Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Dados mostram que colegialidade e deliberação, por ora, não passam de uma promessa no Supremo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

 

Em seu último discurso na Presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli destacou que, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, o STF continuou sendo o tribunal constitucional de maior produtividade no mundo: “graças aos julgamentos virtuais, conseguimos avançar sobre a longa pauta de julgamentos colegiados”. O total de processos na pauta do Plenário foi reduzido em 70%, caindo de 1.200 para 369, e o acervo do Tribunal ficou em torno em 28.361 processos, o menor dos últimos 24 anos. Esses números foram melhor explicados e explorados nrelatório da gestão Dias Toffoli.

Ali, constam com detalhes o número de processos registrados na presidência (74.090) e distribuídos aos ministros (75.254), de decisões monocráticas (169.608) e colegiadas (31.677), de sessões presenciais (143) e virtuais (75) do Plenário e das Turmas (283), entre outros que em muito podem interessar a quem trabalha com a dinâmica interna do STF.

Não foram só os julgamentos virtuais que tornaram possível o ganho de produtividade de que tanto se orgulha o ministro Dias Toffoli. Ao lado da expansão do Plenário Virtual, sobre a qual escrevemos eoutras ocasiões, contribuiu ao avanço sobre o acervo a ampliação da competência da presidência do STF no juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e dos agravos em recurso extraordinário.

A estruturação e consolidação do Núcleo de Análise de Recursos, a exemplo do que já existia com o Núcleo de Análise e Recursos Repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, permitiu maior filtragem dos recursos inadmissíveis e a consequente distribuição apenas dos recursos que versassem sobre questões constitucionalmente relevantes. Um filtro de chegada ao STF e uma verdadeira barreira de contenção de chegada aos gabinetes dos ministros do Supremo.

O resultado foi uma queda de 60% na distribuição de processos recursais aos ministros.

É inegável que a redução do acervo processual via ampliação do Plenário Virtual e filtragem realizada pela presidência possuem um aspecto positivo: criar o ambiente para uma jurisdição concentrada dedicada principalmente aos temas constitucionais. E não aos temas e, também, à gestão do acervo processual. O ministro Dias Toffoli, durante sua presidência, efetivamente tomou medidas importantes para a desobstrução da pauta do Tribunal.

Acerta, portanto, o relatório quando afirma que estas medidas contribuem à vocação constitucional do STF, pois “o Tribunal pode se dedicar às questões de maior relevância e complexidade e às matérias com repercussão geral”. Contudo, há dois aspectos negativos.

Em primeiro lugar, esse “avanço” na prestação de jurisdição é, efetivamente, em sua maior parte, para denegar jurisdição. É, assim, a celebração de produção massiva de decisões que apenas decidem não decidir. E celebrar não decidir, ou exaltar alto número de decisões que nada fazem, é comemorar o que sequer deveria estar lá. É enaltecer uma prestação jurisdicional que foca a produção do que sequer deveria estar lá e que a toma como grande produto, quando, em realidade, outras ações, recursos e temas deveriam ocupar a gestão do Tribunal e a prestação jurisdicional pelos ministros.

Afinal, cabe lembrar, a função precípua do STF é de guarda da Constituição e, assim, decidir sobre temas constitucionais.

Segundo o citado relatório do STF, em 2018 o STF recebeu 101.497 processos. Desse total, 66.652 eram agravos em recurso extraordinário – mais da metade, portanto. Mas foi negado seguimento ou provimento a 99,4% de todos os ARE’S, mantendo-se o acórdão recorrido.

Os dados relativos aos recursos – quantidade em tramitação, participação no acervo e taxa de sucesso – revelam como os filtros processuais têm sido insuficientes ou até mesmo obsoletos. Exaltar, pois, esses números é celebrar o que tem dado errado. E esse diagnóstico nem de longe é estranho a integrantes do STF.

Em segundo lugar, o “avanço” na prestação jurisdicional perpassou pela ampliação da atuação individual e individualista dos ministros.

Ao lado da competência da Presidência na filtragem de agravos em recurso extraordinário, a forma como vem sendo utilizado o Plenário Virtual foi fator que em muito contribuiu à manutenção do STF como uma corte de solistas.

