional das megacidades e a garantia do direito igualitário de um homem, um voto, podem ser instrumentais importantes para uma democracia mais igualitária ao mesmo tempo em que podem evitar o avanço do autoritarismo.

 

[1] UNITED NATIONS, D. of E. and S. A. World Urbanization Prospects: The 2018 Revision. New York: United Nations, 2019. p. 55.

[2] HIRSCHL, R. City, state: constitutionalism and the megacity. New York: Oxford University Press, 2020.

[3] Ibid., p. 45.

[4] NETTO, R. Bolsonaro diz que vai tirar Brasil da ONU se for eleito presidente. In: G1. 18 ago. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/08/18/bolsonaro-diz-que-vai-tirar-brasil-da-onu-se-for-eleito-presidente.ghtml

[5] HIRSCHL, R.; SHACHAR, A. Spatial statism. International Journal of Constitutional Law, v. 17, n. 2, p. 387–438, 2019. p. 431.

[6] Ginsburg, T. How Authoritarians Use International Law. Journal of Democracy, vol. 31, no. 4, Oct. 2020, p. 51.

[7] NORRIS, P.; INGLEHART, R. Cultural backlash: Trump, Brexit, and the rise of authoritarian-populism. New York: Cambridge University Press, 2018. p. 444.

[8] POMPEU, A.; CARNEIRO, L. O. STF reafirma competência de estados e municípios para tomar medidas contra Covid-19. In: JOTA INFO. 15 abr. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-reafirma-competencia-de-estados-e-municipios-para-tomar-medidas-contra-covid-19-15042020

[9] VIVAS, F.; FALCÃO, M. STF contesta Bolsonaro e diz em nota que nunca proibiu governo federal de atuar contra pandemia. In: G1. 18 jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/18/decisoes-do-stf-nao-proibem-atuacao-do-governo-federal-para-combater-a-pandemia-diz-tribunal.ghtml

[10] HIRSCHL, 2020, p. 19.

[11] HIRSCHL; SHACHAR, 2019, p. 438.

[12] DOWDLE, M. W.; WILKINSON, M. A. On the Limits of Constitutional Liberalism: In Search of Constitutional Reflexivity. In: DOWDLE, M. W.; WILKINSON, M. A. (org.). Constitutionalism beyond Liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 17–37.

[13] WEBER, M. Politics as a Vocation. In: GERTH, H. H.; WRIGHT MILLS, C. (org.). From Max Weber: Essays in Sociology. London: Routledge, 2014. p. 89–140.

[14] BARBER, N. W. The Principles of Constitutionalism. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 2–19.

[15] WALDRON, J. Constitutionalism: A Skeptical View. In: WALDRON, J. (ed.). Political Theory: Essays on Institutions. Cambridge: Harvard University Press, 2016. p. 23–44.

[16] ARISTOTLE. The Politics and the Constitution of Athens. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. JOHNSON, C. N. Aristotle’s Theory of the State. London: Palgrave Macmillan, 1990.

[17] HIRSCHL, 2020, p. 50.

[18] FERNANDES, E. A Nova Ordem Jurídico-Urbanística no Brasil. Revista Magister de Direito imobiliário, Registral, Urbanístico e Ambiental, v. 1, n. 2, p. 5–26, 2005.

[19] Ibid.

[20] HIRSCHL, 2020, p. 226.

[21] FIGUEIREDO, P. Na COP26, cidade de SP assina compromisso para incentivar vendas de carros elétricos até 2040. In: G1. 10 nov. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/11/10/na-cop26-cidade-de-sp-assina-compromisso-para-proibir-vendas-de-carros-nao-eletricos-ate-2040.ghtml

[22] ELY, J. H. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. p. 122.

[23] HIRSCHL, 2020, p. 177.

[24] VICKREY, W. On the Prevention of Gerrymandering. Political Science Quarterly, v. 76, n. 1, p. 105–110, 1961. p. 105.

[25] WAYMER, D.; HEATH, R. L. Black Voter Dilution, American Exceptionalism, and Racial Gerrymandering: The Paradox of the Positive in Political Public Relations. Journal of Black Studies, v. 47, n. 7, p. 635–658, 2016. p. 10.

[26] HIRSCHL, 2020, p. 176.

[27] PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[28] SASSEN, S. Neither global nor national: novel assemblages of territory, authority and rights. Ethics & Global Politics, v. 1, n. 1–2, p. 61–79, 2008.

[29] HIRSCHL, 2020.

[30] Ibid., p. 27.

[31] Ibid., p. 234.

Originalmente publicado em: https://inteligencia.insightnet.com.br/constitucionalismo-multinivel-do-global-a-megacidade/

Democracia em risco: o caso brasileiro

Democracia em risco: o caso brasileiro

Por Estefânia Barboza

 

O número de democracias eleitorais cresceu de 35, nos anos 70 à 110 em 2014 (Fukuyama, 2015), seguindo até este momento a previsão de Fukuyama sobre o Fim da História, no qual o autor afirma que o período da história do pós-guerra termina com a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final e ideal de governo no Mundo. Entretanto, o próprio Fukuyama analisa o processo de recessão democrática que se inicia em 2006, mas que apenas ganha força a partir de 2014. Por outro lado, órgãos de análise dos índices de democracia no Mundo têm alertado para as quedas dos regimes democráticos. O Freedom’s House alerta que em todas as regiões do Mundo a democracia está sob ataque de líderes populistas, com queda nos índices de liberdade de imprensa, liberdade religiosa, independência do Judiciário, liberdade acadêmica e outros direitos de liberdade.

Pelo Democracy Report do V-DEM Institute, o Brasil está entre os 10 países que mais se autocratizaram no Mundo, passando a ser considerado uma democracia meramente eleitoral e com uma deterioração acelerada de direitos e liberdades, estando atrás apenas da Turquia, Hungria e Polônia. Para além disso o V-DEM ressalta que a autocratização normalmente segue um mesmo padrão, atacando num primeiro momento a mídia e a sociedade civil e se utilizando da desinformação para polarizar a sociedade e atacar os opositores políticos, aliado ao ataque às instituições.

Na  semana passada, o IDEA publicou o relatório sobre Democracia nas Américas em que ressalta que apesar dos países no continente terem abraçado a 3ª onda de democracia e terem fortalecido suas instituições neste período, passam agora por um retrocesso democrático que vem se acelerando em pouco tempo. A polarização política, a fragmentação partidária, a crise de representatividade e o descontentamento dos cidadãos com as elites políticas, seriam causas deste processo de autocratização da região, para além de que os atores políticos de hoje seriam bem diferentes daqueles presentes no período da transição democrática.

Ainda, é de se preocupar que por este Relatório do IDEA, o Brasil é o país que enfrenta o maior retrocesso democrático do mundo, com o maior número de atributos que medem o nível de sua democracia em queda. Os ataques às bases da democracia liberal vêm sendo orquestrados pelo governo federal: i) ataques a professores e autonomia universitária; ii) ataques a cientistas e censura a órgãos de pesquisa; iii) ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e Ministros; iv) ataques à integridade do processo eleitoral; v) ataques a opositores políticos com o uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos do Presidente; vi) ataques à imprensa e a jornalistas; vii) presença de militares em cargos no governo federal; e viii) cooptação de órgãos de controle.

Um ponto que chamou a atenção no referido relatório diz respeito aos ataques aos organismos eleitorais que se tornaram mais frequentes na região, como uma prática adotada por líderes populistas da ultradireita, estratégia já utilizada por Trump, que levou, inclusive, à invasão do Capitólio nos Estados Unidos. Tática que é reproduzida no ambiente brasileiro, a partir da divulgação em massa de notícias falsas, com a finalidade da corrosão da credibilidade no processo eleitoral. 

Estes tipos de ataques foram observados não apenas no Brasil, mas também em El Salvador, México e Perú e buscam justamente criar uma crise de legitimidade inexistente para desacreditar o processo eleitoral e as instituições de controle. Os processos de desinformação e ataque às eleições já vêm sendo objeto de estudo pela Universidade de British Columbia, que apontou que atores estrangeiros podem atacar alguns alicerces da democracia, tais como: i)  oportunidades justas para a participação do cidadão; ii)  deliberação pública livre; e iii) integridade eleitoral. Embora os ataques digitais não consigam impactar na integridade dos processos eleitorais, eles buscam colocar em dúvida sua legitimidade por meio de um processo violento e articulado de produção de fake News. 

No caso do Brasil, é explícito o ataque promovido por Bolsonaro às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Ministros do STF e TSE, especialmente ao atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso e ao Ministro Alexandre de Morais, que exercerá a presidência do Tribunal no período das eleições presidenciais de 2022. Bolsonaro alega que houve fraude às urnas eletrônicas nas eleições de 2018 e que acontecerá novamente em 2022. Entretanto, é de se destacar que as urnas eletrônicas foram estabelecidas no Brasil em 1996 e que desde então, ao contrário do alegado pelo Presidente, justamente evitou fraudes existentes no processo eleitoral brasileiro.

A gravidade do tema impõe acender um alerta vermelho na medida em que um dos princípios essenciais para a estabilidade democrática é, justamente, o princípio da legitimidade das eleições, entretanto, resultados de pesquisas apontam que na América Latina a credibilidade no processo eleitoral e nos organismos eleitorais caiu de 63% da população em 2004 para 45% em 2019. O que serve para colocar o perigo populista dos ataques em um radar máximo de atenção que sirva para assegurar o funcionamento das eleições periódicas e a estabilidade democrática. 

Conforme alerta Scheppele, nenhuma autocracia se instala sem o apoio de grande parte da população. E os líderes populistas se utilizam da crise de credibilidade nas instituições e na má prestação de serviços públicos básicos para avançar sua agenda autoritária.

É preciso pensar nas causas da desconfiança nas instituições e na própria democracia. O latinobarômetro aponta que a satisfação com a democracia na América Latina cai de 45% em 2009 para 25% em 2020. Embora este mal-estar possa ser muito mais com os governos do que com a democracia em si, Fukuyama também aponta que  a ausência de políticas públicas e ineficiência dos Estados para promover direitos sociais básicos de saúde e de educação seria uma das causas de crise da democracia.

