Como ficam o empenho e a liquidação da despesa no pagamento antecipado?

Como ficam o empenho e a liquidação da despesa no pagamento antecipado?

Por Rodrigo Luís Kanayama e Thiago Lima Breus

Empenhar, em tese, é reservar a respectiva dotação orçamentária para futuro pagamento ao credor (fornecedor do bem ou prestador de serviço). O artigo 58 da Lei 4.320/64 define empenho como ato que “cria para Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição”. A finalidade do empenho é dar ordem às finanças do Poder Público, organizando-as para que, no futuro, o orçamento público permaneça nos limites aprovados pelo Poder Legislativo.

Por força da Covid-19, foi editada a Medida Provisória 961, de 6 de maio de 2020, aplicável “aos atos realizados durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020” (artigo 2º, Medida Provisória 961). Entre outras normas, estabelece o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração, obedecidas algumas condições para a mitigação do risco de inadimplemento contratual, o qual, se superveniente, ensejará a devolução integral pelo particular do valor a ele antecipado pelo poder público.

Entre as medidas de cautela, destacam-se: I) a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente; II) a prestação de garantia de até trinta por cento do valor do objeto pelo contratado; III) a emissão de título de crédito pelo contratado; IV) o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e V) a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.

Observadas as condições acima e demonstrado que o pagamento antecipado representa: I) condição indispensável para obter o bem ou a prestação do serviço; ou II) que ele propicie significativa economia de recursos, ele poderá ser utilizado, com sua previsão expressa no edital ou no instrumento formal de adjudicação.

Embora não expressamente reguladas pela Medida Provisória 961, observamos que as fases da execução da despesa pública foram ligeiramente alteradas enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020 e para os casos por ela abrangidos.

A dúvida que surge é quanto: I) ao empenho; e II) à liquidação da despesa. À primeira leitura da medida provisória, parecem ser exigidos apenas o processo licitatório (ou sua dispensa) e o imediato pagamento do credor, dispensando-se o ato de empenho e a liquidação. Não nos parece, porém, a interpretação mais adequada à luz do conjunto de normas, constitucionais e legais, que disciplinam a execução da despesa pública.

Como dissemos acima, o ato de empenho tem como função a reserva da dotação orçamentária, visando a preservar o crédito para futuro pagamento ao credor, após regular liquidação. Como ele constitui expediente fundamental para o correto funcionamento do orçamento público — e porque todas as despesas públicas devem ser autorizadas por leis orçamentárias —, é correto afirmar que o empenho continua imprescindível.

Uma despesa pública “antecipada” sem o devido empenho representa a ausência de correspondência no orçamento público, na contabilidade pública e, eventualmente, na prestação de contas. Ademais, não há regra de exceção à Lei 4.320/64, que estabelece, em seu artigo 60, que “é vedada a realização de despesa sem prévio empenho”, norma repetida no artigo 24 do Decreto 93.872/86 (este, só para a União).

Quanto à segunda fase da execução da despesa pública, que é a liquidação, a Medida Provisória 961 trouxe pontual regime de exceção — embora a antecipação se assemelhe com “suprimento de fundos” [1], mas a restringiu para uso somente quando a antecipação de pagamento contratual for vantajosa à Administração Pública [2].

Em regra, sobrevirá a liquidação da despesa — pois o “pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação”.

O artigo 63 da Lei 4.320/64 prevê que a “liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito”. A finalidade é determinar a origem, o objeto, o valor e o credor do crédito (§1º) e será fundada no contrato, na nota de empenho, e nos “comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço” (inciso III, §2º, artigo 63 da Lei 4.320/64).

Durante a vigência do Decreto Legislativo 6/2020 (durante o estado de calamidade pública da Covid-19), será possível realizar o pagamento após liquidação, mesmo sem a entrega do material e antes da prestação do serviço, desde que a liquidação se baseie no contrato, na nota de empenho ou em estudos fundamentados que comprovem sua real necessidade ou economicidade para a Administração, além de, obviamente, terem sido cumpridos os demais requisitos da medida provisória.

No período excepcional em que vivemos, a autorização legal para o pagamento antecipado pelo poder público aproxima a realização da despesa pública à prática comercial privada. No entanto, ela não significa a supressão das fases da execução da despesa pública, muito menos liberação para a realização de gastos indevidos.

[1] Conferir: artigo 68, Lei 4.320/64; artigo 45 e ss., Decreto 93.872/86; Manual do SIAFI (suprimento de fundos).

[2] Conferir: Lei 8.666/93, artigo 40, XIV, “d”; Decreto 93.872/86, artigo 38; TCU, acórdão 1826/2017, Plenário, Representação, Rel. Ministro Vital do Rêgo.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-25/kanayama-breus-empenho-liquidacao-despesa

Plenário virtual ampliado: o que temos e vemos até agora?

Plenário virtual ampliado: o que temos e vemos até agora?

Análise de quatro aspectos que chamam a atenção para a dinâmica decisória do Supremo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO ESPÍNOLA ARAÚJO

 

1 – O Plenário Virtual e sua expansão

A expansão do Plenário Virtual no Supremo Tribunal Federal, impulsionado com a pandemia do coronavírus, vem recebendo atenção dos estudiosos e interessados do direito constitucional por três razões principais.

Primeiro, porque diz respeito ao exercício da entrega da jurisdição, que deve ser sempre realizada de forma pública e fundamentada.

Segundo, porque cuida do exercício da jurisdição constitucional, que, além de exigir publicidade e fundamentação, também reclama maior ônus argumentativo em razão da separação dos poderes e, consequentemente e da presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos.

Terceiro, porque o modo como o plenário virtual vem sendo utilizado tem carregado consigo o que Juliana Cesario Alvim chamou de opacidade, na qual não conseguimos distinguir o que é obstáculo ou estratégia.

Em junho do ano passado, quando acrescido ao Regimento Interno do STF o art. 21-B, foi chamada a atenção para a necessidade de o PV ser aperfeiçoado para permitir a deliberação entre os ministros, e não só a votação de casos, ações e recursos. Do contrário, a possibilidade de julgar em ambiente eletrônico a constitucionalidade de leis, decretos e atos normativos federais e estaduais servirá apenas para reforçar o tribunal de solistas que tem caracterizado o STF.

Em março deste ano, com a alteração do art. 21-B do Regimento Interno do STF pela emenda n. 53/2020, o Supremo passou a poder julgar em ambiente eletrônico, “a critério do relator, “todos os processos de competência do tribunal”. Essa ampliação do Plenário Virtual, por mais inevitável e bem vinda que seja, continua a exigir que o STF faça bom uso dessa ferramenta, não só para julgar com celeridade alta quantidade de processos, mas que permita também um incremento deliberativo do PV.

2 – O Plenário Virtual no mês de abril: levantamento

Fizemos um levantamento do uso do Plenário Virtual no mês de abril, quando o Supremo julgou ou começou a julgar 80 processos de controle concentrado de constitucionalidade ao longo de cinco sessões do PV:

04 processos de 27/03 a 02/04;

29 processos de 03/04 a 14/04;

23 processos de 10/04 a 17/04,

13 processos de 17/04 a 24/04;

E, por fim, 11 processos de 24/04 a 30/04.

Da análise dos julgamentos do PV realizados nesse período, dados interessantes puderam ser extraídos em relação (i) aos tipos de ações, (ii) à concessão de liminar, (iii) à presença de amicus curiae, (iv) à inclusão em pauta anterior, (v) ao destaque do feito para julgamento físico, (vi) à votação dos Ministros e (vii) ao resultado do julgamento.

Da análise desses dados, destacamos quatro aspectos que chamam a atenção para a dinâmica decisória do Supremo: destaques, poder de agenda mitigado (mas ainda personalista), predominância do voto do relator e julgamentos por maioria.

Destaques

Primeiro, vale ressaltar não um dado, mas registrar a ausência de um: da forma como o Plenário Virtual está hoje implementado, não é possível fazer o levantamento de quais processos estavam submetidos ao PV, mas foram destacados para o Plenário físico antes do início da sessão de julgamento. Ou seja, se o processo está no PV, mas é destacado para o Plenário físico, ele simplesmente desaparece da pauta do PV. Trata-se de dado relevante, porque permite controlar as razões pelas quais destaques são feitos em um caso, mas não em outro. Daí a importância de se poder rastrear os processos que saíram do PV para o Plenário físico.

Do ponto de vista lógico do desenho do PV, é compreensível que pareça não fazer muito sentido que os processos destacados continuem a aparecer de alguma forma na relação do PV. Mas essa lógica é apenas aparente. Isso porque a retirada do processo do PV para o Plenário físico sem nenhuma indicação de registro ocasiona uma perda evidente em termos de accountability do exercício, pelos ministros, da faculdade de destacar processos para julgamento físico.

Diante dessa “falha” (que só poderia mesmo ser detectada pelo uso da ferramenta), parece desejável e possível formular uma solução que permita à sociedade saber quais processos os ministros entenderam como merecedores de julgamento presencial no Plenário físico.

