Democracia em risco: o caso brasileiro

Democracia em risco: o caso brasileiro

Por Estefânia Barboza

 

O número de democracias eleitorais cresceu de 35, nos anos 70 à 110 em 2014 (Fukuyama, 2015), seguindo até este momento a previsão de Fukuyama sobre o Fim da História, no qual o autor afirma que o período da história do pós-guerra termina com a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final e ideal de governo no Mundo. Entretanto, o próprio Fukuyama analisa o processo de recessão democrática que se inicia em 2006, mas que apenas ganha força a partir de 2014. Por outro lado, órgãos de análise dos índices de democracia no Mundo têm alertado para as quedas dos regimes democráticos. O Freedom’s House alerta que em todas as regiões do Mundo a democracia está sob ataque de líderes populistas, com queda nos índices de liberdade de imprensa, liberdade religiosa, independência do Judiciário, liberdade acadêmica e outros direitos de liberdade.

Pelo Democracy Report do V-DEM Institute, o Brasil está entre os 10 países que mais se autocratizaram no Mundo, passando a ser considerado uma democracia meramente eleitoral e com uma deterioração acelerada de direitos e liberdades, estando atrás apenas da Turquia, Hungria e Polônia. Para além disso o V-DEM ressalta que a autocratização normalmente segue um mesmo padrão, atacando num primeiro momento a mídia e a sociedade civil e se utilizando da desinformação para polarizar a sociedade e atacar os opositores políticos, aliado ao ataque às instituições.

Na  semana passada, o IDEA publicou o relatório sobre Democracia nas Américas em que ressalta que apesar dos países no continente terem abraçado a 3ª onda de democracia e terem fortalecido suas instituições neste período, passam agora por um retrocesso democrático que vem se acelerando em pouco tempo. A polarização política, a fragmentação partidária, a crise de representatividade e o descontentamento dos cidadãos com as elites políticas, seriam causas deste processo de autocratização da região, para além de que os atores políticos de hoje seriam bem diferentes daqueles presentes no período da transição democrática.

Ainda, é de se preocupar que por este Relatório do IDEA, o Brasil é o país que enfrenta o maior retrocesso democrático do mundo, com o maior número de atributos que medem o nível de sua democracia em queda. Os ataques às bases da democracia liberal vêm sendo orquestrados pelo governo federal: i) ataques a professores e autonomia universitária; ii) ataques a cientistas e censura a órgãos de pesquisa; iii) ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e Ministros; iv) ataques à integridade do processo eleitoral; v) ataques a opositores políticos com o uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos do Presidente; vi) ataques à imprensa e a jornalistas; vii) presença de militares em cargos no governo federal; e viii) cooptação de órgãos de controle.

Um ponto que chamou a atenção no referido relatório diz respeito aos ataques aos organismos eleitorais que se tornaram mais frequentes na região, como uma prática adotada por líderes populistas da ultradireita, estratégia já utilizada por Trump, que levou, inclusive, à invasão do Capitólio nos Estados Unidos. Tática que é reproduzida no ambiente brasileiro, a partir da divulgação em massa de notícias falsas, com a finalidade da corrosão da credibilidade no processo eleitoral. 

Estes tipos de ataques foram observados não apenas no Brasil, mas também em El Salvador, México e Perú e buscam justamente criar uma crise de legitimidade inexistente para desacreditar o processo eleitoral e as instituições de controle. Os processos de desinformação e ataque às eleições já vêm sendo objeto de estudo pela Universidade de British Columbia, que apontou que atores estrangeiros podem atacar alguns alicerces da democracia, tais como: i)  oportunidades justas para a participação do cidadão; ii)  deliberação pública livre; e iii) integridade eleitoral. Embora os ataques digitais não consigam impactar na integridade dos processos eleitorais, eles buscam colocar em dúvida sua legitimidade por meio de um processo violento e articulado de produção de fake News. 

