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Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Por Rodrigo Luís Kanayama e Ilton Norberto Robl Filho

Introdução
Ninguém pode duvidar da relevância da internet para a construção de uma sociedade melhor. De outro lado, surgem relevantes preocupações com a privacidade [1] e com o impacto sobre as preferências das pessoas.

Além disso, as redes sociais atualmente são acusadas de manipulação de eleições, violência contra os jovens (cyberbullying), vazamento de informações privadas, entre outras denúncias. Notícias falsas correm por computadores e smartphones na velocidade de um pressionar de um botão, às vezes propositalmente, às vezes ingenuamente, corroendo a democracia constitucional.

As notícias falsas deterioram a qualidade da democracia, porque produzem um cenário falso que interfere ilegitimamente no processo de escolha dos eleitores. Dessa forma, este texto analisa o tema e apresenta sugestões simples baseadas em análises comportamentais para coibir o compartilhamento de notícias falsas.

Eleições e Redes Sociais no Brasil
Nas eleições brasileiras de 2018 e de 2020, o fenômeno das notícias falsas, apesar de combatida por relevantes campanhas da Justiça Eleitoral, de mecanismos de comunicação social e de entidades da sociedade civil, encontrou-se presente. Duas características se destacaram: primeiro, o uso massivo da Internet e das redes sociais para substituir as formas tradicionais de propaganda eleitoral; segundo, os polos extremos que se formaram, tornando-se os grupos em entidades absolutamente fechadas.

Nos últimos anos, as posições políticas extremas tornaram-se mais radicais, a ponto de não haver pontos de contato entre os polos. Há dificuldade de comunicação e consenso, pois se tornam grupos que não discordam entre si, já que não há possibilidade de diálogo.[2]

Podemos observar, embora existissem preferências diferentes, que havia coesão social, com vários pontos de contato, em 2013[3]. Quando, antes da Copa de 2014, eclodiram os protestos contra o governo, a configuração mudou e os grupos ficaram mais distantes entre si. O tema da corrupção sistêmica trouxe ainda mais insatisfação e mais polarização. Basicamente, formaram-se dois polos definidos: os que se declararam contra o partido político que se encontrava na Presidência da República à época e os pró-governo (mais à esquerda no espectro ideológico).

Em 2016, segundo os mesmos autores, o cenário ficou ainda pior, uma sociedade mais dividida. De um lado, aqueles que protestaram contra a corrupção, junto com alguns liberais, conservadores, partidos de direita, proponentes do regime ditatorial e, do outro lado, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, políticos de esquerda. Depois, ocorreu o impeachment da Presidenta da República e a eleição extremamente polarizada, eventos que ajudaram a distanciar os lados.

O primeiro efeito óbvio foi o fim dos consensos (e consensos são fundamentais na política). Outro efeito foi o dano à liberdade de expressão. O excesso de notícias falsas, somado às opiniões extremas, desestimulou a manifestação dos moderados. Hoje, não é aceitável criticar um extremo, porque a crítica o fará pertencer ao outro extremo. Essa situação tem trazido desencanto a muitos usuários das redes sociais, pois fica difícil (quase impossível) estabelecer um diálogo saudável (com argumentos).

O que queremos dizer ao falar de liberdade?
liberdade de expressão trata-se de direito fundamental constitucionalmente previsto e de elemento central para a existência da democracia. As redes sociais são por excelência espaços virtuais de comunicação com pouca limitação aos usuários e, com um único clique, milhares de pessoas são alcançadas.

John Stuart Mill afirma enfaticamente que “[a] única liberdade que merece o nome é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar”[4]. As pessoas devem ser livres para atingir seus objetivos. No entanto, a liberdade de expressão enfrenta um limite importante: a liberdade de expressão de outra pessoa. Portanto, manifestações extremas que limitam e impedem a liberdade de expressão de terceiros não podem ser toleradas.

Notícias falsas causam danos à liberdade de expressão, pois resultam em posições extremas e desinformadas do interlocutor, distorcendo sua manifestação. Nesse sentido, a notícia falsa é muito prejudicial à democracia, pois promove mal-entendidos e falsos fundamentos e fatos que levam a mais falsas manifestações. Poucos buscam dados que contestem as notícias falsas e as câmaras de ressonância digital agravam ainda mais a disseminação de falsidades[5].

A questão é que criação de uma regra de proibição de notícias falsas não resolverá todos os problemas. Além disso, proibir sem cautela o que se entende por notícia falsa poderia arriscar, novamente, à própria liberdade de expressão, porque deixaríamos para o Poder Judiciário, moderadores e administradores de redes sociais o que se entende por notícia falsa. Não devemos tirar do controle dos próprios usuários a faculdade de dizer o que é falso e o que não é. Afinal, se os usuários cometem erros, o que impede o governo ou as empresas de cometê-los? Portanto, outras ferramentas contra notícias falsas devem ser consideradas (sem ignorar, obviamente, eventual regulação).

A internet, notícias falsas (fake news), algoritmos
Na edição de 13 de agosto de 2012, a revista The New Yorker publicou um artigo do escritor James Surowieck, intitulado “Downsizing supersize”[6], apresentando que o prefeito de Nova York, com vistas ao combate à obesidade, proibiu em 2012 os refrigerantes de grande porte do cardápio de restaurantes, estádios, cinemas e outros locais de entretenimento. As pessoas tomam decisões todos os dias, porém podem ser empurradas por outros indivíduos e cidadãos, por empresas e pelo governo com mais ou menos força. Embora se possa dizer que o governo tem tentado interferir nas escolhas de quem consome bebidas doces, também é verdade que as empresas interferem nas escolhas de compra das pessoas ao oferecer copos grandes.

É a arquitetura de escolha, sendo o termo adotado por Richard Thaler e Cass Sunstein[7] e criando um cenário que fornece o empurrão (nudge) para a melhor escolha. É difícil aceitar a realidade: todos somos, a todo o momento, influenciados, pressionados, bloqueados nas nossas escolhas quotidianas por agentes externos, como as empresas, governo, um amigo, a internet, opiniões e avaliações de terceiros, algoritmos.

Sem correr o risco de infringir a liberdade de expressão — por meio de proibições ou sanções contra os usuários — é possível criar um quadro para as pessoas refletirem ao se manifestarem nas redes sociais. A intenção será a redução de discursos radicais na internet e a divulgação de notícias falsas.

A programação do que se vê na internet depende do algoritmo e, consequentemente, do comportamento de cada usuário. Claro, o algoritmo interfere no comportamento do usuário. Em 2014, a revista Wired fez um experimento no Facebook. Mat Honan, redator sênior da Wired, “curtiu” de todas as postagens em sua linha do tempo por 48 horas, postagens boas ou ruins. Como resultado, em primeiro lugar, seus amigos foram embora da linha do tempo dele. Os anúncios permaneceram. Em seguida, os posts caminharam, no espectro político-ideológico, para a direita, uma extrema direita. Sua linha do tempo enviesada (biased).[8] Os algoritmos são escritos para parecer que o usuário está controlando o conteúdo, mas na verdade o controle está nas mãos de quem escreve o algoritmo[9].

O Facebook promoveu mudanças em seu algoritmo, tentando reduzir notícias falsas. No entanto, não parece ter sido bem-sucedido. No Brasil, durante as eleições de 2018 e de 2020, notícias falsas foram espalhadas com intensidade e compartilhadas por pessoas comuns, além de robôs, deliberadamente ou não.[10]

1. Nathan Mathias da Cornell University é autor do site CivilServant[11], encorajando comportamentos responsáveisna redeReddit, usando o que chamou de AI-Nudge, baseado no trabalho de Richard Thaler e Cass Sunstein[12]. A ideia era encorajar as pessoas a fazer o check-in antes de postar qualquer comentário e a verificação de fatos aprimora o algoritmo em si. Segundo sua pesquisa, houve aprimoramento das publicações compartilhadas, mantendo a liberdade do usuário, mas reduzindo as notícias falsas.

A adoção de cutucadas deve seguir algumas regras básicas, como afirmou Richard Thaler: “Três princípios devem orientar o uso de nudges: Todas os nudges devem ser transparentes e nunca enganosos. Deve ser o mais fácil possível desativar o nudge, de preferência com um pequeno clique do mouse. Deve haver uma boa razão para acreditar que o comportamento que está sendo encorajado melhorará o bem-estar daqueles que estão sofrendo nudge”.[13]

Da mesma forma, há nudges malignos nas redes sociais. Um bom exemplo é o WhatsApp, que pertence ao Facebook. Observe os botões para compartilhar notícias e fotos. Eles são facilmente acessíveis, são visíveis e não há nenhum outro recurso destacado. Apenas compartilhando. Nesse caso, a vida das pessoas não melhora com o compartilhamento de informações sem a necessária reflexão e análise crítica de seu conteúdo.