Ainda em relação aos destaques, os dados mostram que, uma vez iniciado o julgamento no PV, as chances de um processo ser destacado são ínfimas: todos os pedidos de destaque feitos por advogados ou foram indeferidos (26 pedidos indeferidos) ou sequer foram apreciados (11 pedidos sem apreciação), resultando na direta conclusão do julgamento no ambiente virtual. A não apreciação dos pedidos de destaque em praticamente 2/3 dos casos chama atenção. Se a Resolução permite que se requeira a retirada do PV, certamente não é previsão pro forma e nem supérflua. Assim como o pedido deve ser justificado e fundamentado pela parte/proponente, também é de se exigir uma resposta do julgador para o não atendimento do pedido feito.

Ressalta-se que apenas um processo foi destacado pelo ministro Luiz Fux do PV para o Plenário físico após o começo do julgamento (a ADI 5.441).

Poder de agenda mitigado (mas ainda personalista)

O segundo aspecto é o de que a inclusão imediata no PV de processos que o Supremo decidira apreciar no Plenário físico não ocorreu em casos isolados, mas sim em larga escala, confirmando assim o que já havia sido apontado quando analisada a emenda n. 53. Dos 80 processos incluídos no PV em abril, 63 já haviam sido incluídos anteriormente em pauta do Plenário físico.

Desses 63, 04 processos começaram a ser julgados no Plenário físico antes da mudança regimental, mas foram suspensos por pedido de vista. Para a apresentação do voto vista e a retomada do julgamento, estes processos já foram incluídos e acabaram sendo julgados no Plenário virtual (ADI 2.914, ADPF 369, ADI 3.961 e ADC 48).

A inclusão dos processos no PV é decisão que cabe ao ministro relator, iniciando o julgamento, ou ao Ministro vistor, retomando o julgamento após pedido de vista. Assim, há a atenuação do, há muito questionado, poder de agenda da Presidência do STF, mas não a construção da, há muito necessária, agenda do Tribunal. Assim, o PV mitiga o poder de agenda do Presidente, mas ainda evidencia o problema da pauta continuar sendo uma decisão personalista.

Predominância do voto do ministro relator

O terceiro aspecto que merece destaque é a prevalência do voto do ministro relator. Como dito, foram incluídos no PV 80 processos, com 57 julgados. Em praticamente todos, prevaleceu o voto do ministro relator, fosse para julgar procedente (33 processos), improcedente (21 processos), prejudicada (01 processo) ou inadmissível (01 processo). A relatoria foi vencida em apenas 01 processo, na ADI 5.179, em que a Ministra Carmén Lúcia restou vencida ao lado de outros 04 Ministros, prevalecendo o voto do ministro Luiz Fux pela parcial procedência da referida ADI.

Julgamentos por maioria

O quarto e último aspecto diz respeito ao binômio maioria e minoria. Dos 57 processos julgados, 26 foram por unanimidade e 31 por maioria. Dos 31 processos decididos com divergência, em 13 houve apenas um único ministro vencido e, em 10, apenas 02 ministros vencidos. São muito poucos os casos de minorias robustas. Placares de 6×5 ou de 7×4 ocorreram apenas 04 vezes (ADI’s 3.961, 5.179, 4.553 e 6.066). No mais das vezes, as decisões são tomadas por ampla maioria.

3 – Rota de saída: maio e um novo horizonte?

Esses quatro aspectos dos dados levantados sobre os julgamentos realizados no PV no mês de abril, que dizem respeito às 05 primeiras sessões sob a vigência da nova redação do art. 21-B do regimento interno, apontam que, como esperado, o PV parece vir a reforçar a tendência de um tribunal de solistas (e com um uso opaco): processos incluídos em pauta por decisão de um só ministro, decididos pelo voto do relator por ampla maioria.

A mudança regimental e o uso do PV está sob escrutínio. Algumas adaptações, muito bem-vindas, já foram feitas. Desde maio, os ministros já podem disponibilizar relatórios e votos durante a sessão e os advogados podem encaminhar, também ao longo da sessão, memoriais esclarecendo eventual divergência. Cumpre, agora, verificar se tais mudanças irão mesmo impactar a dinâmica individualista do Plenário Virtual que já se apresentou ao longo destas 05 primeiras sessões sob o novo art. 21-B.

A ver.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/plenario-virtual-ampliado-o-que-temos-e-vemos-ate-agora-22052020

As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?

As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?

Esperamos que esse período de pandemia promova um avanço, em forma e conteúdo, e não que o novo normal seja um retorno ao passado

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOSÉ ARTHUR CASTILLO DE MACEDO

 

A Pandemia da Covid-19 gerou crise sem precedentes na história recente. Autoridades públicas são chamadas a dar respostas às crises sanitária, econômica e política. No entanto, atitudes do presidente da República têm promovido atritos entre os Poderes, e entre a União, governadores e prefeitos, colocando a separação dos Poderes e a federação sob tensionamento constante. Por sua vez, o Supremo tem atuado para tentar mediar parte desses conflitos, ou até mesmo para decidi-los alocando poder de um ente para outro, segundo a sua interpretação da Constituição.

Será que, diante da situação excepcional de três crises simultâneas, haverá uma mudança significativa na forma e no conteúdo das decisões do Supremo? Será que nada será como antes ou o “novo normal” reproduzirá práticas muitas vezes criticadas?

Abaixo apontamos para dois pontos que indicam possíveis mudanças e continuidades. As mudanças podem ser vistas em relação ao conteúdo das decisões de matéria federativa. A continuidade pode ser vista nas decisões monocráticas em relação aos outros Poderes.

Antes da crise, era possível constatar que, em matéria federativa, a jurisprudência da Corte produzia a centralização da Federação, a despeito da retórica encontrada em vários acórdãos do STF. Diversos estudos quantitativos demonstram como a Corte costuma(va) decidir a favor da União de modo a alargar as suas competências, em detrimento dos outros entes, principalmente dos estados.

Porém, a partir do julgamento da ADI 4.060 parece que o STF afirmou que deveria mudar o rumo da sua jurisprudência. O caso discutia os limites do exercício da competência concorrente por parte dos estados, especificamente para estabelecer o número mínimo e máximo de alunos em sala de aula, de modo a atender à peculiaridade da região.

A Corte entendeu, por unanimidade, que a lei de Santa Catarina que estabelecia o limite de alunos em sala de aula era constitucional. Além disso, afirmou que era a hora de iniciar a revisão de sua jurisprudência centralizadora, até então dominante. Foi reconhecido, também, que caberia ao STF dar maior protagonismo aos Estados e Municípios dentro dos limites previstos nas normas constitucionais.

Contudo, o que se pode constatar até aqui é que julgamentos posteriores do STF oscilaram entre a tradicional postura centralizadora em favor da União e uma nova postura descentralizadora, em algumas matérias (notadamente meio ambiente e saúde), em favor dos Municípios e Estados. Nessa seara, têm se destacado os votos do ministro Edson Fachin, que tem apresentado e enriquecido o debate com argumentos interessantes, ainda que passíveis de discussão, a respeito do federalismo brasileiro[1].

Apesar disso, diante da pandemia, diversas medidas adotadas por Estados e Municípios foram questionadas no STF. E, para surpresa de alguns diante da possibilidade de uma mudança de entendimento, o ministro Marco Aurélio deferiu medida cautelar na ADI 6.341, que questionava a possibilidade dos entes federativos de adotarem medidas mais restritivas que as prescritas pela União.

Trata-se de mudança jurisprudencial relevante. E, novamente, para surpresa de muitos, a liminar foi confirmada por unanimidade pelo plenário da Corte.

A partir dessa decisão na ADI 6.341, várias decisões foram e têm sido tomadas, sobretudo em sede de Reclamação, para suspender decisões que não respeitam o entendimento de que os Estados e Municípios podem tomar medidas mais restritivas do que as da União, desde que amparadas em evidências científicas e em recomendações da OMS. Dentre elas, destacam-se restrições ao transporte fluvial no Amazonas, restrições à celebração de cultos no Mato Grosso ou a abertura completa do comércio e de serviços considerados não essenciais em Londrina no Paraná.

Nesse mesmo sentido, ainda no último dia 06 de maio, o STF deferiu, por maioria, medida cautelar na ADI 6.343 para suspender parcialmente a eficácia de dispositivos das medidas provisórias 926 e 927, possibilitando, assim, que Estados e Municípios também adotem medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local enquanto durar o estado de emergência sanitária.

Por outro lado, o Supremo monocrático de antes da crise parece continuar a ser o mesmo Supremo monocrático também agora, durante a crise.

Sobre esse aspecto foi significativa a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357, que permitiu uma atuação ampla do Estado sem as exigências e formalidades da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Diretrizes Orçamentárias. Se o mérito da decisão é menos controverso, sua forma segue duvidosa. Decisão cautelar monocrática em ADI é algo que não encontra amparo na Constituição (que não concedeu nenhum poder individual aos ministros do STF), na Lei 9.868/99 (que determina que cautelar em ADI seja sempre colegiada, podendo ser monocrática apenas no período do recesso), no CPC ou no Regimento Interno do STF.

Ademais, a decisão poderia ter sido colegiada, pois dias antes o Supremo havia decidido ampliar o uso do Plenário Virtual para todo e qualquer processo ou decisão do STF.