No caso do Brasil, é explícito o ataque promovido por Bolsonaro às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Ministros do STF e TSE, especialmente ao atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso e ao Ministro Alexandre de Morais, que exercerá a presidência do Tribunal no período das eleições presidenciais de 2022. Bolsonaro alega que houve fraude às urnas eletrônicas nas eleições de 2018 e que acontecerá novamente em 2022. Entretanto, é de se destacar que as urnas eletrônicas foram estabelecidas no Brasil em 1996 e que desde então, ao contrário do alegado pelo Presidente, justamente evitou fraudes existentes no processo eleitoral brasileiro.

A gravidade do tema impõe acender um alerta vermelho na medida em que um dos princípios essenciais para a estabilidade democrática é, justamente, o princípio da legitimidade das eleições, entretanto, resultados de pesquisas apontam que na América Latina a credibilidade no processo eleitoral e nos organismos eleitorais caiu de 63% da população em 2004 para 45% em 2019. O que serve para colocar o perigo populista dos ataques em um radar máximo de atenção que sirva para assegurar o funcionamento das eleições periódicas e a estabilidade democrática. 

Conforme alerta Scheppele, nenhuma autocracia se instala sem o apoio de grande parte da população. E os líderes populistas se utilizam da crise de credibilidade nas instituições e na má prestação de serviços públicos básicos para avançar sua agenda autoritária.

É preciso pensar nas causas da desconfiança nas instituições e na própria democracia. O latinobarômetro aponta que a satisfação com a democracia na América Latina cai de 45% em 2009 para 25% em 2020. Embora este mal-estar possa ser muito mais com os governos do que com a democracia em si, Fukuyama também aponta que  a ausência de políticas públicas e ineficiência dos Estados para promover direitos sociais básicos de saúde e de educação seria uma das causas de crise da democracia.

Juan Linz (1999, p. 203) também já apontava, em relação ao Brasil, que “a distribuição de renda mais desigual, e os piores níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e sul-americanos” dificultou a tarefa de consolidação da democracia e, em 1992, o apoio à democracia por brasileiros era muito mais baixo do que o apoio de uruguaios, portugueses, espanhóis ou gregos no mesmo período. 

Para além disso é certo que esta conjuntura também facilita os processos recentes de erosão democrática que se diferenciam de golpes abertos à democracia e rupturas constitucionais. A erosão atua justamente por dentro das instituições, cooptando-as para que não possam exercer seu trabalho com a autonomia necessária para a regulação e controle do poder político. Quando um governante autoritário busca não só atacar os outros poderes, mas também fragilizar os órgãos que possuem autonomia para impedir sua atuação inconstitucional e até criminosa, observa-se também a fragilização democrática, como no caso brasileiro.

O Brasil se insere, deste modo, no contexto dos países em retrocesso democrático por meio de um conjunto de ataques aos alicerces do constitucionalismo liberal, num processo que se utiliza da desinformação e baixo apoio da população à democracia.  Por outro lado, Bolsonaro segue as táticas adotadas por outros líderes populistas com ataques à imprensa, às Cortes e ao processo eleitoral, com discurso neoconservador e antagônico à proteção de direitos humanos.

É necessário neste momento que Cortes e Observadores internacionais se aliem à comunidade acadêmica na defesa da democracia e da legitimidade institucional. O caso brasileiro terá impacto não só para a América Latina, mas pode ser um case de sucesso do avanço autoritário ou de sucesso da estabilidade institucional democrática.

É urgente compreender, deste modo, o contexto político mais amplo em que se inserem as táticas de ataques à democracia e de organização da ultradireita mundial e trabalhar os diferentes níveis – internacional, regional e nacional – de proteção da democracia e dos direitos humanos de modo global. Não haverá contenção apenas individual para a onda autoritária que se avizinha e que pode ser duradoura.

