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Pacto federativo e atuação da União na segurança pública: sinais de alerta

Pacto federativo e atuação da União na segurança pública: sinais de alerta

O Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de julgar o alcance da jurisdição militar na ADI 5032

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA

 

O min. Edson Fachin concedeu medida cautela na ACO 3.427, ação proposta pelo governador da Bahia com o argumento que a utilização da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) no território do estado, sem sua solicitação, viola o pacto federativo.

A decisão do dia 18  estabeleceu o prazo máximo de 48 horas para a retirada do contingente. A ação, pautada para decisão do plenário dia 24, permite dois planos de análise: o imediato, da violação das premissas federativas; e o mediato, sobre a necessidade de estabelecer parâmetros adequados no campo de segurança pública.

Começando pelo primeiro plano. A Força Nacional de Segurança foi designada em portaria do dia 01 de setembro para atuar em assentamentos do INCRA em dois municípios do sul da Bahia – Prado e Mucuri. A solicitação foi feita pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e conforme relatado pelo governador, Rui Costa (PT), além de não ser o solicitante da medida, tampouco foi consultado quanto à necessidade de deslocamento da Força Nacional ao estado.

A Força Nacional de Segurança Pública foi criada em 2004 como um mecanismo de cooperação federativa, composta por policiais civis, militares, bombeiros e peritos. É utilizada para auxiliar os órgãos estaduais de policiamento. Embora tradicionalmente solicitada por governadores, o art. 4° do Decreto 5.289/2004 estabelece a possibilidade de que a solicitação seja de ministro de Estado.

É precisamente este o tópico arguido inconstitucional pelo governador por violar o pacto federativo, uma vez que a Constituição estabelece que a maior parte das competências na área de segurança pública é dos estados e os casos de violação da autonomia estadual são limitados, como, por exemplo, a intervenção federal.

Ao direcionar a Força Nacional à revelia de solicitação e avaliação do governador, ainda mais em área de assentamento, o min. da Justiça, André Mendonça, estabeleceu preocupante precedente, que afeta ao mesmo tempo a autonomia estatal e a política nacional fundiária, provocando incertezas e ameaças de retrocessos.

A informação dos assentados de que não houve quaisquer situações que remotamente justificasse a presença da FNSP é mais um elemento fático que põe em xeque tanto a necessidade, quanto a possibilidade da utilização da Força Nacional no caso.

De forma mediata, o uso da Força Nacional de Segurança Pública faz parte do processo de atuação direta da União na esfera de segurança pública, processo que passa também pelo uso das Forças Armadas nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Conforme citado, a competência primária em segurança pública é dos estados-membros, que, inclusive, tem a maior parte dos gastos na área. Embora tenha havido algumas tentativas de estabelecer uma política nacional para a área, ela falhou enquanto mecanismo de cooperação e coordenação de políticas.

Ao invés de estabelecer formas de cooperação, a União tem atuado de maneira direta através da Força Nacional de Segurança e das Forças Armadas nas GLOs.  Neste modelo as operações são casuísticas, uma vez que não há projeto à médio e longo prazo, além de custosas.

Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 a União gastou 142 milhões de reais em operações da FNSP e 525 milhões em operações GLO. No ano anterior, os gastos superaram 1,7 bilhões de reais, destes 1,1 bilhão com a intervenção o Rio de Janeiro.

A intervenção direta da União em segurança pública, em detrimento da coordenação de políticas públicas, constitui equívoco de política, uma vez que para além de gastos significativos, não gera resultados duradouros, sendo utilizada em operações nas quais o fator central é o policiamento ostensivo.

Tampouco há transparência na utilização da FNSP e operações GLO uma vez que nas portarias de autorização não há qualquer indicação do motivo específico do uso, prevalecendo as expressões genéricas de “preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e patrimônio”. Com isso há dificuldades de avaliar a concreta necessidade e eficiência dessas operações.

A atuação direta leva também à militarização da área, especialmente através do uso de militares na função na já citada GLO. Há questionamentos tanto sobre a adequação do uso das Forças Armadas em segurança pública por notoriamente não ser função típica militar, quanto também no campo de direitos humanos.

A competência da Justiça Militar para julgamento de crimes ocorridos em operações como GLO é absolutamente controvertida e viola precedentes internacionais relevantes, como Cruz Sánchez e outros vs. Peru, em que se estabeleceu que a justiça militar deve restringir-se ao julgamento de militares em funções próprias militares.

Dessa forma, julgar militares em operações de segurança, ou pior, civis nessas operações pode diminuir o grau de transparência e controle público dos julgamentos, além de estabelecer penas desproporcionais, uma vez que o Código Penal Militar costuma ter penas mais severas. O STF terá a oportunidade de julgar o alcance da jurisdição militar na ADI 5032, pautada para julgamento em outubro, após pedido julgamento em 2018 ter sido interrompido pelo pedido de vistas do min. Roberto Barroso.

O julgamento pelo Plenário da ACO 3.427 é uma grande oportunidade para definição do sentido do pacto federativo na área de segurança pública, e análise dos riscos de ampliação da atuação direta da União neste campo. Mas não devemos perder de vista a necessidade de debates sobre o desenho das políticas públicas na área, de forma a evitar soluções fáceis e, paradoxalmente, ineficazes.

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pacto-federativo-e-atuacao-da-uniao-na-seguranca-publica-sinais-de-alerta-23092020

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