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A OAB e o controle externo do TCU

A OAB e o controle externo do TCU

Julgamento no STF envolve manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito

Por MARILENA INDIRA WINTER e RODRIGO LUÍS KANAYAMA

 

O nascimento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não foi por acaso, nem foi por vontade oficial (embora tenha sido criada por lei[1]). Partiu de um movimento de juristas que, imbuídos pelo ideal da advocacia, se organizaram para a sua criação. Na década de 1930, nascia a OAB, capitaneada pelo advogado Levi Carneiro, que ocupou cargos no Instituto dos Advogados Brasileiros e da Ordem dos Advogados do Brasil, onde foi seu primeiro presidente.

A despeito de previsão legal, a Ordem não é fruto estatal. Por essa razão, desde o início agiu contra cerceamento a liberdades individuais e foi entidade independente do Estado. Não depende do Estado para seu sustento, para obtenção de suas receitas, para atuação perante o Poder Público e em favor dos direitos. A liberdade e a defesa dos direitos são suas bandeiras inegociáveis e é por isso que o julgamento que se avizinha no Supremo Tribunal Federal (STF) é tão relevante.

O STF começou a julgar o Tema 1054 (“controvérsia relativa ao dever, por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, de prestar contas ao Tribunal de Contas da União” – RE 1.182.189, Rel. Min. Marco Aurélio). A questão, que não é nova (foi aventada no julgamento da ADI 3026), é de suma relevância para traçar os rumos da mais importante organização civil do Brasil.

O ministro Lewandowski pediu destaque no julgamento do plenário virtual sobre a submissão ou não da OAB à fiscalização do TCU. Marco Aurélio votou e foi favorável à necessidade de fiscalização das contas da entidade. O ministro Edson Fachin inaugurou a divergência: para ele, a OAB não está obrigada a prestar contas ao TCU nem a qualquer outra entidade externa. O julgamento continuará no plenário físico.

A posição que ocupa a OAB no texto constitucional é singular. É a única entidade civil que participa de concursos públicos (Magistratura – art. 93, I; Ministério Público – art. 129, §3º; Advocacia Pública – art. 132). A OAB é legitimada para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (art. 103, VII); indica membros para o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, XII) e para o Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, V); escolhe membros de tribunais (art. 94).

Por fim, importante destacar que a advocacia, que ela representa, é a única função não exclusivamente estatal da estrutura do sistema de Justiça brasileiro: “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (art. 133).

Não se trata de autarquia de fiscalização profissional (conselhos profissionais) nos moldes adotados por outras profissões, como a medicina e engenharia. Essas estão sob o controle externo do TCU, recebem tributos (taxas) estabelecidos por lei, realizam concurso público e processos licitatórios. A OAB funciona como entidade privada no manejo de sua estrutura: estabelece suas anuidades, contrata pelo regime trabalhista e não está limitada por processos licitatórios públicos.

A posição da OAB a partir da Constituição é clara: procurou o constituinte dar-lhe independência no seu funcionamento e nas suas escolhas, não estando sob os limites estatais de controle externo, nada obstante sujeite-se a regras de gestão, transparência e controle interno, a exemplo do Provimento 185/2018 do Conselho Federal.

O fim é evidente: serve a OAB como um sustentáculo civil às normas constitucionais; serve como um contraponto ao Poder Público expressando vozes de cidadãos comuns; não defende só a classe da advocacia, mas a sociedade por inteiro, a teor do disposto expressamente no art. 44, I da Lei 8.906/1994. Diferencia-se, claramente, das demais autarquias e conselhos profissionais, que têm como fim delimitado a regulação e controle de determinada classe profissional; e também se diferencia das associações e sindicatos, os quais são igualmente voltados para apenas uma fatia da sociedade.

No passado, o STF já se debruçou sobre a questão. Em 2006, na ADI 3026, sob relatoria do Ministro Eros Grau, entendeu o STF que “por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça (…)”. [2]

Aliás, o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) prevê que a “Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade (…) defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (inciso I, art. 44).

Por outro lado, dentre as competência constitucionais atribuídas ao Tribunal de Contas da União (TCU) não se encontra nenhuma que albergue a fiscalização das contas da OAB, haja vista que seus recursos não são provenientes dos cofres públicos. Diferentemente de outras carreiras integrantes do sistema de Justiça, que muito embora sejam também essencias à sua administração, e às quais também são asseguradas independência e autonomia para exercer suas funções, são integralmente remuneradas e suas estruturas mantidas com recursos totalmente provenientes dos cofres públicos.

Resta salientar que a OAB estabeleceu diversas normas de transparência e responsabilidade orçamentária, preocupada com a necessidade de expor suas decisões, suas receitas e despesas, e seus investimentos. Não é porque não está sujeita a controle externo do TCU que não será accountable perante à advocacia e à sociedade.

A manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito, muitas vezes a voz mais crítica, por sua independência, necessariamente toca no julgado do Tema 1054 do STF. O controle externo por um órgão do Estado (o TCU) adicionará ingrediente arriscado na receita democrática da Constituição da República. A OAB mantém o equilíbrio de forças entre Poder Público e sociedade civil e um julgamento que a alije da independência vergará o já combalido equilíbrio da nossa democracia.

[1]            O Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, previu: “Art. 17. Fica criada a Ordem dos Advogados Brasileiros, órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados, que se regerá pelos estatutos que forem votados pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, com a colaboração dos Institutos dos Estados, e aprovados pelo Governo”.

[2]            Podemos citar mais dois julgados do STF:

(1) Em 2016, no Recurso Extraordinário 595.332 PR o Ministro Marco Aurélio compreendeu a OAB como “autarquia corporativista”, e por essa razão a competência para julgar processos judiciais será da Justiça Federal. Nesse julgamento, destaca-se o voto do Ministro Roberto Barroso:

“Eu acho que a Ordem tem uma posição muito singular. Eu acho que ela presta um serviço público, mas tenho dúvida se ela pode ser tipificada como uma entidade estatal, até pelo tipo de independência que precisa ter e porque acho que ela não é obrigada a fazer concurso público, o que seria uma consequência natural, se eu a considerasse uma pessoa jurídica de direito público.

Desse modo, eu gostaria de ressalvar algumas dúvidas quanto à natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil. Porém, não tenho nenhuma dúvida de que é pacífico o entendimento de que a competência é da Justiça Federal. Portanto, eu estou acompanhando o Ministro Marco Aurélio, apenas me reservando para, em algum lugar do futuro, se vier a ser oportuno, tentar refletir sobre esta natureza singular da OAB.”

(2) No Recurso Extraordinário 405.267, sob relatoria do Ministro Fachin, assim julgou o STF:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA AFETADA PARA JULGAMENTO NO TRIBUNAL PLENO PELA SEGUNDA TURMA. ARTIGOS 11, I, PARÁGRAFO ÚNICO C/C 22, PARÁGRAFO ÚNICO, “B”, AMBOS DO RISTF. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. ART. 150, VI, “A”, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS. 1. A questão referente à imunidade aplicável às entidades assistenciais (CF, 150, VI, “c”) é impassível de cognição na via do recurso extraordinário, quando não há apreciação pelas instâncias ordinárias, nem foram interpostos embargos declaratórios para fins de prequestionamento. Súmulas 282 e 356 do STF. 2. É pacífico o entendimento de que a imunidade tributária gozada pela Ordem dos Advogados do Brasil é da espécie recíproca (CF, 150, VI, “a”), na medida em que a OAB desempenha atividade própria de Estado. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta, tal como as autarquias, porquanto não se sujeita a controle hierárquico ou ministerial da Administração Pública, nem a qualquer das suas partes está vinculada. ADI 3.026, de relatoria do Ministro Eros Grau, DJ 29.09.2006. 4. Na esteira da jurisprudência do STF, considera-se que a Ordem dos Advogados possui finalidades institucionais e corporativas, além disso ambas devem receber o mesmo tratamento de direito público. 5. As Caixas de Assistências dos Advogados prestam serviço público delegado, possuem status jurídico de ente público e não exploram atividades econômicas em sentido estrito com intuito lucrativo. 6. A Caixa de Assistência dos Advogados de Minas Gerais encontra-se tutelada pela imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, “a”, do Texto Constitucional, tendo em vista a impossibilidade de se conceder tratamento tributário diferenciado a órgãos da OAB, de acordo com as finalidades que lhe são atribuídas por lei. 7. Recurso extraordinário parcialmente conhecido a que se nega provimento”(RE 405267, Rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 06/09/2018).

MARILENA INDIRA WINTER – Vice-Presidente da OAB/PR, Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR, Pro-fessora de Direito Civil da PUC/PR, Procuradora do Município de Curitiba.
RODRIGO LUÍS KANAYAMA – membro do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR). Na Faculdade de Direito da UFPR, é Professor Adjunto de Direito Financeiro e Chefe do Departamento de Direito Público. É Conselheiro Estadual da OAB/PR, onde também preside a Comissão de Estudos Constitucionais, e sócio da Kanayama Advocacia em Curitiba.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/oab-controle-externo-tcu-11102020

A inconstitucionalidade do desrespeito à autonomia para nomeação de reitores

A inconstitucionalidade do desrespeito à autonomia para nomeação de reitores

Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza, Gustavo Buss e Kamila Maria Strapasson

O processo de nomeação de reitores e vice-reitores para as universidades públicas brasileiras se encontra regido pelo artigo 16, inciso I, da Lei Federal nº 5.540/68, que dispõe que os reitores serão nomeados pelo presidente da República entre professores, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo.

Posteriormente, reforçando a previsão contida na legislação federal, foi editado o Decreto Federal nº 1.916, de 23/5/1996, cuja redação dá maior dimensão para o procedimento de consulta à comunidade acadêmica para elaboração da lista tríplice referida no artigo supracitado.

Diante da constatação de que a apresentação da lista tríplice pela instituição universitária é antecedida de um rigoroso processo de consulta comunitária, que contempla em seu colégio eleitoral docentes, servidores técnicos e discentes, desde 2003 restou assentada a prática costumeira de nomeação pelo presidente da República do primeiro nome da lista [1], em respeito à autonomia universitária assegurada constitucionalmente no artigo 207 da Constituição Federal de 1988.

Recentemente, sob o governo Bolsonaro, tal prática restou absolutamente relegada, tendo havido diversas nomeações ao cargo de reitor de postulantes que foram os últimos colocados nas respectivas consultas públicas, com índices percentuais irrisórios, os quais compartilhavam a mesma ideologia do presidente.

Até setembro de 2020, 14 dos 25 reitores indicados pelo presidente Jair Bolsonaro não eram os primeiros colocados da lista tríplice, conforme levantamento da Andifes [2]

Nesse âmbito, um exemplo notório é o da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Naquela ocasião, a chapa nomeada pelo presidente para ocupar os cargos de reitor e vice-reitor obteve apenas 18,33% na consulta interna à comunidade, tendo alcançado a terceira e última posição na lista tríplice [3].

O que se destaca na postura do atual governo, especialmente em sua condução do campo científico e educacional, é o endosso de discursos anti-intelectuais fundamentados em uma política autoritária de controle sobre discursos acadêmicos que se consideram contrários aos seus interesses.

Tal postura de confronto entre a administração federal e as universidades públicas já se revela notória, tendo desde 2019 se observado os primeiros movimentos de ataque às mesmas pelo governo federal, especialmente quando do contingenciamento de 28,46% do orçamento para o setor de educação, que restou distribuído de maneira claramente desigual, onerando principalmente a educação superior [4].

Posteriormente, houve novos embates importantes com a edição da Portaria nº 34/20 pela Capes, implicando em extensivo corte na ferramenta de custeio para programas avaliados em extratos mais baixos, e após publicação de edital pela CNPq para ofertar 25 mil bolsas de pesquisa, excluindo cursos de áreas como educação, direito, economia, ciências sociais e filosofia [5].

