Plenário Virtual no Supremo: reforço de um tribunal de solistas

Plenário Virtual no Supremo: reforço de um tribunal de solistas

Ampliação do Plenário Virtual aprofunda atuação individual e individualista de ministros. Outros desenhos, no entanto, são possíveis

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e CONRADO HÜBNER MENDES

 

Os ministros do Supremo Tribunal Federal aprovaram, em sessão administrativa recente, uma importante reforma do Regimento Interno do Supremo. A nova emenda ao Regimento Interno acrescentou o art. 21-B, que amplia o número de processos que podem ser julgados pelo Plenário Virtual da Corte.

A redação exata do art. 21-B ainda deverá ser estabelecida por resolução a ser editada pelo presidente do STF. De todo modo, ficou decidido que passa a ser possível a utilização do Plenário Virtual para a análise de medidas cautelares em ações do controle concentrado (ADI, ADC e ADPF, por exemplo), referendo de medidas cautelares e de tutelas provisórias e, ainda, para as demais classes processuais cuja matéria objeto de controvérsia já tenha entendimento solidificado do STF.

Criado em 2007, o Plenário Virtual permite que os ministros decidam em uma plataforma eletrônica sobre a existência ou não de repercussão geral de controvérsia discutida em recurso extraordinário (arts. 323, 324, RISTF). Além disso, também permite o julgamento de mérito dos recursos extraordinários com repercussão geral nas hipóteses de reafirmação de jurisprudência consolidada do Supremo (art. 323-A, RISTF).

Em junho de 2016, a utilização do Plenário Virtual foi ampliada para possibilitar também o julgamento de agravo interno (art. 317, §5º, RISTF) e de embargos de declaração (art. 337, §3º, RISTF). Essa ampliação encontrou resistência e fortes críticas do ministro Marco Aurélio, que renunciou à presidência da Comissão de Regimento Interno do Supremo.

Agora, em junho de 2019, o STF volta a emendar seu Regimento Interno para novamente ampliar o uso do Plenário Virtual e acrescentar o art. 21-B. Significa que, na prática, decisões liminares ou de mérito sobre leis, decretos, atos normativos federais e estaduais, além de resoluções de agências reguladoras, por exemplo, poderão ser tomadas diretamente no Plenário Virtual. O novo acréscimo encontrou, novamente, críticas do ministro Marco Aurélio, o único a votar contra a proposta.

Para o ministro Marco Aurélio, essa ampliação de julgamentos virtuais impede o necessário debate entre os ministros.

Se, por um lado, os meios eletrônicos e plataformas virtuais são uma realidade inarredável com a qual devemos lidar, por outro lado, devemos utilizá-las em favor de uma prestação jurisdicional não apenas célere, mas também colegiada e deliberativa. A preocupação do ministro Marco Aurélio é pertinente.

O Plenário Virtual tem a vantagem de tornar mais simples e rápidas as votações sobre existência ou não de repercussão geral, afirmação de jurisprudência, provimento ou desprovimento de agravos internos e embargos de declaração.

No entanto, ele possibilita somente isso: votações.

Votação não equivale à deliberação. Votar é decidir. Deliberar é trocar razões, testar e desafiar argumentos, para então se tomar uma decisão e votar.

Meios eletrônicos e plataformas virtuais até podem propiciar a deliberação. E seria desejável que o fizessem. Se a ferramenta, no entanto, oferece apenas possibilidades binárias de votação (“sim” ou “não”; “provimento” ou “desprovimento”; etc.) ou a mera oportunidade de inserção de arquivo com as razões de um voto, deixa-se de lado uma potencialidade que poderia aprimorar o desempenho colegiado e deliberativo dos ministros e do Tribunal.

Nesse formato simples, o ministro adentra ao Plenário Virtual para verificar os processos que precisam de decisão e então vota. Sozinho, individualmente, sem trocar argumentos com seus pares. A tarefa judicante dos ministros no Plenário Virtual torna-se essencialmente solista.i Nesse cenário, o Plenário Virtual tende a aprofundar a individualidade e o individualismo dos ministros e dificultar a já escassa deliberação no STF.

É possível pensar criativamente o aprimoramento do Plenário Virtual, ainda mais diante da significativa ampliação recém aprovada.

As formas e desenhos possíveis são inúmeros: criação de espaço para apresentação de questões ou contra-argumentos; de janela específica que reúna e liste argumentos consensuais ou majoritários e separe argumentos singulares ou que sejam minoritários; criação de enquetes provisórias para facilitar a definição do que é consensual, majoritário ou minoritário, e um longo etc.

As possibilidades de aperfeiçoamento de um espaço virtual que favoreça a colegialidade e a deliberação não devem ser subestimadas. E os ministros são os atores mais aptos a propor ou escolher formas variadas de interação.

A ampliação do Plenário Virtual noticiada, no entanto, não parece ir ao encontro desse caminho mais versátil e rico, que potencializa a troca de razões e persuasão. Ao contrário, a ampliação do Plenário Virtual mantém uma lógica binária de votação.

O Plenário Virtual tem a potencialidade de ser uma extensão do Plenário físico e aprimorar a prestação jurisdicional do STF. Poderia entregar mais do que a desejada celeridade; poderia reduzir em vez de aprofundar o solismo que lhe tem caracterizado nos últimos anos.

Meios eletrônicos, plataformas virtuais, utilização ampliada do Plenário Virtual, podem ser bons meios e mecanismos. Não podemos, no entanto, nos esquecer do elemento importante que possui o alerta do ministro Marco Aurélio – a necessidade de colegialidade.

Nesse sentido, a notícia de ampliação do Plenário Virtual não soa bem. Ela parece aprofundar uma atuação individual e individualista – com alto número de ações, recursos, medidas e procedimentos a serem submetidos ao Plenário Virtual, mas apenas para votação. Nesse modo virtual de votar, a deliberação não existe.

Isso não significa que outros desenhos e usos do Plenário Virtual não possam ser pensados. O STF possui qualificado setor de tecnologia da informação, a pesquisa acadêmica possui vasta produção relativa à deliberação e colegialidade e os ministros do STF possuem experiência cotidiana com o Plenário Virtual e suas votações.

A transformação de um tribunal de solistas num tribunal mais colegiado e deliberativo pode até ser compatível com o uso do Plenário Virtual. Não o será, contudo, pela manutenção de sua lógica binária de funcionamento.

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iCf. Hübner Mendes, Conrado. “O projeto de uma corte deliberativa”. In: Adriana Vojvodic; Henrique Motta Pinto; Rodrigo Pagani. (Org.). Jurisdição Constitucional no Brasil. Malheiros, 2012.

 

CONRADO HÜBNER MENDES – Professor da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo. Mestre e Doutor em Ciência Política pela USP. Colunista da Revista Época. Autor dos livros: Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford, 2013); Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação (Saraiva, 2011); Controle de Constitucionalidade e Democracia (Elsevier, 2007).
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/plenario-virtual-no-supremo-reforco-de-um-tribunal-de-solistas-26062019