Dito isso, uma pesquisa apresentou uma possível solução[14]. Em 2012, muito antes da escalada da polarização política, eles propuseram mudanças no funcionamento do Facebook, usando plug-ins no navegador de internet Chrome e fizeram experiências com alguns voluntários. Três foram as sugestões, todas baseadas no conceito de nudge. A primeira, denominada picture nudge, consistia em mostrar cinco fotos de perfis de amigos ou não que potencialmente leriam a publicação, porque “uma pesquisa anterior descobriu que os usuários do Facebook muitas vezes não pensam em quem está em seu público e não têm uma ideia clara de quem pode ver suas postagens”. A segunda, temporizador, serve “para encorajar os usuários a refletirem sobre suas postagens, nós projetamos um temporizador que insere um pequeno atraso antes que um post seja realmente postado”. A terceira, cutucada sentimental, fornecendo “aos usuários feedback imediato sobre o conteúdo de suas postagens”.[15]

De fato, aconteceram melhorias quando os usuários compartilharam suas postagens, porque muitos refletiram antes de publicar, especialmente no que diz respeito à privacidade. Embora a pesquisa não tenha sido realizada com um grande grupo — e houve problemas técnicos — foi demonstrado inicialmente que é possível melhorar as redes sociais.

Considerações finais
É possível, sem desfigurar a liberdade de expressão dos usuários, aprimorar a internet e as redes sociais com a adoção de ferramentas simples, mas que promovem resultados sociais benéficos.

Não descartamos a relevante regulamentação estatal, embora reconheçamos a difícil tarefa de regulamentar a conduta do usuário, limitando sua liberdade de expressão. Por outro lado, os nudges mantêm a liberdade dos usuários, mas promovem algum grau adicional de reflexão sobre o conteúdo publicado. As redes sociais devem criar ferramentas que evitem o compartilhamento quase automático, simples e desimpedido. Impõe-se principalmente a promoção de um ambiente saudável para o usuário possua tempo e condições de decidir por si mesmo se a notícia (o link da internet) é uma fonte segura, verdadeira e responsável. A democracia do futuro depende de informações compartilhadas com extrema velocidade, mas também depende do grau de maturidade de seus usuários.

*O texto é resultado de pesquisa e debates no âmbito do Núcleo de Direito e Política (Dirpol) do PPGD/UFPR e foi apresentado em março de 2019 no Wasserstein Hall, Harvard Law School, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos, por convite da Associação Brasileira de Estudos Jurídicos de Harvard.

[1] Cf. PASQUALE, Frank. The Black Box Society. Cambridge: Harvard University Press. 2015.

[2] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[3] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[4] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 28.

[5] Cf. BENKLER, Yochai; FARIS, Robert; ROBERTS, Hal. Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 4

[6] SUROWIECK, James. Downsizing supersize.  The New Yorker.  Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2012/08/13/downsizing-supersize. Acesso em: 30.5.2021.

[7] A construção do argumento está em: THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009, p. 83 e seguintes.

[8] HONAN, Mat. I Liked Everything I Saw on Facebook for Two Days. Here’s What It Did to Me. Wired Magazine, 2014. Disponível em https://www.wired.com/2014/08/i-liked-everything-i-saw-on-facebook-for-two-days-heres-what-it-did-to-me/, acesso em maio de 2021.

[9] Sobre essas questões, cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford University Press, 2018.

[10] MELLO, Patricia Campos. WhatsApp admite envio maciço ilegal de mensagens nas eleições de 2018. In.: Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/whatsapp-admite-envio-massivo-ilegal-de-mensagens-nas-eleicoes-de-2018.shtml. Acesso em maio de 2021.

[11] Persuading Algorithms With an AI Nudge Disponível em: https://civilservant.io/persuading_ais_preserving_liberties_r_worldnews.html, acesso em maio de 2021.

[12] THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009.

[13] THALER, Richard H. The Power of Nudges, for Good and Bad. In.: New York Times. Disponível em https://www.nytimes.com/2015/11/01/upshot/the-power-of-nudges-for-good-and-bad.html, acesso em maio de 2021, tradução livre.  

[14] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038 .

[15] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038, p. 765 (tradução livre).

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-10/observatorio-constitucional-liberdade-expressao-redes-sociais-democracia

A MP da Eletrobras, os jabutis e a conta de luz

A MP da Eletrobras, os jabutis e a conta de luz

Não haverá política energética eficiente se o Congresso e o presidente insistirem nesse modo de governar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e FELIPE FRANK

A Câmara dos Deputados aprovou no dia 21 de junho a medida provisória 1031/2021, que permite a capitalização da Eletrobrás e, assim, dá andamento ao processo de desestatização da empresa, capitaneado por Jair Bolsonaro. O texto da MP já havia sido aprovado pelo Senado dias antes e a aprovação da Câmara agora é definitiva. O texto foi para a sanção do presidente da república.

Na prática, a capitalização permitida pela MP da Eletrobrás traz novos sócios, seus recursos e, assim, dilui o controle do estado sobre a empresa, tornando a União apenas sócia da companhia, e não mais sua controladora. Daí os jornais tratarem da MP 1031 como a medida provisória de privatização da Eletrobrás.

O tema não é novo. Vem desde o governo Michel Temer. Até aqui, não tinha conseguido ir adiante. No entanto, com a aprovação final na Câmara, o processo de desestatização parece ter finalmente decolado.

O processo de edição da MP 1031 parece apresentar dois problemas, um formal e um material, sobre uma previsão específica de seu texto.

O problema formal diz respeito aos jabutis inseridos na medida provisória da Eletrobrás. Jabutis são inserções de previsões diversas do objeto da medida provisória. Daí serem também chamados de contrabandos legislativos – o legislador insere na MP uma matéria nada ou pouco relacionada ao tema da medida provisória. No caso da MP da Eletrobrás, os jabutis tratam da previsão de contratação obrigatória de termelétricas movidas a gás natural em várias regiões do país, o que exigiria a criação de extensões dos gasodutos existentes para alimentar essas termelétricas nessas regiões. Essa previsão e essa obrigatoriedade foram uma novidade imposta por parlamentares no texto da MP, visando agradar à base eleitoral. O problema é que esse jabuti não fazia parte e, apesar de tratar do tema energia e Eletrobrás, altera significativamente o planejamento energético e também os custos envolvidos para todo o processo de desestatização da MP 1031.

No entanto, desde 2015 o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que os jabutis e contrabandos legislativos nas medidas provisórias são inconstitucionais (ADI 5127, julgada em 15/10/2015, Red. p/ acórdão Min. Edson Fachin). Ou seja, não é possível inserir previsão diversa do tema e objeto originários da medida provisória.

No caso dos jabutis da Eletrobrás, a relação de pertinência entre o objeto da MP 1031 (capitalização da Eletrobrás) e a compulsoriedade de contratação de inúmeras termelétricas a gás em regiões diversas do país é apenas aparente porque envolve o tema energia elétrica. Em realidade, a obrigatoriedade de contratação de termelétricas a gás e toda a operação de extensão dos gasodutos necessária para o cumprimento dessa obrigação tratam de outro assunto – geração e distribuição de energia. Ela não está vinculada, portanto, ao tema e objeto originário da MP da Eletrobrás.

O problema material da MP é exatamente essa previsão de obrigatoriedade de contratação sem que tenha havido qualquer discussão sobre esse modelo, necessidade, viabilidade, custo, eficiência e oportunidade. É, assim, uma previsão de baixa publicidade, transparência, com alto custo de implementação, mas sem estudos ou números sólidos, confiáveis, que fundamentem a correção desse tipo de decisão política e legislativa. Ou seja, é uma previsão sem qualquer compromisso com uma atuação estatal preditiva, contabilizada, eficiente. Não há avaliação de impacto legislativo, profunda e detalhada, nem tampouco estudos que demonstrem com dados e contas confiáveis os valores e impactos econômicos dessa medida. Nem mesmo a redação do texto é boa e tampouco segue boa técnica legislativa. É, assim, uma previsão que viola a Constituição, o devido processo legislativo, a publicidade, transparência e eficiência, que deveria reger a atuação do Congresso e do presidente da república.

O problema desses contrabandos legislativos é exatamente o que tem marcado este governo: populismo, falta de planejamento e uma negociação de toma lá e dá cá no Congresso que manda a conta para todos nós. No caso da pandemia do covid-19, já são mais de 500 mil vidas perdidas. No caso da MP da Eletrobrás, são bilhões que poderão vir ser cobrados de todos nós.

Tratamos aqui de um dos jabutis. Mas, há outros, sobre pequenas centrais hidrelétricas, térmicas, energias renováveis e outros interesses políticos regionais, expressados no texto da MP 1031/21. Outra questão diz respeito à ausência de estudo e de planejamento em relação à forma da desestatização e às adaptações regulatórias que o setor deveria ter em razão dela. Esse problema foi enfrentado nas privatizações russas ao longo das últimas décadas, que, ao invés de trazerem competitividade e desenvolvimento do setor privatizado, geraram graves problemas de corrupção e de concentração de mercado, inviabilizando de um modo geral a concorrência.