Se o conteúdo da decisão não parece errado, sua forma originária, monocrática, sim o era. E esse erro formal leva o STF diretamente para a gestão do dia a dia da crise financeira e orçamentária do País. Não à toa, quando a decisão monocrática foi referendada pelo Plenário do STF houve debate se deveria haver ou não a fixação de tese que gerasse segurança para os gestores que atuaram com base na decisão monocrática. Além disso, isenta o Presidente de presidir o País e liderar o combate à crise, especialmente no que lhe diz respeito – gestão financeira e orçamentária, com impactos gerais para os outros entes da Federação.

Outro exemplo é a decisão cautelar monocrática na ADPF 663, relatada pelo Min. Alexandre de Moraes, proposta pelo Presidente da República, sobre alteração do rito de edição e análise das Medidas Provisórias. As principais mudanças foram (i) a dispensa de análise das MPs por Comissão Mista, podendo ser analisada direto no Plenário das Casas Legislativas e (ii) a diminuição do prazo de análise das MPs, conforme o sistema de deliberação remoto da Câmara e do Senado.

A Câmara e o Senado rapidamente publicaram o Ato Conjunto nº 01/2020, com a alteração da tramitação das medidas provisórias. Isso fez com que as MPs possam então ser analisadas diretamente no Plenário das Casas e com diminuição de prazo de validade de 120 para 14 dias. Os efeitos dessas medidas ainda estão em análise, mas, como apontam Dimitri Dimoulis e Taís Penteado, não parecem nada promissores.

Contudo, esses aspectos do rito – a apreciação da MP por Comissão mista e o prazo – são temas constitucionais. Não estão ao dispor nem do STF, da Câmara e do Senado por simples ato conjunto; só podem ser alterados por Emenda à Constituição. Por sua vez, o ato conjunto das Casas Legislativas só poderia alterar o que não é disciplinado pela Constituição. Ao legitimar um ato conjunto das Casas Legislativas que altere matéria constitucional, o Supremo viola a Constituição.

Esses exemplos ilustram como parece existir uma permanência no modo de atuação e resposta do STF mesmo diante dos novos desafios que lhe são apresentados pelo cenário de pandemia que vivemos.

O que se pode ver com todos esses exemplos – de mudanças e permanências – é que o Supremo tem sido chamado a contribuir com respostas céleres e substantivas. Os temas e os casos aqui abordados mostram uma atuação do Supremo com lampejos de mudança. Sua forma de atuação, todavia, parece ter mudado muito pouco. E esse modo de atuação não apenas tem sido sentido, como tem gerado ruído na relação com os outros Poderes e entes da Federação.

Por outro lado, seu avanço no tema do federalismo parece ser bem-vindo. Mas ainda está pendente de uma justificação mais densa que explique sua virada jurisprudencial que concentra(va) competências na União, além de outros temas que precisão ser revistos, tais como o nebuloso critério da preponderância dos interesses e ainda enfrentar proposições que vêm sendo feitas sobre como lidar com leis multitemáticas e que trazem consigo aparente conflito de competências, como as que há tempos vêm defendendo, por exemplo, os ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski, com formas mais arrojadas e critérios mais rigorosos sobre a repartição de competências.

Esperamos que esse período de pandemia promova um avanço, em forma e conteúdo, e não que o novo normal seja um retorno ao passado.

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[1] RE 194.704, RE 730.721, Votos-vista na ADI 3.165 e ADI 3.356, são alguns exemplos entre outros existentes.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
JOSÉ ARTHUR DE CASTILLO MACEDO – professor de Direito do IFPR, campus Colombo (PR), doutor em direito pela UFPR, pesquisador do Centro de Estudos da Constituição (CeCons) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, advogado integrante da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/as-decisoes-do-stf-durante-e-apos-a-pandemia-nada-sera-como-antes-18052020

A Constituição têxtil

A Constituição têxtil

Respostas dos poderes instituídos mostram que maleabilidade do tecido constitucional foi abusada

Por MELINA GIRARDI FACHIN e RODRIGO LUÍS KANAYAMA

A Constituição é um tecido normativo, econômico, político e social complexo. Para que fibras e fios cumpram a sua vocação há necessidade de que a trama constitucional se adapte à dinâmica social e histórica. Assim, a Constituição estabelece um sistema normativo de emenda para, ao mesmo tempo que permanecer, mudar.

Pouco depois de seu 30º aniversário, a Constituição brasileira superou uma centena de emendas, taxa consideravelmente alta que merece ser pensada. Nosso tecido constitucional, por um abuso das mudanças, tornou a Constituição de 1988 uma colcha de retalhos, parafraseando Eros Grau [1].

Mas, mesmo diante dos desafios, a textura constitucional, ainda que esgarçada, mantém seus fios e fibras urdidos. É um tecido flexível, que suporta intempéries – e assim deve ser, para isto foi feita. É furta-cor, de diversas tonalidades. É permeável a novas realidades, ao desenvolvimento da sociedade.

Temos instruções gerais de preservação do nosso tecido constitucional. Rigidez e formalidade, restringindo o poder de emendar, para proteger as cláusulas pétreas consagradas na Constituição contra o efeito perigoso das maiorias oportunistas.

Todavia, em sua etiqueta não existem informações precisas de lavagem e conservação. Não se recomenda torcer, repuxar com força, ou esquecê-la sob a sombra de mudanças constitucionais contingentes.

Repuxando-a, vem o risco à flexibilidade. E esgarça-se o tecido constitucional. Se, diante da elevada taxa de mudanças formais na Constituição e da complexidade da nossa conjuntura política, a costura já mostrava sinais, em tempos excepcionais como estes da pandemia, ficamos com a sensação de que não haverá pano suficiente para agasalhar nossas inquietações.

A premissa da qual sempre devemos partir é a de que medidas que visem à diminuição do impacto do vírus estejam, sempre, em consonância com o Estado de Direito, com a Constituição, para evitar que a crise – que se espera temporária, ainda que não se saiba por quanto tempo – não se perpetue como exceção permanente – esse é o temor de Heloísa Fernandes Câmara e Egon Bockmann Moreira, em artigo publicado no JOTA.[2]

A pandemia é hiperpotencializadora das complexidades constitucionais antes já vividas, e o vírus torna a trama mais esfarrapada. Embora pareça que estamos encarando, no Brasil, uma situação de aparente normalidade institucional, o tecido constitucional foi remendado, esticado e remodelado, mas ainda parece incólume, sem buracos, sem rasgos. Se olharmos de perto, todavia, veremos seu esgarçamento e chegaremos à conclusão de que, de tanto repuxar, é roto. Esperamos que seus rasgos possam ser costurados novamente.

Quando o presidente da República testa, diariamente, os limites constitucionais, está a esticar por demais o pano da Constituição. Provocar rasgos – alguns pequenos, outros enormes – no tecido, estendendo até o ponto em que é possível que venha, rápida e instantaneamente, a total destruição do material têxtil.

Toda manhã, ao sair do Palácio da Alvorada, o presidente ofende a liberdade de imprensa e, paulatinamente, sobe o tom até o “cale a boca”. Defende, regularmente, o golpe de 1964 e desfila com seus apoiadores defensores do AI-5. Ele estica o tecido constitucional ao limite de surgirem fendas com rompimento de fios e fibras constitucionais.

Simetricamente, os demais poderes são atraídos na dinâmica de elastecimento e também, ocasionalmente, corroboram com o esfarrapar nosso tecido. A exceção perpetuada nos excessos e abusos executivos contamina o funcionamento do Judiciário e do Legislativo em comportamentos que, ao invés de coser, esgarçam ainda mais nosso tecido constitucional.

No ano do 20º aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Supremo Tribunal Federal a suspendeu parcialmente (“deu interpretação conforme”) – inovando com modalidade sem precedentes constitucionais de (algo como) inconstitucionalidade conjuntural[3]

O Congresso Nacional acompanha passivo, salvo pelas notas de repúdio e pelos tuítes oficiais. Poucos parecem estar preocupados com a incolumidade da Constituição têxtil, cada dia mais puída, esfarrapada e abandonada ao léu. Não há mais o alfaiate, aquele que cirze a nossa Constituição.

Não se pode dizer pelo acima exposto que tudo funciona bem. A qualidade (ou ausência dela) das respostas exaradas pelos poderes instituídos neste contexto nos leva a pensar que a maleabilidade do tecido constitucional foi abusada e que os rasgos já não serão de remendo tão fácil – se é que ainda é possível tal costura; ainda mais tendo em vista o pano nobre que faz a matéria constitucional.

Será um longo e árduo trabalho para suturar nossa Constituição têxtil, se isto ainda for possível. Não a reconstruiremos tão depressa, mas será nosso papel reparar as rasgaduras com retalhos que nem sempre serão da mesma cor, do mesmo tamanho ou da mesma textura. Afinal, após tantas torções e puxões, pouco poderá ser feito para restituí-la ao estado que sonhamos.


[1] Entrevista do Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal no Estado de S. Paulo, em 23 de setembro de 2018, disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,emendas-transformam-constituicao-numa-colcha-de-retalhos-diz-eros-grau,70002514715>.

[2] CÂMARA, Heloísa Fernandes. MOREIRA, Egon Bockmann. Entre exceções, estado de exceção e normalidade. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-excecoes-estado-de-excecao-e-normalidade-26042020>.

