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Entre a vida da mulher e a honra do homem

Entre a vida da mulher e a honra do homem

A limitação da plenitude de defesa nos casos de feminicídio

Por MARINA BONATTO, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLARA MARIA ROMAN

 

Em 26 de fevereiro de 2021, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu parcialmente medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 a fim de firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, pois contrária aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), pretende-se com a ADPF que seja dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, II e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e aos arts. 65 e 483, III, §2º do Código de Processo Penal, para afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos.

Os artigos 23 e 25 do Código Penal dizem respeito a figura da legítima defesa, excludente de ilicitude apta a ensejar a absolvição do acusado da prática de um crime. Se reconhecido que o ato fora praticado por meio da utilização moderada dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (art. 25 CP), o acusado deve ser absolvido (art. 483, §2º, CPP), dada a inexistência de crime (art. 23 CP) e a sentença penal proferida faz coisa julgada no cível (art. 65 CPP).

A tese da legítima defesa da honra, por sua vez, como apontado pelo ministro em sua decisão, “não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico pátrio”.

Trata-se de um recurso retórico utilizado no Tribunal do Júri na tentativa de absolver acusados da prática de feminicídio ou violência contra a mulher. Sustenta-se, nesses casos, o absurdo de que a prática teria sido justa e proporcional para reprimir um adultério sofrido pelo acusado, como se a sociedade tivesse autorizado o cidadão a matar nessa situação.

Um dos países que mais mata mulheres no mundo, o Brasil é marcado por uma cultura de violência contra as mulheres. Vivemos em uma sociedade machista em que o assassinato de mulheres é incentivado, tolerado e justificado, sendo as mulheres negras e pobres as principais vítimas, segundo o 14º Anuário do Fórum de Segurança de Pública.

Quase 15 anos depois da edição da Lei Maria da Penha e 5 anos depois de o feminicídio ter se tornado uma qualificadora do homicídio, os números da violência não param de crescer, tendo, inclusive, acelerado no contexto criado pela pandemia de Covid-19.

Diante desse cenário, uma tese jurídica que culpa a vítima por seu próprio assassinato é, para além de inconstitucional, intolerável também sob o ponto de vista moral.

Apesar de os Códigos Penal e de Processo Penal atuais serem anteriores à Constituição Federal, a instituição do Júri é reconhecida por esta, que assegura, ainda, dentre o rol de direitos e garantias fundamentais, a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos.

A plenitude de defesa, exercida no Tribunal do Júri, permite a utilização de todos os meios de defesa possíveis para o convencimento dos jurados, cabendo argumentos jurídicos e extrajurídicos. No entanto, tal como não o é nenhum direito, essa garantia não é absoluta e deve ser interpretada em conjunto com os demais preceitos constitucionais.

O plenário do júri não é um ringue de vale tudo, embora alguns se comportem como se fosse, não estão autorizados atos de racismo ou de desqualificação de minorias vulneráveis, afinal o Código de Ética e Disciplina da OAB, estabelece no seu art. 2º, V, que é dever do advogado “contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e da lei”.

A utilização e aceitação da tese da legítima defesa da honra nos casos em que o marido ou companheiro mata a mulher que decidiu se relacionar com outro homem é resultado de uma estrutura social discriminatória que subjuga e desvalora as mulheres.

É uma representação retrógrada de uma sociedade em que a honra do homem é mais digna de defesa do que a própria vida da mulher. O argumento de salvaguarda da honra como justificativa da conduta de um homem que mata uma mulher por ser mulher, desqualifica e discrimina todas as mulheres que ousam transgredir o papel da esposa ou da companheira submissa, o que viola preceitos constitucionais e contribui para a naturalização e perpetuação do feminicídio e da violência contra a mulher.

Ademais, são casos como esses que fazem regredir anos de lutas das mulheres por seus direitos, pela igualdade e por suas próprias vidas. Nesse sentido, é inadmissível e incoerente que, após a edição da lei que tornou o feminicídio um crime hediondo, seja afastada a ilicitude da conduta do homem que tirou a vida de uma mulher por ciúme ou vergonha de ter sido substituído.

É papel das e dos advogados e juristas zelar pela Constituição e pelos direitos humanos. O fato de a defesa no Tribunal do Júri ser realizada por um advogado ou defensor público com formação jurídica e conhecimento técnico já demonstra a preocupação de garantir ao acusado e a vítima um julgamento que não seja pautado única e exclusivamente em preconceitos e estereótipos discriminatórios.

O fato de ter o STF decidido em sede de liminar que a tese da legítima defesa da honra é uma ofensa à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação, ao direito à vida e à igualdade não cria um precedente acerca da limitação da plenitude de defesa, mas acerca da inconstitucionalidade da discriminação, do feminicídio e da violência contra a mulher, porque essa é a verdadeira razão de ser da decisão.

O Compromisso do Estado brasileiro assumido quando da ratificação da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, implica em adotar políticas públicas efetivas por todos os órgãos do Estado, incluindo  aí o Poder Judiciário, que deve promover também a Convenção e os artigos da Constituição que colocam como obrigação do Estado a promoção da igualdade de gênero, bem como a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

A decisão cautelar na ADPF 779 representa um constitucionalismo que caminha pari passu à democracia e aos direitos humanos e a um julgamento com perspectiva de gênero e que, ao contrário do que alguns argumentam, não limitou o exercício da advocacia no Tribunal do Júri e nem cerceou a plenitude de defesa, apenas lembrou que a atuação do defensor perante os jurados deve ser ética e priorizar a vida, compromissada com os demais direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

Ainda, é preciso ter clareza que a imposição dessa restrição poderá gerar uma reação dos que atuam no plenário e a adoção de outro argumento para justificar a conduta do homem que mata a mulher “em nome de sua honra”, tal como a inexigibilidade de conduta diversa, ainda pouco explorado nos casos de feminicídio.

Essa tese configura uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade e pode ser alegada quando diante de uma situação fática não seria possível exigir do sujeito a realização de outra conduta, senão aquela descrita no tipo penal e não autorizada pela legislação.

Assim, o advogado poderia arguir que seu cliente abalado pelo ciúme e pelo sentimento de traição matou sua esposa ou companheira, como qualquer homem faria em seu lugar.

Entretanto, não se pode esquecer que esse argumento foi usado pelos criminosos de guerra alemães para eximir-se das atrocidades do holocausto, o que por si só diz muito sobre aqueles que decidirem utilizá-lo desmedidamente para exculpar feminicídios.

Portanto, não é demais repetir que o Supremo Tribunal Federal tem papel contramajoritário e deve ser, sim, ativista para proteção de direitos das mulheres. Não se trata de tema meramente político ao qual caiba ao STF ser deferente às esferas políticas, ao contrário, num país com altos índices de violência contra a mulher por seus próprios companheiros, aceitar a legítima defesa da honra como possível argumento de defesa seria atuar justamente de modo contrário à Constituição e aos Tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Como foi dito, nenhuma garantia ou direito fundamental é absoluta e que não há que se pensar em teorias da pena ou do delito que não sejam compatíveis com a moralidade política alicerçada na Constituição de 1988.

Pensar que o direito penal ou processual penal pode ter uma realidade paralela só utilizando a Constituição para as normas que trazem garantias penais é uma visão que ainda não compreendeu princípios básicos de interpretação constitucional, como da supremacia e da unidade da Constituição.

Não podemos admitir que o conteúdo dos significados da Constituição seja construído a partir de teorias concebidas ainda sob a égide de um sistema machista e patriarcal. A Constituição exige um compromisso com a dignidade da pessoa humana, da não discriminação, da prevalência dos direitos humanos e com os direitos humanos das mulheres de ter liberdade e igualdade nas suas escolhas e proteção contra toda e qualquer forma de violência.

Não basta que o STF não reproduza o machismo é preciso também ser antimachista, é preciso que o compromisso do STF com a promoção da igualdade de gênero tenha de fato reflexo também no sistema penal, onde a violência contra a mulher é mais explícita.

Esperamos que a cautelar do ministro Toffoli seja ratificada pelos demais ministros e promova de fato mudanças nos estereótipos, comportamentos e, principalmente, na atuação do sistema de justiça criminal.

MARINA BONATTO – Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição da UFPR. Advogada.
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-vida-da-mulher-e-a-honra-do-homem-09032021

O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

A Constituição já consolidou o repúdio contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas

Por LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO, MIGUEL GUALANO DE GODOY e CAROLINA SANTANA

Em 5 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro prestou informações ao Supremo Tribunal Federal (STF), por intermédio da Advocacia-Geral da União (AGU), na ADI 6.622, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Partido dos Trabalhadores (PT). A ADI 6.622, questiona o art. 13 da Lei 14.021/2020, que permite a permanência de missões religiosas em comunidades indígenas.

A notícia foi veiculada, inclusive, pelo JOTA. No entanto, cabe ressaltar aqui, tanto para a notícia quanto para o caso, que não se trata de qualquer comunidade indígena que se está a falar, mas, sim, de indígenas que vivem em isolamento, os quais são considerados os mais vulneráveis do ponto de vista sócio-epidemiológico.[1]

Os povos indígenas isolados não são povos que vivem na ignorância, ou sem saber da existência de mundos outros que os seus, mas sim que, conscientemente, optaram por essa forma de vida. Em seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam.

Isso significa dizer que esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se desejam abrirem-se “ou não ao recebimento de religiosos”.

A restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987.[2] O caput do artigo 13, da Lei 14.021/2020, portanto, está em harmonia com a atual Política Brasileira de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados.

Isso porque a política indigenista adotada pelo Estado brasileiro, desde 1987 frise-se, possui como diretriz primordial o não contato com esses povos ou segmentos de povos, como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física.

Por outro lado, o parágrafo primeiro do artigo 13 da Lei 14.021/2020 contraria todo o arcabouço teórico e prático desta política, elaborada e aperfeiçoada ao longo de 33 anos.

Como mencionado anteriormente, o histórico dos contatos ocorridos antes de 1987 revela que contatá-los, como estratégia de proteção, é mais prejudicial do que não contatá-los e garantir a proteção do seu território.

Do ponto de vista epidemiológico, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas.

