Covid-19, direito à saúde e os 3Ds: diálogo, deferência e desastres

Covid-19, direito à saúde e os 3Ds: diálogo, deferência e desastres

Urgência de formulação de respostas para superar a crise, pelos Poderes Públicos, incluindo o Judiciário, é um desafio inédito

Por INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES e MELINA GIRARDI FACHIN

A preocupação mundial de conter a propagação da CODIV-19 é cada dia majorada ante ao elevado índice de transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 somado à incapacidade de organização do sistema de saúde para atendimento simultâneo dos infectados, especialmente das pessoas com quadro mais severo.

Ainda que o mantra entoado pelas agências de proteção internacional, em especial a OMS, e também pela maioria dos atores locais, seja de que cada indivíduo importa – coincidente com a máxima kantiana dos sujeitos considerados como um fim em si mesmo, dotados de direitos intrínsecos inalienáveis – é certo que não haverá – em alguns lugares já não há – recursos e estrutura médica e hospitalar para atender às pessoas infectadas.

Esse cenário catastrófico tem provocado, ao redor do mundo, escolhas trágicas diante de recursos escassos numa crise sanitária deste quilate. Na arena local, os mesmos dilemas se repetem: Médicas e médicos na linha de frente do enfrentamento da pandemia poderão sofrer alguma interferência externa em sua decisão sobre melhor tratamento ou sobre a destinação do ventilador pulmonar ou sobre qual paciente merecerá a vaga da UTI?; Em que condições o gestor público deve responder pela falta de estrutura, de serviços e equipamentos para o tratamento?; Quais informações técnicas – sobre a doença e os doentes – devem ser resguardadas e quais precisam necessariamente ser divulgadas, por serem de interesse público? Estes são apenas alguns dos questionamentos possíveis que desaguarão – ainda que não se adote aqui a ideia de última palavra – no Poder Judiciário.

A urgência de formulação de respostas para superar a crise da COVID-19, pelos Poderes Públicos, incluindo o Judiciário, é um desafio inédito. Ainda que não haja paralelo com o que se vive, há imensa familiaridade do mundo jurídico com lides sobre o direito à saúde, desde o acesso de cidadãos a medicamentos e à internação, passando pelas causas consumeristas envolvendo planos de saúde até lides empresariais e tributárias de instituições que lidam com insumos de saúde, que adquirem equipamentos ou erguem estruturas hospitalares. Sem falar em questões do SUS e de gestão da saúde pelos entes federativos, que vão de repasses de verbas à contratação de Organização Social para prestação de serviços.

A judicialização da saúde tem efeitos sistêmicos, que afetam outros direitos e a prestação de serviços essenciais. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública, presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, que resultou na fixação de critérios que devem ser necessariamente observados e considerados pelo Judiciário nas demandas de saúde.

Na ocasião, mais de 50 especialistas (entre juristas dos mais variados setores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde) abordaram a saúde de maneira holística, indo além do olhar estritamente jurídico.

O farto material acadêmico e técnico disponível (no site do STF) constitui um importante acervo e legado para pesquisa do direito, especialmente para juízes, em momentos como este que questões centrais sobre a gerência da saúde batem às portas do judiciário. As boas práticas dos atores do sistema de justiça que, em tempos de normalidade, garantem a fruição do direito à saúde, em casos de acesso a medicamento ou de acesso às unidades de saúde para internação, por exemplo, precisam ser adaptadas para a situação de pandemia.

As discussões sobre as limitações do julgador quando as questões levadas ao Judiciário envolvem conhecimento específico e discricionariedade técnica também é assunto recorrente no controle de políticas públicas e separação dos poderes. Em matéria de saúde, especificamente no inédito contexto causado pela crise da COVID-19, o princípio da deferência técnico-administrativo serve de diretriz, mas não para limitar a atuação do Judiciário.

É importante que no julgamento de questões sobre a efetividade do resguardo do direito à saúde haja “diálogo deferente” com as instâncias especializadas, tanto os gestores públicos como os profissionais da saúde, desde que estas valorações possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado.