[3] STF. ADI 6351 MC, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 26/03/2020, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-076 DIVULG 27/03/2020 PUBLIC 30/03/2020.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-textil-18052020

Covid-19, direito à saúde e os 3Ds: diálogo, deferência e desastres

Covid-19, direito à saúde e os 3Ds: diálogo, deferência e desastres

Urgência de formulação de respostas para superar a crise, pelos Poderes Públicos, incluindo o Judiciário, é um desafio inédito

Por INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES e MELINA GIRARDI FACHIN

A preocupação mundial de conter a propagação da CODIV-19 é cada dia majorada ante ao elevado índice de transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 somado à incapacidade de organização do sistema de saúde para atendimento simultâneo dos infectados, especialmente das pessoas com quadro mais severo.

Ainda que o mantra entoado pelas agências de proteção internacional, em especial a OMS, e também pela maioria dos atores locais, seja de que cada indivíduo importa – coincidente com a máxima kantiana dos sujeitos considerados como um fim em si mesmo, dotados de direitos intrínsecos inalienáveis – é certo que não haverá – em alguns lugares já não há – recursos e estrutura médica e hospitalar para atender às pessoas infectadas.

Esse cenário catastrófico tem provocado, ao redor do mundo, escolhas trágicas diante de recursos escassos numa crise sanitária deste quilate. Na arena local, os mesmos dilemas se repetem: Médicas e médicos na linha de frente do enfrentamento da pandemia poderão sofrer alguma interferência externa em sua decisão sobre melhor tratamento ou sobre a destinação do ventilador pulmonar ou sobre qual paciente merecerá a vaga da UTI?; Em que condições o gestor público deve responder pela falta de estrutura, de serviços e equipamentos para o tratamento?; Quais informações técnicas – sobre a doença e os doentes – devem ser resguardadas e quais precisam necessariamente ser divulgadas, por serem de interesse público? Estes são apenas alguns dos questionamentos possíveis que desaguarão – ainda que não se adote aqui a ideia de última palavra – no Poder Judiciário.

A urgência de formulação de respostas para superar a crise da COVID-19, pelos Poderes Públicos, incluindo o Judiciário, é um desafio inédito. Ainda que não haja paralelo com o que se vive, há imensa familiaridade do mundo jurídico com lides sobre o direito à saúde, desde o acesso de cidadãos a medicamentos e à internação, passando pelas causas consumeristas envolvendo planos de saúde até lides empresariais e tributárias de instituições que lidam com insumos de saúde, que adquirem equipamentos ou erguem estruturas hospitalares. Sem falar em questões do SUS e de gestão da saúde pelos entes federativos, que vão de repasses de verbas à contratação de Organização Social para prestação de serviços.

A judicialização da saúde tem efeitos sistêmicos, que afetam outros direitos e a prestação de serviços essenciais. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública, presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, que resultou na fixação de critérios que devem ser necessariamente observados e considerados pelo Judiciário nas demandas de saúde.

Na ocasião, mais de 50 especialistas (entre juristas dos mais variados setores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde) abordaram a saúde de maneira holística, indo além do olhar estritamente jurídico.

O farto material acadêmico e técnico disponível (no site do STF) constitui um importante acervo e legado para pesquisa do direito, especialmente para juízes, em momentos como este que questões centrais sobre a gerência da saúde batem às portas do judiciário. As boas práticas dos atores do sistema de justiça que, em tempos de normalidade, garantem a fruição do direito à saúde, em casos de acesso a medicamento ou de acesso às unidades de saúde para internação, por exemplo, precisam ser adaptadas para a situação de pandemia.

As discussões sobre as limitações do julgador quando as questões levadas ao Judiciário envolvem conhecimento específico e discricionariedade técnica também é assunto recorrente no controle de políticas públicas e separação dos poderes. Em matéria de saúde, especificamente no inédito contexto causado pela crise da COVID-19, o princípio da deferência técnico-administrativo serve de diretriz, mas não para limitar a atuação do Judiciário.

É importante que no julgamento de questões sobre a efetividade do resguardo do direito à saúde haja “diálogo deferente” com as instâncias especializadas, tanto os gestores públicos como os profissionais da saúde, desde que estas valorações possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado.

Neste sentido, o sistema de justiça brasileiro já tem mecanismos que garantem o devido processo legal em situações que demandam respostas rápidas do judiciário, com a possibilidade de que as partes sejam ouvidas logo no início e até que encontrem uma solução consensual para a lide ou para alguns pedidos desta. Ao pensarmos na situação de falta de leitos de UTI ou na escolha do melhor tratamento, a incorporação das falas dos profissionais de saúde e dos gestores será fundamental.

A previsão ou realização de gastos é sempre tema delicado, que não confere, na maioria das vezes, espaço para que o gestor público proponha ou adira a uma rápida resolução da demanda. No entanto, a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública em face do novo coronavírus, no seu art.4º, admite a dispensa da licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência, prevendo, no §2º, que todas as contratações ou aquisições realizadas serão imediatamente disponibilizadas na internet, dando publicidade ao nome do contratado, o prazo contratual, o valor, dentre outras informações. Esse parágrafo faz menção à necessidade de observância do §3º do art.8º da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que apresenta os requisitos essenciais para que as informações e dados disponíveis na internet sejam considerados acessíveis.

Além disso, para situações não relacionadas na lei de emergência, Lei 13.979/2020, é válido ressaltar que o STF já considerou que há limites para a interferência do Judiciário, no exercício da judicial review, em políticas públicas e escolhas orçamentárias para sua implantação.

Na ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o entendimento do Tribunal foi de que o papel do judiciário deve ser “coordenador institucional”, produzindo um “efeito desbloqueador”. Neste julgado, o voto Relator destacava que caberia a intervenção do Judiciário nas políticas públicas de direitos sociais quando as autoridades estivessem “em estado de letargia”.

Todavia, os movimentos de deferência não significam restrição excessiva do Poder Judiciário, ainda mais em cenários em que retrocessos e ameaças a direitos e à democracia se somam à letargia. Não se pode aceitar que informações sobre repasses e aplicação de verbas para combate da doença, sobre leitos disponíveis, sobre contratação de pessoal e sobre as medidas de prevenção e tratamento das e dos profissionais de saúde, dentre outras, sejam tratadas como questões meramente técnico-administrativas, já que, nesse caso, o direito à informação é um direito que resguarda a população e permite que se corrijam injustiças, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis.

Para que haja o diálogo deferente do Poder Judiciário com as instâncias especializadas, são necessários pré-requisitos e condições, sendo o acesso à informação a pedra fundamental para que qualquer deferência se estabeleça. Nesta perspectiva, o direito de acesso à informação sobre a pandemia e as formas que os atores locais estão lidando com a crise sanitária resguarda a liberdade de imprensa e também os titulares de direitos fundamentais diversos, pois permite o conhecimento de monitoramento desses diálogos entre judiciário e corpo técnico-administrativo por setores da sociedade que não seriam chamados a integrar a lide.

A lei brasileira que trata do direito de acesso à informação (Lei 12.527/2011) dá suporte à compreensão coletiva da crise sanitária e ao exercício do direito à saúde, não apenas quando fornece elementos à previsão de transparência da lei de emergência para enfrentar o novo Coronavírus, mas também quando dispõe expressamente que não pode ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 21) e também que não pode haver qualquer impedimento ou restrição no acesso a informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas (art. 21, parágrafo único).

Assim, a garantia do direito à informação, a começar pela imprensa, pode contribuir para que as deficiências na aquisição de equipamentos e preparação de leitos de UTI no cenário brasileiro sejam corrigidas por medidas judiciais ou extrajudiciais, estas de iniciativa dos Ministérios Públicos e das Defensorias Públicas.

Além disso, o acesso livre à informação sobre as medidas de tratamento e condições médico-sanitárias pode servir para estampar as injustiças com grupos mais vulneráveis. Não é desarrazoado considerar que um grupo preterido no tratamento médico, seja pela faixa etária seja por falta de acesso a leitos do sistema privado, seja o mesmo grupo que não consegue ter acesso à justiça e obter uma decisão judicial a tempo de salvar sua vida.

Com os sistemas de saúde locais chegando ao colapso, ações coletivas já batem às portas do Judiciário para busca de garantia de um atendimento mais equânime, a partir da transparência na gestão dos recursos. Neste sentido, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM) ingressaram na Justiça Federal, com ação civil pública, dia 14 de abril, para garantir a transparência das informações relativas às medidas adotadas pelo governo estadual no enfrentamento da pandemia de COVID-19. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e a Defensoria Pública do Estado também ajuizaram, dia 17 de abril, ação civil pública para que o estado e o município do Rio desbloqueiem 155 leitos de Unidade de Tratamento Intensivo para pacientes com COVID-19.

A urgência das medidas, no entanto, exige respostas efetivas, que garantam os direitos de todos que esperam leitos de UTI ou que precisam de cuidados na prevenção para evitar desdobramentos mais graves. Tanto melhores serão as respostas quanto mais dialogadas e deferentes forem dentro do framework constitucional e internacional necessário para proteção do direito à saúde.

Além disso, é preciso que se dê uma inédita atenção às e aos profissionais de saúde que são contaminados pelo novo Coronavírus, com a previsão de possibilidade de obtenção de cuidados médicos e acesso prioritário aos equipamentos de saúde dentro da rede, pública ou privada, que os contratou.

