O STF, a ADPF 709 e a sala de situação

O STF, a ADPF 709 e a sala de situação – um diálogo ilusório

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CAROLINA SANTANA e LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA

ADPF 709 tem se tornado significativa por pelo menos 5 razões: por quem propôs; pelo que ela pede; pelas decisões iniciais, tanto do ministro relator, quanto do Plenário do STF; pela Sala de Situação; e pelo que tem se tornado.

Neste breve artigo, resumimos alguns pontos de uma pesquisa mais ampla sobre a ADPF 709 e a Sala de Situação[1]. Dentre os pontos indicados acima, enfocamos especialmente a Sala de Situação – espaço que parece tão inovador, quanto promissor. Só parece. Vejamos.

Por quem propôs:

A ADPF 709 foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma entidade que reúne diversos grupos, coletivos, povos e comunidades indígenas de todo o País. Seu principal advogado na ADPF 709 é um indígena terena, Luiz Eloy Terena.

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, há tempos vem defendendo reler, no art. 103, IX, CRFB/88, o sentido de “entidade de classe de âmbito de nacional”, para incorporar, além das categorias profissionais e grupos econômicos, entidades que atuem na defesa de grupos vulneráveis ou minoritários. Com a propositura da ADPF 709, Barroso reiterou esse entendimento, e foi além.

Apesar de a APIB não ser constituída formalmente como associação, não possuir um CNPJ, aceitou sua atuação como entidade de classe de âmbito nacional tendo em vista sua plural e ampla composição, bem assim o direito dos indígenas de exercerem a representação judicial e direta de seus interesses (art. 232, CRFB/88). Um avanço, portanto, em termos de reconhecimento da legitimidade ativa e da visibilidade e voz dos povos indígenas por eles mesmos. A decisão do ministro relator foi, inclusive, referendada pelo Plenário do STF.

O que ela pede

Busca evitar e reparar atos comissivos e omissivos do Poder Público, especialmente do Governo Federal, que têm exposto comunidades indígenas, inclusive de indígenas isolados, à pandemia da Covid-19. Povos indígenas são minoria sistematicamente negada e invisibilizada pela nossa história e instituições. Mas especialmente negada, silenciada e invisibilizada pelo presidente Bolsonaro e seu governo.

Ademais, indígenas têm vulnerabilidades socioepidemiológicas, e têm sofrido mais na pandemia[2]. Merecem maior atenção do estado. No entanto, tem ocorrido justamente o contrário. Ações e omissões sistemáticas têm levado à morte um sem número de indígenas. O povo Juma, por exemplo, perdeu seu último homem na pandemia.

Decisões iniciais do relator e do STF

As decisões do ministro Luís Roberto Barroso e do Plenário do STF foram relevantes e promissoras. Reconheceram a legitimidade ativa, deram visibilidade e voz às demandas urgentes e emergentes dos povos indígenas durante a pandemia. A decisão monocrática do ministro Barroso, determinando uma série de medidas ao Governo Federal e aos diversos órgãos que deveriam estar envolvidos e dedicados à proteção dos direitos indígenas (plano de contingência, instalação da sala de situação etc.), foi necessária e bem-vinda. O endosso maciço do Plenário também. Barroso, aliás, elencou esta decisão como uma das 15 decisões históricas do Tribunal.

Mas seu significado positivo parece ter ficado por aí, em seu começo e em sua intenção. O que deveria produzir de resultados concretos, parece não vir. Ou vir a conta-gotas. O tempo que passa, as medidas que não se tomam, são o tempo do extermínio continuado dos povos indígenas e as ações e omissões que dão cabo deles. O povo Juma está condenado ao desaparecimento. O cacique Aritana morreu. Há muitas e muitos outros. Todos os nomes deveriam constar aqui. Todos.

Instalada com base nos pedidos “a” e “b” da petição inicial, a Sala de Situação tem o objetivo de garantir “a imprescindibilidade de diálogo intercultural, em toda questão que envolva os direitos de povos indígenas”. Mas não é nova, nem foi criada pelo STF. Está prevista na Portaria Conjunta 4094/18, que a APIB acionou o Poder Judiciário para fazer cumprir.

Pela Portaria, a Sala de Situação deve ser composta por membros indicados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena/Ministério da Saúde e membros indicados pela Funai, e pode ser integrada também por colaboradores convidados, com a anuência conjunta de ambos os órgãos (art. 12, § 2º). Trata-se de instância de caráter técnico com vistas a “subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” (art. 12 caput).

