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Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e MELINA GIRARDI FACHIN

Vivemos a persistência da violência institucional no Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020[1] mostram que o número de vítimas de intervenções policiais também aumentou; vítimas estas que têm cor e classe – negros e pobres. O lamentável episódio em Jacarezinho corrobora os dados de truculência da violência policial no Brasil, situação que já foi reconhecida pela comunidade internacional.

A condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília, em 2017, assinalou a demora injustificada na investigação e punição dos responsáveis envolvidos na execução extrajudicial de 26 pessoas e na prática de tortura e estupro, por parte de agentes policiais, na Favela Nova Brasília, no município do Rio de Janeiro.[2] Neste caso, o Estado foi condenado às medidas necessárias para que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial. Vinte e sete anos separam as operações policiais na Favela Nova Brasília e em Jacarezinho; o que mudou parece ser apenas o aumento do número de mortos!

O cenário ainda enfrenta ameaças de retrocessos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública, principalmente com o emprego das Forças Armadas em atividades típicas da segurança pública, e com o aumento da impunidade a partir de leis em discussão no Legislativo Federal. A Comissão também mencionou um aumento nas mortes em operações policiais, sendo que as ações de integração e inteligência não resultaram em uma maior efetividade no combate ao crime organizado. Ou seja, as operações matam muito e são ineficientes[3].

É urgente que a segurança pública seja estruturada a partir de uma concepção constitucionalmente adequada, centrada na proteção de direitos, com proporcionalidade no uso da força e transparência na condução das políticas, dados dos resultados e de procedimentos investigatórios. As Polícias, como instrumento de realização da segurança pública, devem comprometer-se com os direitos humanos e fundamentais, previstos nacional e internacionalmente, e não serem os agentes de violação de tais direitos.

Como todas as atividades da administração pública, é fundamental que o controle – sobretudo de ângulo externo – sobre a atividade policial seja efetivamente desempenhado. Ao mandamento constitucional de controle soma-se a jurisprudência da Corte IDH, pacífica no sentido de que o Estado é responsável pela apuração de crimes, tendo o Ministério Público papel central, pois a apuração deve ser feita de forma independente e imparcial, assegurando às vítimas e aos seus familiares os direitos à proteção e às garantias judiciais.

Apesar da disposição constitucional que impõe a competência do MP no controle externo da atividade policial, há severas lacunas nessa atividade, impondo a necessidade de estruturação de mecanismos eficazes.

Mesmo com as condenações internacionais, o sentimento é de frustração de que pouco ou nada mudou. Talvez o grande diferencial seja o impacto do direito internacional dos direitos humanos no poder judiciário, sendo a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 exemplo marcante. Em agosto de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou liminar proferida pelo relator da ADPF, determinando que as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, devem ser restritas aos casos excepcionais e informadas e acompanhadas pelo Ministério Público estadual (MPRJ).

Uma das maiores e mais impactantes audiências públicas no STF, a audiência para a redução da letalidade policial foi conduzida no contexto da ADPF em abril de 2021 e conferiu oportunidade histórica de manifestação da sociedade e das instituições sobre as causas e consequências da letalidade policial. Menos de um mês depois, sobreveio a chacina de Jacarezinho; que a CIDH reconheceu esta como a ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.

Justamente em função do massacre, o STF foi novamente instado a se manifestar no bojo da ADPF citada a fim de determinar, o conceito de excepcionalidade a justificar as operações policiais nas comunidades – e aqui o nome dado à operação em Jacarezinho, Exceptis, parece ser desrespeito à institucionalidade do decidido pelo plenário do STF – e, além disto, cobrar a investigação e responsabilidade sobre o ocorrido. Em voto de 21 de maio deste ano, o relator circunscreveu os requisitos de excepcionalidade para fins de operação policial: número suficiente de agentes para minimizar as chances de se utilizar a força, acompanhamento de equipe pericial e número suficiente de agentes para assegurar a realização da perícia conforme o Protocolo de Minnesota. Sempre com atenção ao planejamento e inteligência.