Outro exemplo da ingerência na autonomia universitária pelo governo federal foi a edição da Medida Provisória nº 979, de 9 de junho de 2020. A MP previa que, em caso de término de mandato dos atuais dirigentes durante a pandemia da Covid-19, seria designado reitor e vice-reitor pro tempore para universidades federais pelo ministro da Educação, sem um processo de consulta à comunidade. Considerando seu teor, a MP foi devolvida ao Executivo pelo presidente do Congresso tendo em vista a afronta aos artigo 206, inciso VI, e artigo 207 da Constituição. 

Tais condutas reiteradas demonstram a existência de uma agenda específica por parte do governo federal, que busca em slogans de discricionariedade executiva e reformulação técnico-científica do ensino universitário uma ferramenta para perseguição contra grupos e campos específicos do pensamento crítico [6].

Reiterando essa visão, estudo publicado pelo Global Public Policy Institute (GPPi), em setembro de 2020, salienta que as ameaças à liberdade acadêmica no Brasil perpassam, entre outros aspectos, canais de denúncias de reclamações políticas e ideológicas, declarações falsas sobre a comunidade acadêmica e novas normas e interpretações que afetam a governança institucional, aparentando estar em curso nas novas medidas governamentais ameaças mais graves que objetivam aumentar o controle sobre as universidades [7].

As posturas do governo Bolsonaro revelam a cristalização da posição autocrática e atentatória na condução da pauta educacional, que não consegue aceitar a pluralidade e a diferença como constitutivas do espaço universitário. Quando se fala em educação pública superior no Brasil, a autonomia de ensino e gestão, bem como a progressividade e isonomia no trato das diferentes instituições e das diferentes áreas do saber, integram a garantia social básica traçada no texto constitucional.

Cabe salientar que a autonomia administrativa, que envolve a capacidade de organização das universidades e de autogoverno por seus próprios membros, possui uma função instrumental em relação à autonomia didático-científica [8]. Nesse ponto, a designação de reitores e vice-reitores afeta não apenas a autonomia administrativa, mas também, em última instância, a autonomia didático-científica das universidades federais.

Tal contexto atentatório às garantias de democracia e autonomia universitária não passam despercebidos aos diferentes setores políticos brasileiros. Há notícia de que o Partido Verde (PV) propôs a ação direta de inconstitucionalidade, autuada sob nº 6565 e distribuída para a relatoria do ministro Edson Fachin, atacando o artigo 16, inciso I, da Lei Federal nº 5.540/68 e o artigo 1º do Decreto Federal nº 1.916, de 23/5/1996.

Em pedido liminar, a ação busca a suspensão da vigência dos artigos atacados, para suspensão das nomeações nos processos em curso e para que sejam nomeados exclusivamente os candidatos mais votados nas consultas realizadas junto à comunidade acadêmica. No mérito, busca a declaração da inconstitucionalidade dos referidos artigos.

Cumpre enfatizar que não se trata da primeira ocasião em que o STF é instado a se manifestar acerca da possibilidade de nomeação discricionária de reitores e vice-reitores na vigência da Constituição Federal de 1988. A ADI 51, do Rio de Janeiro, atacava a Resolução nº 02/88 do conselho universitário da UFRJ, que dispunha sobre a eleição junto à comunidade acadêmica.

Naquela hipótese, houve decisão unânime do tribunal, nos termos do voto de relatoria do ministro Paulo Brossard, no sentido de que a resolução usurpava a competência do presidente da República, determinando que o vencedor da eleição junto à comunidade acadêmica fosse imediatamente empossado pelo conselho universitário. Enfatizou-se que a garantia de autonomia assegurada no artigo 207 da Constituição não se revela absoluta, e nem afasta as prerrogativas igualmente conferidas ao Poder Executivo na nomeação de cargos públicos federais (artigo 84, inciso II, da Constituição).

Em sentido análogo, o STF apreciou a ADI 578, em que se impugnou o artigo 213, §1º, da Constituição Estadual, que previa que os diretores de escolas públicas estaduais seriam escolhidos mediante eleição direta e uninominal pela comunidade escolar. O voto vencedor, de relatoria do ministro Maurício Coreia, enfatiza que a nomeação para cargos diretivos é discricionária pelo chefe do Poder Executivo, diante do contido no artigo 84 da Constituição Federal, decretando a inconstitucionalidade da previsão contida na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.

Entretanto, há dois importantes votos divergentes na ação indicada, dos ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. Tal dissenso busca ressaltar a previsão de gestão democrática da educação e de autonomia institucional e administrativa, tornando salutar a existência de um processo eleitoral direto da comunidade escolar ou universitária, que não fere a disposição do artigo 84 da Constituição Federal, que claramente condiciona a prerrogativa de nomeação à forma da lei.

Contudo, tais decisões da corte se deram em um contexto político distinto, tendo transitado em julgado, respectivamente, em 1993 e 2001, não devendo prevalecer na atualidade a visão de ampla discricionariedade pelo chefe do Poder Executivo na nomeação de reitores. Isto é, nessa nova conjuntura política de ataque do Poder Executivo à autonomia universitária, é o momento de o STF enfrentar o tema e realizar um overruling em relação aos seus entendimentos anteriormente expostos, revendo eventuais deferências a uma discricionariedade que pode se revelar despótica, para assegurar a estrita observância dos princípios constitucionais que asseguram a gestão democrática e a autonomia universitária, exercendo seu papel de contrapeso ao executivo.

Assim, alçada a discussão à esfera da autonomia universitária, é imperativo o reconhecimento de que o STF já teve oportunidade de, em contextos diferentes, mas que dialogam por bases comuns, assegurar sua imposição.  Nesse ponto, ao analisar as normativas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o STF, a partir do método indutivo, deverá considerar os precedentes já estabelecidos recentemente, os quais vêm reafirmando a importância do princípio da liberdade de expressão e da autonomia universitária. Por oportuno, serão ressaltados três casos recentes julgados pela corte e cujo escrutínio deve auxiliar na compreensão da análise ora colocada.

Em primeiro lugar, de forma mais geral, evidenciando as bases do direito à educação, a ADPF 457, julgada em 27/4/2020, que discutia a proibição de divulgação de material com informação de ideologia de gênero em escolas municipais, ressalta no voto de seu relator, Alexandre de Moraes, a necessidade de respeito aos princípios da liberdade de aprender e ensinar, ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como à liberdade de expressão.

Já a ADPF 548, julgada em 15/5/2020, reafirma o princípio constitucional da autonomia universitária ao, por unanimidade,  declarar nulas decisões que proibiram atos com temática eleitoral nas universidades em 2018 e declarar inconstitucional a interpretação dos artigos 24 e 37 da Lei 9.504/1997 para justificar atos judiciais ou administrativos que admitam o ingresso de agentes públicos em universidades, entre outros.

O voto da ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, tratando do princípio constitucional da autonomia universitária, trouxe ênfase a necessidade da garantia do pluralismo de ideias e ao direito às liberdades de expressão do pensamento, salientando que: “Os atos questionados cercearam o princípio da autonomia universitária porque se dirigiram contra comportamentos e dados constantes de equipamentos havidos naquele ambiente e em manifestações próprias das atividades-fim a que se propõem as universidades”. Ainda: “A autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais”.

Por sua vez, de forma mais específica, a ADI 3.792, que trata sobre a obrigação de a UERN prestar serviço de assistência judiciária, durante os finais de semana aos necessitados presos em flagrante delito, destaca que o princípio da autonomia universitária impede a indevida ingerência no âmago próprio das funções da universidade, assegurando à universidade a possibilidade de dispor sobre sua estrutura e funcionamento administrativo.

Tais casos denotam que, em um cenário de modificação das condições políticas do país, com uma postura de intervenção do executivo na autonomia universitária e desrespeito à escolha da comunidade acadêmica, a interpretação literal dos dispositivos normativos não pode mais ser admitida à luz da Constituição e de seus princípios. São justamente por trás de pequenos atos, ditos excepcionais, tensionando as garantias e limites legitimamente colocados, que residem as bases para a desconstrução democrática em contextos de constitucionalismo abusivo [9].

Nesse contexto, incumbe aos poderes constituídos, em especial ao judiciário, que fará a análise em controle concentrado de constitucionalidade, que se coloquem como guardiões da Constituição, a qual assegura a autonomia universitária enquanto princípio substantivo e fundante do Estado democrático instaurado a partir de 1988. A resposta a ser dada pelo STF em relação aos dispositivos normativos deverá demonstrar a importância do constitucionalismo liberal enquanto projeto ativo e militante na proteção das garantias constitucionais em seu aspecto material e substantivo. 

[1] MENDES, Conrado Hübner. et al. Academic Freedom in Brazil: A Case Study on Recent Developments. Global Public Policy Institute (GPPi), setembro de 2020, p. 15.

[2] Lupion, Bruno. Relatório aponta sério risco à liberdade acadêmica no Brasil. DW. Data 20.09.2020. Disponível em: https://p.dw.com/p/3ikCY>. Acesso em: 24/09/2020.

[3] Ufersa. Consulta para lista tríplice à reitoria da ufersa. 18/09/2020. Disponível em: <https://assecom.ufersa.edu.br/2020/05/21/consulta-para-lista-triplice-a-reitoria-da-ufersa/>. Acesso em 24/09/2020.

[4] OLIVEIRA, Ribamar. Corte em universidade chega a 52% da verba. Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/coluna/corte-em-universidade-chega-a-52-da-verba.ghtml>. Acesso em: 10/06/2020.

[5] SALDAÑA, Paulo. Governo Bolsonaro exclui humanas de edital de bolsas de iniciação científica. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/governo-bolsonaro-exclui-humanas-de-edital-de-bolsas-de-iniciacao-cientifica.shtml>. Acesso em: 10/06/2020.

[6] Nesse sentido, é relevante o estudo realizado quanto aos marcos da autocracia evidentes no governo do Presidente Jair Bolsonaro: BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; INOMATA, Adriana. Constitucionalismo Abusivo e o Ataque ao Judiciário na Democracia Brasileira. In: CONCI, L. G. A.; DIAS, R. (org). Crise das democracias liberais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019.

[7]MENDES, Conrado Hübner. et al.  Academic Freedom in Brazil: A Case Study on Recent Developments. Global Public Policy Institute (GPPi), setembro de 2020, p. 4.

[8] MOTTA, Fabrício Macedo. Autonomia universitária e seus reflexos na escolha dos dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 116, pp. 277-307, jan./jun. 2018, p. 289.

[9] BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; FILHO, Ilton Norberto Robl, Constitucionalismo Abusivo, Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 12, n. 39, p. 79–97, 2019, p. 85.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-out-04/opiniao-desrespeito-autonomia-nomeacao-reitores

Pacto federativo e atuação da União na segurança pública: sinais de alerta

Pacto federativo e atuação da União na segurança pública: sinais de alerta

O Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de julgar o alcance da jurisdição militar na ADI 5032

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA

 

O min. Edson Fachin concedeu medida cautela na ACO 3.427, ação proposta pelo governador da Bahia com o argumento que a utilização da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) no território do estado, sem sua solicitação, viola o pacto federativo.

A decisão do dia 18  estabeleceu o prazo máximo de 48 horas para a retirada do contingente. A ação, pautada para decisão do plenário dia 24, permite dois planos de análise: o imediato, da violação das premissas federativas; e o mediato, sobre a necessidade de estabelecer parâmetros adequados no campo de segurança pública.

Começando pelo primeiro plano. A Força Nacional de Segurança foi designada em portaria do dia 01 de setembro para atuar em assentamentos do INCRA em dois municípios do sul da Bahia – Prado e Mucuri. A solicitação foi feita pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e conforme relatado pelo governador, Rui Costa (PT), além de não ser o solicitante da medida, tampouco foi consultado quanto à necessidade de deslocamento da Força Nacional ao estado.

A Força Nacional de Segurança Pública foi criada em 2004 como um mecanismo de cooperação federativa, composta por policiais civis, militares, bombeiros e peritos. É utilizada para auxiliar os órgãos estaduais de policiamento. Embora tradicionalmente solicitada por governadores, o art. 4° do Decreto 5.289/2004 estabelece a possibilidade de que a solicitação seja de ministro de Estado.