O simples fato de termos tantos temas sobre energia, mas diversos em objeto e objetivo daqueles previstos na proposta que originou a MP da Eletrobrás, mostram o grande problema de se tomar uma decisão legislativa e de política pública energética dessa forma e com esse conteúdo. É com pesar que temos de reconhecer que perdemos uma grande chance de reestruturar nossa economia e dar um passo de bom desenvolvimento para o setor elétrico no Brasil, encaminhando uma desestatização que carece de neutralidade e de credibilidade e, ainda, cria grave empecilho a reformas econômicas estruturais mais profundas.

Não existe democracia sem transparência e discussão adequada sobre os temas que nos afetam. Da mesma forma, não existe desenvolvimento sem planejamento e regulação responsável. Não haverá política energética eficiente se o Congresso e o presidente insistirem nesse modo de governar. Como não existe almoço grátis, quem paga a conta dessa política de desestatização pouco responsável somos nós. E a conta parece ser de bilhões. Deverá vir nos próximos meses, na sua e na nossa conta de luz, sem perspectiva segura de melhora nos serviços ou no desenvolvimento do setor.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
FELIPE FRANK – mestre e doutor pela UFPR. Atualmente cursa LL.M. na Harvard University.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

Evangelização de povos indígenas isolados: até quando?

Evangelização de povos indígenas isolados: até quando?

Missões religiosas, como quer o governo Bolsonaro, aviltam direito de escolha

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CAROLINA SANTANA e LUIZ ELOY AMADO

 

 

Para o Supremo Tribunal Federal, a atividade de alcançar o outro, mediante persuasão, é inerente à atividade religiosa, não sendo ilícita, por si só, a comparação, a hierarquização e até mesmo a animosidade entre crenças. Essa afirmação é plenamente cabível quando todos compartilham do mesmo horizonte normativo, para usar uma expressão do filósofo alemão Jürgen Habermas. Mas ela se aplica aos povos indígenas isolados?

O debate volta agora ao STF com um novo desafio na ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 6622. Nela, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) questiona dispositivo da lei 14.021/2020 que permite a permanência de missões religiosas em territórios de povos indígenas isolados.

Talvez muita gente não saiba, mas no Brasil existem inúmeros povos indígenas que, conscientemente, escolheram viver em isolamento. Esses coletivos não vivem na ignorância, ou sem saber da nossa existência, mas sim optaram pela forma de vida que levam. Na opção e ação de seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam e de viver segundo seus usos e costumes.

Especialistas que trabalham há décadas com esses grupos já demonstraram que, devido aos seus costumes e tradições, eles estão sujeitos a uma vulnerabilidade socioepidemiológica muito maior que a nossa. Se protegermos seus territórios e garantirmos que sigam com suas estratégias milenares de controles de epidemias, permanecerão saudáveis. Porém, se a proteção falha, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações ficam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas —​pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e acesso à imunização ativa por vacinas.

Por essas razões, a restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987. No entanto, no ano passado, o governo Bolsonaro editou a lei 14.021, que permite a permanência de missões religiosas em terras indígenas de isolados.

O que todos os presidentes da República entenderam, e Bolsonaro parece não compreender, é que, ao optarem pelo isolamento, esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se vão “abrir-se ou não ao recebimento de religiosos”, como defendeu o governo perante o STF.

A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional, e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos de indígenas isolados, minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da nossa Constituição.

Esse indigenismo que o Planalto e suas normas querem estabelecer merece não apenas atenção sanitária, jurídica e social, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

Originalmente publicado em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/06/evangelizacao-de-povos-indigenas-isolados-ate-quando.shtml

Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e MELINA GIRARDI FACHIN

Vivemos a persistência da violência institucional no Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020[1] mostram que o número de vítimas de intervenções policiais também aumentou; vítimas estas que têm cor e classe – negros e pobres. O lamentável episódio em Jacarezinho corrobora os dados de truculência da violência policial no Brasil, situação que já foi reconhecida pela comunidade internacional.

A condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília, em 2017, assinalou a demora injustificada na investigação e punição dos responsáveis envolvidos na execução extrajudicial de 26 pessoas e na prática de tortura e estupro, por parte de agentes policiais, na Favela Nova Brasília, no município do Rio de Janeiro.[2] Neste caso, o Estado foi condenado às medidas necessárias para que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial. Vinte e sete anos separam as operações policiais na Favela Nova Brasília e em Jacarezinho; o que mudou parece ser apenas o aumento do número de mortos!

O cenário ainda enfrenta ameaças de retrocessos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública, principalmente com o emprego das Forças Armadas em atividades típicas da segurança pública, e com o aumento da impunidade a partir de leis em discussão no Legislativo Federal. A Comissão também mencionou um aumento nas mortes em operações policiais, sendo que as ações de integração e inteligência não resultaram em uma maior efetividade no combate ao crime organizado. Ou seja, as operações matam muito e são ineficientes[3].

É urgente que a segurança pública seja estruturada a partir de uma concepção constitucionalmente adequada, centrada na proteção de direitos, com proporcionalidade no uso da força e transparência na condução das políticas, dados dos resultados e de procedimentos investigatórios. As Polícias, como instrumento de realização da segurança pública, devem comprometer-se com os direitos humanos e fundamentais, previstos nacional e internacionalmente, e não serem os agentes de violação de tais direitos.

Como todas as atividades da administração pública, é fundamental que o controle – sobretudo de ângulo externo – sobre a atividade policial seja efetivamente desempenhado. Ao mandamento constitucional de controle soma-se a jurisprudência da Corte IDH, pacífica no sentido de que o Estado é responsável pela apuração de crimes, tendo o Ministério Público papel central, pois a apuração deve ser feita de forma independente e imparcial, assegurando às vítimas e aos seus familiares os direitos à proteção e às garantias judiciais.

Apesar da disposição constitucional que impõe a competência do MP no controle externo da atividade policial, há severas lacunas nessa atividade, impondo a necessidade de estruturação de mecanismos eficazes.

Mesmo com as condenações internacionais, o sentimento é de frustração de que pouco ou nada mudou. Talvez o grande diferencial seja o impacto do direito internacional dos direitos humanos no poder judiciário, sendo a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 exemplo marcante. Em agosto de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou liminar proferida pelo relator da ADPF, determinando que as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, devem ser restritas aos casos excepcionais e informadas e acompanhadas pelo Ministério Público estadual (MPRJ).

Uma das maiores e mais impactantes audiências públicas no STF, a audiência para a redução da letalidade policial foi conduzida no contexto da ADPF em abril de 2021 e conferiu oportunidade histórica de manifestação da sociedade e das instituições sobre as causas e consequências da letalidade policial. Menos de um mês depois, sobreveio a chacina de Jacarezinho; que a CIDH reconheceu esta como a ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.

Justamente em função do massacre, o STF foi novamente instado a se manifestar no bojo da ADPF citada a fim de determinar, o conceito de excepcionalidade a justificar as operações policiais nas comunidades – e aqui o nome dado à operação em Jacarezinho, Exceptis, parece ser desrespeito à institucionalidade do decidido pelo plenário do STF – e, além disto, cobrar a investigação e responsabilidade sobre o ocorrido. Em voto de 21 de maio deste ano, o relator circunscreveu os requisitos de excepcionalidade para fins de operação policial: número suficiente de agentes para minimizar as chances de se utilizar a força, acompanhamento de equipe pericial e número suficiente de agentes para assegurar a realização da perícia conforme o Protocolo de Minnesota. Sempre com atenção ao planejamento e inteligência.

O que nos resta é a esperança de quando vier a condenação internacional do Estado brasileiro sobre a Chacina de Jacarezinho – que virá! –  tenhamos já melhorado na democratização da segurança pública. Entendê-la a partir de sua função pública, implica em estabelecer controles internos, externos e sociais, para que a segurança se faça com a proteção de direitos humanos e das pessoas mais vulneráveis que, muitas vezes, só conhecem o Estado na atuação policial. Até lá, o massacre em Jacarezinho ainda persistirá!

 

[1] BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo, 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP.

[2] CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília Vs Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 28 jan. 2021

[3] G1. Estudo aponta que apenas 1,7% das operações policiais no Rio são eficazes. Disponível em:< https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/05/09/estudo-aponta-que-apenas-17percent-das-operacoes-policiais-no-rio-sao-eficazes.ghtml>. Acesso em 18 de mai. 2021.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

‘Teje preso’ e a convocação de testemunha pela CPI

‘Teje preso’ e a convocação de testemunha pela CPI

Julgamento no STF envolve manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito

Por RODRIGO LUÍS KANAYAMA e RODRIGO SÁNCHEZ RIOS


Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sempre causa algum furor. O folclore político brasileiro é permeado por histórias interessantes – por vezes, engraçadas – de CPIs que “terminaram em pizza” (tradução: não trouxe resultados relevantes), convocadas para investigar “anões do orçamento” (tradução: investigados eram parlamentares do “baixo clero”), interessadas em apurar os detalhes do contrato entre Nike e CBF e da participação do jogador Ronaldo na final da Copa de 1998, ou que contaram com o famoso “
teje preso” (declarado pela então senadora Heloísa Helena na CPI dos Bancos).