O que nos resta é a esperança de quando vier a condenação internacional do Estado brasileiro sobre a Chacina de Jacarezinho – que virá! –  tenhamos já melhorado na democratização da segurança pública. Entendê-la a partir de sua função pública, implica em estabelecer controles internos, externos e sociais, para que a segurança se faça com a proteção de direitos humanos e das pessoas mais vulneráveis que, muitas vezes, só conhecem o Estado na atuação policial. Até lá, o massacre em Jacarezinho ainda persistirá!

 

[1] BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo, 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP.

[2] CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília Vs Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 28 jan. 2021

[3] G1. Estudo aponta que apenas 1,7% das operações policiais no Rio são eficazes. Disponível em:< https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/05/09/estudo-aponta-que-apenas-17percent-das-operacoes-policiais-no-rio-sao-eficazes.ghtml>. Acesso em 18 de mai. 2021.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’

Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’

Mas isso não é questão de segurança nacional

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA

 

Recentemente, foi divulgada a notícia de que celebridade do mundo digital teria sido intimado a, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), prestar depoimento na polícia civil carioca. O motivo  seria o fato de haver chamado o Sr. Presidente da República de genocida. Eis aqui uma oportunidade para refletirmos a propósito da liberdade de expressão e suas fronteiras, bem como do alcance da legislação autoritária em nossa vida constitucional.

“Genocida” é termo recente na história da humanidade. Criado por Raphael Lenkin, foi, após anos de lutas, reconhecido na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948). Designa a sucessão de horrores consistentes no extermínio – ou na tentativa – de povos, grupos, etnias, raças e adeptos de religiões. A lógica é a da morte indiscriminada e calculada de pessoas, unicamente devido ao fato de pertencerem a um coletivo que desagrada aos detentores do poder.

São crimes cujo sujeito ativo promove ações agressivas a coletividades, destinadas ao assassinato, danos graves, submissão a condições violentas e indignas, impedimentos à reprodução, deslocamentos forçados, etc. Além da já citada convenção, a triste palavra consta no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1998)e, no Brasil, na Lei 2.889/1956.

Por conseguinte, a designação de “genocida” é algo muito sério. Mas, para além do sentido técnico-jurídico, a palavra pode também representar uma metáfora ou insulto genérico.

O genocida não é apenas quem comete deliberadamente o crime, mas pode ser também, por extensão, um dirigente que adota comportamentos, omissivos ou comissivos, que submetam a vida de uma coletividade a práticas degradantes, de péssima qualidade (com decorrências morais e/ou físicas).

Aquele que ameaça o bem-estar da população e a proteção ativa de sua dignidade, não se importando com as consequências.

O assunto merece debate, portanto, e existe a liberdade para manifestações que o coloquem em foco. Afinal, ao nos aproximarmos da Constituição brasileira, temos um leque de dispositivos que determinam ao Estado – e a seus representantes – o respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinção de qualquer natureza, inclusive por meio de medidas ativas de saúde pública. Está nos arts. 1º, inc. III, c/c 5º, 6º, 23, inc. II, e, sobretudo, no 196, que reza ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. Ao Estado cumpre adotar todas as medidas, necessárias e suficientes, à proteção da saúde dos habitantes do Brasil. Todos, sem discriminação.

Quando o Sr. Presidente, seus ministros e acólitos tergiversam, negam ou fazem troça das boas práticas internacionais no combate à pandemia da COVID-19, estão a violar abertamente a Constituição. Não respeitam a dignidade humana nem protegem a saúde. Mas a indagação é a de se alguém, diante desse oceano de violações à Lei Fundamental, pode qualificar autoridades públicas de “genocidas”. Aqui entra em cena a Lei de Segurança Nacional (LSN).

A LSN faz parte de tradição vinculada à Doutrina de Segurança Nacional, a qual se pauta na concepção de que a proteção da soberania e segurança deve ser feita por meio do combate aos “inimigos”. A atual lei foi publicada durante a ditadura civil-militar, e é sucessora de outras LSNs (a primeira, de 1935). Ela tipifica condutas que “lesam ou expõe a perigo de lesão […] a pessoa dos chefes dos Poderes da União” (art. 1º, inc. III) e trata de crimes como espionagem, invasão de território nacional, comércio de armamento, terrorismo, sabotagem, devastação, saques, etc. Nenhum deles está no caso em análise. Mas o art. 26 pode despertar atenção: “Caluniar ou difamar o Presidente da República (…), imputando-lhe fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Estaríamos diante da possibilidade de aplicação dessa norma?

