A morte de Mateus Noga e o acesso às imagens de videomonitoramento das vias públicas

A morte de Mateus Noga e o acesso às imagens de videomonitoramento das vias públicas

Sem fundamento legal, esconder do público a evidência de um possível crime pode caracterizar ato de improbidade

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MAURICIO STEGEMANN DIETER

 

Mateus Noga, um jovem de 22 anos, foi morto com tiros nas costas pela Guarda Municipal de Curitiba durante uma batida para cessar uma confusão em conhecido lugar de festejo no centro da cidade – o Largo da Ordem.

Segundo a Guarda Municipal, após ser recebida com garrafadas, houve os disparos para dissipação da confusão e o jovem foi morto.

Não tem sido incomum a Guarda Municipal fazer abordagens, muitas vezes truculentas, e atuar como se Polícia Militar fosse, ainda que sua função seja a de proteção dos bens, serviços e instalações municipais, conforme art. 144, §8º da Constituição.

A solução do caso, ou ao menos da regularidade da atuação da Guarda Municipal seria de fácil verificação pelo sistema de viodemonitoramento da cidade de Curitiba. Um sistema moderno, chamado de muralha digital.

No entanto, mesmo após diversos pedidos de veículos da imprensa que cobrem o caso, as imagens seguem sendo negadas. A justificativa para a negativa? Uma lei municipal (Lei Ordinária 15.405/2019) que veda a disponibilização de acesso por terceiros dos dados, informações e imagens do sistema de videomonitoramento.

A negativa da Guarda Municipal não se sustenta. A disponibilização de acesso às imagens pode ser regulada para resguardar a imagem e a vida privada das pessoas que transitam pelos espaços públicos. Mas, essas imagens não podem não ser disponibilizadas para verificação da ocorrência de possíveis ilícitos. Assim, deve sim ser possível se obter acesso a essas imagens, desde que se justifique o interesse na disponibilização.

A publicidade é essencial para o controle da atividade policial, especialmente porque o controle judicial se exerce após os fatos, em análise retrospectiva. Sem transparência, portanto, é difícil – ou mesmo impossível – a disciplina legal do policiamento ostensivo exigida pelas democracias.

No caso de Mateus Noga, se busca acesso às imagens para verificação de um fato extremamente grave: a morte de um jovem pela Guarda Municipal, com indícios de ilícito (inúmeras perfurações, pelas costas, de um jovem que não portava qualquer tipo de artefato que pusesse em risco agentes de segurança armados).

Existe aí um interesse da família do jovem morto em saber exatamente como se deu a atuação da Guarda Municipal que resultou na morte com tiros pelas costas de arma de alto calibre. E existe também um interesse público geral em saber como se deu essa atuação da Guarda Municipal e o que de fato ocorreu.

Quando um guarda municipal está no exercício de suas funções, não há dúvida de que as garantias constitucionais de intimidade e vida privada estão parcialmente suspensas.

Suas ações em ambiente público submetem-se aos olhos e ouvidos da sociedade e do Estado, no momento em que ocorrem ou por meio de consulta a registro audiovisual.

Graças ao desenvolvimento tecnológico, o monitoramento permanente, por áudio e vídeo, já é uma realidade para milhares de policiais brasileiros. Trata-se de tendência inexorável, devidamente respaldada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, e prova suficiente de que não há qualquer conflito constitucional nesse sentido.

Assim, não se pode objetar o acesso às imagens de videomonitoramento para a elucidação de fato relevante, grave, ocorrido em via públicas, por agentes públicos de segurança.

Neste caso, prevalece o direito fundamental de acesso à informação (artigo 5º, XIV da CF/88) e o direito de todos a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo vou geral (artigo 5º, XXXIII da CF/88).

Não à toa esse direito fundamental também se encontra previsto em tratados internacionais de Direitos Humanos que vinculam o Estado brasileiro como um todo, inclusive a Prefeitura de Curitiba e sua GM – Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19).

Como regra, as imagens que registram eventuais ilicitudes praticadas por agentes policiais devem estar à disposição do público em geral. O sigilo, sempre excepcional, deve ser decretado pelo Poder Judiciário, a partir do exame do caso concreto e acompanhado da devida fundamentação, a indicar risco para a investigação, para os investigados, para as testemunhas ou para a vítima.

A proibição de acesso jamais pode ser antecipada de modo genérico por uma lei municipal, ocultando a possibilidade de verificação do ocorrido sem sólida justificativa. Trata-se de violação aos direitos fundamentais de informação e aos princípios básicos da Administração Pública (art. 37, §3º, II, CF/88).

Além disso, o inquérito policial, geralmente, é público. Logo, também devem ser as imagens que o instruem. Não há razão para se negar o pedido de acesso às imagens. A existência de elementos e dados sujeitos à sigilo, como, por exemplo, a presença de imagens ou informações de menores de idade, podem acarretar o sigilo específico de parte do inquérito, da imagem, mas não sobre todo o inquérito e nem sobre as imagens.

Policiais e guardas municipais só podem agir no estrito cumprimento do dever legal e a visibilidade é condição tanto para delimitação do arbítrio como para comprovação de eventual justificação.

Sem fundamento legal, esconder do público a evidência de um possível crime, fora da hipótese de legítima defesa, pode caracterizar ato de improbidade. A depender dos motivos e outros elementos associados à recusa, pode inclusive ser considerado crime.

Diante disso, a divulgação de imagens públicas pode e deve ocorrer. E as autoridades públicas podem ainda, se possível, ter o zelo de, em respeito à privacidade das demais pessoas que aparecem no vídeo, promover a descaracterização, por exemplo, com tarjas ou quadriculados.

O que certamente não se pode é não se dar acesso às imagens públicas sobre a atuação dos guardas municipais e sobre como eles atuaram num local tão conhecido, sobre tantas pessoas, com feridos e um jovem morto pelas costas.


MIGUEL GUALANO DE GODOY
– Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.MAURICIO STEGEMANN DIETER – Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-morte-de-mateus-noga-e-o-acesso-as-imagens-de-videomonitoramento-das-vias-publicas-28092021