Apesar de o direito à vida, à autodeterminação e à saúde dessas populações estar garantido na Constituição de 1988, também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 18, item 3) garante que a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença e a liberdade de professar sua religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

E nada de antidemocrático há nisso. A democracia pressupõe o tratamento desigual aos desiguais. E aqui, incluem-se os indígenas e, sobretudo, os indígenas isolados.

Diante da vulnerabilidade sócio-epidemiológica de tais populações indígenas isoladas é dever do Estado – que o tem feito há mais de 30 anos – garantir tanto a liberdade religiosa quanto a autonomia pautada pela diversidade prevista em nossa Constituição Federal.

A autonomia neste caso é a autonomia de permanecer em isolamento, ainda que os missionários religiosos estejam bem de saúde. A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da Constituição.

Aliás, não deixa de ser curioso que tal liberação tenha se dado justamente em um governo que cada vez se mostra mais alinhado a valores de certas religiões e ainda de alguns grupos específicos e determinados.

Por fim, cabe especial crítica à afirmação da AGU de que a autora – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – não possui legitimidade para representar os povos indígenas. Ora, a APIB é a organização que representa nacionalmente os povos indígenas. Trata-se, aliás, da única entidade nacional de representação dos indígenas brasileiros.

De acordo com o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes  organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)[3]; (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia  Brasileira (COIAB)[4]; (iii) Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL)[5]; (iv)  Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE)[6];  (v) Conselho do Povo  Terena[7]; (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani[8]; e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa[9].

Ela está presente em mais de nove unidades da federação brasileira, satisfazendo o requisito assentado pela jurisprudência sobre o caráter nacional da entidade.

Além disso, o artigo 232 da CF/1988 já botou fim a essa discussão, pois garantiu aos indígenas legitimidade para defender em juízo seus direitos e interesses.

O próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade ativa da APIB para provocação do controle concentrado de constitucionalidade quando julgou a admissão da ADPF 709, proposta pela APIB para que o governo federal adote medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas.

A prática de deslegitimar os indígenas não é nova. Seja por meio de artifícios processuais como esses de que Jair Bolsonaro e sua AGU lançam mão na ADI 6.622, seja por meio de suas novas normativas como o art. 13, parágrafo único, da lei 14.021/2020.

Esse indigenismo de exceção que o Planalto e suas normas querem estabelecer, porém, merece não apenas especial atenção – sanitária, jurídica e social –, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

 

[1] RODRIGUES, D. A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no Brasil. OTCA: São Paulo, 2014. p. 80.

[2] Portaria nº 1900 e nº  1901, ambas de 06 de julho de 1987 e Portaria nº 1047 de 29 de agosto de 1988.

[3] Composta por povos presentes nos estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.

[4] Abrange povos dos estados do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, de Rondônia, de Roraima e do Tocantins.

[5] Representa povos localizados nos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

[6] Organização que abrange povos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.

[7] Organização tradicional de Mato Grosso do Sul.

[8] Localizada no estado do Mato Grosso do Sul.

[9] Abrange povos dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO – Advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris. Realizou estágio pós-doutoral na Brandon University, Canadá, com foco em conflitos territoriais indígenas. Integra o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Tortura da Organização Mundial de Combate à Tortura (OMCT).
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
CAROLINA SANTANA – Advogada. Indigenista. Doutoranda em Direito na UnB. Pesquisadora Visitante do ICS da Universidade de Lisboa. Assessora Jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato e Membro do Indigenous Peoples Rights International no Brasil.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-indigenismo-de-excecao-o-planalto-e-suas-novas-normativas-20022021

O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos

O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos

Resolução 364 é forte indicação de que Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção de direitos humanos

Por INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES, MELINA GIRARDI FACHIN e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

Resolução 364 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 12 de janeiro de 2021, criou a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o Estado brasileiro, vinculada ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).

Pela Resolução aprovada, caberá à Unidade de Monitoramento e Fiscalização, inter alia, manter banco de dados com as decisões da Corte Interamericana envolvendo o Brasil, providenciar o monitoramento e fiscalização do cumprimento das sentenças, medidas provisórias e opiniões consultivas da Corte Interamericana, sugerir propostas de melhor atendimento ao cumprimento de suas deliberações, verificar a tramitação dos processos e procedimentos relativos à reparação material e imaterial das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana, relatar anualmente as providências adotadas pelo Brasil para o cumprimento de tais decisões, bem assim acompanhar a implementação de parâmetros de direitos humanos estabelecidos pela Corte ou de outros instrumentos internacionais que que estabeleçam obrigações internacionais ao Brasil no âmbito dos direitos humanos (art. 2º).

Como se nota, a iniciativa é muito bem-vinda e consolida, ainda mais, a mirada multinível que o direito constitucional brasileiro aceitou pela própria opção constituinte, ao dar lugar de destaque ao direito internacional dos direitos humanos na nossa ordem jurídica interna, conforme expressamente prevê a cláusula de abertura contida no art. 5º, parágrafo 2º, segundo a qual os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros” decorrentes de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte.

Vivemos a emergência de um novo paradigma jurídico que conclama a necessidade dos diálogos entre as ordens interna e internacional. Presenciamos as modificações do direito internacional, a renovação do direito constitucional e, com isso, o redesenho do direito público do século XXI. Essa lógica “dialógica” começa, doravante, a ser também compreendida pelos órgãos de controle brasileiros, como é o caso do CNJ.

Mais do que monismos e dualismos e de regras obsoletas de resolução de antinomias baseadas num “monólogo” jurídico, o que agora se presencia é a emersão de uma nova arquitetura que não vê dentro e fora, mas, sim, coloca temas e sujeitos que transversalmente desafiam a nossa compreensão ainda fechada, dogmática e estática – ainda calcada no state centered approach.

Se até bem pouco tempo a lógica da resolução de antinomias entre o direito internacional e o direito interno era baseada nos critérios “clássicos” (hierárquico, da especialidade e cronológico) postos à disposição dos operadores jurídicos, hodiernamente o arsenal protetivo – proveniente de tratados internacionais de direitos humanos – colaciona novos elementos de resolução de controvérsias, que não se excluem mutuamente, mas são complementares uns dos outros. Nesse sentido, a crescente internacionalização dos direitos humanos acaba impactando no direito interno, o direito internacional se associa à ordem doméstica e essa nova ordem jurídica surge exuberante dessa catarse.

Doravante, como se nota, os direitos humanos ganham novos contornos e um colorido renovado provindo da interação da ordem internacional com a interna, no ensejo de melhor proteger o ser humano sujeito de direitos.

Essa nova ordem multifacetada – que agrega as normas internacionais e as normas internas – abandona a ideia de espacialidade única para trazer à luz a conexão plúrima de normas internacionais e internas, que poderão atuar em conjunto (e, portanto, simultaneamente) em prol da proteção dos direitos humanos.

Nesse sentido, novos espaços (da ordem interna e internacional) e atores (seja no reconhecimento das novas responsabilidades internacionais em relação a entes não estatais como as empresas; seja na incorporação de outros sujeitos de proteção, superando o paradigma antropocêntrico) demandam outra mirada da proteção dos direitos, do direito constitucional e do direito internacional, sem a qual as violações de direitos que a contemporaneidade apresenta não logram ser resolvidas integralmente. Assim, a restauração da coerência, no plano internacional, tem por consectário a abertura da ordem interna para o diálogo com a sociedade internacional, transformando as aberturas axiológicas em “razão de existir” do mundo contemporâneo.

Ademais, diante dessa ordem emergente se forma uma normatividade complexa impactada pela internacionalização e regionalização dos direitos humanos com o foco nas vítimas e nas vulnerabilidades que se pretende proteger. Trata-se do human centered approach, segundo o qual são os indivíduos e coletividades a se protegerem que iluminam a articulação dos diversos planos protetivos (global-regional-local) ao entorno da primazia da norma mais favorável à pessoa (princípio pro persona).

No âmbito interno, o direcionamento das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro não pode ser compreendido como de atuação exclusiva do Poder Executivo, no cumprimento das medidas internacionalmente estabelecidas. A complexidade das situações de violações a direitos humanos, especialmente nas democracias latino-americanas, que lutam para se consolidar em cenários de desigualdade social, econômica e cultural, exige o envolvimento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na realização de tarefas capazes de reverter a situação de inconvencionalidade identificada pelos órgãos de controle internacional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Muitas vezes, é preciso que os desenhos e a implementação de políticas públicas sejam alinhados à edição de leis e à garantia de institutos que permitam a vigilância e participação da sociedade, com amplo acesso à justiça e com a obtenção de respostas judiciais céleres, pautadas na perspectiva e nos pilares dos direitos humanos.

A previsão, na Resolução 364, da realização pelo DMF, de atividade de monitoramento e fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana, é forte indicação de que o Poder Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção dos direitos humanos. Essas boas expectativas se pautam no reconhecimento da DMF como uma unidade do CNJ que  funciona com excelência e de forma estruturada, com capilaridade e incidência em todo território brasileiro, por interfaces congêneres em todos os tribunais (os GMF – Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas).

Nesse sentido, vale destacar o relevante trabalho do DMF, de sistematização e divulgação de dados que permitem compreender o contexto da pandemia, tais como (i) o uso de recursos federais no combate à Covid-19, (ii) ações dos comitês locais de enfrentamento e a destinação de penas pecuniárias, bem como (iii) dados sobre equipamentos de prevenção, alimentação, materiais de higiene e de limpeza, medicamentos e testes sobre contágio.

Há um último ponto que merece ser iluminado: a referida Resolução tem uma ligação intrínseca e indissociável com o compromisso que o Judiciário assumiu com os chamados “17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e abre mais uma porta para valorização e cumprimento da Meta 9 do mesmo conselho, que prevê a integração da Agenda 2030 da ONU pelo Poder Judiciário. Dentre os 17 ODS, consagrou-se, em seu ODS 16, o compromisso de promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

Algumas metas deste ODS foram adequadas à realidade brasileira, como a de número 16.3 (Fortalecer o Estado de Direito e garantir acesso à justiça a todos, especialmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade), a de número 16.6 (Ampliar a transparência, a accountability e a efetividade das instituições, em todos os níveis), a de número 16.a (Fortalecer as instituições relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência, do crime e da violação dos direitos humanos) e a de número 16.b (Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias e afirmativas).

