A decisão de Toffoli não é política, é ilegal mesmo

A decisão de Toffoli não é política, é ilegal mesmo

Caso Flávio Bolsonaro: decisão do presidente do STF ignora a ressalva de que suspensão não atinge investigações em curso

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CONRADO HÜBNER MENDES e ESTEFÂNIA QUEIROZ BARBOZA

 

Em decisão monocrática, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, atendeu pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro e determinou a suspensão de todos os processos criminais e investigações em curso que se fundamentem em documentos e dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN) com o Ministério Público ou as polícias.

A decisão foi tomada no RE 1.055.941, que tem repercussão geral reconhecida (Tema 990 da Repercussão Geral), após pedido em petição da defesa do senador Flávio Bolsonaro. Como o senador é investigado por corrupção pelo Ministério Público do Rio de Janeiro com base em dados do COAF, ele alegou que tal investigação era abusiva por se valer de dados obtidos sem autorização judicial.

A questão não é idêntica, mas é semelhante àquela debatida no referido Recurso Extraordinário, no qual se avalia a legalidade de investigação feita com base em dados fornecidos pela Receita Federal.

Assim, a decisão do ministro Toffoli beneficiou não apenas o senador Flávio Bolsonaro, que teve a investigação contra si suspensa, mas também outros tantos réus e investigados com base em dados compartilhados pela Receita Federal, COAF e BACEN.

O ministro Toffoli fundamentou sua decisão de suspensão com base no art. 1.035, §5º do CPC, que autoriza o relator a suspender os processos em curso nas instâncias inferiores diante do reconhecimento de repercussão geral em recurso extraordinário.

No entanto, com base no poder geral de cautela, o ministro Toffoli estendeu a suspensão também às investigações policiais ou do Ministério Público em andamento. Mais do que isso, diante da suspensão dos processos e investigações, Toffoli também determinou a suspensão da contagem do prazo prescricional dos supostos crimes processados ou investigados.

Convém questionar: qual é o alcance da suspensão dos processos nas instâncias inferiores prevista no art. 1.035, §5º, no CPC? Aplica-se aos processos criminais em curso? Aplica-se também às investigações? Como fica a contagem do prazo prescricional dos supostos crimes apurados em processos e investigações?

No dia 7 de junho de 2017, o Plenário do STF decidiu sobre o alcance da suspensão dos processos em curso nas instâncias inferiores diante do reconhecimento de repercussão geral em recurso extraordinário. A questão foi debatida na Questão de Ordem no RE 966.177, de relatoria do ministro Luiz Fux, sob a sistemática da repercussão geral (Tema 924).

O STF decidiu que a previsão do art. 1.035, §5º do CPC consiste em faculdade, não obrigatoriedade, do ministro relator para suspender os processos em curso.

Nessa ocasião o STF também decidiu pela plena aplicabilidade da suspensão aos processos criminais. Ou seja, reconhecida a repercussão geral de um recurso extraordinário sobre matéria criminal, pode o ministro relator suspender os processos criminais em curso que tratem daquele tema.

O STF também decidiu que uma vez suspensos os processos criminais, também fica suspensa a contagem do prazo prescricional.

No entanto, nesse mesmo julgamento, o STF foi expresso e categórico ao dispor que a decisão de suspensão não se aplica a investigações em curso.

Essa ressalva constou, inclusive, na ementa do acórdão e no informativo oficial do STF1, que dispuseram de forma destacada que “em nenhuma hipótese, o sobrestamento de processos penais determinado com fundamento no art. 1.035, § 5º, do CPC abrangerá inquéritos policiais ou procedimentos investigatórios conduzidos pelo Ministério Público”.

A recente decisão do ministro Toffoli menciona esse julgado e, inclusive, invoca-o como fundamento para a suspensão dos processos e investigações em curso que se fundamentem em dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN). No entanto, sua decisão ignora a ressalva de que a suspensão não atinge investigações em curso.