Por onde passa, uma CPI faz história, deixa feridas expostas, e causa dor de cabeça aos governos. Inquestionável é a sua importância no sentido de apurar responsabilidades – comissivas e omissivas – de agentes políticos, sobretudo quando atuam com aparente desídia e minimizam o trágico número de vidas perdidas.

Comum a todas elas é a origem: o art. 58, §3º da Constituição. Deste dispositivo podemos retirar que as CPIs: (a) têm poderes de autoridades judiciais (e outros previstos nos Regimentos); (b) podem ser criadas por uma das Casas ou em conjunto (Senado e Câmara), pelo requerimento de um terço de seus membros; (c) servem à apuração de fato determinado; (d) têm prazo certo de duração; (e) suas conclusões podem ser enviadas ao Ministério Público para responsabilização.

A CPI, portanto, é inerente ao Poder Legislativo, ou seja, o poder investigativo é ínsito ao parlamento[1]. Na teoria jurídica, uma CPI serve como instrumento para fornecer ao Legislativo informações para seu melhor funcionamento, para controlar o governo (na perspectiva do sistema de pesos e contrapesos, evocado sobretudo no art. 2º da Constituição Federal) e para influenciar a opinião pública[2]. Na prática, contudo, a CPI acaba servindo como ferramenta congressual da oposição para incentivar/coibir alguma conduta dos demais atores políticos e também tem objetivo eleitoral, na medida em que expõe à opinião pública as entranhas do governo – sem dar-lhe a mesma voz.

Não entraremos na discussão sobre a criação da CPI pela minoria[3]. Consideremos que, se um terço dos membros da Casa requerer a criação, será criada a CPI. Instituída a CPI e constituída nos termos do Regimento Interno, passa a convocar pessoas, requisitar documentos e informações – em resumo, pode produzir provas como “autoridades judiciais”. Conforme a Lei 1.579/1952 (alterada em 2016), as CPIs poderão “determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença” (art. 2º). As intimações seguirão os ditames e formalidades da legislação penal (art. 3º).

Seus poderes são amplos. Dentre tantos, analisemos o assunto em maior evidência, impulsionado pela atual CPI em curso: o dever de comparecimento (de testemunhas e investigados). Uma das principais discussões dos últimos dias – mormente em razão do depoimento, na qualidade de testemunha, do ex-ministro Eduardo Pazuello – é a compulsoriedade do comparecimento à comissão. Em 2019, no contexto da CPI de Brumadinho, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, no HC 171.438-DF, convolou a obrigação de comparecer em faculdade, tratando-se de investigado. Afirmou que o indivíduo, na qualidade de investigado, não poderia ser instado a falar e, nessa linha, seu comparecimento não seria compulsório (sendo ilegal condução coercitiva).[4] Como fundamento da decisão, adotou o precedente das ADPFs 395 e 444 (as quais versaram sobre proibição de conduções coercitivas de investigados no âmbito do Processo Penal).

Conquanto o julgamento do HC 171.438 tenha como fato o pedido de um investigado, o julgado deixa em aberto algumas questões. O relator, ministro Gilmar Mendes, no início do seu voto, cita o HC 79.812 (ministro-relator Celso de Mello, J. 16/02/2001), que garantiu direito ao silêncio a investigados e testemunhas em observância ao direito constitucional de não auto-incriminação (sendo toda a argumentação construída sobre esse pilar). No decorrer do voto, o ministro-relator menciona excerto de seu próprio voto na ADPF 395 para justificar o dever ao comparecimento de testemunha[5].

Tal entendimento foi repetido em diversos outros habeas corpus concedidos para investigados ou testemunhas (o ministro Celso de Mello concedeu habeas corpus em favor de pessoas convocadas na qualidade de testemunhas).[6] O argumento central advindo do HC 171.438 (ministro-relator Gilmar Mendes) é: “se o investigado não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação“.

No caso do ex-ministro Eduardo Pazuello, a ordem de habeas corpus (HC 201.912 MC–DF – decisão de 14/05/2021)[7] foi concedida parcialmente, mantendo-se na linha dos procedentes já citados e outros prolatadas pela Corte Constitucional.

Primeiro, o relator, ministro Ricardo Lewandowski, entendeu que o atendimento à convocação na qualidade de testemunha constitui um dever. Segundo, afastou como precedente as ADPFs 395 e 444 pois, segundo sua decisão, a questão em tela não envolve “convocações coercitivas impostas de forma arbitrária aos investigados“. Terceiro, manteve a linha do precedente e concedeu a ordem para garantir o direito ao silêncio (com a finalidade de afastar a auto-incriminação – não podendo faltar com a verdade naquilo que não o envolvesse diretamente como investigado em procedimentos outros já instaurados nas searas competentes), o direito de ser assistido por advogado, o direito a ser tratado com urbanidade e de não sofrer constrangimento físico ou moral (especialmente ameaça de prisão).

distinguishing da ordem concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski é coerente. Separou as convocações na qualidade de testemunhas das realizadas na qualidade de investigados. Não obstante o necessário respeito aos direitos de testemunhas (e investigados), limitando-se o famoso “teje preso”, o STF tende à compreensão no sentido do dever do comparecimento de testemunhas. O que jamais poderá se olvidar, contudo, é a prevalência do nemo tenetur se detegere em qualquer circunstância na qual o inquirido – seja na qualidade de testemunha ou investigado – possa vir a ser compelido a confessar a realização de um delito ou participação neste – linha essa a qual parece ter sido edificada na decisão monocrática de lavra do ministro Ricardo Lewandowski em favor do ex-ministro da Saúde.

[1]  No Direito norte-americano, conferir McGrain v. Daugherty, 273 U.S. 135 (1927).

[2]  SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 99-103.

[3]  Esse assunto foi bem debatido no artigo da Roberta Simões Nascimento – Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pode-o-stf-determinar-a-criacao-da-cpi-da-pandemia-31032021 – e na decisão do STF no MS 37.760 (Rel. Min. Roberto Barroso).

[4]  Conforme o voto do Min. Gilmar Mendes, “por sua qualidade de investigado, não pode o paciente ser convocado a comparecimento compulsório, menos ainda sob ameaça de responsabilização penal.

Ora, se o paciente não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação, como sói ocorrer nos interrogatórios havidos pelo País.

É autêntica lawfare da acusação: registram-se as perguntas apenas tentar provocar prejuízo ao interrogado, por exercer seu direito ao silêncio.” (STF – HC 171.438 DF, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 28/05/2019).

Nesse julgamento votou com o Min. Relator o Min. Celso de Mello. E concedendo a ordem em menor extensão (não convolando a compulsoriedade em facultatividade) os Ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia.

[5]  “Para que a condução coercitiva fosse legítima, ela deveria destinar-se à prática de um ato ao qual a pessoa tem o dever de comparecer, ou ao menos que possa ser legitimamente obrigada a comparecer.

Veja-se a condução da testemunha, por exemplo. Existe o dever de depor como testemunha – art. 202 do CPP. O testigo deve fazer-se presente na hora e no local assinalados na intimação. Inexiste a prerrogativa de fazer-se ausente.

A condução coercitiva da testemunha faltante é simples meio de exigir o cumprimento do dever de apresentar-se para depor – art. 218 do CPP.

Nesse caso, há uma finalidade claramente estabelecida, a ser afirmada por medidas proporcionais, conferidas pelo legislador.” (STF – ADPF 395 – excerto do voto do Min. Gilmar Mendes – proferido em 07/06/2018).

[6]  Conferir: HC 174.853, HC 172.199, HC 175.087, HC 175.555, HC 175.657 e outros, todos da Relatoria do Min. Celso de Mello. E RCl 39.449, da Relatoria do Min. Gilmar Mendes.

[7]  Conforme decisão do Min. Relator: “No que diz respeito à situação concreta do paciente, que ocupou o cargo de Ministro de Estado da Saúde por aproximadamente 10 meses, não vejo como dispensá-lo da convocação feita pelo Senado Federal para depor perante a CPI, tendo em conta a importante contribuição que poderá prestar para a elucidação dos fatos investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Pandemia da Covid-19.

Salta à vista, porém, que a sua presença na indigitada CPI, ainda que na qualidade de testemunha, tem o potencial de repercutir em sua esfera jurídica, ensejando-lhe possível dano. Por isso, muito embora o paciente tenha o dever de pronunciar-se sobre os fatos e acontecimentos relativos à sua gestão, enquanto Ministro da Saúde, poderá valer-se do legítimo exercício do direito de manter-se silente, porquanto já responde a uma investigação, no âmbito criminal, quanto aos fatos que, agora, também integram o objeto da CPI.