Muitos dos pontos aqui destacados encontram pouso nos consideranda que levaram o CNJ a adotar a bem-vinda Resolução 364, o que, a um só tempo demonstra que o órgão de controle brasileiro está afinado com os preceitos internacionalmente definitos e, além disso, toma atitudes proativas para o fim de lograr conjugação dos ditames internacionais estabelecidos com a aplicabilidade na ordem doméstica.

Tout court, o que se tem pela frente é o grande desafio de incorporar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos na jurisdição brasileira, numa conjugação de esforços na cooperação para a superação das violações graves de direitos humanos ocorridas todos os dias no Brasil. Essa tarefa, que já era necessária, foi amplificada e se revelou urgente, com a pandemia da Covid-19. Neste cenário, sempre com soluções articuladas e dialogadas, o desenvolvimento sustentável parece ser a trilha mais segura a ser seguida pelo sistema de justiça, para a abreviação dos pontos tortuosos que enfrentaremos no caminho pós-pandêmico.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3ª Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI – Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB, pós-doutor em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cnj-e-o-compromisso-do-judiciario-com-a-nova-arquitetura-dos-direitos-humanos-16022021

Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

De Marbury v Madison para Facebook v Trump

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOÃO VICTOR ARCHEGAS

 

Ao acordarem na manhã do dia 9 de novembro de 2016, diversos funcionários do Facebook foram surpreendidos pela notícia de que Donald Trump havia sido eleito presidente durante a madrugada. Observadores chegaram a relatar uma comoção generalizada no escritório da empresa em Menlo Park, Califórnia. Alguns empregados choravam e eram consolados pelos seus pares. No mesmo dia, Mark Zuckerberg convocou uma reunião de emergência para traçar os próximos passos da empresa na era Trump [1].

Durante uma entrevista dois dias depois, o CEO do Facebook disse que a acusação de que a rede social influenciou o resultado das eleições era, na sua percepção, uma “ideia maluca”.

Para ele, a prova cabal de que sua empresa não poderia ser responsabilizada pela ascensão de Trump era o fato de que as “fake news” representavam apenas uma ínfima parcela do conteúdo hospedado pela plataforma.

Ele apenas esqueceu de mencionar que é justamente essa pequena fatia do conteúdo que mais promove engajamento entre os usuários, polarizando o debate e contribuindo para a radicalização na Internet. Reconhecendo o erro, Zuckerberg se desculpou alguns meses depois.

De certa maneira, a presidência de Trump obrigou o Facebook a encarar e assumir suas responsabilidades na arena pública. Aceitar a existência do problema é sempre o primeiro passo para solucioná-lo. Nesse caso, a solução envolveu a criação de um órgão independente capaz de revisar as decisões de moderação de conteúdo na rede social.

O CEO, que até então tinha a última palavra sobre os limites da liberdade de expressão na plataforma, decidiu delegar seus poderes ao Oversight Board, um comitê de supervisão independente, criado especialmente para receber apelações de usuários insatisfeitos com as decisões da empresa.

No dia 6 de janeiro de 2021, durante a penúltima semana da administração Trump, a relação entre o quadragésimo quinto presidente dos EUA e seu megafone digital teve um final inesperado (embora não surpreendente).

Após instigar uma insurreição armada contra o Congresso – que estava, naquela ocasião, reunido para certificar a vitória de Joe Biden no colégio eleitoral –, Trump foi banido de diversas plataformas, incluindo Facebook, Twitter e YouTube.

Após a suspensão repercutir mundo afora, Zuckerberg decidiu acionar o Oversight Board e solicitar uma revisão da decisão. No dia 21 de janeiro o comitê aceitou o caso. A próxima etapa será a formação de um painel de cinco julgadores que terão até 90 dias para tomar uma decisão.

O caso Facebook v Trump (ou, oficialmente, 2021-001-FB-FBR) levanta uma importante discussão sobre os limites da jurisdição do comitê, o que poderá ter impactos diretos no processo de construção de sua legitimidade institucional.

Segundo seu estatuto, o Oversight Board pode revisar apenas casos envolvendo conteúdos que tenham sido removidos por violar as políticas do Facebook. O estatuto menciona que “no futuro” o comitê poderá expandir sua jurisdição para revisar, por exemplo, a remoção de perfis, páginas, grupos e até mesmo anúncios, mas não chega a dar uma data ou estipular uma condição para tal expansão.

Ou seja, ao menos em tese, a decisão de remover a conta de Trump do Facebook (e não um conteúdo específico) estaria fora da competência do comitê. Apesar disso, o Facebook se valeu da prerrogativa de sugerir casos diretamente ao Oversight Board para contornar essa barreira estatutária.

Por um lado, impedir que o comitê se pronunciasse sobre o caso seria um péssimo sinal para o futuro da instituição – afinal, ela foi criada justamente para revisar as decisões mais importantes tomadas pela empresa.

Banir Trump é, certamente, a mais importante até agora. Por outro lado, convidar o comitê a expandir sua jurisdição logo no início de suas operações envolve uma série de complexidades. Vale lembrar que o Oversight Board ainda não publicou nenhuma decisão e sequer teve todos os seus membros nomeados.

Esse certamente será um ponto de inflexão na ainda curta história do comitê. Instituições julgadoras, a exemplo de cortes constitucionais, precisam se ater aos desdobramentos de suas decisões. Trocar os pés pelas mãos, principalmente quando a instituição ainda não angariou uma “reserva de boa vontade”, pode ser fatal [2].

E é justamente aqui que o cálculo estratégico passa a ser importante. Apenas referendar a decisão do Facebook pode passar um sinal de fraqueza institucional. Para alívio do comitê, além de decidir o caso, o painel também poderá recomendar atualizações ou modificações às regras de moderação de conteúdo da rede social. Assim, é possível que o comitê, ao mesmo tempo, referende o banimento de Trump e reforçe a sua presença institucional ao iniciar um diálogo com a empresa.

De outra sorte, reverter a decisão do Facebook também pode ser um risco. Ainda que o comitê esteja reafirmando sua independência, pode ser uma decisão delicada demais e difícil de ser implementada, atraindo críticas incisivas por parte da opinião pública e desgastando a imagem do Oversight Board [3].

É importante ressaltar que a empresa assumiu um compromisso segundo o qual as decisões do comitê vinculariam o Facebook e seriam irrecorríveis. Nada obstante, uma decisão altamente impopular nesse estágio inicial pode fazer com que a empresa deixe de sugerir novos casos ao comitê no futuro, restringindo significativamente o escopo da sua jurisdição. Afinal, vale lembrar que esse caso só está sub judice porque o Facebook assim quis.

O Facebook Oversight Board está, portanto, diante de uma encruzilhada. Há mais de 200 anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos se deparou com um caminho bifurcado semelhante.

O caso Marbury v Madison, julgado em 1803, trouxe à tona justamente a discussão sobre o fundamento de legitimidade da Corte para realizar o controle judicial de constitucionalidade das leis que conflitam com a constituição. Tal como no caso Facebook v Trump, a Corte tinha duas opções.

Afirmar seu poder de invalidar as leis – algo que naquela época era muito discutível, já que a constituição norte-americana não previu expressamente essa competência para a Suprema Corte – ou ser deferente e declinar da revisão judicial que se reclamava às suas portas.

A Suprema Corte optou pelo primeiro caminho. O então presidente da Suprema Corte, John Marshall, desenvolveu um raciocínio tão lógico quanto bem fundamentado. Para ele, a nulidade da lei inconstitucional é uma decorrência lógica da supremacia da constituição sobre as demais leis.

Dessa forma, sendo a constituição a norma maior em um dado ordenamento jurídico, compete a todo juiz ou tribunal realizar a interpretação da constituição e da lei e, assim, negar aplicação a qualquer legislação que afronte a constituição.

Foi com base nesses argumentos que o caso Marbury v Madison assentou nos Estados Unidos o controle judicial de constitucionalidade, conferindo aos juízes e às cortes o poder de invalidar leis e atos normativos dos demais Poderes.

Mas é importante lembrar que Marshall, ao assim proceder, também se livrou de uma questão politicamente espinhosa. O presidente à época, Thomas Jefferson, havia instruído seu secretário de estado, James Madison, a não entregar à William Marbury o certificado de investidura no cargo de juiz da paz.

O certificado, por sua vez, foi um ato do presidente John Adams, derrotado nas urnas por Jefferson. Ou seja, se a Suprema Corte decidisse em favor de Marbury isso significaria impor uma derrota política ao atual presidente, potencialmente desgastando a imagem da instituição.

E que luzes o caso Marbury joga, então, sobre a encruzilhada do Oversight Board?

Por um lado, o caso demonstra a importância de se agir com cautela quando a decisão envolve uma possível expansão dos poderes da instituição. Em Marbury, Marshall habilmente construiu sua argumentação para reconhecer o poder de controle de constitucionalidade da Suprema Corte e, concomitantemente, evitar um conflito político com Thomas Jefferson.

Da mesma forma, o Oversight Board deverá ponderar a expansão de sua jurisdição neste estágio inicial de sua vida institucional vis-à-vis a alta voltagem política do caso Facebook v Trump.

Por outro lado, o exercício de uma competência que parece lógica, até mesmo natural, pode também ser instrumentalizada para a expansão dos próprios poderes do comitê. Afinal, se o caso Marbury assentou o controle judicial de leis, foi a partir dele que também se pavimentou o caminho para a afirmação da ideia de supremacia judicial.

Podemos, evidentemente, discordar desse caminho e compreensão tomados a partir do controle judicial de constitucionalidade. Mas, para o que importa ao caso Facebook v Trump, o reconhecimento em sua origem de um poder, de uma competência, criou também a ideia de que a última palavra sobre a interpretação da constituição ficaria nas mãos da Suprema Corte. Esperamos que o mesmo não aconteça com o Facebook e seu Oversight Board.

[1] Para uma descrição dos eventos daquele dia na sede do Facebook, ver Steven Levy, Facebook: The Inside Story, Penguin Business, pp. 333-67 (2020).

[2] James Gibson et alOn the Legitimacy of National High Courts, 92 The American Political Science Review 343 (1998).

[3] 93% dos especialistas em tecnologia ouvidos pelo Technology 202 do The Washington Post, por exemplo, concordam com a decisão de banir Trump de plataformas digitais.