____

Professora de Direito Constitucional na Universidade Federal do Paraná e no Centro Universitário Internacional, cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Ela é mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Visiting Research Fellow at Osgoode Hall Law School, Canada, 2008-2009.  Professora visitante na Universidade de Toronto (2016), na Universidade de Palermo e Messina, Itália (2019). Co-Presidente da Associação Ítalo-Brasileira de Professores de Direito Administrativo e Constitucional (AIBDAC). Co-Presidente da ICON-S Brasil. Menção Honrosa no Prêmio Capes Tese de 2012 pela tese “Stare Decisisis, Integrity and Legal Security: critical reflections from the approach of common law and civil law systems”. Tem experiência na área do direito, com ênfase no direito público, atuando principalmente nos seguintes temas: constitucional, constitucionalismo abusivo, direito constitucional comparado, direitos fundamentais, direitos humanos, democracia, jurisdição constitucional, judicialização da política, precedentes e common law.

Originalmente publicado em: https://www.ibericonnect.blog/2021/12/democracia-em-risco-o-caso-brasileiro/

Imunidade Parlamentar e Feminicídio: 10ª Condenação do Brasil na Corte IDH, Caso Márcia Barbosa

Imunidade Parlamentar e Feminicídio: 10ª Condenação do Brasil na Corte IDH, Caso Márcia Barbosa

Por Melina Girardi Fachin, Isabella Louise Traub Soares de Souza, Erick Kiyoshi Nakamura e Sthefany Felipp dos Santos

 

O Brasil foi responsabilizado internacionalmente, de forma unânime, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. A sentença, proferida em 07 de setembro de 2021 e publicada no dia 24 de novembro de 2021, foi a 10ª condenação do Estado brasileiro, sendo a primeira responsabilização do país por feminicídio e o primeiro caso julgado pela Corte IDH sobre o tema da imunidade parlamentar.

Este caso já foi tema de artigo pelo Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Cosmopolita, antes do caso ter sido julgado, intitulado como Feminicídio na América Latina: o caso Márcia Barbosa vs. Brasil.

 

O Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil: fatos e trâmite perante a CIDH

O Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros se refere à responsabilidade internacional do Estado pelo assassinato da jovem Márcia Barbosa de Souza, em 18 de junho de 1998, que teve seu corpo encontrado em um terreno baldio nos arredores da cidade de João Pessoa/Paraíba.

Após investigação policial, o crime foi atribuído a Aércio Pereira de Lima, deputado estadual à época e suposto amante da vítima. Devido ao cargo político ocupado, a Procuradoria-Geral de Justiça se viu impedida de iniciar o processo criminal em desfavor do deputado, em virtude da imunidade parlamentar, que previa a necessidade de licença prévia, negada, por duas vezes, pela Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Em 20 de dezembro de 2001, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 35/2001, a qual previu a possibilidade de instauração de processo penal em face de parlamentares independentemente de autorização por parte da Casa Legislativa. Entretanto, as autoridades competentes não deram encaminhamento à ação penal até março de 2003. Após mais de 4 anos do envio de informações, o caso ainda não havia sido julgado e tramitava em plena morosidade. Apenas em setembro de 2007 a sentença condenatória foi exarada, tendo sido objeto de recurso, que, todavia, não foi apreciado em razão do falecimento superveniente de Pereira de Lima.

O caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste e o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), em 28 março de 2000, sob alegação de violações de direitos de Márcia Barbosa de Souza por parte do Estado brasileiro relativas aos artigos 2, 4, 24, 25 e 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), bem como aos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida por Convenção Belém do Pará.

O Relatório de Admissibilidade nº 38/07 foi aprovado pela CIDH em 26 de julho de 2007, que entendeu pela admissão da petição em face do Estado Brasileiro em relação aos artigos 4, 8.1, 24 e 25 da CADH em conexão ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como ao artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

Após a análise de provas, reunião e estudo de relatórios, pesquisas e demais informações, bem como a partir de materiais produzidos pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pelo Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e pelo Senado brasileiro, acerca da violência contra a mulher e o não cumprimento integral da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), a CIDH emitiu, em 12 de fevereiro de 2019, o Relatório de Mérito nº 10/19.