Instalada em 17 de julho de 2020, a primeira reunião da Sala de Situação contou com mais de 60 participantes. Representando o governo federal: generais, brigadeiros e coronéis do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), representantes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), o Ministério da Defesa (MD), representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai). Representando a APIB, quatro indígenas, entre eles um dos advogados da ADPF[3].

Como apoio técnico, três indigenistas[4] e dois médicos sanitaristas[5], além do Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU). A primeira reunião foi conduzida pelo Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Augusto Heleno. O GSI segue conduzindo as reuniões há mais de dez meses. Embora haja previsão na Portaria 4094/18 para participação de colaboradores convidados, pressupõe-se que sejam especialistas no assunto.

O protagonismo das forças militares na Sala dificultou, desde o início, qualquer possibilidade de diálogo e adoção de critérios técnicos, a ponto de o ministro relator ter precisado nomear observadores para as reuniões a fim de arrefecer os debates e permitir análises mais técnicas. O teor da Portaria 4094/18, protetiva da saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato, perdeu-se diante da configuração que a Sala tomou.

Nisso também consiste a vulnerabilidade política[6] a que estão sujeitos os povos isolados – não apenas a sua não participação na política tradicional, como no desconhecimento e desuso das normativas protetivas de seus direitos, especialmente no Poder Judiciário.

Os indígenas indicados pela APIB para representarem a Articulação nas reuniões da Sala de Situação não veem o espaço como um local de diálogo intercultural. Eriverto Marubo afirma que o fato de a instância estar sendo coordenada por militares demonstra que não há interesse de seguir os procedimentos usuais de diálogo, como em outros governos.

Para ele, que vê nessa escolha de representantes uma postura de intimidação, com pessoas ali colocadas para convalidar as ações governamentais já decididas previamente. Para Marubo, o espaço aberto pela ADPF 709 está sendo utilizado pelo governo para chancelar os seus interesses[7].

Para Angela Kaxuyana, um diálogo intercultural pressupõe o entendimento das culturas e a consideração de especificidades e da diversidade. Segundo ela, pela forma como foi instituído o diálogo, o entendimento do Estado sobre o tema é sempre tido como primordial[8].

O STF nada fez para garantir que, nessa instância de diálogo, os povos indígenas fossem ouvidos, que não fossem tratados como uma população uniforme, e que tivessem suas experiências consideradas. Não basta que se reconheçam as narrativas indígenas, mas também seus narradores.[9] Isso significa atenção aos seus costumes de fala, seus tempos e, inclusive, compreensão com a desconfiança que depositam em nós. Mas, isso não tem sido visto na Sala de Situação, mesmo sob às vistas do STF.

Para ser genuína, a abertura judicial ao diálogo depende de quem discute, de qual posição, sobre o que se discute. Um diálogo no qual os agentes são majoritariamente estatais, militares, sem apreço ou abertura aos indígenas e suas particularidades (desde a inclusão digital para a Sala de Situação até os seus reclamos mais básicos pelo cuidado, ao menos respeito, de suas vidas) ignora os sujeitos mais fundamentais de todo o processo: os próprios povos indígenas.

O arranjo da Sala de Situação se manteve, desde o início, apartado de quem mais deveria fazer uso desse espaço. Mesmo sob a supervisão de um ministro do STF. É, assim, um espaço em princípio destinado ao diálogo, mas avesso a ele em forma e substância. Mesmo após as primeiras reuniões mal sucedidas, nenhuma medida foi adotada. Enquanto essas distorções permanecerem, a Sala de Situação seguirá funcionando apenas como promessa. Nesse futuro do pretérito da Sala de Situação, as e os indígenas seguem morrendo no presente e no futuro.

O que a ADPF 709 tem se tornado

O espaço e tempo jurídicos de uma burocracia que não anda, de um diálogo que não escuta, de uma decisão que, cumprida a conta gotas e sempre com respostas insuficientes às determinações, ao fim e ao cabo não se cumpre. A ADPF 709 tem se tornado o espaço e o tempo para que o Governo Federal diga que está fazendo algo, que está se esforçando.

Entre trocas de ofícios, apresentações de inúmeras versões de uma política pública de atenção e cuidado que não sai do papel, os indígenas morrem. Terras indígenas são invadidas. A floresta é derrubada e contaminada. A Sala de Situação tornou-se palco de ofensas por parte do Governo, de perseguições a quem ali, atuando nas instituições governamentais, busca apresentar algo de concreto para os direitos dos indígenas.