Juan Linz (1999, p. 203) também já apontava, em relação ao Brasil, que “a distribuição de renda mais desigual, e os piores níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e sul-americanos” dificultou a tarefa de consolidação da democracia e, em 1992, o apoio à democracia por brasileiros era muito mais baixo do que o apoio de uruguaios, portugueses, espanhóis ou gregos no mesmo período. 

Para além disso é certo que esta conjuntura também facilita os processos recentes de erosão democrática que se diferenciam de golpes abertos à democracia e rupturas constitucionais. A erosão atua justamente por dentro das instituições, cooptando-as para que não possam exercer seu trabalho com a autonomia necessária para a regulação e controle do poder político. Quando um governante autoritário busca não só atacar os outros poderes, mas também fragilizar os órgãos que possuem autonomia para impedir sua atuação inconstitucional e até criminosa, observa-se também a fragilização democrática, como no caso brasileiro.

O Brasil se insere, deste modo, no contexto dos países em retrocesso democrático por meio de um conjunto de ataques aos alicerces do constitucionalismo liberal, num processo que se utiliza da desinformação e baixo apoio da população à democracia.  Por outro lado, Bolsonaro segue as táticas adotadas por outros líderes populistas com ataques à imprensa, às Cortes e ao processo eleitoral, com discurso neoconservador e antagônico à proteção de direitos humanos.

É necessário neste momento que Cortes e Observadores internacionais se aliem à comunidade acadêmica na defesa da democracia e da legitimidade institucional. O caso brasileiro terá impacto não só para a América Latina, mas pode ser um case de sucesso do avanço autoritário ou de sucesso da estabilidade institucional democrática.

É urgente compreender, deste modo, o contexto político mais amplo em que se inserem as táticas de ataques à democracia e de organização da ultradireita mundial e trabalhar os diferentes níveis – internacional, regional e nacional – de proteção da democracia e dos direitos humanos de modo global. Não haverá contenção apenas individual para a onda autoritária que se avizinha e que pode ser duradoura.

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Professora de Direito Constitucional na Universidade Federal do Paraná e no Centro Universitário Internacional, cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Ela é mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Visiting Research Fellow at Osgoode Hall Law School, Canada, 2008-2009.  Professora visitante na Universidade de Toronto (2016), na Universidade de Palermo e Messina, Itália (2019). Co-Presidente da Associação Ítalo-Brasileira de Professores de Direito Administrativo e Constitucional (AIBDAC). Co-Presidente da ICON-S Brasil. Menção Honrosa no Prêmio Capes Tese de 2012 pela tese “Stare Decisisis, Integrity and Legal Security: critical reflections from the approach of common law and civil law systems”. Tem experiência na área do direito, com ênfase no direito público, atuando principalmente nos seguintes temas: constitucional, constitucionalismo abusivo, direito constitucional comparado, direitos fundamentais, direitos humanos, democracia, jurisdição constitucional, judicialização da política, precedentes e common law.

Originalmente publicado em: https://www.ibericonnect.blog/2021/12/democracia-em-risco-o-caso-brasileiro/

Imunidade Parlamentar e Feminicídio: 10ª Condenação do Brasil na Corte IDH, Caso Márcia Barbosa

Imunidade Parlamentar e Feminicídio: 10ª Condenação do Brasil na Corte IDH, Caso Márcia Barbosa

Por Melina Girardi Fachin, Isabella Louise Traub Soares de Souza, Erick Kiyoshi Nakamura e Sthefany Felipp dos Santos

 

O Brasil foi responsabilizado internacionalmente, de forma unânime, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. A sentença, proferida em 07 de setembro de 2021 e publicada no dia 24 de novembro de 2021, foi a 10ª condenação do Estado brasileiro, sendo a primeira responsabilização do país por feminicídio e o primeiro caso julgado pela Corte IDH sobre o tema da imunidade parlamentar.

Este caso já foi tema de artigo pelo Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Cosmopolita, antes do caso ter sido julgado, intitulado como Feminicídio na América Latina: o caso Márcia Barbosa vs. Brasil.

 

O Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil: fatos e trâmite perante a CIDH

O Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros se refere à responsabilidade internacional do Estado pelo assassinato da jovem Márcia Barbosa de Souza, em 18 de junho de 1998, que teve seu corpo encontrado em um terreno baldio nos arredores da cidade de João Pessoa/Paraíba.

Após investigação policial, o crime foi atribuído a Aércio Pereira de Lima, deputado estadual à época e suposto amante da vítima. Devido ao cargo político ocupado, a Procuradoria-Geral de Justiça se viu impedida de iniciar o processo criminal em desfavor do deputado, em virtude da imunidade parlamentar, que previa a necessidade de licença prévia, negada, por duas vezes, pela Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Em 20 de dezembro de 2001, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 35/2001, a qual previu a possibilidade de instauração de processo penal em face de parlamentares independentemente de autorização por parte da Casa Legislativa. Entretanto, as autoridades competentes não deram encaminhamento à ação penal até março de 2003. Após mais de 4 anos do envio de informações, o caso ainda não havia sido julgado e tramitava em plena morosidade. Apenas em setembro de 2007 a sentença condenatória foi exarada, tendo sido objeto de recurso, que, todavia, não foi apreciado em razão do falecimento superveniente de Pereira de Lima.

O caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste e o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), em 28 março de 2000, sob alegação de violações de direitos de Márcia Barbosa de Souza por parte do Estado brasileiro relativas aos artigos 2, 4, 24, 25 e 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), bem como aos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida por Convenção Belém do Pará.

O Relatório de Admissibilidade nº 38/07 foi aprovado pela CIDH em 26 de julho de 2007, que entendeu pela admissão da petição em face do Estado Brasileiro em relação aos artigos 4, 8.1, 24 e 25 da CADH em conexão ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como ao artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

Após a análise de provas, reunião e estudo de relatórios, pesquisas e demais informações, bem como a partir de materiais produzidos pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pelo Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e pelo Senado brasileiro, acerca da violência contra a mulher e o não cumprimento integral da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), a CIDH emitiu, em 12 de fevereiro de 2019, o Relatório de Mérito nº 10/19.

No Relatório, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro que adote as devidas medidas para: i) reparar as violações de direitos humanos no aspecto material e imaterial, com medidas de satisfação e compensação econômica; ii) dispor de medidas de atenção à saúde física e mental para a reabilitação dos pais de Márcia Barbosa de Souza, a partir de seu consentimento e vontade; iii) reabrir a investigação de forma diligente, efetiva e dentro de um prazo razoável, visando a identificar os responsáveis e responsabilidades que culminaram na impunidade; e vi) dispor de mecanismos de não repetição, adequando o quadro normativo como forma de assegurar que a imunidade parlamentar seja bem delimitada e regulada, que as decisões relacionadas à aplicabilidade de imunidade sejam bem fundamentadas, e visando ao cumprimento integral da Lei Maria da Penha, que se disponha de políticas públicas e medidas para prevenir, investigar e punir a violência contra mulheres no Brasil.

Em 11 de julho de 2019, a CIDH apresentou o caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil à Corte IDH, tendo concluído que o fato se constituiu em um ato gravíssimo de violência contra a mulher, afetando a integridade psicológica de seus familiares, o que se comprova pelo corpo jogado em um matagal após ter sofrido diversas violências e de ter ido a óbito, bem como as falhas na investigação, a morosidade na tramitação da ação penal contra Aércio Pereira de Lima e a sua impunidade. A CIDH apontou que a imunidade parlamentar gerou uma demora excessiva e de caráter discriminatório no processo penal, tendo a investigação durado mais de 9 anos, o que resultou em violação da garantia ao prazo razoável de duração do processo e em denegação à justiça. Entendeu ainda que não foram esgotadas todas as linhas investigativas, sendo caracterizada a violação ao dever de investigar com a devida diligência. Assim, a CIDH concluiu que o Estado brasileiro foi responsável pela violação dos artigos 5.1, 8.1, 24 e 25.1 da CADH, com relação ao artigo 4, 1.1 e 2, do mesmo instrumento, bem como pela violação ao artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

 

A Responsabilização Internacional do Estado pela Corte IDH: questões de mérito

O caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil é pioneiro porque trata sobre feminicídio aplicado à realidade brasileira e sobre o uso indevido da imunidade parlamentar, de modo primeiro, na jurisprudência da Corte. Trata-se de um homicídio cometido em razão de gênero, que envolve assimetria e imposição de poder econômico e político do agressor, um homem, branco, deputado estadual, à vítima, que teve seu corpo encontrado num terreno baldio, com indícios de ter sido arrastado, golpeado e violado.

A decisão da Corte IDH se pautou, para além das reparações, em dois pontos: i) direitos às garantias judiciais, proteção judicial e igualdade perante à lei, em relação às obrigações de respeitar e garantir o dever do Estado em adotar disposições de direito interno e obrigações previstas no artigo 7º da Convenção Belém do Pará; e ii) direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

Acerca do primeiro ponto, a Corte IDH tratou sobre: i) aplicação indevida da imunidade parlamentar; ii) falta de devida diligência na investigação acerca dos demais suspeitos; iii) violação do prazo razoável; iv) utilização de estereótipos de gênero nas investigações; e v) conclusões.

A Corte IDH entendeu que a imunidade parlamentar somente pode ser analisada perante um caso concreto, para o fim de evitar que decisões adotadas pela Casa Legislativa sejam arbitrárias e, como consequência, ensejem impunidade. Para tanto, a Corte considera que a aplicação do instituto no caso concreto deve: “i) seguir um procedimento célere, previsto em lei ou no regimento interno do órgão legislativo, que contenha regras claras e respeite as garantias do devido processo; ii) incluir um teste de proporcionalidade estrito, através do qual se deve analisar a acusação formulada contra o parlamentar e levar em consideração o impacto ao direito de acesso à justiça das pessoas que podem ser afetadas e as consequências de se impedir o julgamento de um fato delitivo, e iii) ser motivada e ter sua motivação vinculada à identificação e justificativa da existência ou não de um fumus persecutionis no exercício da ação penal proposta contra o parlamentar”.

