A delação de Sérgio Cabral e o STF
Supremo deve voltar a analisar atribuição da polícia para celebrar acordos de colaboração premiada
Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MAURICIO STEGEMANN DIETER
1 – A delação premiada de Sérgio Cabral
No dia 06 de fevereiro, o ministro Luiz Edson Fachin homologou a delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral – negociada diretamente com a Polícia Federal, e ainda sob sigilo. Segundo a imprensa, Cabral teria se comprometido a devolver 380 milhões recebidos como propina, além de incriminar deputados, conselheiros de Tribunal de Contas e ministros do STJ, entre outros agentes públicos relevantes.
Mas, se as revelações de Cabral são realmente tão devastadoras, o que explica o desinteresse do Ministério Público em negociar essa delação?
Com um longo tempo de prisão pela frente e cada vez menos patrimônio, Sérgio Cabral provavelmente estaria disposto a dizer o que as autoridades queriam ouvir. Além disso, Cabral é apontado como o líder de organização criminosa. Um acordo de delação feito por um líder já capturado pode resultar num processo com nenhuma ou pouca evidência adicional em relação aos delitos e às pessoas que promete entregar; afinal, Cabral seria o topo dessa cadeia.
Os dois elementos podem despertar ceticismo junto às autoridades que negociariam a delação. Aqui, porém, há uma diferença relevante entre os incentivos da polícia federal e os do MP.
Para a polícia, o ônus envolvido em uma delação “fraca” é bem menor: ao celebrar o acordo, a Polícia já anuncia sua atuação como grande conquista, mas deixa para o Ministério Público a pressão de processar outros réus sem as melhores evidências e provas.
Se realmente for esse o caso, é grande o risco de repetição dos problemas da delação premiada de Antônio Palocci, que, até agora, tem sido incapaz de dar substância às suas graves denúncias, o que, por sua vez, tem provocado mal-estar no Ministério Público e ruídos na relação institucional com a Polícia Federal.
Não é de se estranhar, portanto, que a delação mal tenha sido homologada e já esteja sendo contestada pelo Procurador-Geral da República. Não será fácil, contudo, reverter a decisão do ministro Fachin.
Entre tantos aspectos que merecem atenção, gostaríamos de chamar a atenção para um aspecto jurídico controverso, sobre o qual o STF já se debruçou e que, provavelmente, terá de encarar novamente: a atribuição da polícia para celebrar acordos de colaboração premiada.
2 – O conflito entre MP e Polícia
A possibilidade de a polícia celebrar acordos de delação premiada foi incluída na chamada “Lei das Organizações Criminosas”. Esse ponto foi impugnado pela Procuradoria Geral da República na ADI 5.508, que entende que apenas ao Ministério Público caberia negociar tais acordos. Em junho de 2018 o Supremo decidiu pela constitucionalidade da lei.
A decisão do STF, contudo, distancia-se da lógica acusatória do sistema penal brasileiro.
A questão não se limita ao campo político da disputa de poder, e diz respeito à extensão de competência constitucional. O Ministério Público é o titular da ação penal pública e, formalmente, está obrigado a propô-la uma vez presentes seus pressupostos. Nesse cenário, qualquer mitigação dessa regra de indisponibilidade pode se dirigir apenas ao MP. Vale dizer, se é dever dos membros do MP oferecer denúncia quando presentes suas condições, qualquer relativização dessa determinação deve passar exclusivamente pelas partes envolvidas – Ministério Público e defesa – não se estendendo a outros agentes, como a polícia judiciária, limitada que está à fase investigativa.
Polícia não é parte, e, portanto, não pode negociar o início ou o fim de um processo que sempre lhe será estranho, sob pena de invasão de competência.
Não é por outro motivo que institutos semelhantes, como a transação penal, a suspensão condicional do processo ou o acordo de não persecução penal, apenas podem ser manejados pelo Ministério Público e, inclusive, à revelia das vítimas, sequer cogitando-se a participação da autoridade policial.
À polícia cabe a importante missão de investigar para, ao final, permitir (ou não) que Ministério Público, sobre evidências concretas, apresente uma narrativa incriminatória estruturada sobre a certeza da materialidade do tipo de injusto e indícios convincentes de autoria, acompanhada de todos os elementos que permitam a devida contextualização do fato típico. Qualquer atuação da polícia com impacto na acusação futura deve, assim, se dar em favor ou em conjunto com o Ministério Público, mas nunca de forma paralela.