É precisamente este o tópico arguido inconstitucional pelo governador por violar o pacto federativo, uma vez que a Constituição estabelece que a maior parte das competências na área de segurança pública é dos estados e os casos de violação da autonomia estadual são limitados, como, por exemplo, a intervenção federal.

Ao direcionar a Força Nacional à revelia de solicitação e avaliação do governador, ainda mais em área de assentamento, o min. da Justiça, André Mendonça, estabeleceu preocupante precedente, que afeta ao mesmo tempo a autonomia estatal e a política nacional fundiária, provocando incertezas e ameaças de retrocessos.

A informação dos assentados de que não houve quaisquer situações que remotamente justificasse a presença da FNSP é mais um elemento fático que põe em xeque tanto a necessidade, quanto a possibilidade da utilização da Força Nacional no caso.

De forma mediata, o uso da Força Nacional de Segurança Pública faz parte do processo de atuação direta da União na esfera de segurança pública, processo que passa também pelo uso das Forças Armadas nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Conforme citado, a competência primária em segurança pública é dos estados-membros, que, inclusive, tem a maior parte dos gastos na área. Embora tenha havido algumas tentativas de estabelecer uma política nacional para a área, ela falhou enquanto mecanismo de cooperação e coordenação de políticas.

Ao invés de estabelecer formas de cooperação, a União tem atuado de maneira direta através da Força Nacional de Segurança e das Forças Armadas nas GLOs.  Neste modelo as operações são casuísticas, uma vez que não há projeto à médio e longo prazo, além de custosas.

Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 a União gastou 142 milhões de reais em operações da FNSP e 525 milhões em operações GLO. No ano anterior, os gastos superaram 1,7 bilhões de reais, destes 1,1 bilhão com a intervenção o Rio de Janeiro.

A intervenção direta da União em segurança pública, em detrimento da coordenação de políticas públicas, constitui equívoco de política, uma vez que para além de gastos significativos, não gera resultados duradouros, sendo utilizada em operações nas quais o fator central é o policiamento ostensivo.

Tampouco há transparência na utilização da FNSP e operações GLO uma vez que nas portarias de autorização não há qualquer indicação do motivo específico do uso, prevalecendo as expressões genéricas de “preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e patrimônio”. Com isso há dificuldades de avaliar a concreta necessidade e eficiência dessas operações.

A atuação direta leva também à militarização da área, especialmente através do uso de militares na função na já citada GLO. Há questionamentos tanto sobre a adequação do uso das Forças Armadas em segurança pública por notoriamente não ser função típica militar, quanto também no campo de direitos humanos.

A competência da Justiça Militar para julgamento de crimes ocorridos em operações como GLO é absolutamente controvertida e viola precedentes internacionais relevantes, como Cruz Sánchez e outros vs. Peru, em que se estabeleceu que a justiça militar deve restringir-se ao julgamento de militares em funções próprias militares.

Dessa forma, julgar militares em operações de segurança, ou pior, civis nessas operações pode diminuir o grau de transparência e controle público dos julgamentos, além de estabelecer penas desproporcionais, uma vez que o Código Penal Militar costuma ter penas mais severas. O STF terá a oportunidade de julgar o alcance da jurisdição militar na ADI 5032, pautada para julgamento em outubro, após pedido julgamento em 2018 ter sido interrompido pelo pedido de vistas do min. Roberto Barroso.

O julgamento pelo Plenário da ACO 3.427 é uma grande oportunidade para definição do sentido do pacto federativo na área de segurança pública, e análise dos riscos de ampliação da atuação direta da União neste campo. Mas não devemos perder de vista a necessidade de debates sobre o desenho das políticas públicas na área, de forma a evitar soluções fáceis e, paradoxalmente, ineficazes.

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pacto-federativo-e-atuacao-da-uniao-na-seguranca-publica-sinais-de-alerta-23092020

O plenário virtual no STF: individualismo, vazão e outras tendências

O plenário virtual no STF: individualismo, vazão e outras tendências

O que os números revelam sobre o plenário virtual do Supremo?

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ARAÚJO

 

1 – Começou o segundo semestre forense do Supremo

O segundo semestre do STF começou com a expectativa de utilização ainda mais ampla do Plenário Virtual (PV). Em recente webinar promovido pelo Instituto de Garantias Penais, o Presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, destacou que a Corte está cada vez mais próxima de tornar-se um “Supremo 100% digital” [1].

Neste mesmo espaço, já mostramos que, ao ampliar o PV para “todos os processos de competência do tribunal”, o Supremo insiste em mecanismos decisórios e decisões que, em nome da rapidez, privilegiam uma atuação individual e individualista dos ministros.

Também apontamos, a partir do levantamento de todos os processos julgados no Plenário Virtual de abril, que, como era de se esperar, o PV parece mesmo ter dado lugar ao “Tribunal de solistas”, com processos incluídos em pauta por decisão de um só ministro e decididos pelo voto do relator por ampla maioria. O modo de julgamento muda (agora com o PV ampliado, ele se torna mais célere e com alto número de processos julgados). Mas, as decisões e performance decisórias parecem repetir o mesmo script de um Tribunal apenas formalmente colegiado, mas pouco deliberativo e muito individualizado.

Após os primeiros usos do Plenário Virtual ampliado, a Presidência do STF, após conversas com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados e demais associações representativas da classe, anunciou mudanças no PV a fim de tornar o julgamento ali mais acessível e transparente. Os relatórios e votos passaram a ser disponibilizados durante, e não mais ao final, da sessão. Os memoriais podem ser enviados no correr do julgamento, viabilizando esclarecimentos de fato. E as sustentações orais antecedem o acesso dos ministros ao campo de votação. As modificações e os aprimoramentos foram bem-vindos, pois mitigam alguns dos problemas antes apontados.

Cumpre analisar, neste momento se as mudanças na dinâmica do julgamento no ambiente virtual impactaram positivamente a entrega da prestação jurisdicional pelo Plenário Virtual ampliado.

2 – O Plenário Virtual do STF em maio e junho

Levantamos os dados relativos aos 129 processos de controle concentrado de constitucionalidade incluídos nas pautas do PV de maio e de abril[1]: 08 de 01/05 a 08/05, 09 de 08/05 a 14/05, 09 de 15/05 a 21/05, 21 de 22/05 a 28/05, 06 de 29/05 a 05/06, 35 de 29/05 a 05/06, 09 de 12/06 a 19/06, e 22 de 19/06 a 26/06.

À semelhança do que foi visto e analisado em abril, os números de maio e junho revelam-nos que a dinâmica decisória individualista continua a prevalecer no Plenário Virtual do STF. Revisitemos com mais detalhes os quatros aspectos que evidenciam essa caracterização a que vimos assistindo desde o começo: o uso dos destaques, a quantidade de processos julgados, a predominância do voto do relator e o julgamento por maioria.

2.1 – Destaque

Foram formulados 23 pedidos de destaque para deslocar o julgamento de processos do meio eletrônico para o meio presencial. Nenhum desses requerimentos, como ocorreu com os requerimentos formulados em maio, foram acolhidos.

Também como em maio, manteve-se constante a proporção entre pedidos apreciados e pedidos não apreciados: somente 2/3 dos destaques foram apreciados.

Contudo, enquanto em abril apenas uma única ação foi destacada por ministro para o julgamento no plenário físico, verificou-se um incremento significativo desse número em maio e junho. Foram 13 ações destacadas, das quais 07 pelo ministro Alexandre de Moraes, 05 pelo ministro Ricardo Lewandowski e 01 pelo ministro Luiz Fux.

Esse crescimento sugere que a possibilidade de as partes fazerem sustentações orais antes da votação e poderem levar esclarecimentos aos ministros durante o julgamento possa ter surtido efeito, chamando a atenção dos julgadores para determinadas ações e fatos relevantes.

Contudo, não se pode afirmar que tais mudanças tornaram o julgamento no PV mais público e transparente, já que resultaram justamente na saída desses processos do ambiente virtual para o ambiente físico.

2.2 – Quantidade: a vazão ao acervo processual

O Plenário Virtual ampliado parece continuar sendo utilizado como válvula de escape ao acervo do STF, que hoje conta com 2.032 processos só no controle concentrado abstrato de constitucionalidade – para além das demais classes processuais, que tipicamente respondem por um volume muito maior da carga de trabalho do tribunal.

Das 129 ações levadas a julgamento virtual em maio e junho, 75 já haviam constado em pauta anterior. Das 75, 05 começaram a ser julgadas em sessão presencial, mas, após pedido de vista, foram retomadas e concluídas em sua apreciação em sessão virtual – quais sejam, a ADI n. 3.763, ADI n. 5.852, ADI n. 3.538, ADI n. 3.543 e ADI n. 4.702.

O uso do PV como mecanismo de vazão do Plenário e das Turmas também está sob análise. Afinal, pode ser um escoadouro de volume (no qual mais vale o quanto se julga do que o quê ou como se julga), como alertado por Fábio Braga e Lucas Henrici Marques de Lima ao analisarem decisões da Corte em matéria tributária. Mas também pode ser um uso estratégico ou opaco, como já chamou a atenção Juliana Cesário Alvim.

2.3 – Predominância do voto do ministro relator

Na primeira análise, referente às ações julgadas no PV em abril, chamou atenção a circunstância de que o relator restou vencido em apenas 01 dos 57 julgamentos. Em todos os demais, fosse para julgar procedente ou improcedente o pedido, prevaleceu o voto do ministro relator.

A relatoria também prevaleceu, em larga medida, nos julgamentos virtuais de maio e junho. Nas 90 ações julgadas, em tão somente 03 o relator saiu vencido: ministro Gilmar Mendes na ADI 6.097, que julgava procedente (impugnação de lei estadual que obriga as operadoras de planos de saúde a notificar os usuários sobre descredenciamento de hospitais e clínicas), o ministro Edson Fachin na ADI 4.288, que julgava improcedente (impugnação de lei estadual que reestrutura as Santas Casas e demais hospitais filantrópicos), e ministro Marco Aurélio na ADI 6.053, que a julgava parcialmente procedente (impugnação de previsões do CPC e Estatuto da OAB sobre honorários de sucumbência a advogados públicos).

Em maio e junho, caiu o número de pedidos de vista. Em abril, foram 22 pedidos de vista num universo de 80 processos, o que corresponde a 27,5%. Essa porcentagem caiu de forma significativa nos dois meses seguintes para 16,2%, quando, dos 129 processos submetidos ao PV, em apenas 21 houve pedido de vista.

2.4 – Julgamento por maioria

Não diferente do visto no mês de abril, os julgados de maio e junho equilibraram-se entre unânimes e majoritários. Dos 90 processos, 42 foram decididos por unanimidade do Plenário e os outros 48 foram decididos por maioria.

Dos processos em que houve vencedores e vencidos, apenas 01 ministro compôs a minoria 17 vezes e 02 ministros compuseram a minoria em 11 vezes.

Uma maioria “apertada” de 6×5 aconteceu apenas em 03 ocasiões (ADPF423, ADI 4.612 e ADI 5.939).

Em 14 julgamentos, 04 ministros compuseram a minoria – o que poderia indicar que a visualização das sustentações e a apresentação de esclarecimentos pode contribuir para um julgamento mais dialógico no ambiente virtual. Porém, desses 14 processos, 03 tramitavam apensados à ADI 3.192 e outros 04 estavam apensados à ADI 5.685, o que certamente inflou artificialmente o número de processos decididos por 7×4.

Portanto, até aqui, seguem predominando no PV processos decididos por ampla maioria.

3 – Conclusão

O que vemos e temos do Plenário Virtual ampliado do STF de março até aqui parece repetir as marcas e características do Supremo nos últimos anos: um tribunal de solistas, com pauta virtual e decisões sempre dependentes de ministros individualmente, com julgamentos formalmente colegiados, mas pouco deliberativos, com possível uso opaco e resultados decididos pelo voto do relator por ampla maioria.