Quando analisamos os processos de controle concentrado levados a julgamento em ambiente eletrônico nos meses dabril e de maio e junho, adiantamos que o PV estava sendo empregado para dar vazão a ações até então “represadas” pela escassez da pauta presencial. Das 209 que foram para o PV, 158 já tinham constado em pauta do plenário físico.

Essa impressão é corroborada quando consideradas as listas virtuais.

Segundo dados disponibilizados no próprio site do STF, em 2019, o volume médio semanal de feitos em lista era de 88 no Plenário e 151 na Segunda Turma. Em 2020, ao menos nas 30 primeiras semanas, essa média saltou para 145 no Pleno e 152 na Segunda Turma. Na pauta do PV de 14/08 a 21/08, aguardavam julgamento 437 processos no Pleno e 378 na Segunda Turma. E desde então, o volume no Pleno vem caindo: 352; 271; 284; 74; 85; 49; 147.

Atribui-se o inchaço em agosto/setembro à troca de gestão na Presidência. A título de comparação, em setembro de 2018, ao término da gestão da ministra Cármen Lúcia, mais do que o dobro da média de processos estava na pauta do Pleno (194).

Esses dados mostram que boa parte dos processos que estavam liberados para pauta do plenário físico (ou seja, dependiam apenas de decisão do presidente do STF para entrarem no calendário de julgamento) foram julgados no Plenário Virtual ampliado, por meio de listas virtuais. Daí o ministro Dias Toffoli comemorar que o menor número histórico de processos na pauta do Plenário.

Houve mesmo, então, uma aceleração (celeridade) de julgamentos via Plenário Virtual. Mas isso não significa necessariamente deliberação e coerência. E a colegialidade tem sido meramente formal.

Como mostramos na análise sobre o uso do Plenário Virtual, na pauta do PV, prevalece o voto do relator, há poucos destaques e vistas. E se somarmos agora as listas virtuais, então vemos que a colegialidade é mesmo meramente formal. Mais do que isso, fica evidente que a deliberação (seja no PV mérito, seja no PV listas virtuais) é praticamente inexistente. E que a celeridade impede mesmo qualquer colegialidade deliberativa em razão do alto volume de processos nas listas virtuais.

Por mais que o ministro Dias Toffoli, ao longo de sua gestão, tenha por diversas vezes afirmado que o Tribunal decide cada vez mais de forma colegiada, os dados são teimosos em revelar que a colegialidade e a deliberação, tão necessárias quanto exigidas pela Constituição, por ora, não passam de uma promessa no Supremo de hoje.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-gestao-toffoli-numeros-comemorar-21102020

A OAB e o controle externo do TCU

A OAB e o controle externo do TCU

Julgamento no STF envolve manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito

Por MARILENA INDIRA WINTER e RODRIGO LUÍS KANAYAMA

 

O nascimento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não foi por acaso, nem foi por vontade oficial (embora tenha sido criada por lei[1]). Partiu de um movimento de juristas que, imbuídos pelo ideal da advocacia, se organizaram para a sua criação. Na década de 1930, nascia a OAB, capitaneada pelo advogado Levi Carneiro, que ocupou cargos no Instituto dos Advogados Brasileiros e da Ordem dos Advogados do Brasil, onde foi seu primeiro presidente.

A despeito de previsão legal, a Ordem não é fruto estatal. Por essa razão, desde o início agiu contra cerceamento a liberdades individuais e foi entidade independente do Estado. Não depende do Estado para seu sustento, para obtenção de suas receitas, para atuação perante o Poder Público e em favor dos direitos. A liberdade e a defesa dos direitos são suas bandeiras inegociáveis e é por isso que o julgamento que se avizinha no Supremo Tribunal Federal (STF) é tão relevante.

O STF começou a julgar o Tema 1054 (“controvérsia relativa ao dever, por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, de prestar contas ao Tribunal de Contas da União” – RE 1.182.189, Rel. Min. Marco Aurélio). A questão, que não é nova (foi aventada no julgamento da ADI 3026), é de suma relevância para traçar os rumos da mais importante organização civil do Brasil.

O ministro Lewandowski pediu destaque no julgamento do plenário virtual sobre a submissão ou não da OAB à fiscalização do TCU. Marco Aurélio votou e foi favorável à necessidade de fiscalização das contas da entidade. O ministro Edson Fachin inaugurou a divergência: para ele, a OAB não está obrigada a prestar contas ao TCU nem a qualquer outra entidade externa. O julgamento continuará no plenário físico.