(…)

Aqui, convém esclarecer que a obrigação de comparecimento do paciente para depor não pode ser afastada, pois, ao menos em um juízo de cognição sumária, o direito ao silêncio e o dever de atender à convocação da CPI, são institutos de conteúdo normativo distintos, em que pese haver uma tênue linha de separação entre eles, não se tratando, a meu ver, da mesma situação delimitada nos precedentes firmados nas ADPFs 395 e 444, ambas de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que o Plenário desta Suprema Corte proibiu as conduções coercitivas impostas de forma arbitrária aos investigados.

Tenho que o atendimento à convocação expedida pela Comissão Parlamentar de Inquérito, segundo os termos constitucionalmente estabelecidos, consubstancia um dever do paciente, especialmente porque comparecerá na condição de testemunha. O atendimento à convocação, em verdade, configura uma obrigação imposta a todo cidadão, e não uma mera faculdade jurídica.” (STF – HC 201.912 MC–DF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – decisão de 14/05/2021).

 

RODRIGO LUÍS KANAYAMA – membro do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR). Na Faculdade de Direito da UFPR, é Professor Adjunto de Direito Financeiro e Chefe do Departamento de Direito Público. É Conselheiro Estadual da OAB/PR, onde também preside a Comissão de Estudos Constitucionais, e sócio da Kanayama Advocacia em Curitiba.
RODRIGO SÁNCHEZ RIOS – Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli studi di Roma III – La Sapienza. Professor de Direito Penal da PUCPR. Advogado Criminalista.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/teje-preso-convocacao-testemunha-cpi-25052021

O PGR Augusto Aras: a representação absurda e a queixa inepta

O PGR Augusto Aras: a representação absurda e a queixa inepta

Em Brasília, a PGR tramita procedimentos como quem troca vasos de lugar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

Depois da representação por suposta violação ética, o procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, apresentou queixa-crime contra o professor Conrado Hübner Mendes (USP).

Os fatos são os mesmos: as críticas que o professor Conrado fez em sua coluna semanal,  na Folha de S. Paulo e em sua conta no Twitter, a Augusto Aras, por sua atuação como PGR. Ou melhor, pela sua falta de atuação, por sua conivência com as seguidas violações que o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e sua administração cometem contra a Constituição e o país. Não custa lembrar, já são mais de 440 mil mortes, boa parte delas, como estimam cientistas, evitáveis. E mortes evitáveis têm responsabilidades atribuíveis.

Conrado pontuou diversas ações e omissões do PGR Augusto Aras. E se chegamos até aqui, com mais de 440 mil vidas perdidas, com uma atuação parca da PGR, é porque há muito mesmo o que se discutir. Seus colegas no Amazonas fizeram mais e melhor do que o PGR em Brasília. No Amazonas, o general Eduardo Pazuello responde por improbidade administrativa. Em Brasília, a PGR tramita procedimentos como quem troca vasos de lugar. Mexe aqui, ali, para manter tudo em ordem. Ou sob às ordens.

Se a representação já era uma peça absurda, ao buscar punir quem defende suas ideias na Universidade, templo da ciência e destas mesmas ideias, a queixa-crime é uma peça despropositada, pela ausência do crime cuja existência acusa.

Não houve crime porque não se violou a honra daquele que, sendo membro do Ministério Público Federal, ocupante do cargo de PGR, sujeita-se à crítica pública e transparente sobre os atos que pratica, ou deixa de praticar, no exercício deste mesmo cargo. O relevante múnus público sujeita o PGR a um nível mais intenso de escrutínio público de sua atuação, pois o que faz ou deixa de fazer interessa a todos nós, inclusive à sua instituição (o MPU em geral e o MPF em particular). É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4].

Logo, ainda que Aras se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão do que faz, do que não faz, e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado Hübner Mendes. Se uma pessoa exerce um dos cargos mais relevantes do País – o de PGR, sua atuação está sujeita a um debate público intenso, profundo, crítico, e que pode sim lhe imputar qualificações negativas que, fundamentalmente, demonstrem os erros e déficits de sua atuação.

Trocando em miúdos, se a liberdade de expressão já nos garante a todos a possibilidade de exprimirmos nossas ideias e críticas, tanto mais quando ela é dirigida ao debate público e ao escrutínio de um agente público como o Procurador-Geral da República, aquele que deveria proteger a ordem jurídica e o regime democrático. Mas tem sido o primeiro a se levantar contra um professor e pesquisador.

Que pesado é o giz do professor Conrado para sobrecarregar um PGR que não sente o fardo de mais de 440 mil mortes em torno de si e nem busca ver quem, como e porque debilita as instituições e a democracia do país.

Se a representação perante a USP é absurda, a queixa é manifestamente inepta. Não há ilícito, apenas o que se parece desconhecer: o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado..

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

Mesma remuneração para o mesmo trabalho

A Constituição têxtil

Respostas dos poderes instituídos mostram que maleabilidade do tecido constitucional foi abusada

Por ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO, MELINA GIRARDI FACHIN, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA e ALINE OSÓRIO.

No último dia 27 de abril, foi enviado à sanção presidencial o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 130, de 2011, aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional, que acrescenta o § 7º ao art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452/43, para combater a diferença de remuneração entre homens e mulheres no Brasil. O projeto de lei estabelece que considerar o sexo, a idade, a cor ou a situação familiar como variável determinante para fins de remuneração importará na imposição, pela Justiça do Trabalho ao empregador, de “multa em favor da empregada de até 5 (cinco) vezes a diferença verificada em todo o período da contratação, observado o prazo prescricional”.

Não há dúvida de que o PLC 130/2011 é instrumento de realização da proibição constitucional de desigualdade salarial entre homens e mulheres, prevista expressamente no art. 7º, inciso XXX, pelo qual se estabeleceu a “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.  Antes mesmo da Constituição de 1988, a própria Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 já previa em seu art. 5º: “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo”. Também seu art. 461 já previa que, sendo idêntica a função, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo.

Em 1999, a Lei nº 9.799 inseriu na CLT regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho, entre as quais se destaca a vedação de, entre outras condutas, considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional (art. 373-A, inciso III, da CLT).

Nada obstante, tais normativas não têm sido suficientes para impedir a persistência da discriminação sofrida pelas mulheres no mercado de trabalho. E, notadamente, a diferença de salários (em relação ao que é pago aos homens que exercem as mesmas funções) é a feição mais perniciosa dessa discriminação. Dados recentes do IBGE[1] dão conta que o gap chega a ser de quase 25%. Entre diretores e gerentes, grupo com rendimentos mais elevados, a diferença é ainda maior: a remuneração das mulheres foi de cerca de 62% daquela auferida por homens (uma diferença de quase 40%, portanto).[2]

A diferença salarial, que tem maior impacto nas classes mais baixas, é justamente uma das razões que impedem as mulheres de formar poupança ao longo da vida.

Afinal, qualquer quantia de diferença salarial mensal, por menor que seja, quando capitalizada mês a mês durante a vida útil laboral média de uma trabalhadora mulher pela taxa de juros básica da economia, torna-se um valor expressivo, demonstrando o caráter abismal dessa discrepância.

Diante desse contexto, o que podem fazer as mulheres? Reclamar individualmente (e correr o risco de perder o emprego)?

Não há dúvida que um caminho eficaz para garantir a igualdade salarial é aquele traçado pelo Congresso Nacional ao aprovar o PLC nº 130, de 2011, após 10 anos de tramitação, impondo-se multa para a infração ao citado art. 373-A, III, da CLT.

Durante os debates parlamentares, foram feitas diversas alterações ao texto originário: 1) inseriu-se a possibilidade de gradação da multa (na versão original, o valor era fixo, correspondente a 5 vezes a diferença verificada em todo o período da contratação); 2) determinou-se a observância do prazo prescricional de 5 anos; e 3) mudou-se a natureza administrativa (a previsão seria inserida no art. 401 da CLT) para fixar seu caráter judicial, somando-se às sanções já existentes no art. 461 da CLT.

A Lei nº 13.467/2017, que implementou reforma trabalhista no governo Temer, já havia acrescentado uma multa aos empregadores por discriminação de gênero. Trata-se do § 6º inserido no art. 461, que dispõe que: “No caso de comprovada discriminação por motivo de sexo ou etnia, o juízo determinará, além do pagamento das diferenças salariais devidas, multa, em favor do empregado discriminado, no valor de 50% (cinquenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”. A multa, que independente da diferença verificada e do período de trabalho, surtiu pouco efeito, ante seu valor fixo e módico (hoje equivale a aproximadamente R$ 3.200,00)

Em que pese sua constitucionalidade e inegável relevância, o PLC n. 130, de 2011, vem enfrentando resistências para a sanção. No dia 22 de abril, durante a sua live semanal (a partir do minuto 31 do vídeo), o presidente Bolsonaro apresentou um falso dilema: se vetar o projeto, afirma que seria “massacrado” (politicamente); se sancionar, insinuou que a novidade poderia “quebrar as empresas”. Além disso, o Presidente questionou se a sanção não imporia maior dificuldade para as mulheres arranjarem emprego. No seu raciocínio, pôr fim à discriminação salarial pode piorar a situação das mulheres. Perguntou: se sancionar, como será o mercado de trabalho para as mulheres no futuro?