Tudo isso se confere, para a Corte, diante da necessária ponderação entre a garantia do exercício do mandato e o direito de acesso à justiça, bem como a avaliação de impactos e consequências. Neste sentido, a motivação e a boa fundamentação das decisões de órgãos legislativos relativas à imunidade parlamentar são exigíveis para que não se incorra na violação de direitos e em danos materiais e imateriais. Acerca deste ponto, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro obstacularizou de forma arbitrária o acesso à justiça por parte dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, o que se vislumbra das irregularidades do processo de denegação da licença pela Assembleia Legislativa, além da falta de motivação das decisões por ela adotadas, que não realizam exame de proporcionalidade, tornando os mecanismos existentes à época como propícios à impunidade e tornando o acesso à justiça ilusório.

Quanto à falta de devida diligência na investigação acerca dos outros suspeitos, o entendimento da Corte IDH recordou que, quando existem indícios ou suspeitas de violência de gênero, a falta de investigação se mostra discriminatória e pode constituir em uma forma de discriminação baseada em gênero. Esta ineficácia judicial pode propiciar um ambiente de impunidade, facilitando a repetição de atos de violência e deixando a mensagem de que a violência de gênero pode ser tolerada ou aceita, o que favorece a perpetuação de crimes e o sentimento de insegurança por parte das mulheres.

Além disso, quando há a morte de uma mulher, a investigação deve ser tomada a partir de uma perspectiva de gênero. Lembrou a Corte IDH que o dever de investigar é uma obrigação de meio e não de resultado, devendo ser séria, objetiva e efetiva, em busca da verdade e da responsabilização dos envolvidos. Desta forma, entendeu-se que o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de atuar com a devida diligência para investigar o caso, de forma a possibilitar o descobrimento da real participação de todos os suspeitos pelo feminicídio de Márcia Barbosa de Souza. Mais uma vez, a malversação do uso do instituto e a discriminação de gênero das autoridades investigativas impediram o acesso à justiça.

Em relação à violação da garantia do prazo razoável, a Corte IDH assinalou que é direito das vítimas e seus familiares que seja feito todo o possível para conhecer a verdade dos fatos, devendo o caso ser investigado, e os responsáveis julgados e responsabilizados. Quanto a este ponto, assinalou que não seria necessário analisar o direito à garantia de prazo razoável à luz do elementos estabelecidos em sua jurisprudência, pelo fato de que o processo criminal demorou quase 5 anos para ser iniciado devido à negativa arbitrária da Assembleia Legislativa da Paraíba, aplicando a imunidade parlamentar que, neste caso, degenerou-se em “impunidade parlamentar”, como textualmente indica a sentença. Desta forma, a Corte IDH considerou a aplicação do instituto, no caso, como arbitrária e, além disso, como excessiva a demora processual, para além dos quase 10 anos dos fatos à sentença condenatória, causando a sensação de impunidade.

A Corte IDH assinalou que, apesar da obrigação geral do artigo 1.1 da CADH se referir ao dever do Estado de respeitar e garantir direitos sem discriminação, o artigo 24 se refere ao direito de igualdade perante à lei, de maneira que se proíbe a discriminação de direito ou fato, não se limitando ao estabelecido pelo artigo 1.1, pois o princípio da igualdade e da não discriminação é salvaguarda de outros direitos, nas legislações internas e internacionais. Especificamente quanto à violência contra a mulher, o Comitê CEDAW da Organização das Nações Unidas se manifestou no sentido de que a presença de estereótipo de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o gozo e efetivação dos direitos humanos por mulheres. A Corte IDH reconheceu que o estereótipo de gênero afeta a objetividade daqueles encarregados de investigar denúncias relacionadas à temática, o que acaba interferindo no seu entendimento acerca dos fatos que culminaram na violência, avaliação e credibilidade trazida pela própria vítima. Ou seja, os estereótipos distorcem percepções e acabam se pautando em crenças e ideias pré concebidas que distorcem os fatos e revitimizam as vítimas. Neste sentido, considerou-se que estereótipos de gênero são prejudiciais e incompatíveis com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Durante o processo do caso em tela, a imagem de Márcia Barbosa de Souza foi deturpada. Por todos os motivos expostos, a Corte IDH concluiu que o processo penal teve um caráter discriminatório por razão de gênero, devendo o estado adotar medidas para garantir a igualdade material de acesso à justiça às vítimas mulheres.

Acerca deste primeiro grande ponto, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro violou o direito às garantias judiciais, igualdade perante à lei e a proteção judicial, conforme disposto nos artigos 8.1, 24 e 25 da CADH, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e com as obrigações do artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

Quanto ao segundo ponto tratado na decisão, relacionado ao direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, a Corte IDH relembrou o seu entendimento de que familiares das vítimas podem também ser vítimas, bem como o direito à integridade psíquica e moral dos familiares e outras pessoas relacionadas. Considerando a repercussão midiática do caso, os danos sofridos pelos familiares e, inclusive, a realização de uma homenagem da Assembleia Legislativa da Paraíba ao ex-deputado, a Corte concluiu evidente o impacto à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

 

As medidas de reparação como possibilidade de transformação

No cumprimento de seu mandato transformador, a decisão da Corte IDH quanto ao Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, não focou apenas nas vítimas e seus familiares, mas na mudança estrutural, de forma a obrigar o Estado brasileiro a se comprometer alterar substancialmente sua atuação no tocante à violência de gênero. Neste sentido, considerando o mérito e as violações ocorridas à CADH e à Convenção Belém do Pará, a Corte tratou em suas reparações sobre: i) obrigação de investigar os fatos e identificar, julgar e responsabilizar os responsáveis; ii) medidas de satisfação; iii) medidas de reabilitação; iv) garantias de não repetição; e v) indenização compensatória.

Assim, a Corte IDH considerou a obrigação do Estado em combater a impunidade por todos os meios disponíveis, tendo em vista que a não investigação completa e efetiva sobre os fatos constitui em violação ao direito do conhecimento da verdade sobre os fatos. Determinou que as investigações tenham uma ótica de gênero e também para que não sejam permeadas por estereótipos de gênero, para que outras vítimas não sejam revitimizadas. Além disso, tendo em vista o dano gerado, entendeu pela não procedência de eventual reabertura de investigações quanto aos possíveis quatro partícipes do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza.

Acerca das medidas de satisfação, a Corte assinalou que o Estado deve publicar, no prazo de seis meses: i) resumo oficial da Sentença elaborado pela Corte IDH, em Diário Oficial, assim como nos sítios eletrônicos da Assembleia Legislativa da Paraíba e do Poder Judiciário da Paraíba, e em outros diários de circulação nacional; ii) deixar disponível a sentença em sua íntegra, por um período de ao menos 1 ano, nos sítios eletrônicos do Estado da Paraíba e do Governo Federal, devendo o Estado informar quando do cumprimento de tais publicações. Além disso, ordenou ao Estado, com o fim de reparar os danos causados e visando a não repetição, que seja realizado um ato de reconhecimento da responsabilidade internacional em relação ao presente caso, podendo ser realizado na Assembleia Legislativa da Paraíba e devendo ao menos uma autoridade do Ministério das Relações Exteriores e da Assembleia Legislativa da Paraíba assistirem. Tal ato deverá ser realizado em comum acordo com os familiares de Márcia Barbosa dos Santos.

Quanto às medidas de reabilitação, a Corte IDH determinou que os fatos do caso geraram graves violações à integridade pessoal dos familiares da vítima, considerando necessária, portanto, uma medida de reparação visando a atenção médica, psicológica e/ou psiquiátrica adequadas, bem como pagamento em dinheiro para custeio dos gastos em tratamentos necessários.

Em relação às garantias de não repetição, a Corte IDH recordou que é dever do Estado prevenir que violações de direitos humanos ocorram, devendo adotar medidas que sejam efetivas. Neste sentido, relembra dos avanços normativos realizados após os fatos do caso, como a Emenda Constitucional nº 35/2001, a Lei Maria da Penha, a inclusão do feminicídio no rol de crimes do Código Penal brasileiro, bem como os programas, os projetos e as iniciativas que visam ao enfrentamento à violência e discriminação contra a mulher. Todavia, o cenário ainda é de escassos dados oficiais e não oficiais disponíveis, para além do contexto de discriminação e violência estrutural, especialmente, quanto às mulheres afrodescendentes e pobres. Desta forma, a Corte entendeu necessária a coleta de informações sobre as várias formas de violência de gênero, visando à construção de políticas públicas efetivas e estratégias para prevenir e erradicar a discriminação e violência. Indicadores são fundamentais para pensar políticas públicas de proteção aos direitos humanos. Assim, ordenou que o Estado implemente um sistema nacional e centralizado de recompilação de dados por idade, raça, classe social, perfil da vítima, lugar da ocorrência, perfil do agressor, relação com as vítimas, meios e métodos utilizados, dentre outras variáveis, como forma de permitir a análise quantitativa e qualitativa dos fatos que geram a violência contra a mulher, e feminicídios. Tais informações deverão ser difundidas pelo Estado anualmente, garantindo o acesso à informação por parte de todos.

Ainda sobre as garantias de não repetição, a Corte IDH entendeu que a capacitação dos agentes que atuam na administração da justiça deve se dar a partir da perspectiva de gênero, assim, deve o Estado implementar uma plano de formação e capacitação continuada, além da sensibilização das forças policiais quanto à investigação com perspectiva de gênero e raça. Além disso, ordenou à Assembleia Legislativa da Paraíba que realize uma jornada de reflexão e sensibilização, sobre feminicídio, violência contra a mulher e a utilização da imunidade parlamentar, a partir do conteúdo da sentença proferida. Ordenou, ainda, a adoção e implementação de um protocolo nacional com critérios compreensíveis e uniformes, para investigação do crime de feminicídio, devendo estar alinhado ao Modelo de protocolo latinoamericano de investigação de mortes de mulheres por razões de gênero, bem como à jurisprudência da Corte IDH. Por último, entendeu pela necessidade de adequação normativa interna ao estabelecido pela sentença, a respeito da imunidade parlamentar e de sua aplicação, do processo penal contra um membro de órgão legislativo e da salvaguarda do direito de acesso à justiça.