A posição que ocupa a OAB no texto constitucional é singular. É a única entidade civil que participa de concursos públicos (Magistratura – art. 93, I; Ministério Público – art. 129, §3º; Advocacia Pública – art. 132). A OAB é legitimada para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (art. 103, VII); indica membros para o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, XII) e para o Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, V); escolhe membros de tribunais (art. 94).

Por fim, importante destacar que a advocacia, que ela representa, é a única função não exclusivamente estatal da estrutura do sistema de Justiça brasileiro: “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (art. 133).

Não se trata de autarquia de fiscalização profissional (conselhos profissionais) nos moldes adotados por outras profissões, como a medicina e engenharia. Essas estão sob o controle externo do TCU, recebem tributos (taxas) estabelecidos por lei, realizam concurso público e processos licitatórios. A OAB funciona como entidade privada no manejo de sua estrutura: estabelece suas anuidades, contrata pelo regime trabalhista e não está limitada por processos licitatórios públicos.

A posição da OAB a partir da Constituição é clara: procurou o constituinte dar-lhe independência no seu funcionamento e nas suas escolhas, não estando sob os limites estatais de controle externo, nada obstante sujeite-se a regras de gestão, transparência e controle interno, a exemplo do Provimento 185/2018 do Conselho Federal.

O fim é evidente: serve a OAB como um sustentáculo civil às normas constitucionais; serve como um contraponto ao Poder Público expressando vozes de cidadãos comuns; não defende só a classe da advocacia, mas a sociedade por inteiro, a teor do disposto expressamente no art. 44, I da Lei 8.906/1994. Diferencia-se, claramente, das demais autarquias e conselhos profissionais, que têm como fim delimitado a regulação e controle de determinada classe profissional; e também se diferencia das associações e sindicatos, os quais são igualmente voltados para apenas uma fatia da sociedade.

No passado, o STF já se debruçou sobre a questão. Em 2006, na ADI 3026, sob relatoria do Ministro Eros Grau, entendeu o STF que “por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça (…)”. [2]

Aliás, o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) prevê que a “Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade (…) defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (inciso I, art. 44).

Por outro lado, dentre as competência constitucionais atribuídas ao Tribunal de Contas da União (TCU) não se encontra nenhuma que albergue a fiscalização das contas da OAB, haja vista que seus recursos não são provenientes dos cofres públicos. Diferentemente de outras carreiras integrantes do sistema de Justiça, que muito embora sejam também essencias à sua administração, e às quais também são asseguradas independência e autonomia para exercer suas funções, são integralmente remuneradas e suas estruturas mantidas com recursos totalmente provenientes dos cofres públicos.

Resta salientar que a OAB estabeleceu diversas normas de transparência e responsabilidade orçamentária, preocupada com a necessidade de expor suas decisões, suas receitas e despesas, e seus investimentos. Não é porque não está sujeita a controle externo do TCU que não será accountable perante à advocacia e à sociedade.

A manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito, muitas vezes a voz mais crítica, por sua independência, necessariamente toca no julgado do Tema 1054 do STF. O controle externo por um órgão do Estado (o TCU) adicionará ingrediente arriscado na receita democrática da Constituição da República. A OAB mantém o equilíbrio de forças entre Poder Público e sociedade civil e um julgamento que a alije da independência vergará o já combalido equilíbrio da nossa democracia.

[1]            O Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, previu: “Art. 17. Fica criada a Ordem dos Advogados Brasileiros, órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados, que se regerá pelos estatutos que forem votados pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, com a colaboração dos Institutos dos Estados, e aprovados pelo Governo”.

[2]            Podemos citar mais dois julgados do STF:

(1) Em 2016, no Recurso Extraordinário 595.332 PR o Ministro Marco Aurélio compreendeu a OAB como “autarquia corporativista”, e por essa razão a competência para julgar processos judiciais será da Justiça Federal. Nesse julgamento, destaca-se o voto do Ministro Roberto Barroso:

“Eu acho que a Ordem tem uma posição muito singular. Eu acho que ela presta um serviço público, mas tenho dúvida se ela pode ser tipificada como uma entidade estatal, até pelo tipo de independência que precisa ter e porque acho que ela não é obrigada a fazer concurso público, o que seria uma consequência natural, se eu a considerasse uma pessoa jurídica de direito público.