Por outro lado, também assistimos nos últimos meses um esforço pelo aprimoramento procedimental do uso do Plenário Virtual, sobremaneira em relação às sustentações orais e apresentação de questões de fato para serem esclarecidas. Essa abertura de espaços formais de interação são bem vindas porque devem mesmo compor e fazer de um julgamento que deve ser colegiado, deliberativo, contar com a efetiva participação dos proponentes e partícipes das ações.

Por fim, chama a atenção o uso do PV ampliado como possível escoadouro de ações. Se ele já tem permitido um julgamento massivo de ações com as disfunções que vimos apontando, o problema parece aumentar enormemente se passarmos a incluir na análise os agravos, embargos e outras classes processuais que têm ficado de lado.

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[1] Não foram incluídos os recursos internos (AgInt e EDcl) e as medidas cautelares.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-plenario-virtual-no-stf-individualismo-vazao-e-outras-tendencias-20082020

Responsabilidade social da empresa e vidas negras

Responsabilidade social da empresa e vidas negras

Por Danielle Anne Pamplona, Inês Virgínia Soares e Melina Girardi Fachin

“Do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos /(E são quase todos pretos) / E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados” (Haiti, Caetano Veloso)

Nas últimas semanas, a violência policial que ceifou a vida de um homem negro nos Estados Unidos urdiu a ferida aberta do racismo e da desigualdade. E, desde então, a atenção mundial em relação à pandemia da Covid-19 tem dividido espaço com protestos pela igualdade racial, que acontecem em diversos países, inclusive, no Brasil.

A imprensa local, especialmente os telejornais, noticiaram os protestos em diversas cidades americanas e ao redor do mundo. O fato de os programas jornalísticos serem apresentados por profissionais não negros chamou a atenção do público e o debate do programa “Em Pauta”, da GloboNews, sobre racismo, foi alvo de críticas e polêmicas. A resposta do canal por assinatura foi rápida: no dia seguinte, houve uma edição composta apenas por jornalistas negras, com um negro como âncora; e duas das jornalistas negras passaram a integrar permanentemente o programa. Além disso, a edição especial do “Em Pauta” foi veiculada, na mesma semana, na TV aberta, no tradicional “Globo Repórter”.

Não foi a primeira vez que as Organizações Globo vieram a público pedir desculpas por práticas violadoras dos direitos humanos, com ações que demonstram compromisso com a mudança de postura. Em 2013, a empresa reconheceu que foi um erro ter apoiado a ditadura brasileira (1964-1985). Esse pedido de desculpas, embora seja um gesto desejado e importante para democracias que passaram por períodos autoritários no passado recente, foi recebido com desconfiança e como algo insuficiente. E até hoje o apoio da Globo à ditadura é lembrado e relembrado, tanto pela esquerda como pela direita, inclusive pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, quando era candidato ao cargo que hoje ocupa.

Em 2018, o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que marcou a gestão do presidente militar Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e o período de maior endurecimento da repressão à resistência política, figurou como propaganda veiculada em rede de canal aberto pela empresa de telecomunicações SBT. Diante da reação negativa do público, a empresa tirou a vinheta do ar, alegando não ter tido a intenção de lembrar a ditadura, mas sim de passar uma mensagem de união.

Não são as telecomunicações o único setor da economia alvo de protestos e reações. A indústria da moda também tem tido prejuízos e desgastes das marcas em decorrência de práticas consideradas racistas. Em 2016, o repúdio nas redes sociais a uma marca de roupa feminina que lançou coleção com estampa que retratava uma negra, provavelmente escravizada, com cesto na cabeça vendendo produtos ou conversando, e uma branca, sentada e parecendo se sentir confortável levou à decisão da empresa de retirar todas as peças das prateleiras. Houve pedidos de desculpas e justificativa de que a estampa se inspirava em Debret. No entanto, dias depois, pesquisadora mostrou que a estampa pivô da polêmica foi inspirada reprodução da litografia “Negras no Rio de Janeiro”, de autoria de Johann Moritz Rugendas, de 1835. Na imagem de Rugendas, no entanto, as duas mulheres, tanto a sentada como a que está com o cesto na cabeça, são negras. Nesse ano, a marca também foi acusada de nunca veicular, em seus catálogos, modelos negras para apresentação de seus produtos.

Em 2017, novamente por conta da estampa com imagens cotidianas do século XIX que traziam mulheres escravizadas, outra marca nacional foi criticada fortemente nas redes sociais e imediatamente veio a público pedir desculpas e informar o recolhimento e não comercialização das peças. Em 2019, essa marca criou um comitê de igualdade racial e consta na página que se trata de um “comitê majoritariamente preto dentro de uma empresa majoritariamente branca. Juntar nossas vozes foi o ponto de partida pra abertura de um maior diálogo interno sobre o racismo estrutural e institucional que vivemos dentro e fora da marca”. Também é dito que a marca “reconhece que ainda não é uma marca antirracista, mas quer ser”.

Os exemplos de empresas de comunicação e da indústria da moda se estendem para outras áreas, indicando que há necessidade de uma mudança de postura empresarial já que a ocupação dos espaços físicos e virtuais por imagens, monumentos, mensagens ou veiculação de estereótipos que ferem direitos e reforçam injustiças históricas não é mais aceita com passividade ou indiferença.

As empresas têm se preocupado em não vincular suas marcas a práticas racistas ou que violem outros pilares dos direitos humanos.

A preocupação chega em bom momento. Toda a comunidade é impactada por decisões tomadas no setor privado, mas há grupos mais vulneráveis que absorvem esses impactos — positivos ou negativos — de modo mais profundo. Ao direcionar luzes para o papel que as empresas (não) podem ter no combate ao racismo, as manifestações inevitavelmente provocam a reflexão sobre a participação de corporações na violação de direitos humanos no Brasil e sua contribuição para manutenção (ou não) das desigualdades.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-13/opiniao-responsabilidade-social-empresa-vidas-negras

(Des)acatando um controle de convencionalidade rigoroso

(Des)acatando um controle de convencionalidade rigoroso

O julgamento da ADPF 496 pelo Supremo Tribunal Federal

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MELINA GIRARDI FACHIN

 

O controle de convencionalidade é uma forma explícita, normativa e institucionalizada de diálogo entre o constitucionalismo local e o sistema internacional de direitos humanos. É marca indelével dos sistemas multinivelados e porosos que marcam o direito constitucional contemporâneo com a aproximação das fronteiras e o trânsito global cada vez mais intenso.

A concepção que mais se coaduna com o projeto constitucional – a tese da paridade constitucional dos tratados de direitos humanos espelhada no art. 5o, §2o, restou vencida em julgamento pelo STF.

Mas o Tribunal consagrou uma proposta que deu novo e destacado espaço para os tratados de direitos humanos no nosso âmbito local de proteção: a tese da hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, dos tratados de direitos humanos anteriores à Emenda 45.

O reconhecimento jurisprudencial consolidou o que a doutrina nacional já vinha há muito apontando: a necessidade de uma leitura constitucional conforme da hierarquia dessas normas.

Recentemente o STF ganhou oportunidade de revisitar a temática no julgamento da ADPF 496, proposta pelo Conselho Federal da OAB, tendo por objetivo a análise da constitucionalidade – e convencionalidade – do dispositivo contido no art. 331 do Código Penal que prevê o crime de desacato.

O tema não é novo e, no exercício do controle difuso de convencionalidade, diversas decisões judiciais abordaram o tema. Umas das mais destacadas foram proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a convencionalidade do crime de desacato.

Em 2016, no REsp 1.640.084, a 5ª Turma do STJ entendeu que o tipo penal era incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Valeu-se na fundamentação de inúmeros expedientes da Comissão Interamericana para concluir que leis de desacato não podiam permanecer incólumes nos ordenamentos internos face à Convenção.

Todavia, em 2017, decisão tomada no HC 379.269 pela 3ª Seção do STJ – responsável por uniformizar a jurisprudência do Tribunal – derrotou a tese anteriormente fixada.

Este imbróglio que chegou ao STF no contexto da ADPF 496. Infelizmente, com uma leitura restrita do controle de constitucionalidade e dos precedentes internacionais, a maioria formou-se no sentido de que não há inconvencionalidade em si no tipo penal. O posicionamento vencedor parte da noção de que como o próprio sistema interamericano rechaça a liberdade de expressão como direito absoluto, podendo ser limitada.

Em distinguishing à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (nomeadamente o caso Palamara Iribarne vs. Chile), o voto vencedor aponta a ausência de similitude fática entre os julgados da Corte Interamericana, os quais tratavam de manifestação de opinião de jornalistas e escritores seguido de imposição de restrições por conta da crítica, e não a ofensas, proferidas na presença de um servidor público.

Destaca, ainda, a posição da Corte Interamericana sublinha a aderência à análise do caso concreto, de forma que a legislação de desacato não foi reputada violadora da Convenção aprioristicamente.

Todavia, em visão sistemática e integrada do sistema interamericano resta evidente a incompatibilidade do tipo penal.

A Comissão Interamericana definiu, a partir de um conjunto decisório de casos, informes e relatorias[1], que as restrições impressas por leis de desacato não são legítimas. Para a Comissão, as leis de desacato buscam proteger a honra dos funcionários públicos, mas tal proteção é outorgada injustificadamente pois dessa proteção especial não goza qualquer um dos demais integrantes da sociedade.

Em verdade, pelo tipo do desacato inverte-se, segundo a Comissão, a lógica aplicável em uma sociedade democrática, pois os funcionários públicos estão sujeitos a constantes escrutínios da população pela posição que ocupam.

Desse modo, faz parte desse palco discursos críticos, e às vezes inclusive ofensivos, proferidos pela população em relação aqueles que ocupam cargos públicos[2]. Ao fim e ao cabo, funcionários públicos estão (e devem mesmo estar) mais expostos a críticas da população.

Soma-se a deslegitimar as leis de desacato, conforme a Comissão, o fato de tais leis intimidarem toda pessoa que busca dar voz a seus pensamentos em relação à determinada atividade prestada pelo governo.

Diplomas normativos que contenham a tipificação do desacato funcionariam, de acordo com a Comissão, como método de supressão apriorístico de críticas, gerando, em última instância, censura prévia.

É certo que a Corte Interamericana não foi tão expressa no principal precedente sobre o tema, Caso Palamara Iribarne v. Chile em 2005. Para a Corte, no exame dos fatos, a adequação de determinada lei de desacato e dos resultados que produz perante a Convenção são determinados necessariamente ao caso concreto[3].

Afastou-se, assim, o entendimento que se vinha esboçando na Comissão que leis de desacato são ipso fato per se incompatíveis com o sistema regional e proteção dos direitos humanos.

Dessa forma, como teste para a convencionalidade, a Corte estabeleceu que a restrição à liberdade de expressão, dado que esta não é um direito absoluto[4] (e os próprios parágrafos do art. 13 da Convenção deixam claro isso), deve se dar por responsabilidades ulteriores que estejam expressamente fixadas em lei; que procurem proteger a reputação dos demais, segurança nacional, ordem pública e ou a moral pública e devem ser necessárias em uma sociedade democrática[5].

Neste diapasão, o requisito da necessidade, a seu turno, corresponde ao fato de que a restrição deverá buscar satisfazer um interesse público imperativo e, para alcançar esse objetivo, deve-se escolher os meios que restrinjam em menor escala os direitos[6].

Em síntese, nota-se que não há uniformidade no sistema sobre a matéria. Ainda que haja uma coerência entre os resultados obtidos na Comissão e Corte – em ambos as leis de desacato foram extirpadas do sistema.

No caso da APDF 496, todavia, o desacato permaneceu sendo considerado constitucional e convencional. Os fundamentos adotados pela corrente majoritária no STF estabeleceram um diálogo de pouca troca com o sistema interamericano e pouco rigor com os ditames republicanos da nossa Constituição.