No Relatório, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro que adote as devidas medidas para: i) reparar as violações de direitos humanos no aspecto material e imaterial, com medidas de satisfação e compensação econômica; ii) dispor de medidas de atenção à saúde física e mental para a reabilitação dos pais de Márcia Barbosa de Souza, a partir de seu consentimento e vontade; iii) reabrir a investigação de forma diligente, efetiva e dentro de um prazo razoável, visando a identificar os responsáveis e responsabilidades que culminaram na impunidade; e vi) dispor de mecanismos de não repetição, adequando o quadro normativo como forma de assegurar que a imunidade parlamentar seja bem delimitada e regulada, que as decisões relacionadas à aplicabilidade de imunidade sejam bem fundamentadas, e visando ao cumprimento integral da Lei Maria da Penha, que se disponha de políticas públicas e medidas para prevenir, investigar e punir a violência contra mulheres no Brasil.

Em 11 de julho de 2019, a CIDH apresentou o caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil à Corte IDH, tendo concluído que o fato se constituiu em um ato gravíssimo de violência contra a mulher, afetando a integridade psicológica de seus familiares, o que se comprova pelo corpo jogado em um matagal após ter sofrido diversas violências e de ter ido a óbito, bem como as falhas na investigação, a morosidade na tramitação da ação penal contra Aércio Pereira de Lima e a sua impunidade. A CIDH apontou que a imunidade parlamentar gerou uma demora excessiva e de caráter discriminatório no processo penal, tendo a investigação durado mais de 9 anos, o que resultou em violação da garantia ao prazo razoável de duração do processo e em denegação à justiça. Entendeu ainda que não foram esgotadas todas as linhas investigativas, sendo caracterizada a violação ao dever de investigar com a devida diligência. Assim, a CIDH concluiu que o Estado brasileiro foi responsável pela violação dos artigos 5.1, 8.1, 24 e 25.1 da CADH, com relação ao artigo 4, 1.1 e 2, do mesmo instrumento, bem como pela violação ao artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

 

A Responsabilização Internacional do Estado pela Corte IDH: questões de mérito

O caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil é pioneiro porque trata sobre feminicídio aplicado à realidade brasileira e sobre o uso indevido da imunidade parlamentar, de modo primeiro, na jurisprudência da Corte. Trata-se de um homicídio cometido em razão de gênero, que envolve assimetria e imposição de poder econômico e político do agressor, um homem, branco, deputado estadual, à vítima, que teve seu corpo encontrado num terreno baldio, com indícios de ter sido arrastado, golpeado e violado.

A decisão da Corte IDH se pautou, para além das reparações, em dois pontos: i) direitos às garantias judiciais, proteção judicial e igualdade perante à lei, em relação às obrigações de respeitar e garantir o dever do Estado em adotar disposições de direito interno e obrigações previstas no artigo 7º da Convenção Belém do Pará; e ii) direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

Acerca do primeiro ponto, a Corte IDH tratou sobre: i) aplicação indevida da imunidade parlamentar; ii) falta de devida diligência na investigação acerca dos demais suspeitos; iii) violação do prazo razoável; iv) utilização de estereótipos de gênero nas investigações; e v) conclusões.

A Corte IDH entendeu que a imunidade parlamentar somente pode ser analisada perante um caso concreto, para o fim de evitar que decisões adotadas pela Casa Legislativa sejam arbitrárias e, como consequência, ensejem impunidade. Para tanto, a Corte considera que a aplicação do instituto no caso concreto deve: “i) seguir um procedimento célere, previsto em lei ou no regimento interno do órgão legislativo, que contenha regras claras e respeite as garantias do devido processo; ii) incluir um teste de proporcionalidade estrito, através do qual se deve analisar a acusação formulada contra o parlamentar e levar em consideração o impacto ao direito de acesso à justiça das pessoas que podem ser afetadas e as consequências de se impedir o julgamento de um fato delitivo, e iii) ser motivada e ter sua motivação vinculada à identificação e justificativa da existência ou não de um fumus persecutionis no exercício da ação penal proposta contra o parlamentar”.