Neste sentido, o sistema de justiça brasileiro já tem mecanismos que garantem o devido processo legal em situações que demandam respostas rápidas do judiciário, com a possibilidade de que as partes sejam ouvidas logo no início e até que encontrem uma solução consensual para a lide ou para alguns pedidos desta. Ao pensarmos na situação de falta de leitos de UTI ou na escolha do melhor tratamento, a incorporação das falas dos profissionais de saúde e dos gestores será fundamental.

A previsão ou realização de gastos é sempre tema delicado, que não confere, na maioria das vezes, espaço para que o gestor público proponha ou adira a uma rápida resolução da demanda. No entanto, a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública em face do novo coronavírus, no seu art.4º, admite a dispensa da licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência, prevendo, no §2º, que todas as contratações ou aquisições realizadas serão imediatamente disponibilizadas na internet, dando publicidade ao nome do contratado, o prazo contratual, o valor, dentre outras informações. Esse parágrafo faz menção à necessidade de observância do §3º do art.8º da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que apresenta os requisitos essenciais para que as informações e dados disponíveis na internet sejam considerados acessíveis.

Além disso, para situações não relacionadas na lei de emergência, Lei 13.979/2020, é válido ressaltar que o STF já considerou que há limites para a interferência do Judiciário, no exercício da judicial review, em políticas públicas e escolhas orçamentárias para sua implantação.

Na ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o entendimento do Tribunal foi de que o papel do judiciário deve ser “coordenador institucional”, produzindo um “efeito desbloqueador”. Neste julgado, o voto Relator destacava que caberia a intervenção do Judiciário nas políticas públicas de direitos sociais quando as autoridades estivessem “em estado de letargia”.

Todavia, os movimentos de deferência não significam restrição excessiva do Poder Judiciário, ainda mais em cenários em que retrocessos e ameaças a direitos e à democracia se somam à letargia. Não se pode aceitar que informações sobre repasses e aplicação de verbas para combate da doença, sobre leitos disponíveis, sobre contratação de pessoal e sobre as medidas de prevenção e tratamento das e dos profissionais de saúde, dentre outras, sejam tratadas como questões meramente técnico-administrativas, já que, nesse caso, o direito à informação é um direito que resguarda a população e permite que se corrijam injustiças, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis.

Para que haja o diálogo deferente do Poder Judiciário com as instâncias especializadas, são necessários pré-requisitos e condições, sendo o acesso à informação a pedra fundamental para que qualquer deferência se estabeleça. Nesta perspectiva, o direito de acesso à informação sobre a pandemia e as formas que os atores locais estão lidando com a crise sanitária resguarda a liberdade de imprensa e também os titulares de direitos fundamentais diversos, pois permite o conhecimento de monitoramento desses diálogos entre judiciário e corpo técnico-administrativo por setores da sociedade que não seriam chamados a integrar a lide.

A lei brasileira que trata do direito de acesso à informação (Lei 12.527/2011) dá suporte à compreensão coletiva da crise sanitária e ao exercício do direito à saúde, não apenas quando fornece elementos à previsão de transparência da lei de emergência para enfrentar o novo Coronavírus, mas também quando dispõe expressamente que não pode ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 21) e também que não pode haver qualquer impedimento ou restrição no acesso a informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas (art. 21, parágrafo único).

Assim, a garantia do direito à informação, a começar pela imprensa, pode contribuir para que as deficiências na aquisição de equipamentos e preparação de leitos de UTI no cenário brasileiro sejam corrigidas por medidas judiciais ou extrajudiciais, estas de iniciativa dos Ministérios Públicos e das Defensorias Públicas.

Além disso, o acesso livre à informação sobre as medidas de tratamento e condições médico-sanitárias pode servir para estampar as injustiças com grupos mais vulneráveis. Não é desarrazoado considerar que um grupo preterido no tratamento médico, seja pela faixa etária seja por falta de acesso a leitos do sistema privado, seja o mesmo grupo que não consegue ter acesso à justiça e obter uma decisão judicial a tempo de salvar sua vida.