Não tem sentido que profissionais de saúde infectados exatamente por estarem na linha de frente no combate à doença, que se encontrem com quadro de saúde em estado de média e alta gravidade, tenham as portas de hospitais fechadas para socorrê-los. Aqui, certamente, o diálogo deferente terá de abandonar os sólidos conceitos que regem as relações cidadãos-planos de saúde ou cidadãos-SUS e buscar subsídios na doutrina no princípio da precaução e nos pilares do Direito dos Desastres, já que a pandemia do novo Coronavírus se enquadra na categoria de desastre biológico, como bem alertou recentemente o jurista Délton Winter.

Nesse sentido, ao lançar mão dos fundamentos do chamado “direito dos desastres” para atenção aos profissionais que estão na linha de frente no combate à COVID-19, impõe-se que os gestores gerenciem o risco em todas as etapas, desde o fornecimento dos EPIs, passando pela testagem constante desse grupo até o pronto atendimento das pessoas infectadas.

Ao mesmo tempo, a gestão dos riscos, que continua a ser tarefa precípua do Poder Público, exige um trabalho em rede, com horizontalidade dos atores públicos e privados e da sociedade civil na realização das ações, no arranjo institucional que Fernanda Damacena define como governança dos desastres: “a governança fornece, por meio de redes de colaboração entre diversas entidades, uma forma de lidar com essas novas questões sociais”.

Ainda que mortes sejam inevitáveis no contexto de crise sanitária, o discurso de proteção dos indivíduos tem que ser de que cada vida importa. Isto aliado às políticas de contenção de riscos, especialmente de distanciamento social e de fornecimento de equipamentos de proteção para os que estão expostos, reforça o discurso de segurança na proteção dos direitos humanos. Este discurso será mais robusto se entoado de maneira dialogada e deferente entre os diversos atores institucionais, de quem a sociedade espera a condução responsável, solidária e democrática da pandemia.

Se a realidade dá claros sinais para o indizível, para a frustração coletiva de saber que as ações empreendidas com eficiência dificilmente serão suficientes para salvar todas as vidas, espera-se que o discurso dos atores públicos seja uníssono no sentido da proteção integral e não da barganha de vidas que importam mais ou menos.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3ª Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .

 

Texto originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/covid-19-direito-a-saude-e-os-3ds-dialogo-deferencia-e-desastres-28042020

Entre exceções, estado de exceção e normalidade

Entre exceções, estado de exceção e normalidade

O perigo da permanência do provisório

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA


A atual crise mundial tem trazido radicais desafios para o direito público, que podem ser assim sintetizados: o direito normal, aquele que aplicamos no nosso cotidiano, consegue debelar as demandas excepcionais decorrentes da pandemia? Em caso negativo, quais seriam os métodos de solução dos problemas? Eles já existem?

A formulação de tais problemas nos obriga a avaliar a maneira como o direito, em especial o público, lida com a excepcionalidade.

A relação entre direito e exceção não é nova, tendo surgido justamente no processo de consolidação do Estado de Direito. Antes da existência de um sistema jurídico impessoal e previsível, quaisquer demandas eram resolvidas pelo soberano através da razão de estado. Quando quisesse, se desejasse e da forma que melhor lhe aprouvesse. Logo, na ausência de regras predefinidas, a exceção não se põe.

Dito de outra forma, é somente quando há norma jurídica predefinida e estável que passa a haver a exceção. Sem o direito público, não há exceções a ele. O constitucionalismo tem como grande desafio pensar os termos em que situações de absoluta gravidade podem ser resolvidas. Cenários os quais, no limite, colocassem em risco a própria constituição.

Tomemos o exemplo da tradição francesa do estado de sítio. Aqui, a lógica é a de que é fundamental o estabelecimento a priori de hipóteses, condições e direitos que poderiam ser suspensos. Tais casos e soluções seriam taxativos. O raciocínio é o de que, em situações graves, não se consegue ter clareza para debater em profundidade e esse fato poderia levar a riscos de abusos contra o próprio direito.

Os mecanismos excepcionais seriam espécie de contrafogo jurídico: queima-se, de forma controlada, a área em rota de um incêndio incontrolável para evitar que ele continue sua trajetória destrutiva.

A premissa central nessa técnica de mecanismos excepcionais é a demarcação entre um momento normal e um excepcional. Há uma linha, às vezes tênue, mas preconcebida. O que é muito importante para definir, inclusive, o término da exceção, quando a situação retornaria aos termos e normas ex ante.

O constitucionalismo disporia de instrumentos provisórios, de suspensão de normalidade e instalação de soluções que se auto-extinguiriam quando do final da anormalidade. Encerrado o cenário factual que impõe a medida de exceção, teriam fim a causa e o nexo causal autorizador de sua aplicação. Apagado o incêndio, não há lugar para o contrafogo. Esse é o modelo ideal.

Entretanto, a história mostra a tendência de que mecanismos excepcionais permaneçam durante largo período, inclusive incorporando-se aos instrumentos ditos normais. Coloca-se fim ao fogo com gasolina. Exemplo mais eloquente e radical foram as permissões pós 11 de setembro ao uso de técnicas de tortura, flexibilização de direitos fundamentais e utilização de Guantánamo como prisão. Muito embora refutados, tal ordem de mecanismos e suas variações persistem em grande número de países ocidentais.

A permanência do excepcional, seja na forma de mecanismos jurídicos excepcionais, seja em ameaças fluidas e permanentes, tem levado ao que alguns autores chamam de “estado de exceção permanente”.

Nestes casos, os riscos seriam tão difusos quanto reais e contínuos, como pandemias, crises econômicas de grave proporção e grupos criminais transnacionais. Constatação que torna praticamente impossível separar a normalidade da exceção, pois esta sobrevive virtualmente em todos os momentos, em ciclos de retroalimentação e multiplicação. O ordenamento jurídico estaria permeado entre o direito normal e o excepcional, a exceção a conviver ordinariamente com a regra.

Pois bem, o que a atual pandemia nos tem demonstrado de forma categórica é a inaplicação dos mecanismos excepcionais. Exemplo são os debates no direito brasileiro: ao mesmo tempo em que há consenso da necessidade de medidas específicas na esfera do direito constitucional e administrativo, não há qualquer menção séria ao uso do estado de defesa ou do estado de sítio (mesmo porque estes mecanismos não fornecem nenhum instrumento útil para a atual situação).

A emergência sanitária demanda respostas distintas daquelas próprias a crises políticas e jurídicas, de forma que mesmo os instrumentos excepcionais são incapazes de fornecer diretrizes úteis (além do risco de uso para supressão das liberdades).

Não é adequado falar-se – e espera-se que assim se persista – de exceção ao direito público. A pandemia vem sendo debelada por meio de instrumentos jurídicos. Bons ou maus, novos ou velhos, patéticos ou nobres, certos ou errados, tanto faz – ainda assim, afirmam respeitar o Estado de Direito. Têm por base as normas postas e o respeito à permanência da constituição.

O exemplo da lei 13.979/2020 é significativo. Ela tem vigência temporária enquanto durar a pandemia e estabelece medidas como o isolamento. Parametriza as ações executivas a evidências científicas e boas práticas protetivas internacionais.

Entretanto, tampouco fornece quadro mais amplo de mecanismos jurídicos aptos a lidar com a situação (o que se complica, pois não há expectativa temporal do término da anormalidade). Caso se confirme a necessidade de isolamento parcial até que haja vacina, podemos estar falando de anos.

A situação é delicada e estamos tateando à procura de soluções no ambiente constitucional. Mas, como num antigo provérbio, “é muito difícil achar um gato preto num quatro escuro – especialmente quando não há nenhum gato.” Se não houver sensatez, podemos ser conduzidos a terras de ninguém, em que se conjugam ausência de instrumentos jurídicos com a possibilidade de permanência indefinida da situação.

À ausência de parâmetros jurídicos excepcionais aplicáveis somam-se as incertezas provenientes de conflitos federativos e “declarações governamentais de Schrödinger”: que corroboram e, simultaneamente, minimizam a crise e as medidas adotadas. Essa constância inconstante inibe as respostas jurídicas, pois delas se espera o enfrentamento do desafio da permanência e provisoriedade.

O importante está em medidas jurídicas capazes de diminuir o impacto da pandemia, mas, ao mesmo tempo, democráticas e coerentes – para que possam perdurar só enquanto durar a crise, sem risco de ameaça ao estado constitucional. Pactos fáusticos, fora da constituição, devem ser refutados de plano, a fim de que a crise temporária não engendre a exceção permanente.

As respostas não estão prontas, mas demandam construção coerente para, quem sabe, encontrar o inexistente gato preto no quarto escuro. O direito público excepcional fornece instrumentos jurídicos hábeis à construção de perguntas adequadas. Mas exige que a urgência por respostas não oblitere o fato de que as soluções dadas neste momento têm enorme potencial de permanecer muito tempo no horizonte.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Quando se fala em direitos fundamentais, também se fala de deveres públicos

Por VERA KARAM DE CHUEIRI e EGON BOCKMANN MOREIRA 

A África do Sul é um país lindo, com maravilhosa história de superação que vem sendo construída há décadas. Dá importantes exemplos ao mundo, inclusive em sua Constituição e na experiência de sua Suprema Corte. Mas, existe também uma experiência que vem de lá quanto ao papel reservado aos governantes frente a questões de saúde pública.