 

JOÃO VICTOR ARCHEGAS – Mestre em Direito por Harvard e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-limites-da-jurisdicao-do-facebook-oversight-board-02022021

A Constituição merece ser levada muito a sério

A Constituição merece ser levada muito a sério

E nunca foi tão importante estudá-la

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA 

 

Bastante se falou sobre os trágicos eventos que tentaram abalar uma das maiores democracias ocidentais neste início de 2021. Houve variadas reações institucionais, algumas bizarras. Mas o que se passou não foi apenas um arremedo de golpe de Estado, nem somente a expressão da violência que alguns tentam fazer habitar o nosso cotidiano.

Para além dessa superfície repugnante, a substância de tais ações e reações é uma só: o respeito – ou não – à Constituição. Não só ao texto constitucional, mas especialmente à função que a Constituição desempenha em nossas vidas. Para que ela serve e por que devemos nos preocupar em protegê-la.

O constitucionalismo é uma das maiores conquistas civilizatórias, desde a Idade Moderna. Como assinala o gigante chamado Gomes Canotilho, as constituições são o “estatuto jurídico do político”. Prestam-se a definir regras jurídicas ao exercício de um poder que, em seu estado natural, aprecia funcionar alheio a quaisquer leis.

Ou melhor, por meio de comportamentos alheios à lógica ou à moral, como o bem demonstraram, dentre tantos, Machiavel e Montesquieu (ou a série House of Cards).

Afinal, a política é como os felinos: pode até ser um animal doméstico, mas jamais domesticável. Ingressa nas nossas vidas, mas faz o que quer. O exercício do seu viver não se conforma às leis: os gatos fazem o que querem, quando querem. Por isso que a vida política – por meio de seus atores principais ou pelos coadjuvantes – demanda atenção diária. Exige respeito ativo às regras, bem como alguém que determine a sua execução caso desrespeitadas.

Logo, é necessária uma Lei Fundamental, que constitua, limite e, só assim, legitime o exercício do poder político. A Constituição não é o governante, mas a técnica jurídica de lhe cometer algum poder: aquele que pode ser exercido. Nem mais, nem menos, só o que a Constituição atribui. A norma constitucional tenta domesticar o animal político, conferindo racionalidade jurídica ao seu comportamento.

Mas, para que isso funcione, é preciso levar muito a sério a Constituição e o estudo do Direito Constitucional. Lá se prescreve como os poderes constituídos devem funcionar e a margem de divergências aceitável. Em situações de crise, ela é o porto seguro que garante a estabilidade das instituições. Inclusive, assegura que eventuais abusos sejam imediatamente reprimidos e maus gestores públicos afastados.

Quando há indivíduos que não se conformam à derrota e ameaçam tomar por força o exercício do poder político, esquecem que existe uma Constituição. Ou, pior ainda, consideram que a Constituição tem conteúdo nulo, um espaço vazio, podendo ser moldada conforme seus próprios interesses. Ela seria um aparato à serviço da política. Constatação que revela ignorância ou desprezo constitucional. Ou a combinação de ambos.

O progresso constitucional, longe de demandar mudanças constantes, baseia-se na conservação de seus pilares, sendo o mais importante o pacto de existência de uma comunidade de valores e princípios que trata a todos com igual respeito e consideração. Alterações absolutas ou desrespeitos equivalentes significam que nada há a ser conversado.

Por isso que, se a Constituição não for estudada, será mais difícil ainda conservá-la. A infância constitucional será eterna e alcançar o igual tratamento uma mera ilusão.

Diante do processo global que ameaça democracias e os pactos básicos, temos que compreender o Direito Constitucional em seu texto, contexto e funções. Isso implica atentar que muitas das ameaças não partem de quebras constitucionais imediatas, mas de modificações paulatinas que levam à perda da identidade constitucional, e, ao final, à transformação da Constituição em um espaço sem conteúdo, desprovida de força. Note-se quanto de ignorância e desprezo existe nisso.

Mas, se o risco aparece pela forma de manifestações patológicas pontuais, os sinais devem ser levados à sério sob pena de erosão do edifício constitucional. Daí que transgressões constitucionais não podem ser toleradas. Nem as supostamente mínimas. As instituições devem barrar comportamentos de enfrentamento constitucional, sem atenuar e tampouco normalizar tais práticas.

Estudar o Direito Constitucional é mais do que conhecer artigos constitucionais e teorias, é abraçar o compromisso de construção republicana e democrática do Estado de Direito, de forma que projetos discrepantes devem ser refutados. Como se vê, nunca foi tão urgente e necessário estudar e construir o Direito Constitucional.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-merece-ser-levada-muito-a-serio-22012021

O STF na corda bamba da E/exceção?

O STF na corda bamba da E/exceção?

O que as respostas do STF à crise do coronavírus promovem?

Por VERA KARAM DE CHUEIRI e MIGUAL GUALANO DE GODOY 

1 – O Brasil, a crise e a pandemia

No cenário de crise dupla, política e sanitária, o Presidente tem governado com base em decretos e medidas provisórias. O nosso sistema de freios e contrapesos permite ao Supremo Tribunal Federal (STF) revisar esses atos. Mas, se algumas decisões do STF (ou atuações de seus ministros), parecem ser positivas em suas intenções e méritos, por outro lado, parecem ser negativas em termos formais e procedimentais.

Essa contradição entre decisões formalmente negativas, e meritoriamente positivas cria excepcionalidades e coloca o STF em uma espécie de movimento pendular entre a normalidade e a exceção. Esse artigo pretende explorar essa contradição e enfatizar os perigos de um Supremo pendular para a democracia constitucional, especialmente neste período de pandemia.

2 – As respostas do STF à crise: o que elas promovem?

Duas recentes atuações do STF frente à pandemia que evidenciam nossa hipótese de que as excepcionalidades estão no limite entre a normalidade e a exceção – entre a regra e o que está além dela.

2.1 – o caso da LRF, LDO e a ADI 6.357

A primeira decisão é a que afastou exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A medida cautelar monocrática do ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357[1], de 29/03/2020 (um domingo), permitiu uma atuação ampla do Estado sem as exigências e formalidades da LRF e LDO.

Ainda que razoável no mérito, a decisão é controversa na forma e no que informa. Primeiro, porque é uma decisão cautelar monocrática em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), algo que não encontra amparo na Constituição, que, nesse ponto, não concedeu nenhum poder individual aos ministros do STF. Tampouco na Lei 9.868/99, que determina que cautelar em ADI seja sempre colegiada, podendo ser monocrática apenas no período do recesso. Também não encontra amparo no Código de Processo Civil (CPC), nem no Regimento Interno do STF.

A decisão poderia ter sido colegiada. Mesmo num domingo. Afinal, dias antes o STF havia ampliado o uso do plenário virtual pelos ministros. E ampliado para todo e qualquer processo ou decisão do STF. Ora, se o STF pode, agora, julgar tudo pelo plenário virtual, então por que não julgar também uma medida cautelar urgente como essa num período de pandemia? A urgência pode quebrar a regra do rito que impõe uma deliberação colegiada e que pode ser realizada remotamente?

Se a decisão não parece errada no conteúdo, ela erra na forma. E por meio desse erro formal, levou o STF diretamente para a gestão do dia a dia da crise financeira e orçamentária do País, substituindo o Poder Executivo. De quebra, isenta o Presidente de gerir o combate à crise, especialmente no que diz respeito à gestão financeira e orçamentária, com impactos gerais para os outros entes da Federação. É fato que o Presidente da República tem governado muito mal a crise e vem extrapolando as suas competências constitucionais. Mas isso não autoriza o Poder Judiciário, especialmente o STF, a fazer o mesmo. Ou autoriza?

2.2 – O PL das relações privadas e o STF legislador

Uma outra resposta significativa à pandemia foi a iniciativa do ex-Presidente do Supremo – ministro Dias Toffoli- para a elaboração de um projeto de lei que definisse um regime jurídico emergencial para o direito privado durante a pandemia.

A iniciativa do ex-Presidente do STF contou com a coordenação do ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Carlos Ferreira e, ainda, com a colaboração de diversos juristas. Entre outras medidas, o PL prevê a suspensão dos prazos de prescrição, usucapião e aplicação do CDC.

O projeto de lei foi então protocolado no Senado pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), no dia 30/03/2020 – PL 1.179/2020[2], que deu origem à Lei 14.010/2020 de 10/06/2020.

Parece uma resposta legislativa tão importante (em razão da urgência e emergência) quanto corriqueira (em razão da necessidade de tomar decisões políticas). Todavia, a aparência de normalidade traz em si algo que sequer deveria ser excepcional: magistrados atuando como legisladores.

O PL era necessário? Sem dúvida. Oportuno? Claro que sim. Deveria ter sido de iniciativa, coordenação e elaboração de magistrados, que podem ter de vir a julgar a constitucionalidade da lei pretendida (e depois aprovada)? Evidentemente que não. Afinal, ministros são magistrados. Não são legisladores. Tampouco são consultores legislativos (formais ou informais).

Se ministros e juízes querem dar suas contribuições e sugestões, devem fazê-lo dentro dos quadrantes e possibilidades que o cargo judicial lhes permite. Podem, por exemplo, fornecer informações sobre entendimentos prevalecentes na jurisprudência, ou com dados sobre as decisões mais comuns ou casos pendentes de julgamento.

Adiantar soluções através da iniciativa, coordenação e elaboração de projeto de lei, ou dizendo como o Legislativo deve conformar as relações privadas na crise, nos parece afronta à separação de poderes, ainda por boas e honestas intenções.

Esse modo de atuar ainda tem um efeito secundário mais nefasto. A mensagem que o ex-Presidente do STF passa com esse tipo de iniciativa é a de que os problemas do País passam, antes de tudo, por conversas, bons papos, com quem responde pelo Poder Judiciário brasileiro. Uma discussão prévia, consultiva, sobre medidas adequadas, sobre a constitucionalidade dessas medidas.

Essa é uma forma perniciosa de se estabelecer diálogo com os outros Poderes. Desinstitucionaliza o Supremo, politiza indevidamente a Presidência do Tribunal e expressa um personalismo individual, voluntário e voluntarista.