Desse modo, eu gostaria de ressalvar algumas dúvidas quanto à natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil. Porém, não tenho nenhuma dúvida de que é pacífico o entendimento de que a competência é da Justiça Federal. Portanto, eu estou acompanhando o Ministro Marco Aurélio, apenas me reservando para, em algum lugar do futuro, se vier a ser oportuno, tentar refletir sobre esta natureza singular da OAB.”

(2) No Recurso Extraordinário 405.267, sob relatoria do Ministro Fachin, assim julgou o STF:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA AFETADA PARA JULGAMENTO NO TRIBUNAL PLENO PELA SEGUNDA TURMA. ARTIGOS 11, I, PARÁGRAFO ÚNICO C/C 22, PARÁGRAFO ÚNICO, “B”, AMBOS DO RISTF. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. ART. 150, VI, “A”, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS. 1. A questão referente à imunidade aplicável às entidades assistenciais (CF, 150, VI, “c”) é impassível de cognição na via do recurso extraordinário, quando não há apreciação pelas instâncias ordinárias, nem foram interpostos embargos declaratórios para fins de prequestionamento. Súmulas 282 e 356 do STF. 2. É pacífico o entendimento de que a imunidade tributária gozada pela Ordem dos Advogados do Brasil é da espécie recíproca (CF, 150, VI, “a”), na medida em que a OAB desempenha atividade própria de Estado. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta, tal como as autarquias, porquanto não se sujeita a controle hierárquico ou ministerial da Administração Pública, nem a qualquer das suas partes está vinculada. ADI 3.026, de relatoria do Ministro Eros Grau, DJ 29.09.2006. 4. Na esteira da jurisprudência do STF, considera-se que a Ordem dos Advogados possui finalidades institucionais e corporativas, além disso ambas devem receber o mesmo tratamento de direito público. 5. As Caixas de Assistências dos Advogados prestam serviço público delegado, possuem status jurídico de ente público e não exploram atividades econômicas em sentido estrito com intuito lucrativo. 6. A Caixa de Assistência dos Advogados de Minas Gerais encontra-se tutelada pela imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, “a”, do Texto Constitucional, tendo em vista a impossibilidade de se conceder tratamento tributário diferenciado a órgãos da OAB, de acordo com as finalidades que lhe são atribuídas por lei. 7. Recurso extraordinário parcialmente conhecido a que se nega provimento”(RE 405267, Rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 06/09/2018).

MARILENA INDIRA WINTER – Vice-Presidente da OAB/PR, Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR, Pro-fessora de Direito Civil da PUC/PR, Procuradora do Município de Curitiba.
RODRIGO LUÍS KANAYAMA – membro do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR). Na Faculdade de Direito da UFPR, é Professor Adjunto de Direito Financeiro e Chefe do Departamento de Direito Público. É Conselheiro Estadual da OAB/PR, onde também preside a Comissão de Estudos Constitucionais, e sócio da Kanayama Advocacia em Curitiba.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/oab-controle-externo-tcu-11102020

A inconstitucionalidade do desrespeito à autonomia para nomeação de reitores

A inconstitucionalidade do desrespeito à autonomia para nomeação de reitores

Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza, Gustavo Buss e Kamila Maria Strapasson

O processo de nomeação de reitores e vice-reitores para as universidades públicas brasileiras se encontra regido pelo artigo 16, inciso I, da Lei Federal nº 5.540/68, que dispõe que os reitores serão nomeados pelo presidente da República entre professores, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo.

Posteriormente, reforçando a previsão contida na legislação federal, foi editado o Decreto Federal nº 1.916, de 23/5/1996, cuja redação dá maior dimensão para o procedimento de consulta à comunidade acadêmica para elaboração da lista tríplice referida no artigo supracitado.

Diante da constatação de que a apresentação da lista tríplice pela instituição universitária é antecedida de um rigoroso processo de consulta comunitária, que contempla em seu colégio eleitoral docentes, servidores técnicos e discentes, desde 2003 restou assentada a prática costumeira de nomeação pelo presidente da República do primeiro nome da lista [1], em respeito à autonomia universitária assegurada constitucionalmente no artigo 207 da Constituição Federal de 1988.