Esses questionamentos devem – é claro – ser levados a sério: a atenção para as consequências é uma das marcas do raciocínio legislativo. Porém, é preciso tomar cuidado com a versão falaciosa do argumento consequencialista, que pode estar presente quando não são apresentados dados ou estudos que embasem o raciocínio.

A decisão legislativa é orientada para o futuro: guia-se para a realização do estado de coisas desejado (ou para acabar com aquele considerado problemático), sendo certo que, entre as razões que justificam a aprovação das leis, está precisamente o potencial (da medida que se pretende adotar) para alcançar os objetivos fixados (a adequação meios-fins).

Normalmente, com a aprovação das leis, pretende-se mudar uma dada realidade (no caso, a “discriminação salarial entre homens e mulheres”), o que exige que a decisão legislativa se paute em um adequado diagnóstico sobre o que causa esse “problema social”.

A respeito do primeiro argumento, de que a multa ameaçaria a sobrevivência das empresas, parece que a resposta já foi dada pelo próprio Poder Legislativo quando incluiu a possibilidade de gradação, estabelecendo como teto a quantia de 5 vezes a diferença salarial identificada. A aplicação da multa pelos juízes e tribunais será, assim, pautada pela observância do princípio da proporcionalidade. Na fixação da quantia, por óbvio, a capacidade da empresa de arcar com o valor poderá ser considerada. Em todo caso, se a multa for aplicada de forma imoderada e desproporcional por juízes e tribunais, isso pode ser corrigido pelo sistema recursal. Além disso, deve-se considerar que, na prática, a observância do prazo prescricional também funcionará como limitadora das quantias a serem pagas.

Ainda sobre esse ponto, vale lembrar que, nas situações em que o trabalho prestado por homens e mulheres não for idêntico, é claro que não incidirá a multa pretendida com o § 7º, se acrescido ao art. 461 da CLT. Isso porque a sanção somente será aplicável nos casos de discrepância salarial injustificada, arbitrária e discriminatória. Não haveria, nessa hipótese, qualquer inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público que pudessem justificar o veto à proposição legislativa, nos termos do art. 66, § 1º, da CF.

A respeito do segundo argumento, de que a multa teria o efeito perverso de dificultar a obtenção de empregos pelas mulheres, não há dado empírico a sustentar essa conclusão. Pelo contrário, cada vez mais a presença de mulheres em empresas, em especial em cargos diretivos, tem sido relacionada à melhoria da performance corporativa. A título exemplificativo, o estudo “Women in Business and Management: The Business Case for Change”, da OIT/ONU, apontou que a diversidade de gênero produz aumento de lucros e da produtividade de 62,6%[3],

Aliás, a própria reforma trabalhista, aprovada em 2017, é um exemplo ilustrativo de que a flexibilização de direitos trabalhistas não gera aumento do emprego, considerando que 2 anos após a sua aprovação o desemprego atingia 12,5 milhões de brasileiro, ao passo que na época da aprovação da reforma o desemprego estava na casa de 12,7 milhões.[4]

Ademais, dados do Banco Mundial no relatório “Unrealized Potential: The High Cost of Gender Inequality in Earnings”[5] apontam que riqueza mundial aumentaria 14% se não houvesse diferenciação de salário em razão do sexo e que a perda de riqueza de capital humano alcança a quantia de U$ 160,2 trilhões.

Nada obstante tudo isso, mesmo diante da legitimidade dos objetivos legislativos (que são constitucionais) e da presença de racionalidade teleológica, não se descarta a possibilidade de que não seja alcançado o estado de coisas desejado (ou, de que eventualmente surjam consequências não previstas ou indesejadas). Isso pode acontecer porque a “origem” da discrepância salarial entre homens e mulheres tem uma raiz mais profunda do que a conduta de alguns empregadores, sendo um problema complexo, relacionado ao patriarcado que sustenta a discriminação estrutural e institucional contra as mulheres.

Para essas situações, no entanto, o remédio seria nada mais do que proceder ao monitoramento dos efeitos da lei (um dever inerente ao devido processo pós-legislativo) e, conforme os resultados das avaliações ex post, a norma do PLC nº 130, de 2011, poderá ser objeto de alterações legislativas futuras. Inclusive, para fins de aprofundamento das conquistas em direção à igualdade salarial entre homens e mulheres, incorporando adequadamente a perspectiva de gênero, como já sugerido aqui, inclusive. Nesse sentido, a legislação da Islândia, que prevê que os empregadores devem ter sistemas de remuneração transparentes e devem comprovar a paridade salarial, obtendo certificação – pode servir de inspiração para avanços futuros.[6]

Em suma, a PLC nº 130, de 2011 apenas buscar cumprir uma das promessas da redemocratização, qual seja, o postulado constitucional da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I, da CF).

 

[1] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/03/04/mulheres-ganham-77-7-dos-salarios-dos-homens-no-brasil-diz-ibge

[2] Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/30172-estatisticas-de-genero-ocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-com-criancas-de-ate-tres-anos

[3] Disponível em: https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_700953/lang–en/index.htm

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2020/11/11/reforma-trabalhista-completa-3-anos-veja-os-principais-efeitos.ghtml; https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/#page1.

[5] Disponível em https://www.worldbank.org/en/topic/gender/publication/unrealized-potential-the-high-cost-of-gender-inequality-in-earnings

[6] Ines Wagner, How Iceland is Closing the Gender Gap, Harvard Business Review (Jan. 8, 2021), https://hbr.org/2021/01/how-iceland-is-closing-the-gender-wage-gap

 

ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO – Professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB). Advogada do Senado Federal desde 2009. Doutora em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha. Doutora e mestre em Direito pela UnB.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA – Advogada e sócia do Lacombe e Neves da Silva Advogados Associados. Mestre pela University of California Berkeley. Especialista em direito constitucional e teoria crítica em direitos humanos. Presidente da Elas Pedem Vista. Membro do LiderA, observatório eleitoral e IBRADE. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB/DF. Diretora Jurídica do Instituto Gloria.
ALINE OSÓRIO – Secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mestre em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e LL.M pela Harvard Law School. Professora de Direito Constitucional e Eleitoral do UniCeub e atual autora do livro “Direito eleitoral e liberdade de expressão”.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/mesma-remuneracao-para-o-mesmo-trabalho-06052021

Quando o STF acerta: a audiência pública sobre letalidade policial no RJ (ADPF 635)

Quando o STF acerta: a audiência pública sobre letalidade policial no RJ (ADPF 635)

Audiência pública deu visibilidade a quem geralmente fica ofuscado por lágrimas e estatísticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

O Supremo Tribunal Federal (STF) terminou na última segunda-feira (19/04) sua 32ª Audiência Pública. O tema dessa audiência foi a redução da letalidade policial no Estado do RJ, discutida e pedida no âmbito da ADPF 635, de relatoria do ministro Edson Fachin.

A audiência pública da ADPF 635 foi importante, e também impactante.

Importante pela forma como a audiência foi convocada e estruturada. A decisão de convocação previu oitivas na cidade do Rio Janeiro, o que acabou não acontecendo em razão da pandemia. A decisão também  estabeleceu, quando de sua convocação, dez questões-chave como pontos de partida, envolvendo, desde logo, o próprio ministro e deixando nítidas as suas preocupações e os seus questionamentos. Quanto à estruturação da audiência pública, ela previu a participação direta dos afetados, de pessoas e grupos das comunidades atingidas pelas operações policiais com alto índice de letalidade. A audiência previu ainda espaço e tempo para debates, diálogos. Criar essa possibilidade, com espaço e tempo, é permitir que a audiência seja mais do que uma instância meramente informativa, e seja, também, uma instância deliberativa.

A audiência pública foi impactante porque deu voz aos que não têm voz. Deu visibilidade a quem geralmente fica ofuscado por lágrimas e estatísticas. Nesse sentido, um dos destaques do movimento de vítimas é a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, ligada à Baixada Fluminense. Mas não só. Participaram também outros movimentos e coletivos: Coletivo Papo Reto, Movimento Parem de nos Matar, Redes da Maré, Mães da Baixada Fluminense, Comunidades e movimentos contra a violência, entre outros.

O destaque é relevante porque os depoimentos, as narrativas, mostram a vida (e morte) concreta dos nossos concidadãos contados por eles próprios.