Por fim, acerca das indenizações compensatórias, a Corte IDH entendeu que houve dano material e imaterial aos familiares da vítima, determinando a sua compensação de forma pecuniária, o qual inclui o montante pela indenização pela impossibilidade de reabertura da investigação penal sobre os possíveis partícipes, bem como os danos causados à saúde dos familiares da vítima.

 

Reflexões sobre o caso Márcia Barbosa de Souza: entre avanços, proteções, imunidades e transformações

Como assegurado, o caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, foi o primeiro caso de condenação do Estado brasileiro sobre feminicídio e o primeiro julgado da Corte IDH sobre imunidade parlamentar, trazendo diretrizes iniciais sobre a temática, um precedente importante à luz dos direitos humanos. Pelo impacto do instituto da imunidade parlamentar e pela falta de enfoque de gênero foram observadas deficiências na investigação e demora na abertura de processo, culminando no não estabelecimento da verdade dos fatos em relação ao ex-parlamentar por seu falecimento superveniente, quase dez anos após o episódio. As investigações conduzidas em face dos demais envolvidos foram arquivadas por falta de provas. A decisão da Corte considera que o Estado Brasileiro prestou proteção insuficiente aos direitos da vítima e o condena a prestar reparações aos seus familiares, bem como a tomar providências para garantir a não repetição do ocorrido, centradas na luta contra o feminicídio e a violência contra a mulher e na reflexão acerca da utilização da figura da imunidade parlamentar.

No que toca à violência de gênero, o contexto de violência contra as mulheres no Brasil, na época dos fatos do caso Márcia Barbosa de Souza à atualidade, chama atenção, pois se mostra como um problema sistêmico e estrutural. Por mais que normativas, programas e ações em prol ao enfrentamento da violência de gênero sejam fomentados em âmbito nacional, ainda faltam dados, formações e capacitações aos agentes públicos, educação de gênero nas escolas, dentre outras questões, o que dificulta a construção de políticas públicas efetivas e eficazes no combate à violência de gênero. Os informes sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, publicados em 1997 e 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, se analisados em conjunto, apontam para a incapacidade do Estado brasileiro em implementar a legislação nacional e os tratados sobre a temática de forma a combater efetivamente a violência contra mulher.

O desvio na utilização das imunidades formais, ainda sob a previsão da redação original da Constituição de 1988, instou a modificação do texto por emendas e aprimorou a possibilidade de responsabilização e transparência. Contudo, não resolveu todo o problema. A Emenda Constitucional nº 35/2001, motivada, inclusive, com a repercussão internacional deste caso à época, excluiu a necessidade de licença prévia para o processamento criminal de parlamentar, dando à Casa legislativa a possibilidade de sustar o andamento de processos, em juízo político, desde que o crime tenha ocorrido após a diplomação. Além disso, retirou a possibilidade de a deliberação sobre a prisão de parlamentar ser feita de forma secreta, o que foi estendido à decisão de perda do mandato pela Emenda nº 76/2013.

A condenação vem nos lembrar que em caso de abuso das prerrogativas, ato considerado incompatível com o decoro parlamentar, o Legislativo deve promover a cassação do mandato eletivo em processo interno que respeite o devido processo legal, seja transparente e possua tempo razoável de duração. O descumprimento a este comando demonstra desrespeito ao parlamento e à própria Constituição.

Além disso, é certo que, conquanto seja essencial à proteção do parlamento, as imunidades formais não são estanques, submetendo-se a debates e a deliberações constantes – de forma a garantir o livre exercício da atividade parlamentar, imune às perseguições arbitrárias dos órgãos de controle, mas impassível de converter a imunidade formal em impunidade material, como ocorreu no caso de Márcia Barbosa.

Por todo o exposto, nestes dois pontos que a sentença pioneiramente aponta, ainda há muito que fazer para transformar a realidade brasileira adequada ao padrão de proteção dos direitos humanos e aos padrões interamericanos. Espera-se que o cumprimento desta obrigação internacional nos aproxime deles e, além de fazer justiça a Márcia e seus familiares, evite outras graves violações de direitos como esta.

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* Melina Girardi Fachin é Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UFPR. Pós doutorado em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra. Fundadora e Coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR). Isabella Louise Traub Soares de Souza é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Fundadora e Presidente do Instituto de Políticas Públicas Migratórias (IPPMI). Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR) desde 2020. Erick Kiyoshi Nakamura é Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, com bolsa CAPES/PROEX. Graduado em Direito pela UFPR. Associado Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (PARLA). Sthefany Felipp dos Santos é Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR) desde 2020.

Originalmente publicado em: https://www.cosmopolita.org/post/imunidade-parlamentar-e-feminic%C3%ADdio-10%C2%AA-condena%C3%A7%C3%A3o-do-brasil-na-corte-idh-caso-m%C3%A1rcia-barbosa

O STF, a ADPF 709 e a sala de situação

O STF, a ADPF 709 e a sala de situação – um diálogo ilusório

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CAROLINA SANTANA e LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA

ADPF 709 tem se tornado significativa por pelo menos 5 razões: por quem propôs; pelo que ela pede; pelas decisões iniciais, tanto do ministro relator, quanto do Plenário do STF; pela Sala de Situação; e pelo que tem se tornado.

Neste breve artigo, resumimos alguns pontos de uma pesquisa mais ampla sobre a ADPF 709 e a Sala de Situação[1]. Dentre os pontos indicados acima, enfocamos especialmente a Sala de Situação – espaço que parece tão inovador, quanto promissor. Só parece. Vejamos.

Por quem propôs:

A ADPF 709 foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma entidade que reúne diversos grupos, coletivos, povos e comunidades indígenas de todo o País. Seu principal advogado na ADPF 709 é um indígena terena, Luiz Eloy Terena.

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, há tempos vem defendendo reler, no art. 103, IX, CRFB/88, o sentido de “entidade de classe de âmbito de nacional”, para incorporar, além das categorias profissionais e grupos econômicos, entidades que atuem na defesa de grupos vulneráveis ou minoritários. Com a propositura da ADPF 709, Barroso reiterou esse entendimento, e foi além.

Apesar de a APIB não ser constituída formalmente como associação, não possuir um CNPJ, aceitou sua atuação como entidade de classe de âmbito nacional tendo em vista sua plural e ampla composição, bem assim o direito dos indígenas de exercerem a representação judicial e direta de seus interesses (art. 232, CRFB/88). Um avanço, portanto, em termos de reconhecimento da legitimidade ativa e da visibilidade e voz dos povos indígenas por eles mesmos. A decisão do ministro relator foi, inclusive, referendada pelo Plenário do STF.

O que ela pede

Busca evitar e reparar atos comissivos e omissivos do Poder Público, especialmente do Governo Federal, que têm exposto comunidades indígenas, inclusive de indígenas isolados, à pandemia da Covid-19. Povos indígenas são minoria sistematicamente negada e invisibilizada pela nossa história e instituições. Mas especialmente negada, silenciada e invisibilizada pelo presidente Bolsonaro e seu governo.

Ademais, indígenas têm vulnerabilidades socioepidemiológicas, e têm sofrido mais na pandemia[2]. Merecem maior atenção do estado. No entanto, tem ocorrido justamente o contrário. Ações e omissões sistemáticas têm levado à morte um sem número de indígenas. O povo Juma, por exemplo, perdeu seu último homem na pandemia.

Decisões iniciais do relator e do STF

As decisões do ministro Luís Roberto Barroso e do Plenário do STF foram relevantes e promissoras. Reconheceram a legitimidade ativa, deram visibilidade e voz às demandas urgentes e emergentes dos povos indígenas durante a pandemia. A decisão monocrática do ministro Barroso, determinando uma série de medidas ao Governo Federal e aos diversos órgãos que deveriam estar envolvidos e dedicados à proteção dos direitos indígenas (plano de contingência, instalação da sala de situação etc.), foi necessária e bem-vinda. O endosso maciço do Plenário também. Barroso, aliás, elencou esta decisão como uma das 15 decisões históricas do Tribunal.

Mas seu significado positivo parece ter ficado por aí, em seu começo e em sua intenção. O que deveria produzir de resultados concretos, parece não vir. Ou vir a conta-gotas. O tempo que passa, as medidas que não se tomam, são o tempo do extermínio continuado dos povos indígenas e as ações e omissões que dão cabo deles. O povo Juma está condenado ao desaparecimento. O cacique Aritana morreu. Há muitas e muitos outros. Todos os nomes deveriam constar aqui. Todos.

Instalada com base nos pedidos “a” e “b” da petição inicial, a Sala de Situação tem o objetivo de garantir “a imprescindibilidade de diálogo intercultural, em toda questão que envolva os direitos de povos indígenas”. Mas não é nova, nem foi criada pelo STF. Está prevista na Portaria Conjunta 4094/18, que a APIB acionou o Poder Judiciário para fazer cumprir.

Pela Portaria, a Sala de Situação deve ser composta por membros indicados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena/Ministério da Saúde e membros indicados pela Funai, e pode ser integrada também por colaboradores convidados, com a anuência conjunta de ambos os órgãos (art. 12, § 2º). Trata-se de instância de caráter técnico com vistas a “subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” (art. 12 caput).

Instalada em 17 de julho de 2020, a primeira reunião da Sala de Situação contou com mais de 60 participantes. Representando o governo federal: generais, brigadeiros e coronéis do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), representantes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), o Ministério da Defesa (MD), representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai). Representando a APIB, quatro indígenas, entre eles um dos advogados da ADPF[3].

Como apoio técnico, três indigenistas[4] e dois médicos sanitaristas[5], além do Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU). A primeira reunião foi conduzida pelo Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Augusto Heleno. O GSI segue conduzindo as reuniões há mais de dez meses. Embora haja previsão na Portaria 4094/18 para participação de colaboradores convidados, pressupõe-se que sejam especialistas no assunto.

O protagonismo das forças militares na Sala dificultou, desde o início, qualquer possibilidade de diálogo e adoção de critérios técnicos, a ponto de o ministro relator ter precisado nomear observadores para as reuniões a fim de arrefecer os debates e permitir análises mais técnicas. O teor da Portaria 4094/18, protetiva da saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato, perdeu-se diante da configuração que a Sala tomou.