Ora, a atual LSN data de 1983. Foi positivada à luz da Emenda Constitucional 1/69, bem antes da Constituição de 1988. Quando esta foi promulgada, instalou nova base objetiva para todo o Ordenamento Jurídico, automaticamente revogando as leis incompatíveis ou recepcionando as adequadas. Hoje, estão no Supremo Tribunal Federal (STF) as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 797 e 799, que questionam a revogação, a recepção e eventual alcance da LSN. Como argumento, suponhamos que a LSN não tenha sido revogada, mas recepcionada.

O fenômeno da recepção não implica apenas o acolhimento formal das leis pretéritas. Na justa medida em que a nova Constituição instala fundamento jurídico diverso para toda a ordem normativa, ela igualmente confere distintos significados à legislação infraconstitucional. O que importa dizer que as leis anteriores, para ser recepcionadas, precisam ser conformes a substância da atual Constituição.

E se existe uma característica que marca a atual Constituição, trata-se do prestígio aos direitos e liberdades humanas. Na Emenda Constitucional 1/69 eles estavam nos fundos (art. 153 e seguintes), mas na atual estão desde o Preâmbulo, irradiando-se em todo o sistema constitucional e infra. Direitos fundamentais que exigem o respeito ativo da dignidade da pessoa pelo Estado e lhe impõe o dever de garantir todas as liberdades, inclusive, e sobremaneira, a de expressão. A liberdade de pensar e de exteriorizar o pensamento, ainda que de modo a ofender terceiros.

A liberdade de expressão é ponto com especial importância em nossa ordem constitucional, que se torna ainda mais central quando se está diante da oposição a autoridades públicas. Agentes políticos – como é o caso do Sr. Presidente – têm o ônus de tolerar críticas à sua atuação, ainda que ofensivos. Isso é o padrão mínimo em uma democracia que se pretenda civilizada. Porém ainda que não tolerem os ataques, isso nada tem a ver com a Segurança Nacional.

O Sr. Presidente não é um primus inter pares, cujas ofensas que porventura receba tenham a ver com interesses nacionais. Assim, se o art. 26 da LSN foi recepcionado pela atual Constituição, o foi na condição de norma do Código Penal: calúnia, injúria ou difamação (CP, arts. 138 a 143). Todas as autoridades públicas merecem ter sua integridade física preservada – inclusive, quanto a ameaças a si e/ou a seus familiares. Todavia, as agressões verbais e/ou escritas ocupam outro espaço normativo, subordinado à máxima eficácia do direito fundamental à liberdade de expressão. 

Em suma, e para além da incompetência da polícia civil para tratar do assunto, adjetivar autoridades públicas de “genocidas” não atrai a incidência da LSN. Trata-se de exercício da liberdade de expressão, gostemos ou não disso.

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/eu-tu-ele-todas-as-pessoas-tem-liberdade-de-chamar-o-sr-presidente-de-genocida-17032021

A Constituição merece ser levada muito a sério

A Constituição merece ser levada muito a sério

E nunca foi tão importante estudá-la

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA 

 

Bastante se falou sobre os trágicos eventos que tentaram abalar uma das maiores democracias ocidentais neste início de 2021. Houve variadas reações institucionais, algumas bizarras. Mas o que se passou não foi apenas um arremedo de golpe de Estado, nem somente a expressão da violência que alguns tentam fazer habitar o nosso cotidiano.

Para além dessa superfície repugnante, a substância de tais ações e reações é uma só: o respeito – ou não – à Constituição. Não só ao texto constitucional, mas especialmente à função que a Constituição desempenha em nossas vidas. Para que ela serve e por que devemos nos preocupar em protegê-la.

O constitucionalismo é uma das maiores conquistas civilizatórias, desde a Idade Moderna. Como assinala o gigante chamado Gomes Canotilho, as constituições são o “estatuto jurídico do político”. Prestam-se a definir regras jurídicas ao exercício de um poder que, em seu estado natural, aprecia funcionar alheio a quaisquer leis.

Ou melhor, por meio de comportamentos alheios à lógica ou à moral, como o bem demonstraram, dentre tantos, Machiavel e Montesquieu (ou a série House of Cards).