Tudo isso se confere, para a Corte, diante da necessária ponderação entre a garantia do exercício do mandato e o direito de acesso à justiça, bem como a avaliação de impactos e consequências. Neste sentido, a motivação e a boa fundamentação das decisões de órgãos legislativos relativas à imunidade parlamentar são exigíveis para que não se incorra na violação de direitos e em danos materiais e imateriais. Acerca deste ponto, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro obstacularizou de forma arbitrária o acesso à justiça por parte dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, o que se vislumbra das irregularidades do processo de denegação da licença pela Assembleia Legislativa, além da falta de motivação das decisões por ela adotadas, que não realizam exame de proporcionalidade, tornando os mecanismos existentes à época como propícios à impunidade e tornando o acesso à justiça ilusório.

Quanto à falta de devida diligência na investigação acerca dos outros suspeitos, o entendimento da Corte IDH recordou que, quando existem indícios ou suspeitas de violência de gênero, a falta de investigação se mostra discriminatória e pode constituir em uma forma de discriminação baseada em gênero. Esta ineficácia judicial pode propiciar um ambiente de impunidade, facilitando a repetição de atos de violência e deixando a mensagem de que a violência de gênero pode ser tolerada ou aceita, o que favorece a perpetuação de crimes e o sentimento de insegurança por parte das mulheres.

Além disso, quando há a morte de uma mulher, a investigação deve ser tomada a partir de uma perspectiva de gênero. Lembrou a Corte IDH que o dever de investigar é uma obrigação de meio e não de resultado, devendo ser séria, objetiva e efetiva, em busca da verdade e da responsabilização dos envolvidos. Desta forma, entendeu-se que o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de atuar com a devida diligência para investigar o caso, de forma a possibilitar o descobrimento da real participação de todos os suspeitos pelo feminicídio de Márcia Barbosa de Souza. Mais uma vez, a malversação do uso do instituto e a discriminação de gênero das autoridades investigativas impediram o acesso à justiça.

Em relação à violação da garantia do prazo razoável, a Corte IDH assinalou que é direito das vítimas e seus familiares que seja feito todo o possível para conhecer a verdade dos fatos, devendo o caso ser investigado, e os responsáveis julgados e responsabilizados. Quanto a este ponto, assinalou que não seria necessário analisar o direito à garantia de prazo razoável à luz do elementos estabelecidos em sua jurisprudência, pelo fato de que o processo criminal demorou quase 5 anos para ser iniciado devido à negativa arbitrária da Assembleia Legislativa da Paraíba, aplicando a imunidade parlamentar que, neste caso, degenerou-se em “impunidade parlamentar”, como textualmente indica a sentença. Desta forma, a Corte IDH considerou a aplicação do instituto, no caso, como arbitrária e, além disso, como excessiva a demora processual, para além dos quase 10 anos dos fatos à sentença condenatória, causando a sensação de impunidade.