Acaba também isentando os legisladores do seu ônus de legislar adequadamente, e faz do STF um consultor legislativo informal e ad hoc.

De forma semelhante à LRF, ninguém vai discordar da relevância e urgência da Lei 14.010/2020, que veio em boa hora. Mas, por isso mesmo, caberia aqui um projeto de lei, eventualmente uma medida provisória, sem juízes atuando como legisladores.

Há quem interprete tais atitudes como circunstâncias normais do cotidiano institucional, agravadas pelas demandas emergenciais e urgentes. Sabemos que a temperatura da política é alta e só tende a aumentar na crise sobreposta como a que está em curso no Brasil. Mas é nesses tempos que limites constitucionais garantem a institucionalidade se impõem ainda mais. Não é possível dizer que os representantes dos poderes máximos da República apenas fazem política como sói acontecer na realidade dura e crua da vida institucional.  A realpolitk tem (e deve ter) diques constitucionais de contenção de maneira que naturalizar o excesso e o excepcional significa ultrapassar a linha da regra para o caos; da exceção para a Exceção.

3 – O STF entre a exceção e a Exceção?

Vivemos tempos estranhos, diz sempre o ministro Marco Aurélio. Sem dúvida, mais do que estranhos. Mas, qual o limite dessa estranheza? Com que nível de excepcionalidade ela se relaciona? A de uma excepcionalidade com “e” minúsculo ou ao Estado de Exceção com dois “Es” maiúsculos? A exceção diz respeito às excepcionalidades, singularidades, surgidas em momentos de crise. E a Exceção é o que está ou vai além disso, rompendo os diques constitucionais de contenção, ou simplesmente mantendo-os, mas não mais respeitando-os.

Diante disso, as duas atuações do STF apontadas no item 2 podem ser uma amostragem de qual excepcionalidade?

O STF tem um papel fundamental, desde que não normalize ou naturalize em suas práticas a exceção, nem produza ou aceite a Exceção.

A exceção (em minúsculo) – é a que se lê no mérito da decisão monocrática da ADI 6.357 sobre a aplicação da LRF e LDO. Isto é, a permissão ao Executivo para gastar sem prévia exigência de custeio, a fim de custear o combate à pandemia entre outras medidas.

Sua forma monocrática, em sede de ADI, todavia, não é apenas excepcional, uma decisão atípica em razão das circunstâncias e da pandemia. Antes, é mais um exemplo de uma atuação que se tornou permanente no STF. E que com a pandemia parece também se normalizar. É, assim, uma decisão que parece entrar na categoria de Exceção (com E maiúsculo), pois não encontra amparo na Constituição ou em qualquer norma infraconstitucional (Lei 9.868/99, CPC ou RISTF), mas existe e se aplica apesar delas. Vale dizer, a Constituição vige, as leis também, mas não se aplicam. E a decisão se impõe, rompendo forma e arrastando conteúdo (ainda que, nesse caso, o mérito seja louvável).

A atuação de ministros e juízes como legisladores parece seguir o mesmo caminho de Exceção. Ao atuar com iniciativa de proposição legislativa, o presidente do Supremo larga a toga e assume a caneta de legislador. Magistrados atuando como legisladores, ou consultores legislativos, violam a separação de Poderes. No mínimo, inauguram diálogo institucional pernicioso. Aqui também a Constituição vige, mas não se aplica e a atuação em nome do STF acontece apesar do que dispõe a Constituição.

Nossa crítica e argumento aqui apresentados são, em sua urgência, tanto uma espécie de alerta, quanto o acionar de um alarme. No limiar entre o caos e a normalidade, a E/exceção e a regra, não é possível dizer que as instituições estão funcionando normalmente. Justamente elas, que deveriam ser a garantia de freio e contrapeso diante da irracionalidade ou monstruosidade de quem, atualmente, governa este país.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-pandemia-coronavirus-03122020

A segurança jurídica na Constituição Federal

A segurança jurídica na Constituição Federal

Por Ilton Norberto Robl Filho e Marco Aurélio Marrafon

1 – Constituição. O direito fundamental à segurança encontra-se previsto nos artigos 5º, caput, e 6º, Constituição de 1988. Em verdade, o Estado democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, caput, CF/88, possui na sua estrutura a promoção dos direitos fundamentais, a legalidade e a separação dos poderes, que são elementos relevantes para concretização da segurança[3].

Por sua vez, o direito fundamental à segurança é dotado de aspectos individual, coletivo e difuso. A tradição constitucional brasileira reconhece o direito fundamental à segurança individual, conforme se observa no artigo 179, caput, Constituição de 1824. Apesar da inexistência da previsão expressa sobre a tutela da segurança individual na CF/88, a topografia (caput, do artigo 5º, CF/88) e o reconhecimento de inúmeros direitos em espécie acerca da segurança individual impõem a titularidade do direito fundamental à segurança aos indivíduos, sendo exemplo de direito em espécie a vedação à retroatividade da lei penal com exceção da situação de produzir benefício ao réu, de acordo com XL, artigo 5º, CF/88.

Também são titulares desse direito fundamental os coletivos e toda comunidade. Nesse sentido, as ações constitucionais são importantes instrumentos para proteção e segurança dos direitos e interesses, sendo garantias constitucionais o mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX, CF/88) e a ação civil pública (artigo 127, III, CF/88) que tutela os direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos. No âmbito do direito social à segurança (artigo 6º, CF/88), vislumbra-se a segurança pública, a qual promove a incolumidade das pessoas e do patrimônio, além da promoção da ordem pública em conformidade com o respeito aos direitos fundamentais, segundo o art. 144, CF/88. O direito fundamental social à segurança é integrado ainda pela seguridade social, que possui como função constitucional efetivar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme o artigo 194, caput, CF/88.

De outro lado, a dimensão subjetiva consiste no conjunto de faculdades e direitos que é atribuído aos titulares desse direito fundamental, sendo garantido tanto pelo direito mãe à segurança (artigo 5º, caput, e 6º, CF/88) como por diversos direitos fundamentais em espécie que também tutelam esse valor. Acerca dos direitos fundamentais em espécie, indicam-se: a) direito de que apenas a lei pode obrigar ou proibir a prática de uma ação ou omissão (artigo 5º, II, CF/88), b) proteção da propriedade com função social (artigo 5º, XXII e XXIII, CF/88), c) direito de herança (artigo 5º, XXX, CF/88), d) direito de petição e direito à tutela jurisdicional tempestiva, adequada e célere (artigo 5º, XXXIV, ‘b’, XXXV e LXXVIII, CF/88), e) direito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (artigo, XXXVI, CF/88), f) vedação de juízo e tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF/88), g) garantias penais e processuais penais como legalidade no direito penal (artigo 5º, XXXIX, CF/88) e h) e outros direitos fundamentais em espécie.

A dimensão objetiva desse direito impõe a observância da segurança pelos agentes, órgãos e poderes estatais nas suas atividades cotidianas, assim como é empregada pela interpretação jurídica na concretização e na aplicação do ordenamento jurídico, incidindo nas relações privadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Mesmo com a enorme relevância, por muito tempo, os estudos constitucionais deixaram em segundo plano as reflexões sobre a segurança nos fenômenos jurídicos e sociais[4].

2 – Fundamentos. Na modernidade, há a adoção da clássica teoria da separação dos poderes, segundo a qual cumpria ao Legislativo elaborar a ordem jurídica geral e abstrata e ao Judiciário apenas aplicá-la aos casos concretos com o mínimo de interferência possível na determinação do legislador. Nesse período do alvorecer do constitucionalismo, é predominante o viés liberal de proteção do indivíduo contra o Estado, da democracia representativa, da defesa dos direitos fundamentais individuais e da não intervenção na economia e na esfera privada, cabendo ao direito apenas regular o mínimo necessário para a convivência pacífica dos diferentes espíritos e projetos de vida humanos (NOVAIS, 2006, p. 59 e ss.).

 Eis o cerne da legalidade e da segurança jurídica moderna: permitir que os cidadãos conhecessem anteriormente as condutas vedadas e as consequências jurídicas de seu descumprimento, cabendo-lhes o exercício do livre arbítrio e da autonomia para cumprir ou não os ditames legais, respondendo por eventuais sanções. Com Cartas sintéticas e pouco interventivas, o direito acabou concentrado na legislação infraconstitucional, em especial, nas grandes codificações. O conceito de norma jurídica restou confinado à dimensão das regras legais, vinculando os julgamentos. Já os princípios seriam diretrizes políticas, com baixa ou nenhuma normatividade, cabendo aplicação subsidiária no preenchimento de lacunas.

Por sua vez, a guinada filosófica dá ensejo ao racionalismo e cientificismo que irão influenciar toda a epistemologia jurídica da modernidade em torno da busca da confiabilidade, estabilidade e certeza no direito, formando uma tríade de conceitos que compõe a significação da noção de segurança jurídica. Para alcançá-la, a teoria do direito se reduziu a uma teoria analítica da norma e do ordenamento (as grandes codificações), de modo a atingir o  status de ciência cujo objeto era análise das normas jurídicas individualmente tomadas ou em seu conjunto, a partir de critérios de validade, consistência lógica e coerência interna (MARRAFON, 2018, p. 59 e ss.).

Do ponto de vista do método, desenvolveu-se a teoria hermenêutica tradicional, subdividida em um tríplice processo i) teoria da interpretação, ii) teoria da aplicação, que envolve a conexão entre o sentido auferido da lei e o do fato, em uma combinação que levasse à conclusão contida na decisão, como, por exemplo, o processo de subsunção e iii) teoria da integração do Direito. Assim, é possível constatar que a segurança jurídica almejada deitava raízes  i) em uma teoria do Estado de Direito e da legalidade baseada em uma rígida separação de poderes e na distinção entre o âmbito político e o jurídico, ii) na adoção do conceito de norma jurídica enquanto regra e de ordenamento como um conjunto de regras, iii) no fundamento filosófico do paradigma da filosofia da consciência, iv) na redução do direito a uma teoria analítica de cunho científico e v) em uma teoria hermenêutica racionalista e subdividida em etapas cientificamente demonstráveis.

O dilema contemporâneo é que nenhuma dessas cinco premissas premissas subsiste.