Os expedientes da Comissão Interamericana são bastante contundentes ao expressarem a inconvencionalidade do tipo de desacato. E a decisão da Corte Interamericana, ainda que em menor grau, não deixou de repudiar o tipo como proteção especial de determinada categoria de pessoas (servidores públicos).

No Brasil já possuímos tipos penais destinados à punição de quem ofender uma pessoa (injúria, calúnia, difamação) e também meios civis, reparatórios e indenizatórios, de responsabilização. Não há, portanto, desabrigo jurídico de quem possa exorbitar da sua liberdade de expressão e ofender alguém, seja funcionário público ou não.

A decisão majoritária do STF, assim, expressa pouco rigor no diálogo com o sistema interamericano de direitos humanos e ainda mais com a decisão que busca objetar.

Mais do que isso, perdeu a oportunidade de promover o controle de convencionalidade de matriz nacional, expressando a proteção da liberdade de expressão, a possibilidade de sua limitação e a inadmissão de uma categoria de pessoas especialmente protegidas apenas por ocuparem cargo público.

Não fosse isso suficiente, o tipo de desacato viola nossos compromissos mais básicos, a igualdade e o republicanismo. Não há justificativa para se tratar de forma desigual e avantajada um servidor público. Sua honra não é maior do que a de qualquer outra pessoa.

E a eventual proteção que se busca dar à Administração Pública não precisa de tipificação especial para o servidor em si. Sua honra encontra amparo na legislação penal e civil caso seja violada. A Administração Pública possui à sua disposição todos os meios, administrativos e legais, inclusive com presunções positivas a seu favor, para fazer valer sua decisão.

O diálogo, e o controle de convencionalidade como uma de suas vertentes, é um compromisso duradouro com a abertura do direito constitucional. É fundado na força expansiva dos direitos humanos, do princípio da dignidade que justifica a possibilidade de exercício do controle de convencionalidade que deve ser feito com o rigor necessário que, infelizmente, não espelhou a jurisprudência majoritária do STF, inclusive na ADPF 496. Não fosse isso, e já era tanto, ainda resta o controle de constitucionalidade: igualdade e republicanismo continuarão aguardando por redenção nesse aspecto.

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[1] Cite-se, dentre muitos: CIDH. Antecedentes e Interpretação da Declaração de Princípios. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=132&lID=4>, com acesso em 21 de novembro de 2017. Informe sobre la Compatibilidad entre las Leyes de Desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. 1994. Caso Horacio Verbitsky v. Argentina. Relatório n.º 22/94, Caso 11.012. 20 de setembro de 1994. Criminalização de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, 2015. Marco Jurídico Interamericano sobre el Derecho a la Libertad de Expresión. 2010. Zonas Silenciadas: Regiones de alta peligrosidad para ejercer la libertad de expresión. 2013. Una Agenda Hemisférica para la Defensa de la Libertad de Expresión.

[2] “El tipo de debate político a que dá lugar el derecho a la libertad de expresión generará inevitablemente ciertos discursos críticos o incluso ofensivos para quienes ocupan cargos públicos o están íntimamente vinculados a la formulación de la política pública.  De ello se desprende que una ley que ataque el discurso que se considera crítico de la administración pública en la persona del individuo objeto de esa expresión afecta a la esencia misma y al contenido de la libertad de expresión” (CIDH. Informe sobre la Compatibilidad entre las Leyes de Desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. 1994).

[3] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 80

[4] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 79

[5] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 178

[6] “El Tribunal ha señalado que la “necesidad” y, por ende, la legalidad de las restricciones a la libertad de expresión fundadas en el artículo 13.2 de la Convención Americana, dependerá de que estén orientadas a satisfacer un interés público imperativo. Entre varias opciones para alcanzar ese objetivo, debe escogerse aquélla que restrinja en menor escala el derecho protegido. Dado este estándar, no es suficiente que se demuestre, por ejemplo, que la ley cumple un propósito útil u oportuno; para que sean compatibles con la Convención las restricciones deben justificarse según objetivos colectivos que, por su importancia, preponderen claramente sobre la necesidad social del pleno goce del derecho que el artículo 13 de la Convención garantiza y no limiten más de lo estrictamente necesario el derecho proclamado en dicho artículo. Es decir, la restricción debe ser proporcional al interés que la justifica y ajustarse estrechamente al logro de ese legítimo objetivo, interfiriendo en la menor medida posible en el efectivo ejercicio del derecho a la libertad de pensamiento y de expresión”. (Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 2005. par. 85).

 

MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desacatando-um-controle-de-convencionalidade-rigoroso-01072020

Direito ao protesto

Direito ao protesto

Ele deve ser encarado não como moléstia à sociedade e seu funcionamento, mas como meio legítimo de manifestação

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

1. Por que o direito ao protesto importa?

Contra a Constituição de 1988, temos assistido a erosão da democracia, o descumprimento das promessas e dos direitos constitucionais. Cada vez mais pessoas têm ido às ruas para se manifestar contra esses retrocessos.

Mas como lidar com os protestos e os conflitos de direitos que eles suscitam?

Se o Direito e a nossa Constituição pretendem se fundar sob o princípio democrático e honrar as promessas constitucionais, devem então assegurar proteção àqueles que hoje saem às ruas, colocando seus corpos e saúde em risco.

Daí a afirmação de Roberto Gargarella de que o direito ao protesto aparece, assim, como o “primeiro direito” – o direito de exigir a recuperação dos demais direitos[1]. Os protestos, a ocupação de praças, parques, marchas em ruas e avenidas, são formas de se chamar a atenção sobre a gravidade do problema político, democrático, social e sanitário que vivemos[2].

Protestos são uma forma privilegiada de expressão. Apesar das manifestações públicas causarem quase sempre algum tipo de moléstia (sujeira nas ruas pela distribuição de panfletos, lentidão ao trânsito de veículos, etc.) elas devem ser toleradas em honra à liberdade de expressão. Os incômodos que eventualmente possam causar devem ser contornados pelas autoridades públicas que devem, por exemplo, organizar o trânsito, manter as ruas limpas.

Nesse sentido, também é certo que os delitos que algumas vezes se cometem nesses atos de protesto (como a eventual quebra de patrimônio público, por exemplo) devem ser reprovados. Os excessos devem ser contidos, os delitos combatidos. Mas eles não podem impedir a continuação das expressões públicas de cidadania. As manifestações podem e devem seguir.

Quando tantas e tantos se unem em um movimento comum contra o autoritarismo do Estado e a falta de concretização de diversos direitos fundamentais, os protestos exprimem uma desesperada necessidade de tornar visíveis situações extremas que, aparentemente, e de outro modo, não têm alcançado visibilidade pública ou sensibilizado governantes.

O fato de que um dado grupo tem outras possibilidades de se expressar (por meio de notas públicas ou petições online, por exemplo) é irrelevante para se avaliar juridicamente os movimentos de protesto e a tomada do espaço público que promovem.

Quem alega que a existência de manifestações diversas dos protestos (por meio de notas públicas ou petições online) tornaria os protestos ilegítimos, ignora as dificuldades (formais e materiais) que a maioria dos grupos que realizam protestos tem para se expressar.

Os métodos convencionais de petição podem, e em geral são, inacessíveis a muitos grupos de cidadãos. Aqueles que não controlam a televisão ou o rádio; os que não têm capacidade econômica para expressar suas ideias pelos jornais ou fazer circular panfletos podem ter um acesso muito limitado ao poder público. E ainda que em algum momento se consiga mobilizar esses meios e modos, os protestos podem se somar como mais uma forma substantiva para se chamar atenção e intervir no debate público.

Quem desconsidera a importância dos protestos sob o argumento de existência de outras formas de manifestação ignora essas dificuldades formais e materiais e ainda parece não respeitar o dissenso. Uma comunidade que assim age deixa de assegurar aos seus cidadão os direitos básicos de se exercer a crítica pública de um modo apropriado e qualificado. Por isso é preocupante que autoridades governamentais, sobretudo policiais, queiram sempre evitar ou por fim às manifestações.

2. Protesto e conflito entre direitos

Quando protestos ocupam praças, parques, ruas e avenidas é comum se falar de conflito entre direitos: de um lado o direito de os protestantes se manifestarem. De outro lado o direito dos cidadãos de circularem livremente pela cidade.

Diante disso, há quem defenda que o alcance dos direitos constitucionais se estabelece à luz de certos interesses coletivos como “o bem comum”; o “bem-estar geral”; o “interesse nacional”. Há ainda aqueles que costumam dizer que “não existem direitos ilimitados”, ou “o direito de cada um termina onde começa o do outro”.

No entanto, afirmações como essas têm muito pouco conteúdo informativo, e menos ainda prescritivo.

Postas dessa forma tão geral, não dizem nada. Não explicam o porquê de movimentos de protestos serem ilegítimos, equivocados no que demandam, ou estarem errados em sua forma. Além disso, diante dessas expressões, os direitos parecem não possuir uma força moral e normativa intrínseca e, assim, parecem sempre dependentes de valores externos a eles, como se seu fundamento e normatividade não fossem suficientes para o seu exercício.

Expressões como “nenhum direito é ilimitado”, ou “o direito de cada um termina onde começa o do outro”, “bem comum” ou “bem-estar geral”, nada dizem sobre como enfrentar o conflito de direitos no caso concreto. Reconhecer que “nenhum direito é ilimitado” ou que “se deve honrar o bem comum” significa pôr fim a uma manifestação? Ou significa que se deve preservar o conteúdo da denúncia feita sob forma de protesto? Onde exatamente estaria a conciliação entre os dois direitos?

Autoridades podem explorar a ambiguidade desses termos para impor decisões arbitrárias e simplesmente encerrar os protestos sem ter que dar maiores justificativas sobre qual direito deve prevalecer.

Além disso, a disputa pela definição do conteúdo dessas expressões tampouco oferece respostas. Ainda que houvesse um consenso sobre o sentido e o conteúdo de noções como “bem comum”, tal postura negaria a possibilidade razoável de estabelecer mudanças nas convicções e nos costumes tradicionais da comunidade.

Além de utilizar argumentos como os que foram vistos acima, muitas vezes as autoridades fundamentam as restrições aos protestos e aos direitos dos manifestantes em nome dos direitos dos demais. A partir de ideia de choque entre direitos, muitas vezes afirma-se que o direito dos manifestantes não pode se sobrepor ou impedir o exercício dos direitos dos demais.

Dessa forma, haveria que se limitar o direito ao protesto de alguns porque é necessário proteger, ao mesmo tempo, o direito de terceiros a transitar livremente, a caminhar por ruas limpas etc.

Entretanto, esse tipo de afirmação, a exemplo do que se alega quando se diz que “nenhum direito é absoluto”, é apenas o início de um raciocínio que deve ser detalhadamente desenvolvido. É preciso, pois, justificar porque se irá dar prioridade de um direito sobre outro.

Quando há uma situação de colisão entre direitos, é certo que um bem jurídico (tutelado pelo direito) será preterido em favor de outro no caso concreto. E, assim, é preciso justificar a prioridade de um direito sobre o outro, a defesa de um bem jurídico em detrimento do outro.

Diante do conflito concreto entre direitos, é preciso defender a preservação e sobreposição dos direitos ligados e mais próximos ao núcleo democrático da Constituição.

Ou seja, se há dezenas de direitos em jogo, como comumente acontece em situações de protestos, deve-se fazer o máximo esforço para preservar os direitos mais intimamente ligados ao núcleo duro da Constituição. E esse núcleo duro deve ser compreendido, em última análise, como as regras básicas do jogo democrático.

Nesse núcleo duro, direitos como os vinculados à liberdade de expressão ocupam então um lugar central. O próprio Supremo Tribunal Federal já tem entendimento consolidado de que a liberdade de expressão ocupa um lugar privilegiado no ordenamento jurídico[3] (nacional e internacional).