Um detalhe não menos importante: alguns desses participantes, como, por exemplo, o Coletivo Papo Reto, o movimento Mães de Manguinhos, o Coletivo Fala Akari, quase não puderam integrar a ADPF 635. Eles requereram sua participação como amici curiae na ADPF, mas tiveram seu pedido negado. Como se sabe, o STF desde 2018 mudou seu entendimento e não admite recurso contra decisão que indefere pedido de participação como amicus curiaeEsse entendimento é errado, normativamente e institucionalmente. Mas é o entendimento ainda prevalecente. Diante da negativa, pediram reconsideração da decisão de indeferimento, apontando como e porquê deveriam ser ouvidos. E o ministro Fachin, sensível aos apelos, não só reconsiderou sua decisão anterior, como ainda reconheceu a necessidade da oitiva direta como contribuição válida e relevante, pois são esses coletivos, movimentos, que têm experiências, conhecimentos, vivências, sobre os temas da ADPF 635. Afinal, eles são sujeitos dos fatos – convém lembrar: violência e letalidade policial.

A audiência pública não foi unilateral ou unidirecional. Também foram ouvidos os integrantes das forças de segurança do Estado, que puderam relatar e as dificuldades que enfrentam nesse modo de agir e operar do Estado.
Essa inclusão de pessoas, movimentos, coletivos, entidades, forças policiais – uma participação efetiva e em sentido amplo, e não de modo seletivo – é um passo extremamente importante para chamar os afetados pelas operações a participarem do processo decisório.

Uma ausência, todavia, foi sentida: a dos demais ministros do STF. Exceto o ministro Gilmar Mendes, que participou da abertura da audiência pública e dos trabalhos iniciais, nenhum outro ministro esteve na audiência. E existem formas variadas de participação possível: estar presente é, sem dúvidas, a principal. Mas, interagir previamente com o ministro relator ou elaborar questões complementares são exemplos de como é possível um ministro se engajar na audiência pública convocada por um par.

De todo modo, o que se vê é que a audiência pública da ADPF 635 dá sequência a outras iniciativas e decisões do ministro Luiz Edson Fachin de fazer desse instrumento um espaço de abertura e democratização da jurisdição constitucional. Nesta audiência específica da ADPF 635, além disso, também um lócus de participação dos afetados e ainda um espaço de diálogo, discussão e deliberação. Uma audiência que, convocada por um ministro, deve afetar todo o Tribunal. Afinal, os depoimentos, as narrativas, os estudos, estão agora registrados e documentados. Integram a ADPF 635, impõem um ônus decisório aos ministros, compõem a história do próprio Supremo.

Uma audiência que faz história pela forma, pelo conteúdo e pelas vozes e visibilidades que finalmente tomaram parte no processo decisório do STF e no STF. Uma decisão de um ministro, mas o acerto de todo o Tribunal. Até aqui. Esperamos que adiante também.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

Normalizando o anormal? As decisões do STF após um ano de pandemia

Normalizando o anormal? As decisões do STF após um ano de pandemia

Virada jurisprudencial a favor da descentralização permanece carecendo de maior fundamentação pela Corte

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, JOSÉ ARTHUR DE MACEDO e RENATA NAOMI TRANJAN

 

Há cerca de um ano, escrevemos o artigo “As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?”. Naquela ocasião, apontamos dois pontos que indicavam possíveis mudanças e continuidades na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). As mudanças podiam ser vistas em relação ao conteúdo das decisões sobre matéria federativa. A continuidade podia ser vista na permanência do modo monocrático de decidir em relação aos outros Poderes.

Atravessado este primeiro e terrível ano pandêmico, retomamos essas questões: o Supremo manteve em 2020 e no início deste 2021 suas decisões a favor da descentralização federativa? Essas decisões foram tomadas ou proferidas monocraticamente?

Primeiro, quanto à mudança de atuação do STF em matéria federativa, se, antes da pandemia a atuação do Supremo tendia explicitamente para uma maior centralização da federação, o início da crise sanitária indicou uma alteração substancial desse cenário.

Como se sabe, no início da pandemia o Supremo afirmou, nas paradigmáticas ADI 6.341 e ADI 6.343,  as competências comum e concorrente da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para o enfrentamento do COVID-19. A ADI 6.343 reconheceu a possibilidade de que Estados e Municípios adotassem medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local enquanto durar o estado de emergência sanitária. Muitas dessas medidas foram questionadas em sede de reclamação, mas foram mantidas em razão deste precedente.

Segundo essa linha de raciocínio, para o STF, respeitadas as competências que lhes são próprias, os entes da federação não só podem, como devem atuar no combate a pandemia.

Nesse sentido, temos também como casos exemplares a ADI 6.362/DF – que debatia a possibilidade de a União realizar requisição administrativa de leitos privados de UTI. E também as ADIs 6.587/DF e 6.586/DF – ambas versando sobre a possibilidade de estados realizarem vacinação compulsória.

Apenas para mencionar um exemplo julgado em plenário e com acórdão publicado, a ADPF 672/DF (Rel. min. Alexandre de Moraes), por exemplo, discutia os atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal no combate ao coronavírus. O STF entendeu que, ao tratar do direito à saúde e assistência pública, a Constituição consagrou a existência de competência administrativa comum dos entes (art. 23, II e IX, CRFB/88), bem como previu competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CRFB/88), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, CRFB/88). Ademais, previu a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CRFB/88, e art. 7º, Lei 8.080/1990), inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, Lei 8.080/1990).

Portanto, apesar do Poder Executivo federal ter papel central no planejamento e coordenação das ações governamentais, não pode ele afastar unilateralmente as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus territórios.

Em outras palavras, nestas decisões, o STF percebeu a omissão inconstitucional do Executivo e coibiu o federalismo bolsonarista, que pretende praticar uma descentralização irresponsável (política e juridicamente). O que não fica claro é se a junção desses fatores será, por si só, capaz de alterar e justificar o entendimento do Supremo em matéria federativa a longo prazo.

Além disso, em um ano, ficou mais nítida a imagem que apenas se antevia no horizonte de abril de 2020: o presidente da república é, atualmente, o principal ator a tensionar a federação, e, em muitas situações, procrastinou as medidas de enfrentamento ao COVID-19, tais como o uso de máscaras, a compra de vacinas e a tomada de medidas baseada em evidências científicas.

Apesar de haver uma jurisprudência evidente autorizando a atuação dos entes da federação, o presidente da república decidiu, ao seu modo, questionar a interpretação – absolutamente correta, ao nosso ver – da Corte a respeito dos deveres que a Constituição impõe aos entes da federação.

Em 18 de março de 2021, o presidente da república ajuizou a ADI 6764 para suspender decretos estaduais que estabelecem medidas restritivas no combate à pandemia, como o fechamento de atividades não-essenciais e o toque de recolher noturno. O presidente visava obter o entendimento de que medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas.

Como quem diz “quem manda aqui sou eu”, o presidente questionou de uma só vez, no mínimo duas coisas: i) um ano de reiteradas decisões do STF a respeito da matéria; ii) a autoridade dos governadores e prefeitos para impor medidas restritivas. Isto, não é demais lembrar, no ápice da pandemia com milhares de mortos por dia e sem perspectiva de diminuição imediata.

Em 23 de março de 2021, o relator ministro Marco Aurélio indeferiu a inicial e rejeitou a ADI 6764, afirmando que Estados, Municípios e União formam um “condomínio” responsável por tratar de temas relativos à saúde e que ao presidente da República “cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros”, no combate à pandemia. E ainda indicou haver erro grosseiro ante a falta de representação adequada do presidente da república pelo Advogado-Geral da União. A decisão gerou controvérsia sobre se tal representação seria ou não exigida. Afinal, há decisão antiga do STF reconhecendo a possibilidade de atuação direta e sem a representação apontada como necessária[1]. Contra a decisão do ministro Marco Aurélio, foram opostos embargos de declaração, os quais ainda não foram julgados pelo Supremo. A discussão sobre esse aspecto processual permanece, portanto.

Quanto às permanências das formas de atuação da Corte anteriores à crise, estas não só continuaram como, injustificadamente, parecem ter se assentado. Isso já era verificado tanto na forma como o STF vinha decidindo, como sobre o conteúdo do que ele vinha decidindo. A primeira é constatada na recorrente concessão de cautelares monocráticas em ADI e a segunda na recém aprovada alteração do rito de edição e análise das Medidas Provisórias (MPs).

Aliás, em relação às MPs, é importante ressaltar: ao conceder e referendar a liminar na ADPF 663, em julgamento de dezembro de 2020, o Supremo permitiu a alteração, por ato conjunto das mesas da Câmara e Senado, do rito constitucional de edição e aprovação as Medidas Provisórias. Ou seja, autorizou que ato conjunto do Poder Legislativo modifique regra constitucional expressa. A violação da Constituição pelo Poder Legislativo agora recebe o carimbo constitucional do Supremo, apesar do seu dever de zelar pelo devido processo legislativo e pela integridade da Constituição.