A Corte IDH assinalou que, apesar da obrigação geral do artigo 1.1 da CADH se referir ao dever do Estado de respeitar e garantir direitos sem discriminação, o artigo 24 se refere ao direito de igualdade perante à lei, de maneira que se proíbe a discriminação de direito ou fato, não se limitando ao estabelecido pelo artigo 1.1, pois o princípio da igualdade e da não discriminação é salvaguarda de outros direitos, nas legislações internas e internacionais. Especificamente quanto à violência contra a mulher, o Comitê CEDAW da Organização das Nações Unidas se manifestou no sentido de que a presença de estereótipo de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o gozo e efetivação dos direitos humanos por mulheres. A Corte IDH reconheceu que o estereótipo de gênero afeta a objetividade daqueles encarregados de investigar denúncias relacionadas à temática, o que acaba interferindo no seu entendimento acerca dos fatos que culminaram na violência, avaliação e credibilidade trazida pela própria vítima. Ou seja, os estereótipos distorcem percepções e acabam se pautando em crenças e ideias pré concebidas que distorcem os fatos e revitimizam as vítimas. Neste sentido, considerou-se que estereótipos de gênero são prejudiciais e incompatíveis com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Durante o processo do caso em tela, a imagem de Márcia Barbosa de Souza foi deturpada. Por todos os motivos expostos, a Corte IDH concluiu que o processo penal teve um caráter discriminatório por razão de gênero, devendo o estado adotar medidas para garantir a igualdade material de acesso à justiça às vítimas mulheres.

Acerca deste primeiro grande ponto, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro violou o direito às garantias judiciais, igualdade perante à lei e a proteção judicial, conforme disposto nos artigos 8.1, 24 e 25 da CADH, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e com as obrigações do artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

Quanto ao segundo ponto tratado na decisão, relacionado ao direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, a Corte IDH relembrou o seu entendimento de que familiares das vítimas podem também ser vítimas, bem como o direito à integridade psíquica e moral dos familiares e outras pessoas relacionadas. Considerando a repercussão midiática do caso, os danos sofridos pelos familiares e, inclusive, a realização de uma homenagem da Assembleia Legislativa da Paraíba ao ex-deputado, a Corte concluiu evidente o impacto à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

 

As medidas de reparação como possibilidade de transformação

No cumprimento de seu mandato transformador, a decisão da Corte IDH quanto ao Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, não focou apenas nas vítimas e seus familiares, mas na mudança estrutural, de forma a obrigar o Estado brasileiro a se comprometer alterar substancialmente sua atuação no tocante à violência de gênero. Neste sentido, considerando o mérito e as violações ocorridas à CADH e à Convenção Belém do Pará, a Corte tratou em suas reparações sobre: i) obrigação de investigar os fatos e identificar, julgar e responsabilizar os responsáveis; ii) medidas de satisfação; iii) medidas de reabilitação; iv) garantias de não repetição; e v) indenização compensatória.

Assim, a Corte IDH considerou a obrigação do Estado em combater a impunidade por todos os meios disponíveis, tendo em vista que a não investigação completa e efetiva sobre os fatos constitui em violação ao direito do conhecimento da verdade sobre os fatos. Determinou que as investigações tenham uma ótica de gênero e também para que não sejam permeadas por estereótipos de gênero, para que outras vítimas não sejam revitimizadas. Além disso, tendo em vista o dano gerado, entendeu pela não procedência de eventual reabertura de investigações quanto aos possíveis quatro partícipes do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza.

Acerca das medidas de satisfação, a Corte assinalou que o Estado deve publicar, no prazo de seis meses: i) resumo oficial da Sentença elaborado pela Corte IDH, em Diário Oficial, assim como nos sítios eletrônicos da Assembleia Legislativa da Paraíba e do Poder Judiciário da Paraíba, e em outros diários de circulação nacional; ii) deixar disponível a sentença em sua íntegra, por um período de ao menos 1 ano, nos sítios eletrônicos do Estado da Paraíba e do Governo Federal, devendo o Estado informar quando do cumprimento de tais publicações. Além disso, ordenou ao Estado, com o fim de reparar os danos causados e visando a não repetição, que seja realizado um ato de reconhecimento da responsabilidade internacional em relação ao presente caso, podendo ser realizado na Assembleia Legislativa da Paraíba e devendo ao menos uma autoridade do Ministério das Relações Exteriores e da Assembleia Legislativa da Paraíba assistirem. Tal ato deverá ser realizado em comum acordo com os familiares de Márcia Barbosa dos Santos.

