A Constituição merece ser levada muito a sério
E nunca foi tão importante estudá-la
Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA
Bastante se falou sobre os trágicos eventos que tentaram abalar uma das maiores democracias ocidentais neste início de 2021. Houve variadas reações institucionais, algumas bizarras. Mas o que se passou não foi apenas um arremedo de golpe de Estado, nem somente a expressão da violência que alguns tentam fazer habitar o nosso cotidiano.
Para além dessa superfície repugnante, a substância de tais ações e reações é uma só: o respeito – ou não – à Constituição. Não só ao texto constitucional, mas especialmente à função que a Constituição desempenha em nossas vidas. Para que ela serve e por que devemos nos preocupar em protegê-la.
O constitucionalismo é uma das maiores conquistas civilizatórias, desde a Idade Moderna. Como assinala o gigante chamado Gomes Canotilho, as constituições são o “estatuto jurídico do político”. Prestam-se a definir regras jurídicas ao exercício de um poder que, em seu estado natural, aprecia funcionar alheio a quaisquer leis.
Ou melhor, por meio de comportamentos alheios à lógica ou à moral, como o bem demonstraram, dentre tantos, Machiavel e Montesquieu (ou a série House of Cards).
Afinal, a política é como os felinos: pode até ser um animal doméstico, mas jamais domesticável. Ingressa nas nossas vidas, mas faz o que quer. O exercício do seu viver não se conforma às leis: os gatos fazem o que querem, quando querem. Por isso que a vida política – por meio de seus atores principais ou pelos coadjuvantes – demanda atenção diária. Exige respeito ativo às regras, bem como alguém que determine a sua execução caso desrespeitadas.
Logo, é necessária uma Lei Fundamental, que constitua, limite e, só assim, legitime o exercício do poder político. A Constituição não é o governante, mas a técnica jurídica de lhe cometer algum poder: aquele que pode ser exercido. Nem mais, nem menos, só o que a Constituição atribui. A norma constitucional tenta domesticar o animal político, conferindo racionalidade jurídica ao seu comportamento.
Mas, para que isso funcione, é preciso levar muito a sério a Constituição e o estudo do Direito Constitucional. Lá se prescreve como os poderes constituídos devem funcionar e a margem de divergências aceitável. Em situações de crise, ela é o porto seguro que garante a estabilidade das instituições. Inclusive, assegura que eventuais abusos sejam imediatamente reprimidos e maus gestores públicos afastados.
Quando há indivíduos que não se conformam à derrota e ameaçam tomar por força o exercício do poder político, esquecem que existe uma Constituição. Ou, pior ainda, consideram que a Constituição tem conteúdo nulo, um espaço vazio, podendo ser moldada conforme seus próprios interesses. Ela seria um aparato à serviço da política. Constatação que revela ignorância ou desprezo constitucional. Ou a combinação de ambos.
O progresso constitucional, longe de demandar mudanças constantes, baseia-se na conservação de seus pilares, sendo o mais importante o pacto de existência de uma comunidade de valores e princípios que trata a todos com igual respeito e consideração. Alterações absolutas ou desrespeitos equivalentes significam que nada há a ser conversado.
Por isso que, se a Constituição não for estudada, será mais difícil ainda conservá-la. A infância constitucional será eterna e alcançar o igual tratamento uma mera ilusão.
Diante do processo global que ameaça democracias e os pactos básicos, temos que compreender o Direito Constitucional em seu texto, contexto e funções. Isso implica atentar que muitas das ameaças não partem de quebras constitucionais imediatas, mas de modificações paulatinas que levam à perda da identidade constitucional, e, ao final, à transformação da Constituição em um espaço sem conteúdo, desprovida de força. Note-se quanto de ignorância e desprezo existe nisso.
Mas, se o risco aparece pela forma de manifestações patológicas pontuais, os sinais devem ser levados à sério sob pena de erosão do edifício constitucional. Daí que transgressões constitucionais não podem ser toleradas. Nem as supostamente mínimas. As instituições devem barrar comportamentos de enfrentamento constitucional, sem atenuar e tampouco normalizar tais práticas.
Estudar o Direito Constitucional é mais do que conhecer artigos constitucionais e teorias, é abraçar o compromisso de construção republicana e democrática do Estado de Direito, de forma que projetos discrepantes devem ser refutados. Como se vê, nunca foi tão urgente e necessário estudar e construir o Direito Constitucional.
HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-merece-ser-levada-muito-a-serio-22012021