O pensamento constitucionalista brasileiro, a partir da Constituição de 1988, paulatinamente consolidou a tese de que o Poder Judiciário, enquanto guardião da Constituição, tem o poder-dever de limitar os outros Poderes, quando há violação por ação ou omissão dos ditames constitucionais. Elevou-se a estatura do Poder Judiciário em relação aos demais, de modo a flexibilizar a separação dos poderes clássica e ensejar a progressiva confusão entre o campo jurídico e o campo político.

Assim, para além da aspecto liberal de proteção ao indivíduo (dimensão negativa), assumiu-se a tese de que o Poder Judiciário deve contribuir para a concretização dos direitos fundamentais sociais, seja por meio de intervenções diretas ou por controle da omissão dos demais poderes (dimensão positiva). Em consequência, difundiu-se no imaginário jurídico brasileiro uma certa leitura substancialista da concretização da Constituição, o que pavimentou o terreno para incursões ativistas, tópicas e voluntaristas, em detrimento da cultura da preservação da legalidade e da coerência jurisprudencial.  

Nesse movimento, fortaleceu-se a força normativa dos princípios constitucionais, que passaram a fundamentar decisões e serem aplicados diretamente enquanto fonte do direito, inclusive com possibilidade de afastamento da regra legal no caso concreto sem que haja inconstitucionalidade evidenciada. Ou seja, afasta-se a lei em nome de um princípio ante a alegadas exigências de justiça do caso concreto (derrotabilidade), ainda que, em geral, a lei não esteja eivada de vício de inconstitucionalidade e permaneça vigente[5].

Demonstrada a insustentabilidade das duas primeiras premissas, o cenário não se revela diverso em relação às demais.

O paradigma da filosofia da consciência restou superado enquanto fundamento filosófico. A crítica ao racionalismo e a emergência do paradigma da linguagem[6] levaram à denúncia da dimensão existencial e histórica do sujeito, que não mais se apresenta como razão pura, neutra e imparcial. A filosofia promoveu uma guinada linguístico-filosófica em que, ao invés do sujeito, a linguagem se torna a categoria de trabalho para a compreensão da racionalidade, em dimensão hermenêutica e também lógico-formal (Stein, 1996).

Assim, a crítica antimoderna de Nietzsche se transformou em vetor para a formação de um ambiente niilista que tem fomentado o que se entende como pós-verdade processual. Nesse ambiente niilista formou-se a era das narrativas, a qual enseja o voluntarismo na práxis judicial e inibe incursões de epistemologia jurídica, solapando, assim, a quarta e a quinta premissas ora estabelecidas. A noção de ordenamento jurídico fechado necessária à garantia do status científico do direito se transformou e deu lugar a um sistema aberto de princípios e regras (Marrafon, 2018, p. 124 e ss.), aumentando a incerteza no processo decisório, uma vez que tanto princípios quanto as regras se tornaram verdadeiros topoi argumentativos para justificar as decisões judiciais, favorecendo a realização tópico-argumentativa do direito, sem metodologia e sem hierarquia normativa clara e estável[7].

Apesar dos inúmeros esforços contemporâneos (Dworkin, 2014; Alexy, 2019), enquanto tentativas de racionalizar o processo decisório, a contraposição de narrativas e a pós-verdade que levam ao voluntarismo judicial se tornam antíteses à ideia de segurança jurídica, além da forte crise na teoria das fontes (Marrafon, Robl Filho, 2014) e do predomínio do sincretismo metodológico na applicatio judicial (Rosa, 2006).

3 – Conclusão.No contexto de crise das fontes e de sincretismo metodológico, corretamente o Código de Processo Civil de 2015 (NCPC) inovou e estabeleceu regras que, em tese, permitem a controlabilidade da decisão judicial, notadamente em casos de conflitos de princípios e ponderação (§2° do artigo 489, NCPC), bem como determinam o dever de os tribunais uniformizarem “sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (caput, artigo 926, NCPC). Dessa forma, o Excelso Supremo Tribunal Federal (2019) entendeu que “ao consagrar diversos mecanismos para o sobrestamento de causas similares com vistas à aplicação de orientação uniforme em todos eles (artigo 1.035, § 5º; artigo 1.036, § 1º; artigo 1.037, II; artigo 982, § 3º), conferiu primazia à segurança jurídica, à estabilização da jurisprudência, à isonomia e à economia processual”.  

Ainda, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro com a redação da Lei Federal nº 13.655/2018 concretizou e densificou o direito fundamental à segurança, estabelecendo a) a obrigatoriedade de as decisões administrativas e judiciais considerarem as consequências práticas, quando interpretarem valores jurídicos abstratos (artigo 20), e b) que as decisões administrativas e judiciais que fixem interpretação ou orientação nova prevejam regime de transição (artigo 23). Observa-se majoritariamente a desconsideração inconstitucional dessas normas. De outra banda, o Superior Tribunal de Justiça (2018) levou a sério a segurança jurídica: “A LINBD (…) também passou a dispor expressamente sobre a segurança jurídica relacionada à atuação das esferas administrativa, controladora e judicial”. Há um longo caminho para o substancial respeito ao direito fundamental à segurança jurídica, mas as bases teóricas e as estruturas do direito constitucional positivo estão postas.

BIBLIOGRAFIA.

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014.

DWORKIN, Ronald. O Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica: una garantía del derecho y la justicia. Boletín de la Facultad de Derecho, nº. 15, p. 25-38, 2000.

NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006.

______. Princípios estruturantes de Estado de Direito. Lisboa: Almedina, 2019.

MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica, sistema constitucional e aplicação do direito. 2ª ed. Florianópolis: Emais Editora, 2018.

MARRAFON, Marco Aurélio; ROBL FILHO, Ilton Norberto. A crise das fontes jurídicas enquanto crise do Estado Democrático de Direito. Revista eletrônica direito e política, Programa de pós-graduação stricto sensu em ciência jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.9, n.3, 3o quadrimestre de 2014.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista eletrônica do direito do Estado, nº. 32, out/dez, 2012.

SERBENA, Cesar Antonio (coord). Teoria da derrotabilidade: pressupostos teóricos e aplicações. Curitiba: Juruá, 2012.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Embargos de Declaração no Recurso Especial nº. 1630659/DF, 2016/0263672-7, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Julgamento em 27/11/2018, DJe de 06/12/2018.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição 8002 – Agravo Regimental. Órgão julgador: Primeira Turma, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Julgamento: 12/03/2019, Publicação: 01/08/2019.

STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. 2. ed. São Paulo: RT, 2012.  

VIEHWEG, Theodor.  Tópica e jurisprudência.  Brasília: Departamento da imprensa nacional, 1979.

3] Cf. Novais, 2019, p. 147-169; 219-289; Torres, 2015, p. 125.

[4]Cf. Sarlet, 2012; Pérez Luño, 2000; Barboza, 2014.

[5] Cf. Serbena, 2012.

[6] Cf. Habermas, 1990.

[7] Cf. Viehweg, 1979.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-21/observatorio-constitucional-seguranca-juridica-constituicao-federal

O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

No último dia 27 de outubro completaram-se 4 anos da decisão do STF que determinou o desconto nos vencimentos dos servidores públicos dos dias não trabalhados em virtude do exercício do direito de greve (RE 693.456, Tema 531 da Repercussão Geral, Rel. Min. Dias Toffoli).

Este breve artigo tem por objetivo retomar o tema e oferecer um outro aporte, de teoria dos direitos fundamentais, pois a discussão do ponto de vista das normas trabalhistas parece estar bem posta no acórdão, e ainda mais bem posta nos votos vencidos. Este texto tem, assim, a finalidade de oferecer uma fundamentação complementar ainda não enfrentada, que coloca em xeque a decisão tomada pelo STF e possibilita, desse modo, a rediscussão do tema e da própria decisão até aqui prevalecente.

1. O caso

O RE teve origem na impetração de um mandado de segurança por parte de servidores do Estado do Rio de Janeiro que tentaram impedir o desconto dos seus vencimentos pelos dias parados em razão de movimento grevista. A sentença de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos e denegou a segurança, autorizando os descontos pelos dias parados em razão da greve.

O TJ-RJ reformou a sentença e reconheceu a ilegalidade no desconto dos vencimentos, já que a paralização ocorreu para o exercício de um direito constitucional – o direito de greve, que também se aplica aos servidores públicos.

Contra essa decisão do TJ-RJ foi interposto o RE 693.456, que ficou sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, e cuja repercussão geral foi reconhecida (Tema 531).

2. A decisão do STF

Levado a julgamento em Plenário, o RE 693.456 foi paradigmático em forma e mérito.

Seu julgamento foi relevante sob o aspecto formal, porque, iniciado o julgamento em 02/09/2015, o Supremo decidiu em questão de ordem que, uma vez reconhecida a repercussão geral do recurso, não cabe pedido de desistência. Importante recordar que nesse momento do julgamento ainda não havia entrado em vigor o novo Código de Processo Civil, que resolveu essa questão em seu art. 998, parágrafo único, ao dispor que “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.

Definida a questão formal, o Min. Luís Roberto Barroso pediu vista.

O julgamento de mérito somente foi retomado e concluído em 27/10/2016.

No mérito, o STF decidiu que o exercício do direito de greve por servidor público corresponde à suspensão do trabalho. Assim, mesmo a greve não sendo abusiva, a regra deve ser o desconto dos dias não trabalhados. O desconto só não pode ser realizado se a greve tiver sido provocada (i) por atraso no pagamento, ou (ii) por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da relação funcional com o Poder Público como, por exemplo, a realização de condutas recrimináveis pela Administração Pública, ou quando houver negociação para a compensação dos dias parados ou parcelamento dos descontos.

O STF fixou então a seguinte tese de: A administração pública deve proceder aos descontos dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público.

A decisão foi tomada por maioria de votos, nos termos do voto do Ministro Relator Dias Toffoli, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

3. O problema da decisão tomada

O raciocínio subjacente ao RE e à decisão do STF é o de que se a greve é paralisação, não há trabalho. Se não há trabalho, não há pagamento devido, salvo se a greve for decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas esse raciocínio se fundamenta em uma contradição que, numa tacada só, reconhece o direito de greve, mas ao mesmo tempo o viola ao permitir o desconto dos vencimentos pelos dias parados.