Em 2006, ao depor em um processo em que era acusado de estupro, o futuro presidente da África do Sul, Jacob Zuma, afirmou que o sexo teria sido consensual. E foi além: disse que sabia que a mulher era HIV positiva, mas que depois havia tomado uma ducha para evitar o contágio. Para ele, guerreiro Zulu, bastaria uma ducha para reduzir o risco de infecção – por isso, não havia usado preservativo. Para além do estupro, isso foi estarrecedor.

À época, a África do Sul tinha o maior número de pessoas com HIV do globo – e a manifestação desse homem público de suma importância nacional foi repudiada mundialmente, por médicos e educadores de práticas preventivas contra a irresponsabilidade na contaminação. Posteriormente eleito presidente, Zuma voltou atrás e defendeu o uso de preservativos em campanhas públicas.

Seres humanos que são, Zulus podem contrair doenças sexualmente transmissíveis. O mesmo se diga de outras doenças virais, que também outros grupos étnicos de porte atlético, podem contrair. Os vírus não escolhem seus destinatários, mas são escolhidos por quem quer que faça determinado contato permitindo a sua entrada. Daí o movimento acertado do então presidente da África do Sul em reconhecer a necessidade do uso de preservativos para coibir a propagação de doenças sexualmente transmissíveis.

A falsificação da realidade coloca em risco a vida das pessoas. Nenhum guerreiro, Zulu ou não, é imune por natureza ao vírus do HIV. Nenhum banho remove o vírus do HIV. Assim como nenhum medicamento cuja toxidade é desconhecida e cujos testes não foram feitos em sua integralidade, pode significar a cura de doenças fatais – como a experiência brasileira nos faz saber.

Saltando da África do Sul para o Brasil, rememoremos o caso da “pílula do câncer”: a fosfoetanolamina, substância que, desenvolvida em laboratório universitário da USP, foi objeto de milhares de ações judiciais que pretendiam obter o medicamento para a cura de pacientes terminais.

Todavia, a agência reguladora setorial – ANVISA – não reconheceu tal substância como medicamento, o que impedia sua produção e venda. O produto não havia passado pelos protocolos internacionais e não poderia ser reconhecido e comercializado.  Nesse turbilhão, o Congresso Nacional editou a Lei 4.639/2016, que autorizava a produção e comercialização da “pílula do câncer”.

A lei foi sancionada pela Presidente da República e, imediatamente em seguida, objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.501). O voto do relator, Min. Marco Aurélio, consignou que a Lei 4.639/2016 violava o art. 196 da Constituição, que preceitua ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. A lei era inconstitucional.

Afinal, consigna o voto do Min. Marco Aurélio: “Ao dever de fornecer medicamentos à população contrapõe-se a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, ou seja, a atuação proibitiva do Poder Público, no sentido de impedir o acesso a determinadas substâncias.”

E, mais adiante: “O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano. […] O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde.”

Vejam quão revelador é esse voto, sob dois aspectos. O primeiro, ao definir que direitos fundamentais – como o importantíssimo direito à saúde – não podem ser submetidos a desvarios insensatos, mas se submetem a requisitos mínimos de boas práticas e técnicas segundo protocolos internacionalmente aceitos. O segundo, ao revelar que o direito à saúde exige que o Estado proíba ações que potencialmente possam atentar contra o bem-estar das pessoas (individual ou coletivamente).

Tal voto foi acompanhado pela maioria do Pleno do STF, fazendo com que a ratio decidendi do acórdão proferido na AD 5.501 seja de obrigatório cumprimento pela Justiça brasileira. Isto é, as políticas se saúde pública devem respeito a um mínimo de requisitos técnicos, estampados em protocolos internacionais. Se houver dúvidas ou incertezas, se necessita precaver e proteger – jamais inovar e correr o risco de implementar tragédias.

Não nos esqueçamos de que os protocolos de saúde manejam vida e morte. O controle do Estado sobre aqueles é orientado pelo dever de proteção e cuidado. É isto que se reflete na decisão do STF acerca da inconstitucionalidade da lei da “pílula do câncer” e que precisa orientar as escolhas públicas.

Logo, o que a África do Sul e o STF têm em comum? A experiência daquele país, que brindou a humanidade com pessoas da envergadura de Nelson Mandela, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, revela que nossas crenças precisam ser deixadas de lado em momentos decisivos e que a responsabilidade só aumenta em razão do cargo ocupado. Já, o nosso STF, ensina que o Estado não deve deixar “em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população” (excerto do voto do Min. Marco Aurélio).

Todo processo de aprendizado é custoso; o que é  admissível – afinal, ninguém nasce sabendo, diz o senso comum. Demanda a realização de tarefas: diárias, difíceis e desafiadoras. Exige a superação. O ato do ex-presidente sul-africano Jacob Zuma e a decisão do STF servem a esse propósito pedagógico, com o qual sabemos que os protocolos de saúde devem ser obedecidos. Aprendamos com ambos.

VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/saude-publica-o-que-a-africa-do-sul-e-o-stf-podem-nos-ensinar-10042020

Coronavírus e a ampliação do Plenário Virtual do STF

Coronavírus e a ampliação do Plenário Virtual do STF

Decisão reforça tendência do Tribunal em privilegiar a atuação individual e individualista dos ministros?

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

 

Impulsionado pela pandemia do coronovírus, o Supremo Tribunal Federal modificou, novamente, seu regimento interno para ampliar as hipóteses de julgamento pelo Plenário Virtual. A partir de agora, “a critério do relator, “todos os processos de competência do tribunal poderão ser julgados em ambiente eletrônico (conforme nova redação do art. 21-B).

Essa ampliação, todavia, não foi unânime. Ficou vencido o ministro Marco Aurélio Mello, que tem insistido nos déficits deliberativos que o modo de uso do Plenário Virtual causa aos julgamentos do Supremo.

O tema não é novo, mas vem se renovando. Há menos de um ano, em julho de 2019, também com a resistência do ministro Marco Aurélio, o STF já havia dado um passo largo rumo à expansão do Plenário Virtual. Nessa oportunidade, acresceu ao regimento o art. 21-B, autorizando o julgamento virtual de (i) medidas cautelares no controle concentrado, (ii) de medidas cautelares e tutelas provisórias; e (iii) de mérito das demais classes processuais, quando houver “jurisprudência dominante no âmbito do STF”.

Desta vez, em sessão administrativa excepcionalmente transmitida pela TV Justiça, o STF foi mais longe: reescreveu o dispositivo para liberar o Plenário Virtual para julgar todo e qualquer processo sob sua alçada, havendo ou não jurisprudência pacificada.

Além disso, o STF decidiu realizar sessões presenciais de quinze em quinze dias e concentrar no ambiente virtual a sustentação oral das partes. E, por fim, com a publicação da Resolução 672 nesta sexta-feira, regulamentou o uso de videoconferência nas sessões de julgamento presencial do Plenário e das Turmas.

As novidades já repercutem, seja sobre o exercício da ampla defesa e do contraditório das partes, seja sobre a qualidade da deliberação entre os ministros.

Tão logo aprovada a emenda regimental, ainda em plenário, os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes indicaram que processos até então inclusos na pauta para julgamento presencial desde o mês de dezembro de 2019 seriam de pronto submetidos ao Plenário Virtual.

E assim aconteceu, por exemplo, com a ADPF 528 e com a ADI 5.441. Ocorre, no entanto, que essas ações já haviam sido incluídas para julgamento no Plenário Virtual, mas, após requerimento justificado das partes, foram transferidas para julgamento em sessão presencial. Porém, assim que o Supremo ampliou o Plenário Virtual para todos os processos, a ADPF 528 e a ADI 5.441 voltaram a ser inseridas no Plenário Virtual, mas sem que qualquer justificativa fosse dada para tal decisão. A decisão de reinclusão dessas ações no Plenário Virtual sem qualquer fundamento viola a obrigatoriedade de fundamentação das decisões, conforme exigem a Constituição e o Código de Processo Civil. A ampliação da alçada do Plenário Virtual não traz consigo a dispensa geral de justificar toda e qualquer transferência do plenário físico.

Sem facultar a prévia manifestação dos interessados, matérias constitucionais que saíram do Plenário Virtual e foram realocadas para decisão em sessão presencial foram, todavia, inseridas na pauta virtual já para o mês de abril. E sem qualquer justificativa para isso.

A Presidência do Supremo justificou a mudança pela “necessidade de adequação de todas as instituições, inclusive do Supremo Tribunal Federal, ao momento crítico por que passa todo o mundo. A redução das sessões presenciais como medida de enfrentamento à pandemia do covid-19 foi endossada praticamente à unanimidade dos ministros.

Entretanto, chamado pelo Conselho Federal da OAB a esclarecer e registrar na redação da emenda a natureza excepcional e transitória da redução dos julgamentos presenciais e da concentração da sustentação oral no ambiente eletrônico, a Corte silenciou-se. Nada na nova redação regimental indica a transitoriedade dessas mudanças.