Nisso também consiste a vulnerabilidade política[6] a que estão sujeitos os povos isolados – não apenas a sua não participação na política tradicional, como no desconhecimento e desuso das normativas protetivas de seus direitos, especialmente no Poder Judiciário.

Os indígenas indicados pela APIB para representarem a Articulação nas reuniões da Sala de Situação não veem o espaço como um local de diálogo intercultural. Eriverto Marubo afirma que o fato de a instância estar sendo coordenada por militares demonstra que não há interesse de seguir os procedimentos usuais de diálogo, como em outros governos.

Para ele, que vê nessa escolha de representantes uma postura de intimidação, com pessoas ali colocadas para convalidar as ações governamentais já decididas previamente. Para Marubo, o espaço aberto pela ADPF 709 está sendo utilizado pelo governo para chancelar os seus interesses[7].

Para Angela Kaxuyana, um diálogo intercultural pressupõe o entendimento das culturas e a consideração de especificidades e da diversidade. Segundo ela, pela forma como foi instituído o diálogo, o entendimento do Estado sobre o tema é sempre tido como primordial[8].

O STF nada fez para garantir que, nessa instância de diálogo, os povos indígenas fossem ouvidos, que não fossem tratados como uma população uniforme, e que tivessem suas experiências consideradas. Não basta que se reconheçam as narrativas indígenas, mas também seus narradores.[9] Isso significa atenção aos seus costumes de fala, seus tempos e, inclusive, compreensão com a desconfiança que depositam em nós. Mas, isso não tem sido visto na Sala de Situação, mesmo sob às vistas do STF.

Para ser genuína, a abertura judicial ao diálogo depende de quem discute, de qual posição, sobre o que se discute. Um diálogo no qual os agentes são majoritariamente estatais, militares, sem apreço ou abertura aos indígenas e suas particularidades (desde a inclusão digital para a Sala de Situação até os seus reclamos mais básicos pelo cuidado, ao menos respeito, de suas vidas) ignora os sujeitos mais fundamentais de todo o processo: os próprios povos indígenas.

O arranjo da Sala de Situação se manteve, desde o início, apartado de quem mais deveria fazer uso desse espaço. Mesmo sob a supervisão de um ministro do STF. É, assim, um espaço em princípio destinado ao diálogo, mas avesso a ele em forma e substância. Mesmo após as primeiras reuniões mal sucedidas, nenhuma medida foi adotada. Enquanto essas distorções permanecerem, a Sala de Situação seguirá funcionando apenas como promessa. Nesse futuro do pretérito da Sala de Situação, as e os indígenas seguem morrendo no presente e no futuro.

O que a ADPF 709 tem se tornado

O espaço e tempo jurídicos de uma burocracia que não anda, de um diálogo que não escuta, de uma decisão que, cumprida a conta gotas e sempre com respostas insuficientes às determinações, ao fim e ao cabo não se cumpre. A ADPF 709 tem se tornado o espaço e o tempo para que o Governo Federal diga que está fazendo algo, que está se esforçando.

Entre trocas de ofícios, apresentações de inúmeras versões de uma política pública de atenção e cuidado que não sai do papel, os indígenas morrem. Terras indígenas são invadidas. A floresta é derrubada e contaminada. A Sala de Situação tornou-se palco de ofensas por parte do Governo, de perseguições a quem ali, atuando nas instituições governamentais, busca apresentar algo de concreto para os direitos dos indígenas.

As sugestões de pessoas e entidades convidadas pelo ministro relator parecem surtir pouco efeito. A metodologia proposta pelo CNJ e algumas de suas sugestões, por exemplo, em que pese inovadoras e promissoras, não parecem ter sido levadas em conta.

As contribuições que outras pessoas e entidades buscam oferecer também parecem esbarrar no tamanho imenso que a ADPF 709 passou a ter e, se não estão perdidas, podem se tornar perecidas pelo decurso do tempo. Por exemplo, um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores do Centro de Estudos da Constituição da Faculdade de Direito da UFPR, se apresentou como amicus curiae, mas não teve seu pedido de ingresso ainda nem sequer apreciado.

Conclusões

A ADPF 709 começou promissora. Provocou o exercício da jurisdição constitucional do STF para proteção de direitos fundamentais de indígenas do nosso país. Recebeu acolhida no Supremo, com releitura ampliada da legitimidade ativa, decisão monocrática e referendo do Plenário. E só. Daí para frente, converteu-se num processo imenso, burocrático, lento, ineficaz. Apesar do trabalho do Supremo, do ministro Barroso e de sua equipe, dos convidados e participantes da ADPF 709, pouco de concreto ou efetivo sai dali.

Não basta boa intenção, proatividade, desejo de diálogo. Especialmente com quem, tendo poder de gestão e decisório, usa todo o espaço, tempo e burocracia, para manter tudo como está: com os indígenas vulneráveis, morrendo, com invasão das terras indígenas, derrubada e contaminação das florestas.

A ADPF começou bem, mas foi sendo engolida por um diálogo que nunca existiu[10] porque uma das partes – o Governo – não quer dialogar. Não quer ter de fazer algo, sob as barbas do Supremo. Mudar essa condução não só é possível, mas necessário e urgente. O Supremo pode mais e pode melhor.

[1] Vide o artigo científico recentemente publicado no Dossiê “Pandemias, Direito e Judicialização”, da Revista Direito e Praxis (UERJ), organizado pela Prof. Deisy Ventura (USP) e Octavio Ferraz (King’s College): STF, povos indígenas e Sala de Situação: diálogo ilusório. Revista Direito e Praxis, Vol. 12, N. 3, pg. 2174-2205. Autores: Miguel Gualano de Godoy, Carolina Ribeiro Santana e Lucas Cravo. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/61730/39037

[2] DE ALMEIDA MATOS, BEATRIZ; PEREIRA, BRUNO; RIBEIRO SANTANA, CAROLINA; AMORIM, FABRÍCIO; DO VAL SANTOS, LEONARDO LENIN COVEZZI; CRAVO DE OLIVEIRA, LUCAS. Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. MUNDO AMAZONICO, v. 12, p. 106-138, 2021.

[3] Angela Kaxuyana, Eriverto Marubo, Sonia Guajajara e Dr. Luiz Henrique Eloy Amado Terena.

[4] Carolina Santana, Fabrício Amorim e Leonardo Lenin.

[5] Douglas Rodrigues e Erik Jennings.

[6] Huertas, B (2015). Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial Pano, Arawak y otros. FENAMAD.

[7] Entrevista concedida, em 18 de maio de 2021, a Carolina R. Santana.

[8] Entrevista concedida, em 20 de maio de 2021, a Carolina R. Santana.

[9] “Não basta que reconheçam nossas narrativas, é preciso que reconheçam nossas narradoras”, disse Célia Xakriabá no discurso final da Primeira Marcha das Mulheres Indígenas.

[10] Exemplo categórico da inexistência do diálogo foi a decisão monocrática do ministro relator emitida no dia 24 de maio de 2021, sobre o pedido de Tutela Provisória Incidental, em razão da escalada de ataques armados ao povo Yanomami e Munduruku, no âmbito da ADPF 709. O ministro informou que estava em curso o Plano 7 Terras Indígenas, correndo em sigilo de justiça, sendo que a primeira operação estava planejada para o final de abril. Há semanas – talvez meses – a principal parte autora da ADPF 709 não tinha nem sequer conhecimento de que estava em andamento um plano para cumprir um dos pedidos mais urgentes: a retirada de invasores das terras indígenas. Das 7 terras indígenas elencadas como prioridade, 6 possuem evidência da presença de povos indígenas isolados.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-a-adpf-709-e-a-sala-de-situacao-06102021

A morte de Mateus Noga e o acesso às imagens de videomonitoramento das vias públicas

A morte de Mateus Noga e o acesso às imagens de videomonitoramento das vias públicas

Sem fundamento legal, esconder do público a evidência de um possível crime pode caracterizar ato de improbidade

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MAURICIO STEGEMANN DIETER

 

Mateus Noga, um jovem de 22 anos, foi morto com tiros nas costas pela Guarda Municipal de Curitiba durante uma batida para cessar uma confusão em conhecido lugar de festejo no centro da cidade – o Largo da Ordem.

Segundo a Guarda Municipal, após ser recebida com garrafadas, houve os disparos para dissipação da confusão e o jovem foi morto.

Não tem sido incomum a Guarda Municipal fazer abordagens, muitas vezes truculentas, e atuar como se Polícia Militar fosse, ainda que sua função seja a de proteção dos bens, serviços e instalações municipais, conforme art. 144, §8º da Constituição.

A solução do caso, ou ao menos da regularidade da atuação da Guarda Municipal seria de fácil verificação pelo sistema de viodemonitoramento da cidade de Curitiba. Um sistema moderno, chamado de muralha digital.

No entanto, mesmo após diversos pedidos de veículos da imprensa que cobrem o caso, as imagens seguem sendo negadas. A justificativa para a negativa? Uma lei municipal (Lei Ordinária 15.405/2019) que veda a disponibilização de acesso por terceiros dos dados, informações e imagens do sistema de videomonitoramento.

A negativa da Guarda Municipal não se sustenta. A disponibilização de acesso às imagens pode ser regulada para resguardar a imagem e a vida privada das pessoas que transitam pelos espaços públicos. Mas, essas imagens não podem não ser disponibilizadas para verificação da ocorrência de possíveis ilícitos. Assim, deve sim ser possível se obter acesso a essas imagens, desde que se justifique o interesse na disponibilização.

A publicidade é essencial para o controle da atividade policial, especialmente porque o controle judicial se exerce após os fatos, em análise retrospectiva. Sem transparência, portanto, é difícil – ou mesmo impossível – a disciplina legal do policiamento ostensivo exigida pelas democracias.

No caso de Mateus Noga, se busca acesso às imagens para verificação de um fato extremamente grave: a morte de um jovem pela Guarda Municipal, com indícios de ilícito (inúmeras perfurações, pelas costas, de um jovem que não portava qualquer tipo de artefato que pusesse em risco agentes de segurança armados).