Se um investiga e outro acusa, então o acordo para redução de pena aplicada ou executada em troca da incriminação de terceiros pode até aproveitar as informações coletadas em inquérito, mas a delação será sempre conduzida pelo Ministério Público, submetendo-se a posterior controle judicial no ato de homologação, decisão complexa que exige, entre outros elementos, rigoroso exame de legalidade.
Nesse sentido, o STF errou.
3 – A decisão do STF
O julgamento do Supremo foi marcado por divergências. O ministro relator Marco Aurélio Mello foi seguido pela maioria – Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Para eles, a polícia pode sim celebrar o acordo de delação premiada e estabelecer benefícios, mesmo sem anuência do MP.
O ministro Dias Toffoli aderiu à tese de que a polícia pode negociar acordos, mesmo sem concordância do MP, mas negou-lhe a possibilidade de fixar os benefícios, limitando-se a sugeri-los.
Os ministros Luiz Fux e Rosa Weber adotaram uma posição mais próxima do princípio acusatório: se por um lado facultaram à polícia a iniciativa para costurar delações, por outro subordinaram a concretização do acordo à anuência do Ministério Público.
O ministro Luiz Edson Fachin, em posição solitária, foi o único a votar pela total impossibilidade de a polícia produzir delatores.
Em síntese, o consenso majoritário do Supremo Tribunal Federal, liderado pelo voto do relator, ministro Marco Aurélio, é o de que polícia também pode celebrar de acordos de delação em função da natureza jurídica do instituto. Tratando-se de mero meio de obtenção de prova – já que a prova está condicionada ao contraditório, ausente no momento de negociação da delação – não há problema em incluir essa ferramenta no arsenal policial para aprofundar a investigação de crimes e facilitar a identificação de suspeitos, especialmente em relação a supostas organizações criminosas. Assim, a polícia pode celebrar acordos e combinar punições com o indiciado, desde que a delação seja devidamente homologada pelo magistrado competente – que com as recentes alterações do Código de Processo Penal passa a ser o juiz de garantias – após ouvido o Ministério Público, que segue responsável pelo controle externo da atividade policial.
Além de abrir perigoso precedente sobre o alcance e mitigação da atribuição do Ministério Público, a decisão do STF pode criar maus incentivos: coloca em tensão direta duas instituições que deveriam trabalhar em sintonia na investigação. Não à toa, motivada pelo entendimento da Corte, a polícia passou a celebrar delações que antes eram rejeitados pelo Ministério Público.
O acordo entre a polícia e o ex-governador Sérgio Cabral, por sua notoriedade, apenas aprofunda a controvérsia jurídica e a disputa institucional entre polícia e MP.
4 – Outras controvérsias que a delação de Sérgio Cabral pode trazer
As notícias da delação de Sérgio Cabral também trazem à reflexão outras questões, que tangenciam o problema da identidade da autoridade pública responsável por sua negociação.
Primeiro, como a polícia pôde celebrar acordo com o ex-governador depois de sua condenação? Pela lei, ao delegado cabe manifestar-se sobre a delação nos autos do inquérito, a essa altura já incorporado definitivamente ao processo.
Segundo, como é possível oferecer acordo para alguém que foi reiteradamente apontado como líder da organização criminosa investigada pela Força Tarefa? A Lei 12.850/2013 tem por finalidade motivar os escalões inferiores a incriminarem seus superiores, e não premiar o oportunismo dos que estão no topo da pirâmide.
A depender das respostas a essas duas perguntas, o acordo poderia, eventualmente, ser invalidado. O risco existe, ainda que nos últimos anos o Poder Judiciário brasileiro tenha demonstrado complacência com delações juridicamente problemáticas, admitindo inclusive a revisão de declarações de delatores demonstradas falsas no curso do processo.
Não é a toa que, no final de dezembro do ano passado, o ministro Gilmar Mendes cogitou a possibilidade de revisão do entendimento do STF sobre a possibilidade da polícia celebrar acordos de colaboração premiada. É um sintoma de que é preciso maior rigor no controle do instituto da colaboração premiada, e é provável que o STF seja em breve desafiado a rever sua posição colegiada sobre o tema.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
MAURICIO STEGEMANN DIETER – Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-delacao-de-sergio-cabral-e-o-stf-19022020