Com os sistemas de saúde locais chegando ao colapso, ações coletivas já batem às portas do Judiciário para busca de garantia de um atendimento mais equânime, a partir da transparência na gestão dos recursos. Neste sentido, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM) ingressaram na Justiça Federal, com ação civil pública, dia 14 de abril, para garantir a transparência das informações relativas às medidas adotadas pelo governo estadual no enfrentamento da pandemia de COVID-19. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e a Defensoria Pública do Estado também ajuizaram, dia 17 de abril, ação civil pública para que o estado e o município do Rio desbloqueiem 155 leitos de Unidade de Tratamento Intensivo para pacientes com COVID-19.

A urgência das medidas, no entanto, exige respostas efetivas, que garantam os direitos de todos que esperam leitos de UTI ou que precisam de cuidados na prevenção para evitar desdobramentos mais graves. Tanto melhores serão as respostas quanto mais dialogadas e deferentes forem dentro do framework constitucional e internacional necessário para proteção do direito à saúde.

Além disso, é preciso que se dê uma inédita atenção às e aos profissionais de saúde que são contaminados pelo novo Coronavírus, com a previsão de possibilidade de obtenção de cuidados médicos e acesso prioritário aos equipamentos de saúde dentro da rede, pública ou privada, que os contratou.

Não tem sentido que profissionais de saúde infectados exatamente por estarem na linha de frente no combate à doença, que se encontrem com quadro de saúde em estado de média e alta gravidade, tenham as portas de hospitais fechadas para socorrê-los. Aqui, certamente, o diálogo deferente terá de abandonar os sólidos conceitos que regem as relações cidadãos-planos de saúde ou cidadãos-SUS e buscar subsídios na doutrina no princípio da precaução e nos pilares do Direito dos Desastres, já que a pandemia do novo Coronavírus se enquadra na categoria de desastre biológico, como bem alertou recentemente o jurista Délton Winter.

Nesse sentido, ao lançar mão dos fundamentos do chamado “direito dos desastres” para atenção aos profissionais que estão na linha de frente no combate à COVID-19, impõe-se que os gestores gerenciem o risco em todas as etapas, desde o fornecimento dos EPIs, passando pela testagem constante desse grupo até o pronto atendimento das pessoas infectadas.

Ao mesmo tempo, a gestão dos riscos, que continua a ser tarefa precípua do Poder Público, exige um trabalho em rede, com horizontalidade dos atores públicos e privados e da sociedade civil na realização das ações, no arranjo institucional que Fernanda Damacena define como governança dos desastres: “a governança fornece, por meio de redes de colaboração entre diversas entidades, uma forma de lidar com essas novas questões sociais”.

Ainda que mortes sejam inevitáveis no contexto de crise sanitária, o discurso de proteção dos indivíduos tem que ser de que cada vida importa. Isto aliado às políticas de contenção de riscos, especialmente de distanciamento social e de fornecimento de equipamentos de proteção para os que estão expostos, reforça o discurso de segurança na proteção dos direitos humanos. Este discurso será mais robusto se entoado de maneira dialogada e deferente entre os diversos atores institucionais, de quem a sociedade espera a condução responsável, solidária e democrática da pandemia.

Se a realidade dá claros sinais para o indizível, para a frustração coletiva de saber que as ações empreendidas com eficiência dificilmente serão suficientes para salvar todas as vidas, espera-se que o discurso dos atores públicos seja uníssono no sentido da proteção integral e não da barganha de vidas que importam mais ou menos.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3ª Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .

 

Texto originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/covid-19-direito-a-saude-e-os-3ds-dialogo-deferencia-e-desastres-28042020

Entre exceções, estado de exceção e normalidade

Entre exceções, estado de exceção e normalidade

O perigo da permanência do provisório

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA


A atual crise mundial tem trazido radicais desafios para o direito público, que podem ser assim sintetizados: o direito normal, aquele que aplicamos no nosso cotidiano, consegue debelar as demandas excepcionais decorrentes da pandemia? Em caso negativo, quais seriam os métodos de solução dos problemas? Eles já existem?

A formulação de tais problemas nos obriga a avaliar a maneira como o direito, em especial o público, lida com a excepcionalidade.