Afinal, a política é como os felinos: pode até ser um animal doméstico, mas jamais domesticável. Ingressa nas nossas vidas, mas faz o que quer. O exercício do seu viver não se conforma às leis: os gatos fazem o que querem, quando querem. Por isso que a vida política – por meio de seus atores principais ou pelos coadjuvantes – demanda atenção diária. Exige respeito ativo às regras, bem como alguém que determine a sua execução caso desrespeitadas.

Logo, é necessária uma Lei Fundamental, que constitua, limite e, só assim, legitime o exercício do poder político. A Constituição não é o governante, mas a técnica jurídica de lhe cometer algum poder: aquele que pode ser exercido. Nem mais, nem menos, só o que a Constituição atribui. A norma constitucional tenta domesticar o animal político, conferindo racionalidade jurídica ao seu comportamento.

Mas, para que isso funcione, é preciso levar muito a sério a Constituição e o estudo do Direito Constitucional. Lá se prescreve como os poderes constituídos devem funcionar e a margem de divergências aceitável. Em situações de crise, ela é o porto seguro que garante a estabilidade das instituições. Inclusive, assegura que eventuais abusos sejam imediatamente reprimidos e maus gestores públicos afastados.

Quando há indivíduos que não se conformam à derrota e ameaçam tomar por força o exercício do poder político, esquecem que existe uma Constituição. Ou, pior ainda, consideram que a Constituição tem conteúdo nulo, um espaço vazio, podendo ser moldada conforme seus próprios interesses. Ela seria um aparato à serviço da política. Constatação que revela ignorância ou desprezo constitucional. Ou a combinação de ambos.

O progresso constitucional, longe de demandar mudanças constantes, baseia-se na conservação de seus pilares, sendo o mais importante o pacto de existência de uma comunidade de valores e princípios que trata a todos com igual respeito e consideração. Alterações absolutas ou desrespeitos equivalentes significam que nada há a ser conversado.

Por isso que, se a Constituição não for estudada, será mais difícil ainda conservá-la. A infância constitucional será eterna e alcançar o igual tratamento uma mera ilusão.

Diante do processo global que ameaça democracias e os pactos básicos, temos que compreender o Direito Constitucional em seu texto, contexto e funções. Isso implica atentar que muitas das ameaças não partem de quebras constitucionais imediatas, mas de modificações paulatinas que levam à perda da identidade constitucional, e, ao final, à transformação da Constituição em um espaço sem conteúdo, desprovida de força. Note-se quanto de ignorância e desprezo existe nisso.

Mas, se o risco aparece pela forma de manifestações patológicas pontuais, os sinais devem ser levados à sério sob pena de erosão do edifício constitucional. Daí que transgressões constitucionais não podem ser toleradas. Nem as supostamente mínimas. As instituições devem barrar comportamentos de enfrentamento constitucional, sem atenuar e tampouco normalizar tais práticas.

Estudar o Direito Constitucional é mais do que conhecer artigos constitucionais e teorias, é abraçar o compromisso de construção republicana e democrática do Estado de Direito, de forma que projetos discrepantes devem ser refutados. Como se vê, nunca foi tão urgente e necessário estudar e construir o Direito Constitucional.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-merece-ser-levada-muito-a-serio-22012021

Pacto federativo e atuação da União na segurança pública: sinais de alerta

Pacto federativo e atuação da União na segurança pública: sinais de alerta

O Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de julgar o alcance da jurisdição militar na ADI 5032

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA

 

O min. Edson Fachin concedeu medida cautela na ACO 3.427, ação proposta pelo governador da Bahia com o argumento que a utilização da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) no território do estado, sem sua solicitação, viola o pacto federativo.

A decisão do dia 18  estabeleceu o prazo máximo de 48 horas para a retirada do contingente. A ação, pautada para decisão do plenário dia 24, permite dois planos de análise: o imediato, da violação das premissas federativas; e o mediato, sobre a necessidade de estabelecer parâmetros adequados no campo de segurança pública.