Recentemente, sob o governo Bolsonaro, tal prática restou absolutamente relegada, tendo havido diversas nomeações ao cargo de reitor de postulantes que foram os últimos colocados nas respectivas consultas públicas, com índices percentuais irrisórios, os quais compartilhavam a mesma ideologia do presidente.

Até setembro de 2020, 14 dos 25 reitores indicados pelo presidente Jair Bolsonaro não eram os primeiros colocados da lista tríplice, conforme levantamento da Andifes [2]

Nesse âmbito, um exemplo notório é o da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Naquela ocasião, a chapa nomeada pelo presidente para ocupar os cargos de reitor e vice-reitor obteve apenas 18,33% na consulta interna à comunidade, tendo alcançado a terceira e última posição na lista tríplice [3].

O que se destaca na postura do atual governo, especialmente em sua condução do campo científico e educacional, é o endosso de discursos anti-intelectuais fundamentados em uma política autoritária de controle sobre discursos acadêmicos que se consideram contrários aos seus interesses.

Tal postura de confronto entre a administração federal e as universidades públicas já se revela notória, tendo desde 2019 se observado os primeiros movimentos de ataque às mesmas pelo governo federal, especialmente quando do contingenciamento de 28,46% do orçamento para o setor de educação, que restou distribuído de maneira claramente desigual, onerando principalmente a educação superior [4].

Posteriormente, houve novos embates importantes com a edição da Portaria nº 34/20 pela Capes, implicando em extensivo corte na ferramenta de custeio para programas avaliados em extratos mais baixos, e após publicação de edital pela CNPq para ofertar 25 mil bolsas de pesquisa, excluindo cursos de áreas como educação, direito, economia, ciências sociais e filosofia [5].

Outro exemplo da ingerência na autonomia universitária pelo governo federal foi a edição da Medida Provisória nº 979, de 9 de junho de 2020. A MP previa que, em caso de término de mandato dos atuais dirigentes durante a pandemia da Covid-19, seria designado reitor e vice-reitor pro tempore para universidades federais pelo ministro da Educação, sem um processo de consulta à comunidade. Considerando seu teor, a MP foi devolvida ao Executivo pelo presidente do Congresso tendo em vista a afronta aos artigo 206, inciso VI, e artigo 207 da Constituição. 

Tais condutas reiteradas demonstram a existência de uma agenda específica por parte do governo federal, que busca em slogans de discricionariedade executiva e reformulação técnico-científica do ensino universitário uma ferramenta para perseguição contra grupos e campos específicos do pensamento crítico [6].

Reiterando essa visão, estudo publicado pelo Global Public Policy Institute (GPPi), em setembro de 2020, salienta que as ameaças à liberdade acadêmica no Brasil perpassam, entre outros aspectos, canais de denúncias de reclamações políticas e ideológicas, declarações falsas sobre a comunidade acadêmica e novas normas e interpretações que afetam a governança institucional, aparentando estar em curso nas novas medidas governamentais ameaças mais graves que objetivam aumentar o controle sobre as universidades [7].

As posturas do governo Bolsonaro revelam a cristalização da posição autocrática e atentatória na condução da pauta educacional, que não consegue aceitar a pluralidade e a diferença como constitutivas do espaço universitário. Quando se fala em educação pública superior no Brasil, a autonomia de ensino e gestão, bem como a progressividade e isonomia no trato das diferentes instituições e das diferentes áreas do saber, integram a garantia social básica traçada no texto constitucional.

Cabe salientar que a autonomia administrativa, que envolve a capacidade de organização das universidades e de autogoverno por seus próprios membros, possui uma função instrumental em relação à autonomia didático-científica [8]. Nesse ponto, a designação de reitores e vice-reitores afeta não apenas a autonomia administrativa, mas também, em última instância, a autonomia didático-científica das universidades federais.

Tal contexto atentatório às garantias de democracia e autonomia universitária não passam despercebidos aos diferentes setores políticos brasileiros. Há notícia de que o Partido Verde (PV) propôs a ação direta de inconstitucionalidade, autuada sob nº 6565 e distribuída para a relatoria do ministro Edson Fachin, atacando o artigo 16, inciso I, da Lei Federal nº 5.540/68 e o artigo 1º do Decreto Federal nº 1.916, de 23/5/1996.