Existe aí um interesse da família do jovem morto em saber exatamente como se deu a atuação da Guarda Municipal que resultou na morte com tiros pelas costas de arma de alto calibre. E existe também um interesse público geral em saber como se deu essa atuação da Guarda Municipal e o que de fato ocorreu.

Quando um guarda municipal está no exercício de suas funções, não há dúvida de que as garantias constitucionais de intimidade e vida privada estão parcialmente suspensas.

Suas ações em ambiente público submetem-se aos olhos e ouvidos da sociedade e do Estado, no momento em que ocorrem ou por meio de consulta a registro audiovisual.

Graças ao desenvolvimento tecnológico, o monitoramento permanente, por áudio e vídeo, já é uma realidade para milhares de policiais brasileiros. Trata-se de tendência inexorável, devidamente respaldada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, e prova suficiente de que não há qualquer conflito constitucional nesse sentido.

Assim, não se pode objetar o acesso às imagens de videomonitoramento para a elucidação de fato relevante, grave, ocorrido em via públicas, por agentes públicos de segurança.

Neste caso, prevalece o direito fundamental de acesso à informação (artigo 5º, XIV da CF/88) e o direito de todos a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo vou geral (artigo 5º, XXXIII da CF/88).

Não à toa esse direito fundamental também se encontra previsto em tratados internacionais de Direitos Humanos que vinculam o Estado brasileiro como um todo, inclusive a Prefeitura de Curitiba e sua GM – Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19).

Como regra, as imagens que registram eventuais ilicitudes praticadas por agentes policiais devem estar à disposição do público em geral. O sigilo, sempre excepcional, deve ser decretado pelo Poder Judiciário, a partir do exame do caso concreto e acompanhado da devida fundamentação, a indicar risco para a investigação, para os investigados, para as testemunhas ou para a vítima.

A proibição de acesso jamais pode ser antecipada de modo genérico por uma lei municipal, ocultando a possibilidade de verificação do ocorrido sem sólida justificativa. Trata-se de violação aos direitos fundamentais de informação e aos princípios básicos da Administração Pública (art. 37, §3º, II, CF/88).

Além disso, o inquérito policial, geralmente, é público. Logo, também devem ser as imagens que o instruem. Não há razão para se negar o pedido de acesso às imagens. A existência de elementos e dados sujeitos à sigilo, como, por exemplo, a presença de imagens ou informações de menores de idade, podem acarretar o sigilo específico de parte do inquérito, da imagem, mas não sobre todo o inquérito e nem sobre as imagens.

Policiais e guardas municipais só podem agir no estrito cumprimento do dever legal e a visibilidade é condição tanto para delimitação do arbítrio como para comprovação de eventual justificação.

Sem fundamento legal, esconder do público a evidência de um possível crime, fora da hipótese de legítima defesa, pode caracterizar ato de improbidade. A depender dos motivos e outros elementos associados à recusa, pode inclusive ser considerado crime.

Diante disso, a divulgação de imagens públicas pode e deve ocorrer. E as autoridades públicas podem ainda, se possível, ter o zelo de, em respeito à privacidade das demais pessoas que aparecem no vídeo, promover a descaracterização, por exemplo, com tarjas ou quadriculados.

O que certamente não se pode é não se dar acesso às imagens públicas sobre a atuação dos guardas municipais e sobre como eles atuaram num local tão conhecido, sobre tantas pessoas, com feridos e um jovem morto pelas costas.


MIGUEL GUALANO DE GODOY
– Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.MAURICIO STEGEMANN DIETER – Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-morte-de-mateus-noga-e-o-acesso-as-imagens-de-videomonitoramento-das-vias-publicas-28092021

Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós.

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e VERA KARAM DE CHUEIRI

Depois de o procurador-geral da República, Augusto Aras, perseguir o professor Conrado Hübner Mendes por suposta violação à honra e violação ética, agora é a vez de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques se melindrar com as críticas do professor Conrado e também pedir instauração de persecução penal contra ele.

O ministro Nunes Marques entendeu que as críticas que o professor Conrado fez a ele em seu artigo “O STF come o pão que o STF amassou”, publicado em sua coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, são “afirmações falsas e/ou lesivas” à sua honra. E que “em razão das funções que exerce” no STF pode haver crime de calúnia, injúria e difamação.

O artigo do professor Conrado foi publicado em abril e criticava de forma contundente a decisão de Nunes Marques que autorizou, sozinho, em medida liminar monocrática, a realização de cultos presenciais durante a pandemia, colocando abaixo normas regionais ou locais que vedavam temporariamente a realização de celebrações religiosas para tentar controlar a pandemia. Na época da decisão do ministro Nunes Marques e da publicação do artigo escrito por Conrado Hübner Mendes, já tínhamos mais de 330 mil mortos. Nunes Marques não viu aí um empecilho. Atualmente já temos mais de meio milhão de vidas perdidas.

Voltando à decisão monocrática do ministro Nunes Marques: ela foi contra o Plenário do STF, pois afrontava o entendimento unânime da Corte, tomado na ADPF 703, que não reconhecia a legitimidade ativa da Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) para a propositura de ADPF. O ministro Nunes Marques integrou o julgamento da ADPF 703. Mas, mesmo assim, a nova decisão de Nunes Marques suplantou o Plenário, e não só reconheceu a legitimidade da ANAJURE como deferiu o pedido liminar.

A decisão de Nunes Marques foi um típico caso de decisionismo individual, onde a posição pessoal e particular do ministro vale mais do que a decisão do Plenário do STF e se sobrepõe à posição institucional já consolidada do Tribunal. Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Pereira, que há muito pesquisam sobre o STF, demostraram como essa decisão foi uma das piores da história do STF, pela falta de plausibilidade do pedido ou perigo na demora. No mérito, apontam o mal uso da jurisprudência do STF, o uso equivocado de decisão da Suprema Corte dos EUA, sem falar no argumento absurdo acerca do direito de reunião religiosa, mesmo em circunstância extremas, como numa guerra.

Não à toa, a decisão de Nunes Marques foi cassada pelo Plenário do STF dias depois.

Essas controvérsias da decisão do ministro Nunes Marques mostram como ela não só foi polêmica, mas foi também considerada errada e reformada por seus pares. O professor Conrado Hübner Mendes chamou atenção justamente para esses problemas da decisão e da postura do ministro Nunes Marques.

Mas, onde vimos debate público robusto, com escrutínio detalhado, normativo, institucional e de perfil de atuação, o ministro Nunes Marques viu ofensas à sua honra, sobretudo pelo cargo de ministro do STF que ocupa.

No entanto, ocupar cargo de ministro do STF deve ser motivo para estar sujeito a esse debate público robusto, a esse escrutínio detalhado. E não para fugir dele. Tampouco o cargo de ministro do STF deve servir para inibir a liberdade de pensamento e manifestação (art. 5º, IV, IX, CF/88), a liberdade de pesquisa, ensino e o pluralismo de ideias de um professor (art. 206, II, III, CF/88) que, sendo cientista, também escreve para o grande público em um dos maiores jornais do país.

O ministro Nunes Marques e sua representação à PGR parecem recair no mesmo equívoco de Augusto Aras. Confundem críticas contundentes com ofensas à sua honra. O cargo público que ocupam sujeitam o PGR, os ministros do STF, a um nível mais intenso de debate e críticas, pois o que fazem ou deixam de fazer interessa a todos nós. É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio STF tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4]. No caso específico, o debate sobre a decisão do ministro Nunes Marques ganha ainda mais importância neste momento de pandemia, onde sua decisão pode ter o efeito de reforçar ou enfraquecer o combate ao covid-19.

Assim, ainda que o ministro Nunes Marques se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão da decisão que tomou, dos efeitos dela decorrentes e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado. As representações do PGR Augusto Aras e do ministro do STF Nunes Marques, se submetidas a um controle de constitucionalidade ou controle de convencionalidade, não resistem, ao contrário, sucumbem à primeira análise, pois suportadas por argumentos outros que não jurídico-constitucionais ou jurídico-convencionais.

A Constituição brasileira de 1988 proíbe a censura (porque protege, garante, prestigia, obriga a observância da liberdade de expressão). A perseguição por agentes estatais a quem vocaliza e lhes dirige publicamente críticas é próprio de ditaduras.

É dado ao intelectual público, professor, pesquisador, analisar criticamente as instituições e seu agentes. Por sua vez, perseguir quem exerce tal mister é enfraquecer a democracia, rebaixar o debate público e socavar os direitos de liberdade. Esse tipo de conduta, uma espécie de ‘sabe com quem você está lidando?’ remete ao passado recente da nossa história política e constitucional, mas não passa ao escrutínio do seu presente e do seu futuro.

Como apontou Daniel Sarmento, não é preciso concordar com as críticas do professor Conrado Hübner Mendes, mas é preciso concordar com o seu direito de fazê-las. Outros ministros do STF também já foram duramente criticados, mas jamais recorreram a persecuções criminais ou civis, em respeito às regras do jogo democrático.

Augusto Aras e Nunes Marques fariam um bem à democracia e à honorabilidade dos cargos que ocupam se revissem suas condutas e retirassem as representações e queixas que apresentaram. Passariam pelo escrutínio do presente da democracia constitucional brasileira e projetariam seu futuro; estariam à altura das funções que exercem e do prestígio que a crítica pública invoca, quanto mais aquelas de um pesquisador e professor de escola.

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós, contra todos nós.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/critica-publica-e-um-sinal-vital-da-democracia-perseguicao-a-um-professor-nao-29072021

O ministro pode até ser ‘terrivelmente evangélico’, o tribunal não!

O ministro pode até ser ‘terrivelmente evangélico’, o tribunal não!