As sugestões de pessoas e entidades convidadas pelo ministro relator parecem surtir pouco efeito. A metodologia proposta pelo CNJ e algumas de suas sugestões, por exemplo, em que pese inovadoras e promissoras, não parecem ter sido levadas em conta.

As contribuições que outras pessoas e entidades buscam oferecer também parecem esbarrar no tamanho imenso que a ADPF 709 passou a ter e, se não estão perdidas, podem se tornar perecidas pelo decurso do tempo. Por exemplo, um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores do Centro de Estudos da Constituição da Faculdade de Direito da UFPR, se apresentou como amicus curiae, mas não teve seu pedido de ingresso ainda nem sequer apreciado.

Conclusões

A ADPF 709 começou promissora. Provocou o exercício da jurisdição constitucional do STF para proteção de direitos fundamentais de indígenas do nosso país. Recebeu acolhida no Supremo, com releitura ampliada da legitimidade ativa, decisão monocrática e referendo do Plenário. E só. Daí para frente, converteu-se num processo imenso, burocrático, lento, ineficaz. Apesar do trabalho do Supremo, do ministro Barroso e de sua equipe, dos convidados e participantes da ADPF 709, pouco de concreto ou efetivo sai dali.

Não basta boa intenção, proatividade, desejo de diálogo. Especialmente com quem, tendo poder de gestão e decisório, usa todo o espaço, tempo e burocracia, para manter tudo como está: com os indígenas vulneráveis, morrendo, com invasão das terras indígenas, derrubada e contaminação das florestas.

A ADPF começou bem, mas foi sendo engolida por um diálogo que nunca existiu[10] porque uma das partes – o Governo – não quer dialogar. Não quer ter de fazer algo, sob as barbas do Supremo. Mudar essa condução não só é possível, mas necessário e urgente. O Supremo pode mais e pode melhor.

[1] Vide o artigo científico recentemente publicado no Dossiê “Pandemias, Direito e Judicialização”, da Revista Direito e Praxis (UERJ), organizado pela Prof. Deisy Ventura (USP) e Octavio Ferraz (King’s College): STF, povos indígenas e Sala de Situação: diálogo ilusório. Revista Direito e Praxis, Vol. 12, N. 3, pg. 2174-2205. Autores: Miguel Gualano de Godoy, Carolina Ribeiro Santana e Lucas Cravo. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/61730/39037

[2] DE ALMEIDA MATOS, BEATRIZ; PEREIRA, BRUNO; RIBEIRO SANTANA, CAROLINA; AMORIM, FABRÍCIO; DO VAL SANTOS, LEONARDO LENIN COVEZZI; CRAVO DE OLIVEIRA, LUCAS. Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. MUNDO AMAZONICO, v. 12, p. 106-138, 2021.

[3] Angela Kaxuyana, Eriverto Marubo, Sonia Guajajara e Dr. Luiz Henrique Eloy Amado Terena.

[4] Carolina Santana, Fabrício Amorim e Leonardo Lenin.

[5] Douglas Rodrigues e Erik Jennings.

[6] Huertas, B (2015). Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial Pano, Arawak y otros. FENAMAD.

[7] Entrevista concedida, em 18 de maio de 2021, a Carolina R. Santana.

[8] Entrevista concedida, em 20 de maio de 2021, a Carolina R. Santana.

[9] “Não basta que reconheçam nossas narrativas, é preciso que reconheçam nossas narradoras”, disse Célia Xakriabá no discurso final da Primeira Marcha das Mulheres Indígenas.

[10] Exemplo categórico da inexistência do diálogo foi a decisão monocrática do ministro relator emitida no dia 24 de maio de 2021, sobre o pedido de Tutela Provisória Incidental, em razão da escalada de ataques armados ao povo Yanomami e Munduruku, no âmbito da ADPF 709. O ministro informou que estava em curso o Plano 7 Terras Indígenas, correndo em sigilo de justiça, sendo que a primeira operação estava planejada para o final de abril. Há semanas – talvez meses – a principal parte autora da ADPF 709 não tinha nem sequer conhecimento de que estava em andamento um plano para cumprir um dos pedidos mais urgentes: a retirada de invasores das terras indígenas. Das 7 terras indígenas elencadas como prioridade, 6 possuem evidência da presença de povos indígenas isolados.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-a-adpf-709-e-a-sala-de-situacao-06102021