Nesse sentido, os direitos ligados ao núcleo democrático da Constituição e também concebidos como “trunfos”, na expressão de Dworkin, são pensados não como uma categoria dependente de outra (como o bem comum, por exemplo), mas como normas invioláveis e oponíveis contra qualquer sujeito, grupo e contra o próprio Estado.

3. Rota de saída: proteger, e não mitigar, o direito ao protesto

Diante das promessas da nossa Constituição de 1988 e dos reclamos que temos visto nos últimos dias, contra o autoritarismo e pela democracia, o direito ao protesto deve ser encarado não como moléstia à sociedade e seu funcionamento, mas como meio legítimo de manifestação.

Se a democracia é o melhor meio para se resolver as questões fundamentais do nosso Estado e da nossa comunidade sem desonrar o compromisso inicial com o igual respeito e consideração por cada cidadão, então os protestos são não apenas meios legítimos, mas também privilegiados para se lembrar da exigência democrática e dos direitos que têm sido relegados nos dias atuais.

É preciso proteger, e não mitigar ou impedir, o direito ao protesto. Especialmente quando ele traz em si o reclamo por democracia e igualdade.

[1] GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta – el primer derecho. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005. p. 19.

[2] Vale ressaltar que são as ruas, os parques e as praças os lugares especialmente privilegiados para a expressão pública da cidadania. Os casos “Hague X Cio”, 307 US 496 (1939) e “Schneider X State”308 US 147 (1939) julgados pela Suprema Corte norte-americana se tornaram paradigmáticos ao reconhecerem as ruas, praças e parques como espaços destinados ao uso público para que as pessoas possam nesses lugares sempre se reunir, discutir e protestar sobre questões públicas.

STF. Plenário. ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, julgado em 30/04/2009.  STF. 1ª Turma. Rcl 22328/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/3/2018. O Min. Roberto Barroso cita 5 motivos principais pelos quais a liberdade de expressão ocupa um lugar privilegiado tanto no ordenamento jurídico interno como nos documentos internacionais. São eles: i) a liberdade de expressão desempenha uma função essencial para a democracia, ao assegurar um livre fluxo de informações e a formação de um debate público robusto e irrestrito, condições essenciais para a tomada de decisões da coletividade e para o autogoverno democrático; ii) a proteção da liberdade de expressão está relacionada com a própria dignidade humana, ao permitir que indivíduos possam exprimir de forma desinibida suas ideias, preferências e visões de mundo, bem como terem acesso às dos demais indivíduos, fatores essenciais ao desenvolvimento da personalidade, à autonomia e à realização existencial; iii) este direito está diretamente ligado à busca da verdade. Isso porque as ideias só possam ser consideradas ruins ou incorretas após o confronto com outras ideias; iv) a liberdade de expressão possui uma função instrumental indispensável ao gozo de outros direitos fundamentais, como o de participar do debate público, o de reunir-se, de associar-se, e o de exercer direitos políticos, dentre outros; v) a liberdade de expressão é garantia essencial para a preservação da cultura e da história da sociedade, por se tratar de condição para a criação e o avanço do conhecimento e para a formação e preservação do patrimônio cultural de uma nação. Vide ainda a decisão no âmbito da Rcl. 32.041/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/direito-ao-protesto-08062020

Conceito constitucional de democracia em risco

Conceito constitucional de democracia em risco

A diferença não deve(ria) nos tornar inimigos

Por ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLÁUDIA BEECK

A Constituição Brasileira determina que o Estado se consolida como Estado Democrático, tendo por fundamento o pluralismo político. O atual presidente elegeu-se a partir de um discurso que equivale o conceito de democracia unicamente à realização dos interesses da maioria eventual vencedora do pleito eleitoral, que coloca os adversários políticos como inimigos.

Esta contradição tem implicado fortes tensões, agora especialmente nas manifestações públicas e protestos, a ponto de que mesmo aqueles que defendem a intervenção militar, o façam sob o suposto manto da defesa da Constituição e da democracia.

É certo que o Texto Constitucional é aberto e fluído e que a característica da textura das normas constitucionais permite uma ampla margem de interpretação e disputa em relação ao sentido destas normas.

Todavia, fora deste espaço de disputa, existem propriamente leituras e interpretações que são absolutamente inapropriadas e mesmo inaceitáveis do ponto de vista constitucional. Existe na Constituição uma reserva de justiça diante da qual confrontando-se a interpretação proposta, esta poderá ser invalidada e considerada inconstitucional[1].

A noção do que seja a democracia pode ser inserida nessa colocação. Existem diversas concepções de democracia que podem ser compatíveis com a Constituição de 1988, mas existem sentidos com os quais ela é absolutamente incompatível.

A Constituição não aceita um entendimento a respeito da democracia que esvazie o valor da diferença e do dissenso e, nessa linha, os atos que intentam a validação desta espécie de conceito fraco de democracia, violam e atacam a Constituição.

O texto da Constituição de 1988 consagra já no artigo primeiro, como princípio fundamental para a constituição de um Estado Democrático de Direito, o pluralismo político. Nisso reside a ideia de que a legitimidade do poder reside na soberania popular, mas também aliada a uma conjugação relevante entre a noção clássica de democracia participativa (que reside na participação a partir do voto), a noção de democracia deliberativa (que implica um processo qualitativo de participação, especialmente em relação as condições do debate) e, ainda, uma noção de democracia pluralista (receptiva em relação a diversidade e ao dissenso).

A inserção de um elemento qualitativo no conceito de democracia, tal qual engendrado pela Constituição, interessa, pois, além do elemento de legitimação da aquisição e do exercício do poder, soma-se o elemento relacionado ao reconhecimento de valores que garantem que a democracia não se tornará unicamente um regime de sujeição das minorias.

Tomando esse sentido, portanto, a Constituição assegura a democracia exatamente pela dimensão de manutenção do pluralismo e da diferença. A democracia é sempre um processo, não de sedimentação de identidades pré-constituídas, mas da própria constituição dessas identidades.

A interpretação judicial da Constituição, no período pós-88, também tem se inclinado no sentido de compreender a democracia tendo por fundamento o pluralismo político e a diversidade, e foi utilizando esse fundamento que o STF votou, por exemplo, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, proibiu as doações de pessoas jurídicas para partidos políticos, autorizou as normas que estipulavam sistemas de reserva de vagas com base em critérios étnicos raciais e entendeu constitucional lei que assegura o transporte interestadual gratuito para pessoas com deficiência. Até o momento, a leitura que o STF faz do conceito constitucional de democracia implica a convocação do Estado e da sociedade para que promovam uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Pesquisas no âmbito da ciência política demonstram que a partir de 1988 há um crescente apoio da opinião pública em relação à democracia e um crescente entendimento do conceito pela população, tanto em relação a noção de liberdade política, como em relação ao componente de fiscalização das instituições.[2]

É certo que a partir de 2014 até 2017 notou-se um recuo da taxa de apoio a democracia, especialmente entre os menos instruídos e mais pobres. Todavia, as pesquisas mais recentes, a partir de 2018, que contemplam já a interferência do fenômeno das fakenews, seguem confirmando que o valor da democracia persiste na opinião pública, como a melhor forma de governo. O descontentamento em relação à democracia, segundo as pesquisas, advém não exatamente da rejeição ao modelo, mas propriamente da incapacidade de sua efetivação de maneira eficaz.

Portanto, a noção de democracia compartilhada a partir da Constituição de 1988, a interpretação dada ao conceito pela doutrina de direito constitucional, pela jurisprudência pátria e pela sociedade civil, é uma noção que supera a mera nota da vontade da maioria apresentada espaçadamente nas urnas. Se trata de uma noção materializada, que implica no reconhecimento do pluralismo, da multiculturalidade, da diferença como parte importante do próprio processo de aprendizado democrático.

Bolsonaro manifesta uma concepção de democracia exclusivamente embasada na aplicação da regra da maioria. Na sua perspectiva, a democracia seria aliada à uma concepção de igualdade exclusivamente formal, que impediria, por exemplo, a adoção de políticas estatais específicas para grupos minoritários.[3] Consolidando sua posição, não é incomum que o presidente se refira pejorativamente às minorias, agredindo-as e ridicularizando-as.[4]

É certo que existe um fenômeno mundial de ascensão de regimes autoritários. Como afirma Scheppele, a democracia liberal na atualidade é uma marca danificada.[5] O ineditismo da situação não está exatamente no fato de uma força autoritária qualquer intentar ascender e dominar o poder, subordinando a Constituição. Tradicionalmente o constitucionalismo convive com os ataques e golpes.

O que diferencia o fenômeno comentado no momento é, em verdade, uma espécie de dissimulação. Os novos agressores da Constituição concorrem em eleições, discursam em prol da Constituição e se utilizam da própria estrutura constitucional para comprometer a Constituição. Isso faz com que seja muito difícil tanto para os analistas internacionais, como para os próprios órgãos de controle interno identificarem os danos e evitá-los em tempo.[6]

O risco diante dessas situações não é propriamente um golpe que expressamente derrube e aniquile a Constituição. O risco se caracteriza pela aniquilação do sentido da Constituição, pois alterando a forma de compreender a Constituição, ela pode deixar de ser o que é.

Uma Constituição precisa ser compreendida pela sua leitura sistemática, pela irradiação de seus princípios, fundamentos e direitos em relação a compreensão do todo constitucional. Mesmo medidas administrativas, de programação de gastos e de gestão de pastas ministeriais, por exemplo, precisam levar em consideração esse amplo contexto constitucional, sob pena de feri-lo e violá-lo.

Para análise do caso brasileiro é necessária a consideração de que o atual presidente da República manifesta publicamente um conceito de democracia restrito, que não correspondente ao conceito constitucional compartilhado e esse é o conceito replicado por seus apoiadores.

Não há por eles uma declarada negação da democracia , pelo contrário, declaram aceitar a democracia e declaram inclusive protegê-la. Todavia, é muitas vezes incompatível com a Constituição o conceito de democracia que pretendem aceitar e proteger.

Sendo assim, a análise do risco que isto pode impor ao constitucionalismo brasileiro, depende, principalmente, de se denunciar essa ideia de democracia restrita. É preciso que esteja sólida a compreensão de que o conceito constitucional de democracia não aceita uma interpretação que nega o pluralismo político e a diversidade, bem como pretende elevar o Executivo a uma suposta superioridade decorrente do pleito eleitoral.

O Judiciário e o Legislativo, além de todas as instituições de controle e também a sociedade civil, precisam estar atentos para impedir, pela desaprovação, pela sustação de efeitos, pela declaração de inconstitucionalidade, pela denúncia e pelo protesto, os atos que coloquem em prática uma concepção de democracia que afronte o desenho constitucional afirmado no pós-88.


[1] Aqui utiliza-se a expressão no sentido cunhado por Vieira. Para mais ver: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça. Lua Nova [online], 1997, n. 42, 79. ISSN 0102-6445. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451997000300003>.

[2] Moisés, José Álvaro. Os significados da democracia segundo os brasileiros, Opinião Pública, vol.16, n. 2, Nov., 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext& pid=S0104-62762010000200001>.

[3] Para comprovação: “Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso”. Vamos acabar com o coitadismo de nordestino, de gay, de negro e de mulher, diz Bolsonaro. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/vamos-acabar-com-coitadismo-de-nordestino-de-gay-de-negro-e-de-mulher-diz-bolsonaro.shtml>. Bolsonaro critica superpoderes a minorias e ataca movimentos sociais. Veja, 29/10/2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-critica-superpoderes-a-minorias-e-ataca-movimentos-sociais/>. Bolsonaro em 25 frases polêmicas. Terra, 28/10/2018. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-em-25-frasespolemicas,42807775f ee5ce8d514c2e0b803b7969u8szhqse.html>.

[4] Ansa. Brasil não pode ser país do mundo gay. Istoé. 24/05/2019. Disponível em: <https://istoe.com.br/brasil-nao-pode-ser-pais-do-mundo-gay-diz-bolsonaro/ >. Bolsonaro: prefiro filho morto em acidente a um homossexual. Terra. 08/06/2011. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexual, cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.