Começando pelo primeiro plano. A Força Nacional de Segurança foi designada em portaria do dia 01 de setembro para atuar em assentamentos do INCRA em dois municípios do sul da Bahia – Prado e Mucuri. A solicitação foi feita pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e conforme relatado pelo governador, Rui Costa (PT), além de não ser o solicitante da medida, tampouco foi consultado quanto à necessidade de deslocamento da Força Nacional ao estado.

A Força Nacional de Segurança Pública foi criada em 2004 como um mecanismo de cooperação federativa, composta por policiais civis, militares, bombeiros e peritos. É utilizada para auxiliar os órgãos estaduais de policiamento. Embora tradicionalmente solicitada por governadores, o art. 4° do Decreto 5.289/2004 estabelece a possibilidade de que a solicitação seja de ministro de Estado.

É precisamente este o tópico arguido inconstitucional pelo governador por violar o pacto federativo, uma vez que a Constituição estabelece que a maior parte das competências na área de segurança pública é dos estados e os casos de violação da autonomia estadual são limitados, como, por exemplo, a intervenção federal.

Ao direcionar a Força Nacional à revelia de solicitação e avaliação do governador, ainda mais em área de assentamento, o min. da Justiça, André Mendonça, estabeleceu preocupante precedente, que afeta ao mesmo tempo a autonomia estatal e a política nacional fundiária, provocando incertezas e ameaças de retrocessos.

A informação dos assentados de que não houve quaisquer situações que remotamente justificasse a presença da FNSP é mais um elemento fático que põe em xeque tanto a necessidade, quanto a possibilidade da utilização da Força Nacional no caso.

De forma mediata, o uso da Força Nacional de Segurança Pública faz parte do processo de atuação direta da União na esfera de segurança pública, processo que passa também pelo uso das Forças Armadas nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Conforme citado, a competência primária em segurança pública é dos estados-membros, que, inclusive, tem a maior parte dos gastos na área. Embora tenha havido algumas tentativas de estabelecer uma política nacional para a área, ela falhou enquanto mecanismo de cooperação e coordenação de políticas.

Ao invés de estabelecer formas de cooperação, a União tem atuado de maneira direta através da Força Nacional de Segurança e das Forças Armadas nas GLOs.  Neste modelo as operações são casuísticas, uma vez que não há projeto à médio e longo prazo, além de custosas.

Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 a União gastou 142 milhões de reais em operações da FNSP e 525 milhões em operações GLO. No ano anterior, os gastos superaram 1,7 bilhões de reais, destes 1,1 bilhão com a intervenção o Rio de Janeiro.

A intervenção direta da União em segurança pública, em detrimento da coordenação de políticas públicas, constitui equívoco de política, uma vez que para além de gastos significativos, não gera resultados duradouros, sendo utilizada em operações nas quais o fator central é o policiamento ostensivo.

Tampouco há transparência na utilização da FNSP e operações GLO uma vez que nas portarias de autorização não há qualquer indicação do motivo específico do uso, prevalecendo as expressões genéricas de “preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e patrimônio”. Com isso há dificuldades de avaliar a concreta necessidade e eficiência dessas operações.

A atuação direta leva também à militarização da área, especialmente através do uso de militares na função na já citada GLO. Há questionamentos tanto sobre a adequação do uso das Forças Armadas em segurança pública por notoriamente não ser função típica militar, quanto também no campo de direitos humanos.

A competência da Justiça Militar para julgamento de crimes ocorridos em operações como GLO é absolutamente controvertida e viola precedentes internacionais relevantes, como Cruz Sánchez e outros vs. Peru, em que se estabeleceu que a justiça militar deve restringir-se ao julgamento de militares em funções próprias militares.

Dessa forma, julgar militares em operações de segurança, ou pior, civis nessas operações pode diminuir o grau de transparência e controle público dos julgamentos, além de estabelecer penas desproporcionais, uma vez que o Código Penal Militar costuma ter penas mais severas. O STF terá a oportunidade de julgar o alcance da jurisdição militar na ADI 5032, pautada para julgamento em outubro, após pedido julgamento em 2018 ter sido interrompido pelo pedido de vistas do min. Roberto Barroso.

O julgamento pelo Plenário da ACO 3.427 é uma grande oportunidade para definição do sentido do pacto federativo na área de segurança pública, e análise dos riscos de ampliação da atuação direta da União neste campo. Mas não devemos perder de vista a necessidade de debates sobre o desenho das políticas públicas na área, de forma a evitar soluções fáceis e, paradoxalmente, ineficazes.