A decisão se fundamenta “forte no poder geral de cautela“. Mas não explica por que tamanho poder geral de cautela se aplica e por que afastaria o que já decidiu o STF: a suspensão não pode atingir investigações em andamento. Nem faz algum juízo sobre o impacto que essa decisão de suspensão terá sobre outras investigações em curso no País.

Ao final, a decisão do ministro Toffoli ressalta que a suspensão dos processos e investigações também implica a suspensão da contagem do prazo prescricional, tal qual já fora decidido pelo Plenário do STF no RE 966.177 (Tema 924).

No entanto, a suspensão da prescrição também não é entendimento pacífico e encontra críticas contundentes ao fato de o STF ter criado, por meio de decisão judicial, mais uma hipótese de suspensão da prescrição sem previsão legal. E convém lembrar que prescrição é elemento de direito material, e não de direito processual. Exige lei específica e em sentido estrito. Daí a controvérsia sobre a decisão do STF de que a suspensão de processos criminais em razão de repercussão geral também implica suspensão da prescrição.

De todo modo, ainda que se deixasse de lado esse debate fundamental, a decisão de Toffoli encontra óbice em decisão anterior do Plenário que não o autorizaria a suspender investigações em curso.

Isso significa que a decisão do ministro Toffoli não encontra previsão legal, pois a suspensão de que fala o CPC2 é de processos. E o que Flávio Bolsonaro enfrenta, por ora, é investigação.

Mais do que isso, a decisão do ministro Toffoli viola decisão do Plenário do STF, que foi expresso e específico ao decidir que a suspensão de processos criminais não atinge investigações, sejam elas conduzidas pela polícia ou pelo Ministério Público3.

Além disso, a decisão do ministro Toffoli se coloca diante de outra decisão do Plenário do STF4, na qual foi firmada a tese de que são lícitos os dados obtidos pela Receita Federal junto às instituições financeiras sem prévia autorização judicial.

Por óbvio, a integridade e coerência interpretativas deveriam ser também consideradas para a decisão tomada pelo ministro Toffoli, pois assim como a situação de Flávio Bolsonaro se assemelha à repercussão geral invocada, a decisão do Plenário do STF também endossa possibilidade de compartilhamento.

Nessa circunstância, analistas têm noticiado que a decisão de Toffoli teria sido política, como se fosse aceitável uma decisão que subverta as regras da Constituição e as do processo civil e penal (devido processo legal).

Classificá-la como política é um eufemismo que esconde erro de análise. A decisão não foi política, foi apenas ilegal.

É sempre possível que o Supremo e seus ministros manejem a agenda do Tribunal, pautas, vistas, decisões no recesso etc., desde que dentro das regras legais e regimentais. Fazem escolhas discricionárias, às vezes orientadas por critérios de política institucional. São escolhas autorizadas juridicamente. Ainda assim, estão sujeitas ao ônus de fundamentação e ao escrutínio públicos.

A decisão do ministro Toffoli não encontra amparo legal. Classificá-la como “decisão política” não elimina seu caráter ilegal. Ela encontra limites na Constituição, nas regras do processo constitucional e na exigência de respeito ao próprio STF que já decidiu a amplitude da decisão de suspensão.

É preciso recordar que o Poder Judiciário, e o STF em especial, deve buscar coerência decisória, respeitando não só a ratio de precedentes, mas também os princípios que lhes fundamentaram. Essa racionalidade decisória é uma forma de construir e justificar a legitimidade do Judiciário, já que ela não se dá nas urnas, e sim na prática judicial.5

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2 art. 1.035, §5º, do CPC.

3 RE 966.177 – Tema 924.

4 RE 601.314 (Tema 225).

5 DWORKIN, Ronald.O império do Direito, 2ª ed, Martins Fontes, 2007, p. 477.

 

CONRADO HÜBNER MENDES – Professor da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo. Mestre e Doutor em Ciência Política pela USP. Colunista da Revista Época. Autor dos livros: Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford, 2013); Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação (Saraiva, 2011); Controle de Constitucionalidade e Democracia (Elsevier, 2007).
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-decisao-de-toffoli-nao-e-politica-e-ilegal-mesmo-31072019