[5] Scheppele, Kim Lane. Worst practices and the transnational legal order (or how to build a constitutional “democratorship” in plain sight). Disponível em: <https://www.law.utoronto.ca/utflfilecount/documents/events/wrightscheppele2016.pdf?fbclid=IwAR0BdfpftNawJzPHx8GenpNBiw4DImF6UV9f_eU57CA3Gs1Q6PEQSJnDa9g>.

[6] Landau, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis Law Review, vol. 47, 2013. Disponível em: <https://lawreview.law.ucdavis.edu/issues/47/1/Articles/47-1Landau.pdf. >

ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLÁUDIA BEECK – Doutoranda em Direito do Estado pela UFPR, Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição- CCONS, idealizadora do canal cesta básica constitucional: https://www.youtube.com/channel /UCrj WgMrf2mcLeZXsg6AIZaA.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conceito-constitucional-de-democracia-em-risco-07062020

Restrição e garantia dos direitos fundamentais em tempos de Covid-19

Restrição e garantia dos direitos fundamentais em tempos de Covid-19

Por Ilton Norberto Robl Filho

 
Ponto Inicial [1]

Com 26.754 óbitos e 438.238 casos confirmados até 28 de maio de 2020, em virtude da Covid-19 [2], o Brasil encontra-se no centro mundial dessa situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional, a qual causa efeitos sociais e econômicos nefastos, impondo rápida e adequada resposta estatal.

Por sua vez, o art. 3º da Lei Federal nº. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, com a redação da Medida Provisória nº. 926, de 2020, estabelece que: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; (…) VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal (…) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.”

Saúde pública e ciência nas restrições aos direitos fundamentais
Na doutrina especializada, é comum refletir sobre as restrições aos direitos fundamentais a partir de questões referentes à saúde pública. Martin Borowski analisa o direito dos nacionais de ingressar e sair do país, asseverando ser constitucional, por exemplo, lei que, para proteger a saúde da população contra pandemias, veda o ingresso de pessoa com enfermidade contagiosa grave. De outro lado, quando a lei proíbe qualquer cidadão enfermo de entrar no território nacional, de forma independente do grau de infecciosidade e da gravidade da doença, esse ato normativo infraconstitucional viola o direito fundamental de ir e vir de modo desproporcional[3], pois se uma pessoa possui uma doença inofensiva a proibição de seu ingresso não é adequada para proteger a saúde pública e a integridade física dos demais indivíduos.

As restrições aos direitos fundamentais, em tema de saúde pública, precisam ser fundadas em razões médicas, não sendo constitucional a adoção de motivos meramente políticos ou ideológicos na limitação desses direitos[4]. O conhecimento científico é substancialmente diverso de uma opinião política ou de uma concepção ideológica específica, tratando aquele saber de maneira sistemática, metodológica, especializada e verificável os problemas científicos, auxiliando na correta compreensão de condutas danosas aos direitos à vida, à saúde e às integridades física e psíquica.

Outrora já escrevemos que: “o conhecimento científico possui peculiaridades, tratando-se, por exemplo, a) da construção de conhecimento por meio de regras, de etapas, de processos e de métodos que conduzem à compreensão dos problemas científicos, b) da construção e da adoção de hipóteses para compreender, analisar e solucionar (ainda que parcialmente) as questões estudadas, c) do desenvolvimento e do emprego de conceitos, de perspectivas e de teorias que auxiliam na reflexão crítica sobre os temas e fenômenos e d) da apresentação de fundamentos fáticos e teóricos que suportam as conclusões e os resultados científicos obtidos. Nesse contexto, as ideias científicas são produzidas a partir de razoáveis ideais regulativos, sendo o mercado de ideias dos cientistas mais restrito do que o mercado de ideias dos cidadãos em geral, o qual é protegido pela liberdade de expressão em sentido lato”[5].

Dessa forma, corretamente o § 1º do art. 3º da Lei Federal nº. 13.979/2020 previu que as medidas restritivas para proteção da saúde pública e dos direitos à vida e à proteção da integridade física precisam ser tomadas a partir evidências científicas. As meras crenças e opiniões, apesar de constitucionalmente garantidas e relevantes no Estado Democrático de Direito, não são razões aptas a informar políticas públicas de saúde e estratégias sanitárias adequadas. Um entendimento político não pode fixar procedimentos e protocolos médicos desprovidos de respaldo científico.

Constituição, indivíduos e comunidade na restrição e na concretização dos direitos fundamentais
O constitucionalismo não deve ser dogmático e ingênuo, transformando-se em uma superstição e distanciando-se da análise crítica da realidade[6]. A ausência de desenvolvimento de uma Teoria Constitucional adequada ao Estado Democrático de Direito causa inexoravelmente a aplicação do texto constitucional de forma equivocada, criando um ordenamento jurídico com regulamentações e práticas absurdas.

Em verdade, líderes populistas de tendência autoritária utilizam-se seletivamente das liberdades de expressão, de crença, de opinião e até mesmo do direito à privacidade, assim como de instrumentos democráticos, com objetivo de chegar e manter-se no poder. Infelizmente, essa é uma tendência em diversos países, a qual deve ser conscientemente combatida pelos mecanismos constitucionais e teóricos existentes. Como precisamente aponta Kim Schepelle, os populistas são oportunistas que buscam o poder acima de qualquer apelo democrático, usando desonestamente a democracia constitucional e os direitos fundamentais [7].

De outro lado, a teoria constitucional de Peter Häberle apresenta uma visão sincera e democrática dos direitos fundamentais, sustentando a relevância do legislador e dos atos de conformação dos direitos fundamentais, na concretização tanto dos interesses públicos e legítimos da comunidade como dos interesses individuais. Novamente, o exemplo do referido jurista versa acerca da saúde pública.

Uma perspectiva unilateral da obrigação de o cidadão ser submetido à vacinação apontaria para uma simples restrição do seu direito fundamental individual à liberdade em prol do interesse da comunidade no campo da saúde pública e coletiva. Por sua vez, a determinação de vacinação detém fundamento especialmente nos benefícios produzidos ao próprio indivíduo, já que concretiza os seus direitos individuais à vida e à integridade pessoal[8]. Dessa maneira, há deveres impostos ao legislador de harmonizar os diversos direitos fundamentais específicos e de integrar os interesses individuais com os coletivos.

Em síntese, o ideal regulativo de uma adequada conformação dos direitos fundamentais, em tema de saúde pública, é a busca por benefícios para a sociedade e o cidadão, apostando nos direitos fundamentais como um sistema pautado na integração desses direitos com outros bens constitucionais[9]. A constituição é um ordenamento de valor duradouro que informa a ação dos cidadãos, políticos, governantes e sociedade, devendo o dinamismo do legislador promover os direitos fundamentais em leitura sistemática e harmonizadora com outros bens constitucionais[10] como o desenvolvimento econômico nacional, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos.

Europa e Covid-19
No boletim #1 da Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais, sobre a Pandemia do Coronavírus e as Implicações para os Direitos Fundamentais, observa-se a existência de muitos dilemas e problemas vividos na Europa que se repetem em grande medida no Brasil.. Em virtude do necessário distanciamento social, a realização presencial e física das atividades educacionais precisou ser interrompida na enorme maioria dos Estados europeus. Apesar da existência de instrumentos tecnológicos e metodológicos para o ensino remoto, não é possível esquecer que parte dos alunos não possui computador e acesso adequado à internet, precisando o Estado atuar para, no mínimo, abrandar esse obstáculo ao direito à educação em contexto de Covid-19.[11]

Acerca do mercado de trabalho, o necessário distanciamento social, além do enorme impacto em setores econômicos como turismo, vestuário e outros, produziu fortes alterações na rotina laboral e na renda dos trabalhadores. Em algumas profissões, o trabalho em casa (home office) é possível e deve ser adotado na maior medida possível, mas em diversos setores o desemprego e a queda substancial da renda imperam. Assim, a mitigação dos efeitos da perda ou diminuição de renda ocorreu com a aprovação de legislações para lidar com essa situação[12].

A busca por equilíbrio entre acesso à justiça e a segurança e a saúde dos membros do sistema de justiça e dos cidadãos em contato com esse sistema é dilema relevante. Desse modo, a tecnologia (processo eletrônico e videoconferência) foi empregada com bons resultados em linhas gerais, porém ocorrendo problemas especialmente em Tribunais que não estavam razoavelmente adaptados ao uso desses instrumentos[13].Os atos de racismos contra estrangeiros como chineses e o fenômeno da desinformação sobre práticas e medidas a serem tomadas na pandemia preocuparam países europeus e a Agência Europeia de Direitos Humanos.

O posicionamento do Diretor Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais corretamente registra que, na atual situação de Covid-19, não há um caminho de proteção da saúde pública ou de garantia dos direitos fundamentais[14], pois as políticas públicas, as leis e as atuações estatais são legítimas se promoverem a saúde pública com o maior respeito possível ao sistema de direitos fundamentais.

Assim, as medidas de contenção do coronavírus não estão dissociadas da busca de mitigação dos impactos nos campos da vida social, da educação, do trabalho e da liberdade de movimento. Importante ressaltar: não se trata de colocar o trabalho, a educação e a liberdade de movimento acima das necessárias ferramentas sanitárias e sociais de luta contra o coronavírus, e sim construir estratégias que procurem, respeitando a ciência e a vida, efetivar na maior medida possível, nesta triste realidade, os diversos direitos fundamentais.

No papel de coordenação das atividades de combate ao coronavírus, parece que falta ao governo federal brasileiro e especialmente ao Executivo Federal uma perspectiva integrada, responsável e harmônica da saúde pública e dos direitos fundamentais.


[1] Este texto apresenta algumas discussões e inquietações do autor compartilhadas com os mestrandos e doutorandos em Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público, na disciplina Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais.

[2][2] BRASIL. Ministério da Saúde. Covid-19: Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/Acesso em: 28/05/2020.

[3] BUROWSKI, Martin. La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20, Núm. 59, p. 51, Mayo-Agosto 2000.

[4] BUROWSKI, Martin. La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20, Núm. 59, p. 55, Mayo-Agosto 2000.

[5] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Liberdade Acadêmica e Científica: Dimensões e Problemas Contemporâneos. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], 19(3), p. 763-764.

[6] Para uma visão crítica do constitucionalismo, cf. WALDRON, J. Constitutionalism: A Skeptical View. Georgetown University Law Center, 2010.

[7] Sobre o tema, cf. SCHEPELLE, K. L. The opportunism of populists and the defense of constitutional liberalism. German Law Journal, 20, pp. 314–331, 2019.

[8] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional. Granada: Editorial Comares, 2003, p. 64.

[9] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional, p. 68.

[10] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional, p. 81-85.

[11] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 18-19.

[12] “A large majority of EU Member States have introduced legislation to compensate for loss of income related to the outbreak. In many cases, this takes the form of the government committing to paying a proportion of the wages of employees that have been or are at risk of being made redundant. Such measures – which also often involve contributions from the employer – will see staff receive 90% of their salary in Sweden, 80% in Slovenia,75% in Romania, 70% in Estonia and France, and 65-70% in Belgium, for example. Greece, in contrast, proposes a fixed sum compensation of €800 in April to employees working in enterprises which suspend their operations; a Maltese or any other EU citizen who becomes redundant in Malta will receive the same monthly amount as unemployment benefit. Ireland has instituted a specific ‘COVID-19 Pandemic Unemployment Payment’ of €203 per week, which aims to enable the newly unemployed to receive financial support quickly, while waiting for the government to calculate their longer-term entitlement” (EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 19).

[13] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 28.

[14] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 5.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-30/observatorio-constitucional-restricao-garantia-direitos-fundamentais-tempos-covid-19

Auxílio emergencial: existem vidas que pouco importam?

Auxílio emergencial: existem vidas que pouco importam?