A relação entre direito e exceção não é nova, tendo surgido justamente no processo de consolidação do Estado de Direito. Antes da existência de um sistema jurídico impessoal e previsível, quaisquer demandas eram resolvidas pelo soberano através da razão de estado. Quando quisesse, se desejasse e da forma que melhor lhe aprouvesse. Logo, na ausência de regras predefinidas, a exceção não se põe.

Dito de outra forma, é somente quando há norma jurídica predefinida e estável que passa a haver a exceção. Sem o direito público, não há exceções a ele. O constitucionalismo tem como grande desafio pensar os termos em que situações de absoluta gravidade podem ser resolvidas. Cenários os quais, no limite, colocassem em risco a própria constituição.

Tomemos o exemplo da tradição francesa do estado de sítio. Aqui, a lógica é a de que é fundamental o estabelecimento a priori de hipóteses, condições e direitos que poderiam ser suspensos. Tais casos e soluções seriam taxativos. O raciocínio é o de que, em situações graves, não se consegue ter clareza para debater em profundidade e esse fato poderia levar a riscos de abusos contra o próprio direito.

Os mecanismos excepcionais seriam espécie de contrafogo jurídico: queima-se, de forma controlada, a área em rota de um incêndio incontrolável para evitar que ele continue sua trajetória destrutiva.

A premissa central nessa técnica de mecanismos excepcionais é a demarcação entre um momento normal e um excepcional. Há uma linha, às vezes tênue, mas preconcebida. O que é muito importante para definir, inclusive, o término da exceção, quando a situação retornaria aos termos e normas ex ante.

O constitucionalismo disporia de instrumentos provisórios, de suspensão de normalidade e instalação de soluções que se auto-extinguiriam quando do final da anormalidade. Encerrado o cenário factual que impõe a medida de exceção, teriam fim a causa e o nexo causal autorizador de sua aplicação. Apagado o incêndio, não há lugar para o contrafogo. Esse é o modelo ideal.

Entretanto, a história mostra a tendência de que mecanismos excepcionais permaneçam durante largo período, inclusive incorporando-se aos instrumentos ditos normais. Coloca-se fim ao fogo com gasolina. Exemplo mais eloquente e radical foram as permissões pós 11 de setembro ao uso de técnicas de tortura, flexibilização de direitos fundamentais e utilização de Guantánamo como prisão. Muito embora refutados, tal ordem de mecanismos e suas variações persistem em grande número de países ocidentais.

A permanência do excepcional, seja na forma de mecanismos jurídicos excepcionais, seja em ameaças fluidas e permanentes, tem levado ao que alguns autores chamam de “estado de exceção permanente”.

Nestes casos, os riscos seriam tão difusos quanto reais e contínuos, como pandemias, crises econômicas de grave proporção e grupos criminais transnacionais. Constatação que torna praticamente impossível separar a normalidade da exceção, pois esta sobrevive virtualmente em todos os momentos, em ciclos de retroalimentação e multiplicação. O ordenamento jurídico estaria permeado entre o direito normal e o excepcional, a exceção a conviver ordinariamente com a regra.

Pois bem, o que a atual pandemia nos tem demonstrado de forma categórica é a inaplicação dos mecanismos excepcionais. Exemplo são os debates no direito brasileiro: ao mesmo tempo em que há consenso da necessidade de medidas específicas na esfera do direito constitucional e administrativo, não há qualquer menção séria ao uso do estado de defesa ou do estado de sítio (mesmo porque estes mecanismos não fornecem nenhum instrumento útil para a atual situação).

A emergência sanitária demanda respostas distintas daquelas próprias a crises políticas e jurídicas, de forma que mesmo os instrumentos excepcionais são incapazes de fornecer diretrizes úteis (além do risco de uso para supressão das liberdades).

Não é adequado falar-se – e espera-se que assim se persista – de exceção ao direito público. A pandemia vem sendo debelada por meio de instrumentos jurídicos. Bons ou maus, novos ou velhos, patéticos ou nobres, certos ou errados, tanto faz – ainda assim, afirmam respeitar o Estado de Direito. Têm por base as normas postas e o respeito à permanência da constituição.