Por Gustavo Buss e Estefânia Maria de Queiroz Barboza

O presidente Jair Bolsonaro sempre deixou muito transparente sua insatisfação com decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que, em sua visão, afrontariam a moralidade cristã majoritariamente compartilhada pela população brasileira. Em sua participação na 27ª Marcha para Jesus, ocorrida no dia 20/6/2019, exprimiu a célebre visão de que o Estado é laico, mas ele é cristão. Ao mesmo tempo, cunhou-se a promessa de indicação de alguém “terrivelmente evangélico” ao Supremo, que acabou não se confirmando na decisão do substituto do ministro Celso de Mello. No entanto, logo após sua primeira indicação ao STF, em outubro de 2020, Bolsonaro fez questão de repisar o compromisso de outrora: Mais que terrivelmente evangélico, se Deus quiser nós teremos lá dentro um pastor”.

Com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio, restou ao presidente a tarefa de confirmar sua promessa. No último dia 13, foi finalmente oficializada a indicação do advogado-geral da União, André Mendonça, para a vaga. Bolsonaro parece ter encontrado seu ministro “terrivelmente evangélico” na figura do advogado, que é também pastor presbiteriano. Tal característica poderia até se atenuar em face do compromisso constitucional a ser assumido, não tivesse o presidente pedido a ele que, uma vez por semana, comece a sessão (no Supremo) com uma oração.

O argumento que aparece subjacente à postura de Bolsonaro é o de que o STF teria uma composição muito destoante daquela encontrada no povo brasileiro. Os ministros seriam em grande medida antirreligiosos, ao menos segundo o raciocínio avançado pelas correntes bolsonaristas, enquanto a nossa população ostentaria fortes raízes cristãs. Entretanto, em análise conduzida em 2019 se constatou o oposto. Sete ministros se declaravam católicos, dois se declaravam judeus e apenas dois não informavam professar uma religião específica.

ADI nº 4439, de relatoria do ministro Roberto Barroso, julgada em setembro de 2017, é igualmente ilustrativa do papel que a religiosidade ocupa dentro da nossa Corte Constitucional. Naquela ocasião, foi enfrentada a questão particularmente sensível acerca da possibilidade de oferta de ensino religioso confessional em escolas públicas. A posição do relator, seguida por uma minoria em plenário, caminhava no sentido da inconstitucionalidade com base na exigência da laicidade, revelando algum indício de antirreligiosidade. No entanto, é relevante destacar que a posição majoritária e vencedora afirmou o contrário. O ministro Alexandre de Moraes, em voto que conduziu a maioria, destacou expressamente que o Estado, embora laico, jamais poderá neutralizar o ensino religioso e nem tampouco censurar a livre manifestação de concepções religiosas em sala de aula. Seguindo tal raciocínio, o ministro Gilmar Mendes destacou até mesmo a influência cristã na formação cultural do Estado brasileiro, que tornaria legítima a presença de símbolos religiosos em espaços públicos.

Essa breve constatação já permite apontar que o Supremo ostenta uma composição fortemente marcada pelo traço da religiosidade judaico-cristã. Nesse contexto, a insistente promessa do presidente parece denotar algo além. Ele parece combater a ideia de que, mesmo religiosos, os ministros possam colocar suas convicções pessoais e crenças de lado para que, no momento do julgamento, se atenham a uma racionalidade estritamente constitucional. Sua fala vai diretamente de encontro àquela proferida pela ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI nº 3510, em 2010, que discutia a constitucionalidade da pesquisa em células-tronco embrionárias. Ela ressaltava, com ancoro em sua posição institucional: “Aqui, a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz, no foro, cultua o Direito”. Um ministro “terrivelmente evangélico” seria, em contraponto, aquele que sobreporia a moralidade religiosa aos ditames da Constituição que está comprometido a proteger.

O Estado brasileiro, assentado na Constituição Federal de 1988, deve ser compreendido como um Estado que, embora não seja antirreligioso, é definitivamente laico. Isso significa dizer que todas as expressões religiosas professadas em sua circunscrição devem ser igualmente protegidas, prezando-se pela diversidade, sem que nenhuma assuma posição privilegiada. De outro lado, essa mesma concepção de laicidade passa a demandar a construção de deliberações consensuais mínimas, que permitam a condução da vida pública sem que quaisquer cosmovisões se imponham às demais.

O Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição, se eleva como instituição necessariamente afeta às limitações da laicidade. Ainda que a população brasileira seja majoritariamente cristã, seu papel não deve ser o de endosso aos conceitos morais específicos do cristianismo. Historicamente, o papel do Supremo tem sido reiteradamente o de proteção às minorias e garantia dos postulados básicos conscritos no texto constitucional, especialmente fundamentado no pluralismo. Destarte, qualquer predisposição individual “terrivelmente religiosa”, quando concebida sob o prisma institucional, deve se converter em uma defesa “terrivelmente constitucional” do primado da liberdade religiosa que assegura igual trato e consideração a todas as manifestações de crença e fé individual, inclusive a de não manifestar ou professar qualquer fé ou religião.

A imposição de uma moralidade unívoca e fundamentalista é incompatível com o quadro constitucional protetivo à diferença. Mesmo que se reconheça nas diferentes religiões expressões culturais importantes, a possibilidade de justificação pública exige que qualquer argumento absolutista seja excluído do embate político. Nesse sentido, a pretensão de que o STF tenha suas sessões iniciadas com uma oração ecoa a limitação da visão do presidente Bolsonaro acerca do que seja o real compromisso do Estado republicano com a tutela isonômica dos seus cidadãos. Sua defesa de uma moralidade religiosa revela uma visão fortemente centrada no absolutismo de determinadas verdades preconcebidas, que ameaçam a existência da diversidade enquanto fenômeno de um constitucionalismo comprometido com o pluralismo.

Não é difícil constatar que os ministros da corte já expressam, cada um, sua própria religiosidade. Assim, a nomeação de um ministro evangélico não deveria ser elemento de acentuada ênfase. A diversidade na composição do STF é salutar e apenas reforça a exigência de construções consensuais. É através da negociação das diferenças que se permitirá alcançar um resultado institucional verdadeiramente democrático e plural, aberto à experiência da diversidade. Se cada indivíduo carrega consigo sua específica visão de mundo, é no diálogo estabelecido entre eles, centrado no compromisso de respeito mútuo, que se afirmará o compromisso constitucional.

Portanto, resta plenamente aceitável que um ministro revele um forte compromisso pessoal com determinada fé, mas nunca se poderá admitir que o tribunal, enquanto instituição, partilhe qualquer preferência a um ou outro credo. Isso porque, embora cada ministro ingresse no processo deliberativo carregando sua própria bagagem, o resultado deliberativo que se pretenda universalmente oponível deve, invariavelmente, racionalizá-las. É inafastável o compromisso mínimo com o consenso, ainda que tal consenso deva ser tomado como precário, já que sempre sujeito à renegociação.

A atividade decisória, em particular, exige que se compatibilizem diferentes cosmovisões a fim de permitir um convívio social que não resulte no favorecimento do cristianismo hegemônico em detrimento de expressões religiosas minoritárias, já que dotadas de igual dignidade constitucional. É justamente por isso que o Supremo não deve nunca iniciar suas atividades com uma oração, ao contrário do requerido pelo presidente ao seu novo ministro “terrivelmente evangélico”, se aprovado pelo Senado Federal. É preciso que se reconheça e que se reforce a missão institucional do STF, que não é a do endosso a qualquer moralidade unívoca, ainda que majoritária, mas a de proteção isonômica a todas as expressões de religiosidade e, até mesmo, de não religiosidade.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/buzz-barboza-ministro-terrivelmente-evangelico

A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

Poderes do relator e decisões monocráticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

O ministro Marco Aurélio Mello foi, sem dúvida, um ministro marcante e importante na história do Supremo Tribunal Federal (STF).

Marcante por seus votos – vencedores, vencidos e que se tornaram vencedores, ou que ficaram mesmo como votos vencidos clivando o Plenário. E marcante ainda por sua postura e comportamento públicos – quase sempre disposto a falar e a dar a sua opinião publicamente.

Um ministro importante porque é um ministro longevo como poucos, e que por isso teve o que muito poucos ministros têm – tempo! Um grande tempo de mandato na Corte[1]. E assim, não só integrou diferentes composições do Supremo, como também participou de praticamente todos os principais casos do STF.

Marco Aurélio Mello no colegiado do STF

O meu ângulo de análise aqui se circunscreve à atuação do ministro Marco Aurélio no colegiado, especificamente sobre poderes do relator e decisões monocráticas. E esse é um ângulo generoso porque não é agudo. Ao contrário, é um ângulo obtuso, bastante aberto. Por isso, eu separei esta breve análise em 3 pontos:

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento;

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos.

3 – As lições que ficam do ministro Marco Aurélio.

Vejamos.

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento

O ministro Marco Aurélio em diversas oportunidades fez questão de registrar que sempre se dispôs a ir aberto a toda e qualquer rota do caso a partir das sustentações orais e do voto do relator. Afinal, como ele diz “eu não troco figurinhas”, quando outros ministros o procuram para uma decisão consensual – passagem, muito bem contada no livro Os Onze, do Felipe Recondo e Luiz Weber[2].

Essa forma de se colocar e atuar tem um aspecto positivo, relevante e pouco praticado hoje no Supremo: o de estar aberto à deliberação e a um trabalho efetivamente em colegiado; de se deixar ser persuadido pelas sustentações orais, pelo voto indicativo do ministro relator e se engajar numa troca de argumentos a partir desses pontos de partida.

Por outro lado, essa forma de se colocar e atuar também tem um aspecto negativo: se ele “não troca figurinhas”, então quando precisa decidir, ele decide sem avisar ninguém. E decide sozinho. Não tem deliberação e não tem colegiado. O caso da ADPF 402, sobre quem pode ou não ocupar os cargos que estão na linha de substituição do presidente da república (art. 80, CRFB/88) ilustrou bem esse aspecto negativo.

O ministro Teori Zavascki, no auge da Lava jato, era relator de um pedido de medida cautelar feito pela Procuradoria-Geral da República para afastar o então presidente da Câmara dos Deputados – deputado Eduardo Cunha. Mas o ministro Teori não decidiu de plano. Enquanto Teori analisava o pedido e decidia se afastava ou não o dep. Eduardo Cunha da presidência da Câmara, a Rede Sustentabilidade ajuizou a ADPF 402, sob o argumento de que quem ocupa cargo que está na linha de substituição do presidente da república (presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF), não pode ser réu em ação penal, pois se o presidente da república se torna réu por crime comum, ele fica suspenso de suas funções (art. 86, §1°, CRFB/88). Como o deputado Eduardo Cunha havia se tornado réu perante o STF, a Rede pediu o seu afastamento imediato da presidência da Câmara dos Deputados. E a ADPF 402 foi distribuída para o ministro Marco Aurélio.