3.1 A greve como direito fundamental

Mas greve não é qualquer paralisação. É paralisação por demandas trabalhistas, pretensão de defesa de direitos dos trabalhadores, ajuste do contrato de trabalho firmado por interesses contrapostos (prestação de trabalho X remuneração necessária de ajustes). É, pois, uma paralisação qualificada. E tanto é assim que recebe nomenclatura especial e especial local de previsão e proteção: a greve como direito fundamental previsto no art. 9º e art. 37, VII, da Constituição da República.

A greve como direito fundamental tem como suporte fático uma série de medidas. A principal delas é, sem dúvida, a paralisação do trabalho.

O âmbito de proteção do direito fundamental à greve abarca, assim, justamente a possibilidade de se parar o trabalho. E que essa possibilidade de paralisação do trabalho não seja impedida ou afetada por uma intervenção sem amparo na Constituição. Vale dizer, a paralisação só poderia ser mitigada se houvesse fundamentação constitucional para tanto. Mas não há.

Assim, a premissa é a possibilidade de realização da greve (suporte fático composto por um âmbito de proteção que abarca, elementar e principalmente, a paralisação do trabalho), a possibilidade de parar e não ser retaliado por isso (intervenção não fundamentada constitucionalmente). Isso significa poder parar e não ter, a priori, os vencimentos descontados. Salvo se a greve for considerada abusiva, ilegal.

3.2 O erro da decisão do STF

O que o STF fez foi inverter a premissa que fundamenta o exercício do direito fundamental de greve dos servidores públicos: se greve é paralisação, e paralisação é não trabalho, então não se justifica, a priori, o pagamento dos vencimentos.

O problema desse argumento é que ele desloca o fundamento da abusividade e ilicitude da greve como premissa da paralisação. Quer dizer, para o STF, o direito à greve implica obrigatoriamente a suspensão do pagamento dos vencimentos, salvo se decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas nessa compreensão do Supremo, então o que fundamenta o direito de greve não é mais um suporte fático com um amplo âmbito de proteção (que abarcaria a paralisação do trabalho como vimos acima), já que a paralisação deve implicar necessariamente o desconto dos dias parados. Ou seja, parar o trabalho não estaria mais no âmbito de proteção do direito de greve, já que parar o trabalho é ser descontado.

Mais do que isso, ser descontado é uma intervenção contra a qual o direito de greve justamente se contrapõe e que não encontra autorização na Constituição. Só é greve porque é paralisação sem desconto. Ou seja, ao se descontar os vencimentos, não apenas se mitiga o principal suporte fático do direito de greve através da diminuição do seu âmbito de proteção (parar o trabalho), como ainda se permite uma intervenção (desconto dos vencimentos) sem fundamento constitucional que a autorize.

A decisão do STF e a tese fixada pelo Supremo não encontram amparo na Constituição porque fulminam o próprio conteúdo essencial do direto fundamental de greve.

Se o STF exclui do âmbito de proteção do direito fundamental o principal modo de atuação para sua efetivação, ele não está apenas esvaziando esse direito fundamental, ele está violando esse direito pela afronta ao que ele principalmente busca estabelecer: um ato que dá concretude ao direito. E o principal ato que dá concretude à greve é parar o trabalho.

Se se cria uma intervenção que impede o principal ato que é parar de trabalhar, então se está a violar o principal âmbito de proteção do direito fundamental. Há, assim, evidente violação do conteúdo essencial do direito fundamental à greve.

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si.

Esvaziamento seria a exclusão do âmbito de proteção de algum modo de exercício do direito, e com fundamentação na Constituição para isso. Mas não a exclusão do principal modo de exercício do direito, e sem fundamentação na Constituição para tanto.

O desconto dos vencimentos dos servidores públicos em razão do exercício do direito fundamental de greve retira dos trabalhadores públicos seu meio de subsistência, impõe um auto sacrifício para que que a parte mais fraca de uma relação contratual possa se valer do principal meio de visibilidade e oitiva e ainda aniquila o próprio direito fundamental à greve.

4. Conclusão: um STF do século XXI, mas uma decisão do século passado

O STF do século XXI, do Plenário Virtual e dos números fantásticos, fez os trabalhadores públicos voltarem ao século passado, onde qualquer reivindicação trabalhista é tratada a priori como indevida e, assim, passível de punição prévia. Nesse caso, infelizmente o Supremo deixou de guardar a Constituição, de proteger um direito fundamental, se valendo de um argumento que não encontra fundamento nem na Constituição, nem na teoria dos direitos fundamentais e muito menos na dinâmica e prática do Direito do Trabalho dos últimos 100 anos.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-erro-decisao-desconto-obrigatorio-dias-greve-13112020

Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos

Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos

Por Inês Virgínia P. Soares, Valerio de Oliveira Mazzuoli e Melina Girardi Fachin

Uma fábrica de fogos de artifício explodiu na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, em 11 de dezembro de 1998, ceifando a vida de 64 mulheres, dentre elas 20 crianças, e ferindo seis trabalhadoras, todas em situação de vulnerabilidade econômica e social e, na sua amplíssima maioria, negras. As operações da fábrica eram irregulares e, por mais de duas décadas, nenhuma responsabilização — seja cível, trabalhista ou criminal — lhe pesou aos ombros ou ao de seus dirigentes.

O Brasil foi denunciado, em razão da falta de diligência para com o caso, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença internacional condenatória foi publicada no mês passado, deixando claro, mais uma vez, que o nosso país faltou com o dever de responder de modo eficaz contra o cometimento de crimes em seu território, descumprindo obrigações positivas em matéria criminal previstas pelas normas internacionais de direitos humanos em vigor, em especial na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 [1].

Essa foi a nona condenação do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos. Novamente, como em outros sete dos oito casos anteriores (exceto o da comunidade indígena Xucuru), houve responsabilização internacional do Estado por persecução penal ineficaz ou ineficiente, bem assim por não ter o país seguido os parâmetros interamericanos sobre a matéria. O Brasil falhou, novamente, com o dever de assegurar a devida diligência em processos criminais, no sentido de que a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis, buscando determinar a verdade e a responsabilização dos responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos [2].

No caso da explosão na cidade do Recôncavo Baiano, a situação de extrema vulnerabilidade e pobreza obrigava as vítimas a se submeter a trabalho extremamente perigoso, na fábrica de fogos. Além do mais, a remuneração recebida era absolutamente desproporcional à periculosidade e à insalubridade do trabalho. Cada trabalhadora, por exemplo, recebia R$ 0,50 para cada mil traques (pequenos artefatos explosivos) confeccionados. Tais atividades, somadas à exploração do trabalho infantil e à falta de fiscalização do Estado, foram responsáveis pela tragédia que retirou a vida daquelas trabalhadoras.

A falta de punição por parte do Estado durante mais de 20 anos foi o fator da imediata responsabilização internacional, pois o dever de punir os responsáveis pelo cometimento de crimes é um reconhecido standard de direitos humanos, que, ademais, reafirma a centralidade das vítimas no sistema interamericano. Não se trata de punitivismo internacional, sequer de ingerência arbitrária de organismos internacionais no Direito interno. Os que pensam contrariamente desconhecem a jurisprudência das cortes regionais de direitos humanos (europeia e interamericana) e têm dos mecanismos regionais de monitoramento apenas uma notícia anedótica, de oitiva, que faz tábula rasa da realidade dos Estados e, sobretudo, das vítimas e de seus familiares, por desconhecerem — na prática e teoricamente — o sistema e sua finalidade histórica.

Como se sabe, os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos não são dicotômicos, mas complementares uns dos outros em prol do victim centred approach. Essa aglutinação de forças se faz indispensável em face do cenário complexo e plural crescente que os processos de reconhecimento e concretização dos direitos humanos demandam. Nesse sentido, relembre-se a “tríade formada pela vitimização, o sofrimento humano e a reabilitação das vítimas”, mencionada por Cançado Trindade, atualmente juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia) e ocupante de um assento na Corte Interamericana de Direitos Humanos por dois mandatos, de 1994 a 2008. Nas suas palavras, as vítimas não são figuras neutras e, sim, “titulares dos direitos violados” ou “sujeitos de direito vitimados por um conflito humano” [3].

Por isso, quando se fala em “vítimas” do Estado brasileiro, se está a referir propriamente às vítimas de crimes, é dizer, aquelas contra as quais ilícitos penais foram perpetrados — quer por agentes do Estado ou por particulares — e que não obtiveram do sistema interno de Justiça uma devida e justa reparação, em tempo hábil e segundo os padrões internacionais relativos à matéria, bem assim os familiares daqueles contra os quais foram praticados crimes.

No cenário local, portanto, a punição criminal dos agentes que deram causa ao crime está diretamente vinculada à reparação e à reabilitação das vítimas. A reparação coletiva da comunidade do interior baiano encontra o desafio de lidar com a discriminação estrutural, aquela inerente à ordem social, a suas estruturas e a seus mecanismos jurídicos, institucionalizada e que resulta em práticas expõem os mais frágeis a maiores riscos e perigos.

É importante lembrar que a primeira vez em que a Corte Interamericana expressamente determinou a responsabilidade internacional contra um Estado por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão foi exatamente na condenação do Brasil no “caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, em 2016. Na sentença relativa ao caso, a corte entendeu que toda pessoa que se encontre em uma situação de vulnerabilidade é titular de uma proteção especial, em razão dos deveres especiais cujo cumprimento por parte do Estado é necessário para satisfazer as obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos”, razão pela qual “não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das particulares necessidades de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontre, como a extrema pobreza ou a marginalização” [4].

No caso da fábrica de fogos do Recôncavo Baiano, novamente as vítimas foram vulneradas pela desigualdade da realidade brasileira, marcada por pobreza, desigualdades regionais e restrição de acesso ao emprego. Além dos fatores raciais e de gênero, que caracterizam o sofrimento das vítimas, a tragédia da explosão alterou o futuro de dezenas de famílias. O Estado brasileiro, a seu turno, quando deveria punir os responsáveis por tais arbitrariedades, não o fez, certo de que essa falta de punição — em razão de inação do Estado ou de inconvencionalidades na persecução penal — não passou incólume ao exame realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Considerando, ademais, os processos de racialização e feminização das desigualdades, há a necessidade de identificar e visibilizar tais vulnerabilidades com políticas voltadas ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às negras e negros, adotar políticas de gênero “neutras” alimenta a desigualdade e a exclusão.