O exemplo da lei 13.979/2020 é significativo. Ela tem vigência temporária enquanto durar a pandemia e estabelece medidas como o isolamento. Parametriza as ações executivas a evidências científicas e boas práticas protetivas internacionais.

Entretanto, tampouco fornece quadro mais amplo de mecanismos jurídicos aptos a lidar com a situação (o que se complica, pois não há expectativa temporal do término da anormalidade). Caso se confirme a necessidade de isolamento parcial até que haja vacina, podemos estar falando de anos.

A situação é delicada e estamos tateando à procura de soluções no ambiente constitucional. Mas, como num antigo provérbio, “é muito difícil achar um gato preto num quatro escuro – especialmente quando não há nenhum gato.” Se não houver sensatez, podemos ser conduzidos a terras de ninguém, em que se conjugam ausência de instrumentos jurídicos com a possibilidade de permanência indefinida da situação.

À ausência de parâmetros jurídicos excepcionais aplicáveis somam-se as incertezas provenientes de conflitos federativos e “declarações governamentais de Schrödinger”: que corroboram e, simultaneamente, minimizam a crise e as medidas adotadas. Essa constância inconstante inibe as respostas jurídicas, pois delas se espera o enfrentamento do desafio da permanência e provisoriedade.

O importante está em medidas jurídicas capazes de diminuir o impacto da pandemia, mas, ao mesmo tempo, democráticas e coerentes – para que possam perdurar só enquanto durar a crise, sem risco de ameaça ao estado constitucional. Pactos fáusticos, fora da constituição, devem ser refutados de plano, a fim de que a crise temporária não engendre a exceção permanente.

As respostas não estão prontas, mas demandam construção coerente para, quem sabe, encontrar o inexistente gato preto no quarto escuro. O direito público excepcional fornece instrumentos jurídicos hábeis à construção de perguntas adequadas. Mas exige que a urgência por respostas não oblitere o fato de que as soluções dadas neste momento têm enorme potencial de permanecer muito tempo no horizonte.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Quando se fala em direitos fundamentais, também se fala de deveres públicos

Por VERA KARAM DE CHUEIRI e EGON BOCKMANN MOREIRA 

A África do Sul é um país lindo, com maravilhosa história de superação que vem sendo construída há décadas. Dá importantes exemplos ao mundo, inclusive em sua Constituição e na experiência de sua Suprema Corte. Mas, existe também uma experiência que vem de lá quanto ao papel reservado aos governantes frente a questões de saúde pública.

Em 2006, ao depor em um processo em que era acusado de estupro, o futuro presidente da África do Sul, Jacob Zuma, afirmou que o sexo teria sido consensual. E foi além: disse que sabia que a mulher era HIV positiva, mas que depois havia tomado uma ducha para evitar o contágio. Para ele, guerreiro Zulu, bastaria uma ducha para reduzir o risco de infecção – por isso, não havia usado preservativo. Para além do estupro, isso foi estarrecedor.

À época, a África do Sul tinha o maior número de pessoas com HIV do globo – e a manifestação desse homem público de suma importância nacional foi repudiada mundialmente, por médicos e educadores de práticas preventivas contra a irresponsabilidade na contaminação. Posteriormente eleito presidente, Zuma voltou atrás e defendeu o uso de preservativos em campanhas públicas.

Seres humanos que são, Zulus podem contrair doenças sexualmente transmissíveis. O mesmo se diga de outras doenças virais, que também outros grupos étnicos de porte atlético, podem contrair. Os vírus não escolhem seus destinatários, mas são escolhidos por quem quer que faça determinado contato permitindo a sua entrada. Daí o movimento acertado do então presidente da África do Sul em reconhecer a necessidade do uso de preservativos para coibir a propagação de doenças sexualmente transmissíveis.

A falsificação da realidade coloca em risco a vida das pessoas. Nenhum guerreiro, Zulu ou não, é imune por natureza ao vírus do HIV. Nenhum banho remove o vírus do HIV. Assim como nenhum medicamento cuja toxidade é desconhecida e cujos testes não foram feitos em sua integralidade, pode significar a cura de doenças fatais – como a experiência brasileira nos faz saber.