Em pedido liminar, a ação busca a suspensão da vigência dos artigos atacados, para suspensão das nomeações nos processos em curso e para que sejam nomeados exclusivamente os candidatos mais votados nas consultas realizadas junto à comunidade acadêmica. No mérito, busca a declaração da inconstitucionalidade dos referidos artigos.

Cumpre enfatizar que não se trata da primeira ocasião em que o STF é instado a se manifestar acerca da possibilidade de nomeação discricionária de reitores e vice-reitores na vigência da Constituição Federal de 1988. A ADI 51, do Rio de Janeiro, atacava a Resolução nº 02/88 do conselho universitário da UFRJ, que dispunha sobre a eleição junto à comunidade acadêmica.

Naquela hipótese, houve decisão unânime do tribunal, nos termos do voto de relatoria do ministro Paulo Brossard, no sentido de que a resolução usurpava a competência do presidente da República, determinando que o vencedor da eleição junto à comunidade acadêmica fosse imediatamente empossado pelo conselho universitário. Enfatizou-se que a garantia de autonomia assegurada no artigo 207 da Constituição não se revela absoluta, e nem afasta as prerrogativas igualmente conferidas ao Poder Executivo na nomeação de cargos públicos federais (artigo 84, inciso II, da Constituição).

Em sentido análogo, o STF apreciou a ADI 578, em que se impugnou o artigo 213, §1º, da Constituição Estadual, que previa que os diretores de escolas públicas estaduais seriam escolhidos mediante eleição direta e uninominal pela comunidade escolar. O voto vencedor, de relatoria do ministro Maurício Coreia, enfatiza que a nomeação para cargos diretivos é discricionária pelo chefe do Poder Executivo, diante do contido no artigo 84 da Constituição Federal, decretando a inconstitucionalidade da previsão contida na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.

Entretanto, há dois importantes votos divergentes na ação indicada, dos ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. Tal dissenso busca ressaltar a previsão de gestão democrática da educação e de autonomia institucional e administrativa, tornando salutar a existência de um processo eleitoral direto da comunidade escolar ou universitária, que não fere a disposição do artigo 84 da Constituição Federal, que claramente condiciona a prerrogativa de nomeação à forma da lei.

Contudo, tais decisões da corte se deram em um contexto político distinto, tendo transitado em julgado, respectivamente, em 1993 e 2001, não devendo prevalecer na atualidade a visão de ampla discricionariedade pelo chefe do Poder Executivo na nomeação de reitores. Isto é, nessa nova conjuntura política de ataque do Poder Executivo à autonomia universitária, é o momento de o STF enfrentar o tema e realizar um overruling em relação aos seus entendimentos anteriormente expostos, revendo eventuais deferências a uma discricionariedade que pode se revelar despótica, para assegurar a estrita observância dos princípios constitucionais que asseguram a gestão democrática e a autonomia universitária, exercendo seu papel de contrapeso ao executivo.

Assim, alçada a discussão à esfera da autonomia universitária, é imperativo o reconhecimento de que o STF já teve oportunidade de, em contextos diferentes, mas que dialogam por bases comuns, assegurar sua imposição.  Nesse ponto, ao analisar as normativas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o STF, a partir do método indutivo, deverá considerar os precedentes já estabelecidos recentemente, os quais vêm reafirmando a importância do princípio da liberdade de expressão e da autonomia universitária. Por oportuno, serão ressaltados três casos recentes julgados pela corte e cujo escrutínio deve auxiliar na compreensão da análise ora colocada.

Em primeiro lugar, de forma mais geral, evidenciando as bases do direito à educação, a ADPF 457, julgada em 27/4/2020, que discutia a proibição de divulgação de material com informação de ideologia de gênero em escolas municipais, ressalta no voto de seu relator, Alexandre de Moraes, a necessidade de respeito aos princípios da liberdade de aprender e ensinar, ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como à liberdade de expressão.