Em uma espécie de obter dictum, o ministro Luís Roberto Barroso e a ministra Rosa Weber afirmaram que, superada a pandemia, não haveria obstáculo à rediscussão do retorno à frequência semanal das sessões presenciais. Entretanto, o histórico do STF está longe de sugerir que mais essa ampliação substancial do plenário virtual em detrimento do plenário físico  será temporária.

Como apontado em recente discussão no podcast do JOTA (Sem Precedentes), o STF já estudava expandir os limites do Plenário Virtual antes da pandemia do covid-19 exigir a adoção de medidas que, ao mesmo tempo em que mantivessem as pessoas em segurança, viabilizassem o funcionamento das instituições.

Não se trata aqui de colocar em xeque a gravidade da situação, que enseja, sim, a minimização da exposição de ministros, servidores e advogados. A discussão é sobre o ajuste fino entre esse fim e os meios concretamente adotados.

A ampliação do Plenário Virtual e o seu modo de uso impactam na deliberação entre os Ministros e no exercício da ampla defesa e do contraditório.

A decisão na ADPF 528 ou na ADI 5.441, tomada com base no funcionamento alargado do Plenário Virtual, e sem qualquer fundamentação, parece não apenas evidenciar o tribunal de solistas que o STF é, mas que também faz força para ser.

A pandemia do coronavírus parece ter sido apenas o álibi que faltava para o STF expandir de vez o Plenário Virtual, mas sem considerar modos de utilizá-lo que sejam mais adequados do que as operações binárias que têm caracterizado essas decisões. E que em nada se parecem com o julgamento deliberativo e colegiado que deveria prevalecer no Supremo, ainda que em ambiente virtual.

A ampliação do Plenário Virtual para “todos os processos de competência do tribunal” reforça a tendência do Tribunal em insistir em mecanismos decisórios e decisões que, em nome da rapidez, privilegiam a atuação individual e individualista dos ministros. Mais do que isso, representa a aposta do STF em apresentar o Plenário Virtual como a única solução possível de seus gargalos, ignorando diversas alternativas possíveis, a exemplo de um uso mais engajado e deliberativo da ferramenta, ou mesmo uma reformulação das competências do STF diante do conhecido “risco de estrangulamento da máquina judiciária”, como já afirmava o ministro Sepúlveda Pertence no longínquo ano de 1993.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/coronavirus-e-a-ampliacao-do-plenario-virtual-do-stf-27032020

A delação de Sérgio Cabral e o STF

A delação de Sérgio Cabral e o STF

Supremo deve voltar a analisar atribuição da polícia para celebrar acordos de colaboração premiada

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MAURICIO STEGEMANN DIETER

 

1 – A delação premiada de Sérgio Cabral

No dia 06 de fevereiro, o ministro Luiz Edson Fachin homologou a delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral – negociada diretamente com a Polícia Federal, e ainda sob sigilo. Segundo a imprensa, Cabral teria se comprometido a devolver 380 milhões recebidos como propina, além de incriminar deputados, conselheiros de Tribunal de Contas e ministros do STJ, entre outros agentes públicos relevantes.

Mas, se as revelações de Cabral são realmente tão devastadoras, o que explica o desinteresse do Ministério Público em negociar essa delação?

Com um longo tempo de prisão pela frente e cada vez menos patrimônio, Sérgio Cabral provavelmente estaria disposto a dizer o que as autoridades queriam ouvir. Além disso, Cabral é apontado como o líder de organização criminosa. Um acordo de delação feito por um líder já capturado pode resultar num processo com nenhuma ou pouca evidência adicional em relação aos delitos e às pessoas que promete entregar; afinal, Cabral seria o topo dessa cadeia.

Os dois elementos podem despertar ceticismo junto às autoridades que negociariam a delação. Aqui, porém, há uma diferença relevante entre os incentivos da polícia federal e os do MP.

Para a polícia, o ônus envolvido em uma delação “fraca” é bem menor: ao celebrar o acordo, a Polícia já anuncia sua atuação como grande conquista, mas deixa para o Ministério Público a pressão de processar outros réus sem as melhores evidências e provas.

Se realmente for esse o caso, é grande o risco de repetição dos problemas da delação premiada de Antônio Palocci, que, até agora, tem sido incapaz de dar substância às suas graves denúncias, o que, por sua vez, tem provocado mal-estar no Ministério Público e ruídos na relação institucional com a Polícia Federal.

Não é de se estranhar, portanto, que a delação mal tenha sido homologada e já esteja sendo contestada pelo Procurador-Geral da República. Não será fácil, contudo, reverter a decisão do ministro Fachin.

Entre tantos aspectos que merecem atenção, gostaríamos de chamar a atenção para um aspecto jurídico controverso, sobre o qual o STF já se debruçou e que, provavelmente, terá de encarar novamente: a atribuição da polícia para celebrar acordos de colaboração premiada.

2 – O conflito entre MP e Polícia

A possibilidade de a polícia celebrar acordos de delação premiada foi incluída na chamada “Lei das Organizações Criminosas”. Esse ponto foi impugnado pela Procuradoria Geral da República na ADI 5.508, que entende que apenas ao Ministério Público caberia negociar tais acordos. Em junho de 2018 o Supremo decidiu pela constitucionalidade da lei.

A decisão do STF, contudo, distancia-se da lógica acusatória do sistema penal brasileiro.

A questão não se limita ao campo político da disputa de poder, e diz respeito à extensão de competência constitucional. O Ministério Público é o titular da ação penal pública e, formalmente, está obrigado a propô-la uma vez presentes seus pressupostos. Nesse cenário, qualquer mitigação dessa regra de indisponibilidade pode se dirigir apenas ao MP. Vale dizer, se é dever dos membros do MP oferecer denúncia quando presentes suas condições, qualquer relativização dessa determinação deve passar exclusivamente pelas partes envolvidas – Ministério Público e defesa – não se estendendo a outros agentes, como a polícia judiciária, limitada que está à fase investigativa.

Polícia não é parte, e, portanto, não pode negociar o início ou o fim de um processo que sempre lhe será estranho, sob pena de invasão de competência.

Não é por outro motivo que institutos semelhantes, como a transação penal, a suspensão condicional do processo ou o acordo de não persecução penal, apenas podem ser manejados pelo Ministério Público e, inclusive, à revelia das vítimas, sequer cogitando-se a participação da autoridade policial.

À polícia cabe a importante missão de investigar para, ao final, permitir (ou não) que Ministério Público, sobre evidências concretas, apresente uma narrativa incriminatória estruturada sobre a certeza da materialidade do tipo de injusto e indícios convincentes de autoria, acompanhada de todos os elementos que permitam a devida contextualização do fato típico. Qualquer atuação da polícia com impacto na acusação futura deve, assim, se dar em favor ou em conjunto com o Ministério Público, mas nunca de forma paralela.

Se um investiga e outro acusa, então o acordo para redução de pena aplicada ou executada em troca da incriminação de terceiros pode até aproveitar as informações coletadas em inquérito, mas a delação será sempre conduzida pelo Ministério Público, submetendo-se a posterior controle judicial no ato de homologação, decisão complexa que exige, entre outros elementos, rigoroso exame de legalidade.

Nesse sentido, o STF errou.

3 – A decisão do STF

O julgamento do Supremo foi marcado por divergências. O ministro relator Marco Aurélio Mello foi seguido pela maioria – Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Para eles, a polícia pode sim celebrar o acordo de delação premiada e estabelecer benefícios, mesmo sem anuência do MP.

O ministro Dias Toffoli aderiu à tese de que a polícia pode negociar acordos, mesmo sem concordância do MP, mas negou-lhe a possibilidade de fixar os benefícios, limitando-se a sugeri-los.

Os ministros Luiz Fux e Rosa Weber adotaram uma posição mais próxima do princípio acusatório: se por um lado facultaram à polícia a iniciativa para costurar delações, por outro subordinaram a concretização do acordo à anuência do Ministério Público.

O ministro Luiz Edson Fachin, em posição solitária, foi o único a votar pela total impossibilidade de a polícia produzir delatores.

Em síntese, o consenso majoritário do Supremo Tribunal Federal, liderado pelo voto do relator, ministro Marco Aurélio, é o de que polícia também pode celebrar de acordos de delação em função da natureza jurídica do instituto. Tratando-se de mero meio de obtenção de prova – já que a prova está condicionada ao contraditório, ausente no momento de negociação da delação – não há problema em incluir essa ferramenta no arsenal policial para aprofundar a investigação de crimes e facilitar a identificação de suspeitos, especialmente em relação a supostas organizações criminosas. Assim, a polícia pode celebrar acordos e combinar punições com o indiciado, desde que a delação seja devidamente homologada pelo magistrado competente – que com as recentes alterações do Código de Processo Penal passa a ser o juiz de garantias – após ouvido o Ministério Público, que segue responsável pelo controle externo da atividade policial.

Além de abrir perigoso precedente sobre o alcance e mitigação da atribuição do Ministério Público, a decisão do STF pode criar maus incentivos: coloca em tensão direta duas instituições que deveriam trabalhar em sintonia na investigação. Não à toa, motivada pelo entendimento da Corte, a polícia passou a celebrar delações que antes eram rejeitados pelo Ministério Público.