Quanto às medidas de reabilitação, a Corte IDH determinou que os fatos do caso geraram graves violações à integridade pessoal dos familiares da vítima, considerando necessária, portanto, uma medida de reparação visando a atenção médica, psicológica e/ou psiquiátrica adequadas, bem como pagamento em dinheiro para custeio dos gastos em tratamentos necessários.

Em relação às garantias de não repetição, a Corte IDH recordou que é dever do Estado prevenir que violações de direitos humanos ocorram, devendo adotar medidas que sejam efetivas. Neste sentido, relembra dos avanços normativos realizados após os fatos do caso, como a Emenda Constitucional nº 35/2001, a Lei Maria da Penha, a inclusão do feminicídio no rol de crimes do Código Penal brasileiro, bem como os programas, os projetos e as iniciativas que visam ao enfrentamento à violência e discriminação contra a mulher. Todavia, o cenário ainda é de escassos dados oficiais e não oficiais disponíveis, para além do contexto de discriminação e violência estrutural, especialmente, quanto às mulheres afrodescendentes e pobres. Desta forma, a Corte entendeu necessária a coleta de informações sobre as várias formas de violência de gênero, visando à construção de políticas públicas efetivas e estratégias para prevenir e erradicar a discriminação e violência. Indicadores são fundamentais para pensar políticas públicas de proteção aos direitos humanos. Assim, ordenou que o Estado implemente um sistema nacional e centralizado de recompilação de dados por idade, raça, classe social, perfil da vítima, lugar da ocorrência, perfil do agressor, relação com as vítimas, meios e métodos utilizados, dentre outras variáveis, como forma de permitir a análise quantitativa e qualitativa dos fatos que geram a violência contra a mulher, e feminicídios. Tais informações deverão ser difundidas pelo Estado anualmente, garantindo o acesso à informação por parte de todos.

Ainda sobre as garantias de não repetição, a Corte IDH entendeu que a capacitação dos agentes que atuam na administração da justiça deve se dar a partir da perspectiva de gênero, assim, deve o Estado implementar uma plano de formação e capacitação continuada, além da sensibilização das forças policiais quanto à investigação com perspectiva de gênero e raça. Além disso, ordenou à Assembleia Legislativa da Paraíba que realize uma jornada de reflexão e sensibilização, sobre feminicídio, violência contra a mulher e a utilização da imunidade parlamentar, a partir do conteúdo da sentença proferida. Ordenou, ainda, a adoção e implementação de um protocolo nacional com critérios compreensíveis e uniformes, para investigação do crime de feminicídio, devendo estar alinhado ao Modelo de protocolo latinoamericano de investigação de mortes de mulheres por razões de gênero, bem como à jurisprudência da Corte IDH. Por último, entendeu pela necessidade de adequação normativa interna ao estabelecido pela sentença, a respeito da imunidade parlamentar e de sua aplicação, do processo penal contra um membro de órgão legislativo e da salvaguarda do direito de acesso à justiça.

Por fim, acerca das indenizações compensatórias, a Corte IDH entendeu que houve dano material e imaterial aos familiares da vítima, determinando a sua compensação de forma pecuniária, o qual inclui o montante pela indenização pela impossibilidade de reabertura da investigação penal sobre os possíveis partícipes, bem como os danos causados à saúde dos familiares da vítima.

 

Reflexões sobre o caso Márcia Barbosa de Souza: entre avanços, proteções, imunidades e transformações

Como assegurado, o caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, foi o primeiro caso de condenação do Estado brasileiro sobre feminicídio e o primeiro julgado da Corte IDH sobre imunidade parlamentar, trazendo diretrizes iniciais sobre a temática, um precedente importante à luz dos direitos humanos. Pelo impacto do instituto da imunidade parlamentar e pela falta de enfoque de gênero foram observadas deficiências na investigação e demora na abertura de processo, culminando no não estabelecimento da verdade dos fatos em relação ao ex-parlamentar por seu falecimento superveniente, quase dez anos após o episódio. As investigações conduzidas em face dos demais envolvidos foram arquivadas por falta de provas. A decisão da Corte considera que o Estado Brasileiro prestou proteção insuficiente aos direitos da vítima e o condena a prestar reparações aos seus familiares, bem como a tomar providências para garantir a não repetição do ocorrido, centradas na luta contra o feminicídio e a violência contra a mulher e na reflexão acerca da utilização da figura da imunidade parlamentar.