Já a ADPF 548, julgada em 15/5/2020, reafirma o princípio constitucional da autonomia universitária ao, por unanimidade,  declarar nulas decisões que proibiram atos com temática eleitoral nas universidades em 2018 e declarar inconstitucional a interpretação dos artigos 24 e 37 da Lei 9.504/1997 para justificar atos judiciais ou administrativos que admitam o ingresso de agentes públicos em universidades, entre outros.

O voto da ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, tratando do princípio constitucional da autonomia universitária, trouxe ênfase a necessidade da garantia do pluralismo de ideias e ao direito às liberdades de expressão do pensamento, salientando que: “Os atos questionados cercearam o princípio da autonomia universitária porque se dirigiram contra comportamentos e dados constantes de equipamentos havidos naquele ambiente e em manifestações próprias das atividades-fim a que se propõem as universidades”. Ainda: “A autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais”.

Por sua vez, de forma mais específica, a ADI 3.792, que trata sobre a obrigação de a UERN prestar serviço de assistência judiciária, durante os finais de semana aos necessitados presos em flagrante delito, destaca que o princípio da autonomia universitária impede a indevida ingerência no âmago próprio das funções da universidade, assegurando à universidade a possibilidade de dispor sobre sua estrutura e funcionamento administrativo.

Tais casos denotam que, em um cenário de modificação das condições políticas do país, com uma postura de intervenção do executivo na autonomia universitária e desrespeito à escolha da comunidade acadêmica, a interpretação literal dos dispositivos normativos não pode mais ser admitida à luz da Constituição e de seus princípios. São justamente por trás de pequenos atos, ditos excepcionais, tensionando as garantias e limites legitimamente colocados, que residem as bases para a desconstrução democrática em contextos de constitucionalismo abusivo [9].

Nesse contexto, incumbe aos poderes constituídos, em especial ao judiciário, que fará a análise em controle concentrado de constitucionalidade, que se coloquem como guardiões da Constituição, a qual assegura a autonomia universitária enquanto princípio substantivo e fundante do Estado democrático instaurado a partir de 1988. A resposta a ser dada pelo STF em relação aos dispositivos normativos deverá demonstrar a importância do constitucionalismo liberal enquanto projeto ativo e militante na proteção das garantias constitucionais em seu aspecto material e substantivo. 

[1] MENDES, Conrado Hübner. et al. Academic Freedom in Brazil: A Case Study on Recent Developments. Global Public Policy Institute (GPPi), setembro de 2020, p. 15.

[2] Lupion, Bruno. Relatório aponta sério risco à liberdade acadêmica no Brasil. DW. Data 20.09.2020. Disponível em: https://p.dw.com/p/3ikCY>. Acesso em: 24/09/2020.

[3] Ufersa. Consulta para lista tríplice à reitoria da ufersa. 18/09/2020. Disponível em: <https://assecom.ufersa.edu.br/2020/05/21/consulta-para-lista-triplice-a-reitoria-da-ufersa/>. Acesso em 24/09/2020.

[4] OLIVEIRA, Ribamar. Corte em universidade chega a 52% da verba. Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/coluna/corte-em-universidade-chega-a-52-da-verba.ghtml>. Acesso em: 10/06/2020.

[5] SALDAÑA, Paulo. Governo Bolsonaro exclui humanas de edital de bolsas de iniciação científica. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/governo-bolsonaro-exclui-humanas-de-edital-de-bolsas-de-iniciacao-cientifica.shtml>. Acesso em: 10/06/2020.

[6] Nesse sentido, é relevante o estudo realizado quanto aos marcos da autocracia evidentes no governo do Presidente Jair Bolsonaro: BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; INOMATA, Adriana. Constitucionalismo Abusivo e o Ataque ao Judiciário na Democracia Brasileira. In: CONCI, L. G. A.; DIAS, R. (org). Crise das democracias liberais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019.

[7]MENDES, Conrado Hübner. et al.  Academic Freedom in Brazil: A Case Study on Recent Developments. Global Public Policy Institute (GPPi), setembro de 2020, p. 4.

[8] MOTTA, Fabrício Macedo. Autonomia universitária e seus reflexos na escolha dos dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 116, pp. 277-307, jan./jun. 2018, p. 289.

[9] BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; FILHO, Ilton Norberto Robl, Constitucionalismo Abusivo, Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 12, n. 39, p. 79–97, 2019, p. 85.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-out-04/opiniao-desrespeito-autonomia-nomeacao-reitores