Por Inês Virgínia Prado Soares e Melina Girardi Fachin

Durante esta grave crise sanitária causada pela Covid-19, os governos federal, estaduais e municipais têm criado medidas e mecanismos como respostas para minimizar ou reduzir as violações de direitos. No entanto, algumas ações não são acessíveis para as pessoas hipervulneráveis, aquelas que, por diferentes razões, têm chances baixíssimas de acesso a instituições ou ferramentas para resguardar seus direitos básicos, e tampouco conseguem enfrentar as eventuais violações a esses direitos.

A vulnerabilidade e o aumento das desigualdades têm atraído especial atenção dos principais órgãos de defesa dos direitos humanos neste momento. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu, em 10 de abril, a Resolução 01/2020, intitulada Pandemia e Direitos Humanos nas Américas, na qual apresenta um conjunto de medidas e abordagens para o enfrentamento da Covid-19 pelos países latino-americanos. Entre as 85 recomendações da Resolução 01/2020, as de número 39 e 40 tratam de grupos de especial vulnerabilidade, indicando que os Estados-membros devem:

“39 — Considerar abordagens diferenciadas ao tomar medidas necessárias para garantir os direitos dos grupos em uma situação de especial vulnerabilidade, adotando medidas de cuidado, tratamento e contenção para a pandemia da Covid-19; bem como mitigar os impactos diferenciados que tais medidas podem gerar.

40 — Promover, pelas mais altas autoridades, a eliminação de estigmas e estereótipos negativos que podem surgir em certos grupos de pessoas no contexto de pandemia.

As recomendações supracitadas têm o mérito de recusar um modelo de atuação que reforce desigualdades e ainda inspiram os gestores locais ao falarem da possibilidade das políticas públicas da Covid-19 de serem desenhadas e implementadas longe da lógica de desigualdade estrutural que, quase sempre, permeia o sistema em tempos de normalidade.

Na tentativa de dar atenção à linha recomendada pela CIDH de conter uma das consequências provocadas pela crise da Covid-19, e dar resposta efetiva aos grupos mais atingidos, sancionou-se a Lei 13982/2020, que estruturou o programa de renda básica emergencial, consistente num auxílio financeiro pago pelo governo federal em três parcelas para sobrevivência no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia.

A iniciativa vai parcialmente ao encontro do preconizado pelas Nações Unidas, que, na voz de seu especialista independente, Juan Pablo Bohoslavsky, clamou que a melhor maneira de lidar com os efeitos econômicos da catástrofe é colocar as finanças a serviço dos direitos humanos com a adoção de programas de renda básica universal de emergência. Diversos países seguiram nessa esteira de assistência aos trabalhadores neste momento de pandemia, inclusive aos informais — Alemanha, Estados Unidos, Irlanda, Canadá, Reino Unido, Austrália, França, Espanha, Itália, Portugal, entre outros, com suporte financeiro maior do que o concedido pelo governo brasileiro.

De acordo com dados disponibilizados pelo governo, quase 100 milhões de brasileiros receberam o auxílio emergencial, mais de 30 milhões o tiveram negado por não cumprir as suas condições e, segundo dados da Caixa, o site do auxílio emergencial recebeu quase 300 milhões de visitas e o aplicativo foi baixado cerca de 60 milhões de vezes. Os números saltam aos olhos e chamaram a atenção inclusive dos idealizadores do programa. Um contingente populacional invisível — que não possui conta em banco, não tem acesso regular à internet e não tem documentos de identificação — veio à luz.

Decreto nº 10.316/2020 instrumentalizou a percepção do benefício previsto na Lei nº 13.982/2020 e estabeleceu, em seu artigo 5º, que para ter acesso ao auxílio emergencial o trabalhador deverá: “I — estar inscrito no Cadastro Único até 20 de março de 2020; ou II — preencher o formulário disponibilizado na plataforma digital, com autodeclaração que contenha as informações necessárias”. Em casos excepcionais e a depender da disponibilidade dos funcionários da Caixa, apenas para as pessoas que não tenham acesso à internet será possível fazer o registro em agências. Mesmo nessa situação, é preciso a inclusão dos dados na plataforma digital.

Portaria do Ministério da Cidadania indicou a Dataprev como agente operadora do auxílio emergencial e a Caixa Econômica Federal foi a instituição escolhida para efetuar o pagamento do benefício, disponibilizando a opções de cadastro no site ou o uso do aplicativo. As duas alternativas exigem que as pessoas tenham acesso a aparelhos celulares, pois a partir de um determinado momento receberão mensagens de SMS com códigos para completar as etapas de preenchimento do cadastro.

Em ação civil pública proposta pela Defensoria Pública da União (DPU) no início de maio, demonstrou-se que é preciso cumprir 23 passos, em ambiente digital, para o cadastramento para recebimento do auxílio. O argumento da DPU nessa ação é que pessoas em situação de extrema pobreza, migrantes, refugiados, integrantes de povos indígenas e de comunidades quilombolas, por exemplo, são também pessoas em situação de exclusão digital.

Por não terem acesso aos recursos digitais, precisam de um atendimento presencial para receberem ajuda de alguém que lhes traduza as exigências digitais, ou mesmo que lhes disponibilizem o número de celular para recebimento dos códigos. A DPU pediu que a União e a Caixa não obriguem os beneficiários a apresentar número de celular e e-mail para o saque das parcelas de R$ 600 na pandemia, bem como que apresentem uma alternativa, que chamamos aqui de “análogica”.

As enormes filas nas agências da Caixa Econômica e nas casas lotéricas, portanto, devem-se, em grande parte, à exclusão digital dos hipervulneráveis e à falta de alternativa para obtenção de ajuda para preenchimento no formulário digital, a não ser o deslocamento para o local de saque.

A corrida ao benefício transitório mostrou que há milhões de invisíveis que seguem amontoadas em filas, inconvenientemente aglomeradas, dormindo nas calçadas nas proximidades das agências bancárias e casas lotéricas.

A imagem das pessoas se colocando em risco e a percepção de que não se terá uma solução rápida para os que não se enquadram no formato pensado para execução do programa trazem o questionamento sobre a razão de não se contemplar todo o universo de vulneráveis, com suas peculiaridades.

É possível considerar que isso não foi feito de modo aleatório, mas, sim, fruto de uma determinada concepção de sociedade, que convive com imensa dificuldade com os mais vulneráveis (tanto fisicamente como também nos aspectos social, cultural ou econômico) A filósofa americana Judith Butler, em recente entrevista a Juan Dominguez e Rafael Zen, ao trazer sua visão sobre a quarentena, também expressou inquietação semelhante sobre o cenário dos Estados Unidos:

“Porém, me pergunto se não seria mais importante considerarmos como as políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente das comunidades indígenas e das populações carcerárias, e também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e à privação de direitos das populações negras”.

O cenário brasileiro não é muito diferente do americano indicado por Butler no que diz respeito ao acesso às múltiplas formas de cuidado aos mais vulneráveis. Aliás, pelo que se tem noticiado, o panorama é bem semelhante no plano mundial, ainda que em razão de peculiaridades regionais os países mais pobres ou com maior desigualdade sejam atingidos de maneira mais severa pela pandemia.

A invisibilidade de alguns grupos sociais por certo não é temática nova para a comunidade internacional, nem chega com a Covid-19. As privações que a pobreza causa no acesso aos demais direitos se traduzem em um dos recortes do cenário das hipervulnerabilidades. Em 2012, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou e publicou, pela Resolução 21/11, os Princípios Reitores sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos (PREPDH). Os seus princípios partem que a pobreza é um problema de direitos humanos:

“4 — As pessoas que vivem na pobreza encontram enormes obstáculos, de natureza física, econômica, cultural e social, para exercerem os seus direitos. Como consequência, sofrem muitas privações que se relacionam entre si e se reforçam mutuamente, — como as condições perigosas de trabalho, a insalubridade da moradia, a falta de alimentos nutritivos, o acesso desigual à Justiça, a falta de poder político e o acesso limitado à atenção de saúde —, que os impedem de tornar realidade os seus direitos e perpetuam sua pobreza. As pessoas submetidas à pobreza extrema vivem em um círculo vicioso de impotência, estigmatização, discriminação, exclusão e privação material, que se alimentam mutuamente”

Isso se agrava com outros recortes que muitas vezes se somam à questão da renda, gerando fenômenos de discriminações sobrepostas como a racialização ou a generificação da pobreza. No dizer da relatora especial sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos:

“Isto é, o fato de que, geralmente, as pessoas que se encontram em condições de pobreza coincidentemente possam pertencer a outros setores vulneráveis (mulheres, crianças, pessoas com deficiência, indígenas, afrodescendentes, idosos etc.) não exclui a possibilidade de que as pessoas em situação de pobreza não se vinculem a outra categoria”.

Foi exatamente numa condenação do Brasil, no caso dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) usou, pela primeira vez, o fundamento da pobreza como um componente autônomo da proibição de discriminação por “posição econômica”. No voto fundamentado do juiz Eduardo Ferrer MacGregor Poisot [1], no julgamento do mencionado caso, foi destacado que:

“44 — Como podemos observar, na jurisprudência interamericana a posição econômica (pobreza ou condição econômica) esteve vinculada de três maneiras distintas: em primeiro lugar, pobreza ou condição econômica associada a grupos de vulnerabilidade tradicionalmente identificados (crianças, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, migrantes etc.); em segundo lugar, pobreza ou condição econômica analisada como uma discriminação múltipla/composta ou interseccional com outras categorias; e, em terceiro lugar, pobreza ou condição econômica analisada de maneira isolada, dadas a circunstâncias do caso, sem vinculá-la a outra categoria de proteção especial”.

Discussões mais recentes no âmbito das Nações Unidas aliam a perspectiva da hipervulnerabilidade de classe com o recorte da exclusão digital. No informe do relator especial Philip Alston, aprovado pela ONU em outubro de 2019, surgem o estado de bem-estar digital e as ameaças deste sob a perspectiva dos direitos humanos, destacando as vantagens da inclusão digital e também a desigualdade no acesso às tecnologias da informação:

“45 — A falta de alfabetização digital leva a uma total incapacidade de usar ferramentas digitais básicas, e muito menos usá-las de maneira eficaz e eficiente. O acesso limitado ou inexistente à internet coloca enormes problemas para muitas, muitas pessoas, e as pessoas que acessam a internet envolvem pagar preços altos, viajar longas distâncias ou tirar folga do trabalho, visitar instalações públicas como bibliotecas ou obter ajuda de funcionários ou amigos para gerenciar os sistemas. Além disso, embora pessoas com recursos possam obter acesso instantâneo a computadores e outros softwares modernos e fáceis de usar, além de velocidades de banda larga rápidas e eficientes, pessoas com poucos recursos têm muito mais chances de serem severamente prejudicadas pelo uso de equipamentos desatualizados e conexões digitais lentas e não confiáveis”.

Os dados para produção do informe da ONU citado acima foram colhidos há cerca de dois anos, em um cenário de normalidade. Diante do quadro catastrófico, é possível considerar que a comunidade internacional enquadraria as pessoas em situação de extrema pobreza em nosso país, que não conseguem se cadastrar para receber o auxílio emergencial por não terem acesso às plataformas digitais, na proteção do prevista no artigo 1.1. da Convenção Americana de Direitos Humanos, que proíbe qualquer forma de discriminação.

Ainda há possibilidade de ajuste da conduta estatal, com a oferta de ferramentas que permitam o cadastramento das pessoas hipervulneráveis. Se assim acontecer, os invisíveis, que até ontem frequentavam os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) espalhados pelos municípios brasileiros, mas não tinham sua existência contabilizada pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), passarão a ser um número e também clientes do sistema de seguridade social.

O desafio está posto. E a resposta precisa ser dada, ainda que esta não seja a realidade de quem escreve ou lê este artigo, ou mesmo dos idealizadores da política. Se há algo que a pandemia nos mostra é a necessidade de cooperação, solidariedade e alteridade pela responsabilidade que temos com as vidas alheias.

Todas as vidas importam.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-26/soares-fachin-auxilio-emergencial

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