Naqueles idos de 2016, os tempos eram super turbulentos, fosse em razão da Lava Jato, fosse em razão da tensão política e da ameaça de impeachment que caminhava em marcha rápida (e que hoje em dia nem anda). O ministro Marco Aurélio não falou com ninguém, e ninguém foi falar com ele. Mas dava para imaginar que ele poderia dar a liminar sozinho e afastar Cunha. O ministro Teori então, numa decisão concertada com outros ministros, retomou aquele pedido cautelar da PGR e afastou o deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, e levou a liminar para referendo do Plenário logo em seguida.

O resultado, como sabemos, foi 11×0 pelo afastamento de Cunha. Mas, e a ADPF 402 do ministro Marco Aurélio? Ficou para outro momento. Mas voltou à tona, meses depois, com pedido de afastamento do então presidente do Senado – senador Renan Calheiros, que também havia se tornado réu. O ministro Marco Aurélio desta vez fez o que se supôs antes: deu a liminar e determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado[3].

A confusão não foi pequena. Renan Calheiros se recusou a receber a intimação da decisão. No referendo da decisão, o ministro Marco Aurélio ficou vencido e o STF decidiu que quem ocupa cargo da linha de substituição do presidente da república e também está na condição de réu, não pode assumir a presidência da república, mas tampouco está impedido de continuar a exercer a chefia de seu órgão de origem.

O caso da ADPF 402 reflete bem aqui como interagir com os pares, trocar figurinhas, não só não é vedado, nem necessariamente ruim, como pode ser também importante e, às vezes, até mesmo necessário, como bem percebeu o ministro Teori Zavascki. E também como ficou nítido com a solução intermediária encontrada pelo Plenário do STF.

Estar aberto a um trabalho colegiado e ao desenvolvimento deliberativo do julgamento não significa que o único modo de interação entre os ministros se restrinja ao espaço do plenário. Trocar figurinhas pode ser também trocar argumentos, refinar posições, não necessariamente combinar votos. A lição que fica dessa postura e modo de atuar do ministro Marco Aurélio é como o colegiado importa, como o julgamento e suas etapas podem ser mais bem aproveitados pelos ministros. Mas também como é possível e necessário haver maior e melhor interação entre eles.

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos

O ministro Marco Aurélio sempre disse julgar de acordo com a ciência e consciência possuídas. Recorreu a essa dupla – ciência e consciência – em inúmeras ocasiões[4] para demonstrar seu rigor no seguimento da ciência do direito e sua coerência com sua consciência. Nunca explicou muito bem que rigor é esse (um rigor normativo? Interpretativo? De qual interpretação? Um rigor fiel ao que já fora decidido antes pelo STF?). E nem tampouco que consciência é essa (é uma consciência de si, e para os outros? Uma consciência sobre suas compreensões sobre o direito e, assim, sobre sua consequente uniformidade decisória?). É difícil dizer. Mas nosso papel é analisar essa atuação do ministro e essa dupla argumentativa – ciência e consciência – sob a melhor luz. Ou seja, sob o melhor modo para se poder entender a atuação do ministro Marco Aurélio – alguém que busca se manter fiel à Constituição (o rigor da ciência) e que não abre mão de uma atuação coerente no exercício de sua função (a retidão de sua consciência).

Mas, se isso mostra rigor e coerência, também não pode contradizer àquela abertura ao julgamento e ao trabalho em colegiado? Até que ponto ciência e consciência são balizas firmes, que até podem alterar-se diante de um julgamento colegiado que mostre a evolução necessária (seja do direito, seja da consciência sobre o direito)? Ou são apenas pilares que firmam uma recalcitrância? A resposta mais imediata que talvez venha à lume é dada pelo próprio ministro Marco Aurélio: “não tenho compromisso com meus erros”, já disse ele várias vezes, no Plenário ou fora dele, para mostrar que está aberto a mudanças. Mas é exatamente aí que pode estar também uma chave de leitura que mostra um lado positivo e um negativo desse tipo de postura.

O rigor com o direito e com sua consciência coerente são bem-vindos. Não há dúvida disso. Por outro lado, as mudanças têm que ser dele, pessoal e individualmente, e não do Tribunal. Se ele não muda, se sua consciência não muda, então o direito também não pode mudar. Nada mais individual e individualista. Sob a roupagem de estar aberto ao colegiado, em realidade ele apenas colegiadamente se abre a si próprio. O compromisso então parece ser mais com ele do que com o colegiado. E o que me faz ter essa impressão é a postura que ele tem de ser recalcitrante e atuar contra o plenário quando ele mesmo já ficou vencido.

Dois casos são significativos: o da liminar monocrática suspendendo a execução da pena após condenação em segunda instância, na ADC 54. E a liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54.

No caso da ADC 54, o ministro Marco Aurélio, às vésperas do recesso judiciário de 2018, suspendeu a execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado, quando a orientação prevalecente até então no plenário era pela possibilidade da execução provisória da pena após condenação em segundo grau. Ele decidiu sozinho, sem consultar ninguém, de acordo com sua ciência e consciência, no último dia antes do recesso e contra decisão e entendimento vigentes do plenário. Não era só um entendimento vencido, ou um desacordo, mas a imposição de uma posição individual. E contra a autoridade do plenário.

A atitude não foi surpreendente. Quatorze anos antes, em 2004, quando as monocráticas não eram comuns e nem ordinárias, o ministro Marco Aurélio fez a mesma coisa: no último dia antes do recesso, deu uma liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54. Quando sua decisão foi levada ao Plenário, recebeu críticas fortes do ministro Joaquim Barbosa, que concordava com o mérito da decisão, mas discordou veementemente da forma monocrática com que decidira, e ainda às vésperas do recesso[5]. Marco Aurélio, com sua ciência e consciência, havia decidido sozinho e esvaziado o órgão que mais prezava – o plenário.

O mesmo aconteceu na ADC 54. Diante de recurso interposto pela PGR no mesmo dia, o então presidente do STF – ministro Dias Toffoli, suspendeu a liminar de Marco Aurélio e agendou o julgamento do caso quando da retomada dos trabalhos no ano seguinte. A posição do ministro Marco Aurélio acabou se tornando vencedora no fim de 2019. Mas sua decisão, baseada em sua ciência e consciência, menos informou o plenário sobre a controvérsia, e mais parece ter sido produto de sua idiossincrasia, já que na prática, conforme observou Diego Werneck Arguelhes, ela praticamente equivaleu a fazer o que o ministro quis e quando quis porque tinha certeza de que a sua postura era a correta.

Esses dois casos são significativos porque mostram como a dupla ciência e consciência pode ser bom guia de retidão e conduta grave. Mas não garante por si só que assim será a decisão ou a postura do ministro. E nem que contribuirá com o plenário.

3- As lições que ficam do ministro Marco Aurélio Mello

O ministro Marco Aurélio, como todo trabalhador cioso de seu ofício, sempre buscou fazer o melhor. E nos deu o seu melhor. Teve tempo, trabalho, experiência e possibilidades para formar e conformar o plenário, para vencer e ficar vencido. Sua postura grave, sempre pública e transparente, sua busca por rigor e coerência são a prova disso. Os possíveis erros, as possíveis falhas, não devem servir aqui para diminuir essa grandeza, mas para mostrarem e reafirmarem um caminho e um local bastante esquecidos ultimamente: o colegiado e o plenário do Supremo Tribunal Federal.

[1] O ministro Marco Aurélio Mello terá sido ministro por 31 anos e 29 dias ao se aposentar quando faz 75 anos em 12/07/2021 (sete dias a mais do que teria se tivesse se aposentado em 05/07/2021, como havia antecipado antes de mudar de decisão). Será, assim, o segundo ministro mais longevo do STF desde a instauração da República. O ministro mais longevo é o min. Celso de Mello, que ficou 31 anos 1 mês e 26 dias. O ministro Marco Aurélio tinha 43 anos quando tomou posse como ministro do STF. Nasceu em 12/07/1946 e tomou posse em 13/06/1990, ocupando a cadeira do ministro Carlos Alberto Madeira.

[2] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277.

[3] O episódio é narrado em detalhes no livro Os Onze e vale ser lido para se ter ideia das nuances do ambiente antes, durante e após a decisão. Vide: RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 234-246.

[4] Mencione-se, exemplificativamente, seu discurso em 06/11/2008; discurso proferido em 17/06/2010, quando fez vinte anos de judicatura no STF; voto vencido na ADI 3.330/DF sobre o PROUNI, julgada em 03/05/2012; entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 31/05/2012; voto nas ADCs 43 e 44 sobre execução provisória da pena após condenação em segunda instância, julgadas em 23/10/2019. Esses e outros exemplos também constam do livro comemorativo dos 25 anos do ministro Marco Aurélio Mello no STF e editado pelo próprio Tribunal. Vide:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalComemoracoes/anexo/Ministro_Marco_Aurelio_25_anos_no_STF.pdf

A Ed. Migalhas também editou um livro intitulado “Marco Aurélio Mello: Ciência e Consciência”, nos 25 anos de judicatura constitucional do ministro Marco Aurélio no STF. Vide:

https://www.migalhas.com.br/quentes/222038/marco-aurelio-mello-e-homenageado-por-seus-25-anos-no-stf

O STF editou um livro oficial de homenagem ao Min. Marco Aurélio por seus 31 anos na Corte e colocou no título a dupla ciência e consciência. Vide: Ministro Marco Aurélio. Edição de Homenagem. 31 anos de ciência e consciência constitucionais. Disponível em:

https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalEdicaoHomenagem/anexo/31_anos_min_marcoaurelio.pdf

[5] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277. pg. 209-215.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-atuacao-do-ministro-marco-aurelio-mello-no-colegiado-do-stf-19072021