Saltando da África do Sul para o Brasil, rememoremos o caso da “pílula do câncer”: a fosfoetanolamina, substância que, desenvolvida em laboratório universitário da USP, foi objeto de milhares de ações judiciais que pretendiam obter o medicamento para a cura de pacientes terminais.

Todavia, a agência reguladora setorial – ANVISA – não reconheceu tal substância como medicamento, o que impedia sua produção e venda. O produto não havia passado pelos protocolos internacionais e não poderia ser reconhecido e comercializado.  Nesse turbilhão, o Congresso Nacional editou a Lei 4.639/2016, que autorizava a produção e comercialização da “pílula do câncer”.

A lei foi sancionada pela Presidente da República e, imediatamente em seguida, objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.501). O voto do relator, Min. Marco Aurélio, consignou que a Lei 4.639/2016 violava o art. 196 da Constituição, que preceitua ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. A lei era inconstitucional.

Afinal, consigna o voto do Min. Marco Aurélio: “Ao dever de fornecer medicamentos à população contrapõe-se a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, ou seja, a atuação proibitiva do Poder Público, no sentido de impedir o acesso a determinadas substâncias.”

E, mais adiante: “O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano. […] O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde.”

Vejam quão revelador é esse voto, sob dois aspectos. O primeiro, ao definir que direitos fundamentais – como o importantíssimo direito à saúde – não podem ser submetidos a desvarios insensatos, mas se submetem a requisitos mínimos de boas práticas e técnicas segundo protocolos internacionalmente aceitos. O segundo, ao revelar que o direito à saúde exige que o Estado proíba ações que potencialmente possam atentar contra o bem-estar das pessoas (individual ou coletivamente).

Tal voto foi acompanhado pela maioria do Pleno do STF, fazendo com que a ratio decidendi do acórdão proferido na AD 5.501 seja de obrigatório cumprimento pela Justiça brasileira. Isto é, as políticas se saúde pública devem respeito a um mínimo de requisitos técnicos, estampados em protocolos internacionais. Se houver dúvidas ou incertezas, se necessita precaver e proteger – jamais inovar e correr o risco de implementar tragédias.

Não nos esqueçamos de que os protocolos de saúde manejam vida e morte. O controle do Estado sobre aqueles é orientado pelo dever de proteção e cuidado. É isto que se reflete na decisão do STF acerca da inconstitucionalidade da lei da “pílula do câncer” e que precisa orientar as escolhas públicas.

Logo, o que a África do Sul e o STF têm em comum? A experiência daquele país, que brindou a humanidade com pessoas da envergadura de Nelson Mandela, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, revela que nossas crenças precisam ser deixadas de lado em momentos decisivos e que a responsabilidade só aumenta em razão do cargo ocupado. Já, o nosso STF, ensina que o Estado não deve deixar “em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população” (excerto do voto do Min. Marco Aurélio).

Todo processo de aprendizado é custoso; o que é  admissível – afinal, ninguém nasce sabendo, diz o senso comum. Demanda a realização de tarefas: diárias, difíceis e desafiadoras. Exige a superação. O ato do ex-presidente sul-africano Jacob Zuma e a decisão do STF servem a esse propósito pedagógico, com o qual sabemos que os protocolos de saúde devem ser obedecidos. Aprendamos com ambos.

VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/saude-publica-o-que-a-africa-do-sul-e-o-stf-podem-nos-ensinar-10042020

Mulheres em tempo de pandemia

Mulheres em tempo de pandemia

5 razões que nos demandam incorporar viés de gênero na preparação e avaliação das intervenções

MELINA GIRARDI FACHIN

Nos últimos dias, questões concretas emergiram de diversos debates – na sua maior parte vindos dos órgãos internacionais vinculados às Nações Unidas – sobre a importância de miradas de gênero em relação à pandemia da COVID-19.

O universo feminino é plural, complexo e diverso. Independente destes recortes múltiplos, há um consenso que a carga para as mulheres é e será mais pesada. Diante disto, sem dúvida, é necessário ter uma perspectiva de gênero ante a pandemia.