Ainda no tocante às permanências, convém destacar que a ampliação do uso do Plenário Virtual para todo e qualquer processo ou decisão poderia ter abrandado a corriqueira concessão de cautelares monocráticas em ADI. Apesar disso, ao longo de 2020 e 2021, a prática persevera. Veja-se o caso da ADI 6.625, de relatoria do ministro Lewandowski, cuja cautelar foi concedida em janeiro de 2021, para compreender que, “ao lado da União, cabe aos Estados, Distrito Federal e Municípios assegurar aos seus administrados os direitos fundamentais à vida e à saúde contemplados nos arts. 5°, 6° e 196 do texto constitucional”. A cautelar foi referendada em plenário por maioria dois meses depois, em março de 2021. Cite-se, ainda: a ADI 6357, ministro-relator Alexandre de Moraes, cuja cautelar foi concedida em março de 2020 e referendada em plenário em maio de 2020; a ADI 6484, ministro-relator Barroso, cuja cautelar foi concedida em julho de 2020 e foi julgada procedente em plenário em outubro do mesmo ano; por fim, a ADI 6495, ministro-relator Lewandowski, cuja cautelar foi deferida em agosto de 2020 e foi julgada procedente em plenário em novembro de 2020.

Diante disso tudo, se depreende que o diagnóstico feito no início da pandemia permanece dolorosamente atual. Mas, com acréscimos. Muito embora existam mudanças positivas no conteúdo da atuação do STF em matéria de federalismo, essa virada jurisprudencial a favor da descentralização permanece carecendo de uma maior fundamentação pela Corte. Será essa uma atuação tão somente circunstancial, fruto da emergência sanitária (a pandemia), e da atuação contrafática e anticientífica do presidente da república? Para além disso, vemos uma permanência no modo de atuação e resposta do STF, mesmo diante de novos desafios que lhe são apresentados pelo cenário de pandemia.

Neste ano de 2021 já somamos mais de 300 mil mortes, boa parte delas evitáveis. Abril de 2021 parece um déjà vu de 2020, apesar de termos mais informações e de haver vacinação. Não sabemos se ou quando voltaremos às nossas rotinas. O que parece estar normalizado são os enfrentamentos às autoridades federativas capitaneados pelo presidente da república e a atuação monocrática da Corte, ainda que, em muitos casos, em defesa das competências dos entes da federação. Esperamos, contudo, que este não seja o novo (a)normal.

 

[1] ADI 127 MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento: 20/11/1989.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/normalizando-o-anormal-as-decisoes-do-stf-apos-um-ano-de-pandemia-20042021

Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’

Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’

Mas isso não é questão de segurança nacional

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA

 

Recentemente, foi divulgada a notícia de que celebridade do mundo digital teria sido intimado a, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), prestar depoimento na polícia civil carioca. O motivo  seria o fato de haver chamado o Sr. Presidente da República de genocida. Eis aqui uma oportunidade para refletirmos a propósito da liberdade de expressão e suas fronteiras, bem como do alcance da legislação autoritária em nossa vida constitucional.

“Genocida” é termo recente na história da humanidade. Criado por Raphael Lenkin, foi, após anos de lutas, reconhecido na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948). Designa a sucessão de horrores consistentes no extermínio – ou na tentativa – de povos, grupos, etnias, raças e adeptos de religiões. A lógica é a da morte indiscriminada e calculada de pessoas, unicamente devido ao fato de pertencerem a um coletivo que desagrada aos detentores do poder.

São crimes cujo sujeito ativo promove ações agressivas a coletividades, destinadas ao assassinato, danos graves, submissão a condições violentas e indignas, impedimentos à reprodução, deslocamentos forçados, etc. Além da já citada convenção, a triste palavra consta no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1998)e, no Brasil, na Lei 2.889/1956.

Por conseguinte, a designação de “genocida” é algo muito sério. Mas, para além do sentido técnico-jurídico, a palavra pode também representar uma metáfora ou insulto genérico.

O genocida não é apenas quem comete deliberadamente o crime, mas pode ser também, por extensão, um dirigente que adota comportamentos, omissivos ou comissivos, que submetam a vida de uma coletividade a práticas degradantes, de péssima qualidade (com decorrências morais e/ou físicas).

Aquele que ameaça o bem-estar da população e a proteção ativa de sua dignidade, não se importando com as consequências.

O assunto merece debate, portanto, e existe a liberdade para manifestações que o coloquem em foco. Afinal, ao nos aproximarmos da Constituição brasileira, temos um leque de dispositivos que determinam ao Estado – e a seus representantes – o respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinção de qualquer natureza, inclusive por meio de medidas ativas de saúde pública. Está nos arts. 1º, inc. III, c/c 5º, 6º, 23, inc. II, e, sobretudo, no 196, que reza ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. Ao Estado cumpre adotar todas as medidas, necessárias e suficientes, à proteção da saúde dos habitantes do Brasil. Todos, sem discriminação.

Quando o Sr. Presidente, seus ministros e acólitos tergiversam, negam ou fazem troça das boas práticas internacionais no combate à pandemia da COVID-19, estão a violar abertamente a Constituição. Não respeitam a dignidade humana nem protegem a saúde. Mas a indagação é a de se alguém, diante desse oceano de violações à Lei Fundamental, pode qualificar autoridades públicas de “genocidas”. Aqui entra em cena a Lei de Segurança Nacional (LSN).

A LSN faz parte de tradição vinculada à Doutrina de Segurança Nacional, a qual se pauta na concepção de que a proteção da soberania e segurança deve ser feita por meio do combate aos “inimigos”. A atual lei foi publicada durante a ditadura civil-militar, e é sucessora de outras LSNs (a primeira, de 1935). Ela tipifica condutas que “lesam ou expõe a perigo de lesão […] a pessoa dos chefes dos Poderes da União” (art. 1º, inc. III) e trata de crimes como espionagem, invasão de território nacional, comércio de armamento, terrorismo, sabotagem, devastação, saques, etc. Nenhum deles está no caso em análise. Mas o art. 26 pode despertar atenção: “Caluniar ou difamar o Presidente da República (…), imputando-lhe fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Estaríamos diante da possibilidade de aplicação dessa norma?

Ora, a atual LSN data de 1983. Foi positivada à luz da Emenda Constitucional 1/69, bem antes da Constituição de 1988. Quando esta foi promulgada, instalou nova base objetiva para todo o Ordenamento Jurídico, automaticamente revogando as leis incompatíveis ou recepcionando as adequadas. Hoje, estão no Supremo Tribunal Federal (STF) as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 797 e 799, que questionam a revogação, a recepção e eventual alcance da LSN. Como argumento, suponhamos que a LSN não tenha sido revogada, mas recepcionada.

O fenômeno da recepção não implica apenas o acolhimento formal das leis pretéritas. Na justa medida em que a nova Constituição instala fundamento jurídico diverso para toda a ordem normativa, ela igualmente confere distintos significados à legislação infraconstitucional. O que importa dizer que as leis anteriores, para ser recepcionadas, precisam ser conformes a substância da atual Constituição.

E se existe uma característica que marca a atual Constituição, trata-se do prestígio aos direitos e liberdades humanas. Na Emenda Constitucional 1/69 eles estavam nos fundos (art. 153 e seguintes), mas na atual estão desde o Preâmbulo, irradiando-se em todo o sistema constitucional e infra. Direitos fundamentais que exigem o respeito ativo da dignidade da pessoa pelo Estado e lhe impõe o dever de garantir todas as liberdades, inclusive, e sobremaneira, a de expressão. A liberdade de pensar e de exteriorizar o pensamento, ainda que de modo a ofender terceiros.

A liberdade de expressão é ponto com especial importância em nossa ordem constitucional, que se torna ainda mais central quando se está diante da oposição a autoridades públicas. Agentes políticos – como é o caso do Sr. Presidente – têm o ônus de tolerar críticas à sua atuação, ainda que ofensivos. Isso é o padrão mínimo em uma democracia que se pretenda civilizada. Porém ainda que não tolerem os ataques, isso nada tem a ver com a Segurança Nacional.

O Sr. Presidente não é um primus inter pares, cujas ofensas que porventura receba tenham a ver com interesses nacionais. Assim, se o art. 26 da LSN foi recepcionado pela atual Constituição, o foi na condição de norma do Código Penal: calúnia, injúria ou difamação (CP, arts. 138 a 143). Todas as autoridades públicas merecem ter sua integridade física preservada – inclusive, quanto a ameaças a si e/ou a seus familiares. Todavia, as agressões verbais e/ou escritas ocupam outro espaço normativo, subordinado à máxima eficácia do direito fundamental à liberdade de expressão. 

Em suma, e para além da incompetência da polícia civil para tratar do assunto, adjetivar autoridades públicas de “genocidas” não atrai a incidência da LSN. Trata-se de exercício da liberdade de expressão, gostemos ou não disso.

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/eu-tu-ele-todas-as-pessoas-tem-liberdade-de-chamar-o-sr-presidente-de-genocida-17032021

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