O acordo entre a polícia e o ex-governador Sérgio Cabral, por sua notoriedade, apenas aprofunda a controvérsia jurídica e a disputa institucional entre polícia e MP.

4 – Outras controvérsias que a delação de Sérgio Cabral pode trazer

As notícias da delação de Sérgio Cabral também trazem à reflexão outras questões, que tangenciam o problema da identidade da autoridade pública responsável por sua negociação.

Primeiro, como a polícia pôde celebrar acordo com o ex-governador depois de sua condenação? Pela lei, ao delegado cabe manifestar-se sobre a delação nos autos do inquérito, a essa altura já incorporado definitivamente ao processo.

Segundo, como é possível oferecer acordo para alguém que foi reiteradamente apontado como líder da organização criminosa investigada pela Força Tarefa? A Lei 12.850/2013 tem por finalidade motivar os escalões inferiores a incriminarem seus superiores, e não premiar o oportunismo dos que estão no topo da pirâmide.

A depender das respostas a essas duas perguntas, o acordo poderia, eventualmente, ser invalidado. O risco existe, ainda que nos últimos anos o Poder Judiciário brasileiro tenha demonstrado complacência com delações juridicamente problemáticas, admitindo inclusive a revisão de declarações de delatores demonstradas falsas no curso do processo.

Não é a toa que, no final de dezembro do ano passado, o ministro Gilmar Mendes cogitou a possibilidade de revisão do entendimento do STF sobre a possibilidade da polícia celebrar acordos de colaboração premiada. É um sintoma de que é preciso maior rigor no controle do instituto da colaboração premiada, e é provável que o STF seja em breve desafiado a rever sua posição colegiada sobre o tema.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
MAURICIO STEGEMANN DIETER – Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-delacao-de-sergio-cabral-e-o-stf-19022020

O coronavírus e seu projeto de lei com urgência constitucional

O coronavírus e seu projeto de lei com urgência constitucional

O recibo de uma disfuncionalidade criada pelos Três Poderes

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

Não importa quão relevante e urgente seja o caso, nem mesmo que se trate de uma epidemia como a do coronavírus. Hoje é mais conveniente ao Presidente da República enviar um projeto de lei com urgência constitucional do que editar Medida Provisória para resolver o problema.

Gustavo Bambini e Michel Kurdoglian Lutaif mostraram bem o contrassenso que é um projeto de lei ordinário tramitar mais rapidamente do que uma medida provisória. Basta conferir ao PL urgência constitucional. É a inversão completa das ferramentas legais previstas pela Constituição para lidar com temas que exigem respostas rápidas dos Poderes Executivo e Legislativo.

Essa parece ser uma disfuncionalidade resultante de decisões equivocadas não apenas do Executivo e do Legislativo, mas de todos os três Poderes. Cada um a seu modo se valendo de um consequencialismo irrefletido, como já apontou Fernando Leal.

Executivo, Legislativo e Judiciário não apenas falharam, mas falharam propositalmente – cada um com seu motivo próprio. E, assim, violaram as regras da Constituição.

Os Presidentes da República criaram a cultura de legislar por meio de edições excessivas de medidas provisórias.

O Congresso abriu mão de sua prerrogativa de fazer o controle rígido da relevância e urgência dessas superabundantes medidas provisórias editadas pelos Presidentes.

E o STF, que podia ter balizado o excesso do Executivo e o pouco caso do Legislativo, simplesmente deu carta branca ao Presidente e ainda liberou o Legislativo de seu encargo de controle ao destravar sua pauta.

Para entendermos como chegamos até aqui, onde um projeto de lei ordinária com urgência constitucional vale mais do que editar uma medida provisória, precisamos relembrar como foi a decisão do STF que consolidou esse processo legislativo disfuncional.

Em junho de 2017 o STF decidiu que o trancamento da pauta da Câmara dos Deputados em razão da não apreciação de medida provisória no prazo constitucional de 45 dias alcança apenas os projetos de lei passíveis de serem tratados por medida provisória. Esse entendimento foi fixado no encerramento do julgamento do Mandado de Segurança 27.931, de relatoria do ministro Celso de Mello.

O art. 62, §6º da Constituição dispõe que se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.

Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que deu interpretação conforme ao texto do art. 62, §6º da Constituição, ficam excluídos do bloqueio as propostas de emenda à Constituição e os projetos de lei complementar, de decreto legislativo, de resolução e, até mesmo, tratando-se de projetos de lei ordinária, aqueles que veiculem temas pré-excluídos do âmbito de incidência das medidas provisórias (art. 62, §1º, I, II e IV, CRFB).

Essa interpretação já vinha sendo adotada pelo Congresso Nacional desde 2009, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, definiu em questão de ordem que o trancamento da pauta estabelecido pela Constituição no art. 62, §6º se aplicaria apenas aos projetos de lei ordinária. Abriu-se, assim, caminho para que a Câmara pudesse voltar a tratar de outros temas que não aqueles versados nas medidas provisória editadas pelo Presidente da República.

Contra esse ato, um grupo de parlamentares impetrou mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal e argumentou que a Constituição estabeleceu expressamente o sobrestamento de todas as deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando a medida provisória.

Em dezembro de 2009 o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Mandado de Segurança 27.931. O ministro relator Celso de Mello, à época, indeferiu a segurança requerida sob o argumento de que a interpretação dada pelo então presidente da Câmara dos Deputados estabelecia um reequilíbrio na relação entre os Poderes, especialmente diante da “crescente apropriação institucional do poder de legislar por parte dos sucessivos presidentes da República”.

Um pedido de vista da ministra Cármen Lúcia interrompeu o julgamento em 2009, reiniciado em março de 2015. Em seu voto-vista, a ministra Cármen acompanhou o Relator. O julgamento foi então suspenso pelo pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso.

Retomado o julgamento em junho de 2017, o ministro Barroso proferiu voto-vista em que também acompanhou o Relator. Segundo o ministro Barroso, “subordinar quase integralmente a agenda de deliberação do Poder Legislativo às medidas provisórias editadas pelo presidente da República vulneraria o núcleo essencial da separação de Poderes e importaria na paralisação do funcionamento do Congresso Nacional”.

Os ministros Alexandre de Morais, Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Gilmar Mendes acompanharam o Min. Relator Celso de Mello. Estava impedido para o julgamento o ministro Dias Toffoli e ausente da sessão o ministro Ricardo Lewandowski.

Restou vencido no julgamento o ministro Marco Aurélio Mello, único a divergir, para quem o texto da Constituição não concedeu espaço para manobras, sendo expresso em suspender todas as deliberações da Casa em que estiver tramitando a medida provisória.

O julgamento do MS 27.931 pretendeu encerrar a controvérsia sobre o disposto no art. 62, §6º da Constituição e na definição da pauta e andamento das deliberações e votações das Casas Legislativas do Congresso Nacional.

Com essa decisão, o STF parecia ter posto uma pá de cal sobre o assunto e pacificado a controvérsia sobre a edição excessiva de medidas provisórias e a captura da pauta do Parlamento. Esse entendimento consta, inclusive, na PEC 91/2019, já aprovada e aguardando promulgação.

Mas o tema não se esgotou aí e nem os problemas se resolveram. Ao contrário, o STF apenas criou incentivos para que tudo ficasse como sempre foi. Ninguém cumpre a Constituição: o Executivo faz pouco caso com os requisitos para edição de MPs; o Legislativo não faz o controle estrito desses requisito e contorna o bloqueio de sua agenda; e o STF deixa de defender uma de suas principais funções – a de garantir as condições de exercício da democracia através do respeito rígido das regras do processo legislativo previsto na Constituição.

O resultado não foi a solução da controvérsia, mas apenas a criação de um novo problema: um processo legislativo disfuncional e a inversão dos usos e cabimentos das espécies normativas previstas pela Constituição.

O erro da decisão do STF parece ter sido abandonar como premissa as regras constitucionais sobre processo legislativo para se debruçar sobre o problema da captura da pauta do Legislativo. Ou seja, o STF partiu do problema para pensar a norma, quando deveria ter partido da norma para resolver o problema.

Agora o caso do coronavírus, a repatriação de brasileiros isolados na China, a necessidade de prever e estruturar quarentena para essas pessoas, apenas traz à luz os efeitos concretos de um processo legislativo que se tornou disfuncional.

Nessa disfunção evidente, convém ainda perguntar: se o Presidente da República resolveu tratar do coronavírus e das providências necessárias para lidar com ele através de um projeto de lei ordinária com urgência constitucional, não estaria também o PL bloqueado pela pauta já sobrestada?

Essa disfuncionalidade (ou contrassenso, para retomar o artigo de Gustavo Bambini e Michel Lutaif) não decorre do caso do coronavírus, das circunstâncias do nosso país, nem da Constituição de 1988. Essa disfuncionalidade decorre das decisões equivocadas dos três Poderes quando se afastaram das regras da Constituição.

Ninguém quis seguir a Constituição. Nem ser freio ou contrapeso aos excessos gritados por todos. O caso do coronavírus e as medidas necessárias para lidarmos com ele dependem agora desse novo processo legislativo inventado, contra a Constituição, pela práxis dos três Poderes.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-coronavirus-e-seu-projeto-de-lei-com-urgencia-constitucional-07022020