Explico o porquê aqui com base em cinco razões não taxativas que nos demandam incorporar viés de gênero na preparação e avaliação das intervenções a fim de atender os objetivos de equidade de gênero e saúde:

1. As mulheres possuem o papel predominante como cuidadoras, não apenas nas residências, mas também na assistência médica de primeira linha. De acordo com dados da OMS, são elas 70% das trabalhadoras de saúde (médicas, enfermeiras, fisioterapeutas, dentre outras) lidando diretamente contra a pandemia nos hospitais, com os doentes e mesmo com os mortos.

2. As políticas públicas de saúde feminina são muito afetadas com a realocação de recursos e insumos para a pandemia. Em epidemias passadas (tome-se como exemplo a do vírus ebola), para a recuperação de emergências, a redistribuição de recursos fragilizou as políticas públicas voltadas aos direitos reprodutivos e sexuais, que não foram recompostas, o que, ao seu tempo, causou aumento da mortalidade materna posterior. Isto já acontece em circunstâncias como esta pandemia de COVID-19 na qual o remanejamento de recursos vulnera aquelas que necessitam em momentos bastante delicados como durante a gestação ou no atendimento após violência sexual.

3. As mulheres são grande parte das trabalhadoras na economia informal e/ou nos trabalhos domésticos. A redefinição econômica afetada pela restrição de circulação e redução de contato social impacta de modo direto nestas trabalhadoras que, do dia para noite, ficaram sem possibilidade de sustento próprio e de suas famílias. Neste sentido, merece registro a política pública federal de alocação de renda que, em que pese meritória, não abrange os setores femininos mais vulnerados como, por exemplo, as profissionais do sexo.

4. A interrupção das atividades acadêmicas e escolares e dos serviços domésticos subcontratados, desde logo, sobrecarrega as mulheres que necessitam harmonizar os esforços do trabalho remoto com os cuidados dos filhos e da casa, que, em muitos casos, seguem como ônus exclusivos seus. Na divisão sexual do trabalho, as múltiplas jornadas ainda pendem sobre os ombros femininos. Eis a razão pela qual iniciativas como, por exemplo, a encampada por alguns setores da advocacia, sobre a retomada dos prazos processuais, gera profunda desigualdade de gênero nas suas consequências.

5. Por fim, a última e mais nefasta das causas: o aumento da violência doméstica. Nos momentos de precariedade econômica e instabilidade social, a violência de gênero no ambiente doméstico ganha contornos ainda mais dramáticos. Exemplo disso é que, na rede social chinesa Weibo, durante a quarentena por lá, a expressão #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic esteve nos primeiros lugares dos trending topic. Na Itália, houve aumento significativo dos índices de violência; no Brasil já há alertas neste sentido – o que demonstra a universalidade da opressão. A convivência forçada com agressores, por um lado, e a dificuldade de acessar os serviços de resposta oficial, por outro, impulsionam o aumento da violência, em especial, na sua face mais nefasta que é a violência física e sexual.

Diante de todo o exposto, resta patente que é necessário adotarmos um olhar de gênero para as respostas à pandemia da COVID-19, não apenas individual, mas também institucional.

As ações desdobram-se no plano do agora para que possamos, de modo imediato:

  • levantar dados com este recorte que nos permitam conhecer a realidade das mulheres nos contextos de risco;

  • assegurar atenção das necessidades imediatas das mulheres que trabalham no setor médico-sanitário;

  • ter em conta a diversidade e abordar as necessidades das mulheres nas diferentes funções;

  • assegurar a continuidade dos serviços essenciais para responder à violência contra mulheres e meninas.

Além disto, no plano futuro, de modo mediato, mister pensar no legado que fica, refletindo estratégias específicas de desenvolvimento e recuperação econômica das mulheres, considerando programas de transferência monetária; além da retomada integral das políticas públicas (de saúde) para mulheres.

Independentemente do tempo do agora ou depois, nada disso ocorrerá sem incluir mulheres no debate; isto é fundamental para que nada sobre nós mulheres seja pensado sem a nossa participação!

Texto originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/mulheres-em-tempo-de-pandemia-06042020