A “perda de chances” da comunidade atingida pela explosão da fábrica de fogos já seria grave em um contexto de reparação concomitante às mortes, mas foi potencializada pela ausência de respostas e punições adequadas do Brasil por mais de duas décadas. Tal, per se, já seria causa de responsabilidade internacional do Estado brasileiro, notadamente por ter contribuído, a um só tempo, com a impunidade baseada em relações de poder — econômica, neste caso e no da “Fazenda Brasil Verde”, e política, nos crimes da ditadura militar — e com o irreparável dano ao “projeto de vida” das vítimas e seus familiares [5].

Nesse enfoque, é possível observar que a Corte Interamericana tem identificado quatro postulados violados nas condenações do Brasil no que diz respeito ao direito das vítimas: o direito de acesso à Justiça, à garantia judicial e a um julgamento; o direito à proteção judicial, também interpretado como o direito a um remédio efetivo; o direito à reparação do dano; e o direito à verdade. A violação a esses direitos se liga à ideia de ausência ou deficiência de punição por parte do Estado.

Entre tantos pontos importantes dessa nona condenação brasileira pela Corte Interamericana, ressalta-se a vinculação do dever de punição à projeção de um futuro mais justo. Nesse sentido, o julgamento criminal é uma afirmação dos direitos das vítimas e do poder da Justiça, porque o processamento dos responsáveis retém o crime e o mantém dentre aquilo que não se pode esquecer nem pode se repetir.

Portanto, aceitar as regras do Estado de Direito não é apenas se colocar em oposição à ilegalidade e à exploração da vulnerabilidade dos moradores da cidade baiana de Santo Antônio de Jesus — e de tantas outras cidades que abrigam comunidades vulneráveis, mas também fazer algo a mais, pois o grande temor e prejuízo para a comunidade seria que o crime caísse no esquecimento, que a passagem do tempo, tal como um solvente natural, libertasse os responsáveis e perpetuasse a situação de injustiça, com a manutenção daquelas desigualdades econômicas. Nessa perspectiva, o julgamento é um espaço que resiste e rechaça o temor e o prejuízo coletivos. Julgamentos contra perpetradores são, portanto, um aceno à “não repetição”, bem como um sopro de esperança: determinam como a comunidade afetada se tornará a partir da resposta punitiva àquele fato criminoso.

Punir as graves violações a direitos humanos, especialmente as cometidas em cenário de discriminação estrutural, é um standard interamericano de direitos humanos e um aceno para um futuro com chances iguais. Em razão disso, deve ser observado pelo Brasil. Afinal, não é justo que um dia — como aquele 11 de dezembro de 1998 — dure mais de 20 anos.


[1] Para um comentário completo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, v. PIOVESAN, Flávia, FACHIN, Melina Girardi & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[2] Corte IDH, Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 407, § 220.

[3] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Curso de Direito Internacional da Comissão Jurídica Interamericana da OEA. Rio de Janeiro: CJI, 2006, p. 435-463.

[4] Corte IDH, Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 318, § 337.

[5] Sobre o direito ao “projeto de vida” na jurisprudência da Corte IDH, v. os casos Loayza Tamayo vs. Paru, sentença de 27 de novembro de 1998, Reparações e Custas, Série C, nº 42, § 144 e ss; e Cantoral Venavides vs. Peru, sentença de 3 de dezembro de 2001, Reparações e Custas, Série C, nº 88, §§ 60-63.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/opiniao-dia-dura-decadas

Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Dados mostram que colegialidade e deliberação, por ora, não passam de uma promessa no Supremo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

 

Em seu último discurso na Presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli destacou que, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, o STF continuou sendo o tribunal constitucional de maior produtividade no mundo: “graças aos julgamentos virtuais, conseguimos avançar sobre a longa pauta de julgamentos colegiados”. O total de processos na pauta do Plenário foi reduzido em 70%, caindo de 1.200 para 369, e o acervo do Tribunal ficou em torno em 28.361 processos, o menor dos últimos 24 anos. Esses números foram melhor explicados e explorados nrelatório da gestão Dias Toffoli.

Ali, constam com detalhes o número de processos registrados na presidência (74.090) e distribuídos aos ministros (75.254), de decisões monocráticas (169.608) e colegiadas (31.677), de sessões presenciais (143) e virtuais (75) do Plenário e das Turmas (283), entre outros que em muito podem interessar a quem trabalha com a dinâmica interna do STF.

Não foram só os julgamentos virtuais que tornaram possível o ganho de produtividade de que tanto se orgulha o ministro Dias Toffoli. Ao lado da expansão do Plenário Virtual, sobre a qual escrevemos eoutras ocasiões, contribuiu ao avanço sobre o acervo a ampliação da competência da presidência do STF no juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e dos agravos em recurso extraordinário.

A estruturação e consolidação do Núcleo de Análise de Recursos, a exemplo do que já existia com o Núcleo de Análise e Recursos Repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, permitiu maior filtragem dos recursos inadmissíveis e a consequente distribuição apenas dos recursos que versassem sobre questões constitucionalmente relevantes. Um filtro de chegada ao STF e uma verdadeira barreira de contenção de chegada aos gabinetes dos ministros do Supremo.

O resultado foi uma queda de 60% na distribuição de processos recursais aos ministros.

É inegável que a redução do acervo processual via ampliação do Plenário Virtual e filtragem realizada pela presidência possuem um aspecto positivo: criar o ambiente para uma jurisdição concentrada dedicada principalmente aos temas constitucionais. E não aos temas e, também, à gestão do acervo processual. O ministro Dias Toffoli, durante sua presidência, efetivamente tomou medidas importantes para a desobstrução da pauta do Tribunal.

Acerta, portanto, o relatório quando afirma que estas medidas contribuem à vocação constitucional do STF, pois “o Tribunal pode se dedicar às questões de maior relevância e complexidade e às matérias com repercussão geral”. Contudo, há dois aspectos negativos.

Em primeiro lugar, esse “avanço” na prestação de jurisdição é, efetivamente, em sua maior parte, para denegar jurisdição. É, assim, a celebração de produção massiva de decisões que apenas decidem não decidir. E celebrar não decidir, ou exaltar alto número de decisões que nada fazem, é comemorar o que sequer deveria estar lá. É enaltecer uma prestação jurisdicional que foca a produção do que sequer deveria estar lá e que a toma como grande produto, quando, em realidade, outras ações, recursos e temas deveriam ocupar a gestão do Tribunal e a prestação jurisdicional pelos ministros.

Afinal, cabe lembrar, a função precípua do STF é de guarda da Constituição e, assim, decidir sobre temas constitucionais.

Segundo o citado relatório do STF, em 2018 o STF recebeu 101.497 processos. Desse total, 66.652 eram agravos em recurso extraordinário – mais da metade, portanto. Mas foi negado seguimento ou provimento a 99,4% de todos os ARE’S, mantendo-se o acórdão recorrido.

Os dados relativos aos recursos – quantidade em tramitação, participação no acervo e taxa de sucesso – revelam como os filtros processuais têm sido insuficientes ou até mesmo obsoletos. Exaltar, pois, esses números é celebrar o que tem dado errado. E esse diagnóstico nem de longe é estranho a integrantes do STF.

Em segundo lugar, o “avanço” na prestação jurisdicional perpassou pela ampliação da atuação individual e individualista dos ministros.

Ao lado da competência da Presidência na filtragem de agravos em recurso extraordinário, a forma como vem sendo utilizado o Plenário Virtual foi fator que em muito contribuiu à manutenção do STF como uma corte de solistas.

Quando analisamos os processos de controle concentrado levados a julgamento em ambiente eletrônico nos meses dabril e de maio e junho, adiantamos que o PV estava sendo empregado para dar vazão a ações até então “represadas” pela escassez da pauta presencial. Das 209 que foram para o PV, 158 já tinham constado em pauta do plenário físico.

Essa impressão é corroborada quando consideradas as listas virtuais.

Segundo dados disponibilizados no próprio site do STF, em 2019, o volume médio semanal de feitos em lista era de 88 no Plenário e 151 na Segunda Turma. Em 2020, ao menos nas 30 primeiras semanas, essa média saltou para 145 no Pleno e 152 na Segunda Turma. Na pauta do PV de 14/08 a 21/08, aguardavam julgamento 437 processos no Pleno e 378 na Segunda Turma. E desde então, o volume no Pleno vem caindo: 352; 271; 284; 74; 85; 49; 147.

Atribui-se o inchaço em agosto/setembro à troca de gestão na Presidência. A título de comparação, em setembro de 2018, ao término da gestão da ministra Cármen Lúcia, mais do que o dobro da média de processos estava na pauta do Pleno (194).

Esses dados mostram que boa parte dos processos que estavam liberados para pauta do plenário físico (ou seja, dependiam apenas de decisão do presidente do STF para entrarem no calendário de julgamento) foram julgados no Plenário Virtual ampliado, por meio de listas virtuais. Daí o ministro Dias Toffoli comemorar que o menor número histórico de processos na pauta do Plenário.

Houve mesmo, então, uma aceleração (celeridade) de julgamentos via Plenário Virtual. Mas isso não significa necessariamente deliberação e coerência. E a colegialidade tem sido meramente formal.

Como mostramos na análise sobre o uso do Plenário Virtual, na pauta do PV, prevalece o voto do relator, há poucos destaques e vistas. E se somarmos agora as listas virtuais, então vemos que a colegialidade é mesmo meramente formal. Mais do que isso, fica evidente que a deliberação (seja no PV mérito, seja no PV listas virtuais) é praticamente inexistente. E que a celeridade impede mesmo qualquer colegialidade deliberativa em razão do alto volume de processos nas listas virtuais.

Por mais que o ministro Dias Toffoli, ao longo de sua gestão, tenha por diversas vezes afirmado que o Tribunal decide cada vez mais de forma colegiada, os dados são teimosos em revelar que a colegialidade e a deliberação, tão necessárias quanto exigidas pela Constituição, por ora, não passam de uma promessa no Supremo de hoje.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-gestao-toffoli-numeros-comemorar-21102020

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