No que toca à violência de gênero, o contexto de violência contra as mulheres no Brasil, na época dos fatos do caso Márcia Barbosa de Souza à atualidade, chama atenção, pois se mostra como um problema sistêmico e estrutural. Por mais que normativas, programas e ações em prol ao enfrentamento da violência de gênero sejam fomentados em âmbito nacional, ainda faltam dados, formações e capacitações aos agentes públicos, educação de gênero nas escolas, dentre outras questões, o que dificulta a construção de políticas públicas efetivas e eficazes no combate à violência de gênero. Os informes sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, publicados em 1997 e 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, se analisados em conjunto, apontam para a incapacidade do Estado brasileiro em implementar a legislação nacional e os tratados sobre a temática de forma a combater efetivamente a violência contra mulher.

O desvio na utilização das imunidades formais, ainda sob a previsão da redação original da Constituição de 1988, instou a modificação do texto por emendas e aprimorou a possibilidade de responsabilização e transparência. Contudo, não resolveu todo o problema. A Emenda Constitucional nº 35/2001, motivada, inclusive, com a repercussão internacional deste caso à época, excluiu a necessidade de licença prévia para o processamento criminal de parlamentar, dando à Casa legislativa a possibilidade de sustar o andamento de processos, em juízo político, desde que o crime tenha ocorrido após a diplomação. Além disso, retirou a possibilidade de a deliberação sobre a prisão de parlamentar ser feita de forma secreta, o que foi estendido à decisão de perda do mandato pela Emenda nº 76/2013.

A condenação vem nos lembrar que em caso de abuso das prerrogativas, ato considerado incompatível com o decoro parlamentar, o Legislativo deve promover a cassação do mandato eletivo em processo interno que respeite o devido processo legal, seja transparente e possua tempo razoável de duração. O descumprimento a este comando demonstra desrespeito ao parlamento e à própria Constituição.

Além disso, é certo que, conquanto seja essencial à proteção do parlamento, as imunidades formais não são estanques, submetendo-se a debates e a deliberações constantes – de forma a garantir o livre exercício da atividade parlamentar, imune às perseguições arbitrárias dos órgãos de controle, mas impassível de converter a imunidade formal em impunidade material, como ocorreu no caso de Márcia Barbosa.

Por todo o exposto, nestes dois pontos que a sentença pioneiramente aponta, ainda há muito que fazer para transformar a realidade brasileira adequada ao padrão de proteção dos direitos humanos e aos padrões interamericanos. Espera-se que o cumprimento desta obrigação internacional nos aproxime deles e, além de fazer justiça a Márcia e seus familiares, evite outras graves violações de direitos como esta.

___

* Melina Girardi Fachin é Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UFPR. Pós doutorado em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra. Fundadora e Coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR). Isabella Louise Traub Soares de Souza é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Fundadora e Presidente do Instituto de Políticas Públicas Migratórias (IPPMI). Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR) desde 2020. Erick Kiyoshi Nakamura é Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, com bolsa CAPES/PROEX. Graduado em Direito pela UFPR. Associado Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (PARLA). Sthefany Felipp dos Santos é Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR) desde 2020.

Originalmente publicado em: https://www.cosmopolita.org/post/imunidade-parlamentar-e-feminic%C3%ADdio-10%C2%AA-condena%C3%A7%C3%A3o-do-brasil-na-corte-idh-caso-m%C3%A1rcia-barbosa