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pacto-federativo-e-atuacao-da-uniao-na-seguranca-publica-sinais-de-alerta-23092020

Entre exceções, estado de exceção e normalidade

Entre exceções, estado de exceção e normalidade

O perigo da permanência do provisório

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA


A atual crise mundial tem trazido radicais desafios para o direito público, que podem ser assim sintetizados: o direito normal, aquele que aplicamos no nosso cotidiano, consegue debelar as demandas excepcionais decorrentes da pandemia? Em caso negativo, quais seriam os métodos de solução dos problemas? Eles já existem?

A formulação de tais problemas nos obriga a avaliar a maneira como o direito, em especial o público, lida com a excepcionalidade.

A relação entre direito e exceção não é nova, tendo surgido justamente no processo de consolidação do Estado de Direito. Antes da existência de um sistema jurídico impessoal e previsível, quaisquer demandas eram resolvidas pelo soberano através da razão de estado. Quando quisesse, se desejasse e da forma que melhor lhe aprouvesse. Logo, na ausência de regras predefinidas, a exceção não se põe.

Dito de outra forma, é somente quando há norma jurídica predefinida e estável que passa a haver a exceção. Sem o direito público, não há exceções a ele. O constitucionalismo tem como grande desafio pensar os termos em que situações de absoluta gravidade podem ser resolvidas. Cenários os quais, no limite, colocassem em risco a própria constituição.

Tomemos o exemplo da tradição francesa do estado de sítio. Aqui, a lógica é a de que é fundamental o estabelecimento a priori de hipóteses, condições e direitos que poderiam ser suspensos. Tais casos e soluções seriam taxativos. O raciocínio é o de que, em situações graves, não se consegue ter clareza para debater em profundidade e esse fato poderia levar a riscos de abusos contra o próprio direito.

Os mecanismos excepcionais seriam espécie de contrafogo jurídico: queima-se, de forma controlada, a área em rota de um incêndio incontrolável para evitar que ele continue sua trajetória destrutiva.

A premissa central nessa técnica de mecanismos excepcionais é a demarcação entre um momento normal e um excepcional. Há uma linha, às vezes tênue, mas preconcebida. O que é muito importante para definir, inclusive, o término da exceção, quando a situação retornaria aos termos e normas ex ante.

O constitucionalismo disporia de instrumentos provisórios, de suspensão de normalidade e instalação de soluções que se auto-extinguiriam quando do final da anormalidade. Encerrado o cenário factual que impõe a medida de exceção, teriam fim a causa e o nexo causal autorizador de sua aplicação. Apagado o incêndio, não há lugar para o contrafogo. Esse é o modelo ideal.

Entretanto, a história mostra a tendência de que mecanismos excepcionais permaneçam durante largo período, inclusive incorporando-se aos instrumentos ditos normais. Coloca-se fim ao fogo com gasolina. Exemplo mais eloquente e radical foram as permissões pós 11 de setembro ao uso de técnicas de tortura, flexibilização de direitos fundamentais e utilização de Guantánamo como prisão. Muito embora refutados, tal ordem de mecanismos e suas variações persistem em grande número de países ocidentais.

A permanência do excepcional, seja na forma de mecanismos jurídicos excepcionais, seja em ameaças fluidas e permanentes, tem levado ao que alguns autores chamam de “estado de exceção permanente”.

Nestes casos, os riscos seriam tão difusos quanto reais e contínuos, como pandemias, crises econômicas de grave proporção e grupos criminais transnacionais. Constatação que torna praticamente impossível separar a normalidade da exceção, pois esta sobrevive virtualmente em todos os momentos, em ciclos de retroalimentação e multiplicação. O ordenamento jurídico estaria permeado entre o direito normal e o excepcional, a exceção a conviver ordinariamente com a regra.

Pois bem, o que a atual pandemia nos tem demonstrado de forma categórica é a inaplicação dos mecanismos excepcionais. Exemplo são os debates no direito brasileiro: ao mesmo tempo em que há consenso da necessidade de medidas específicas na esfera do direito constitucional e administrativo, não há qualquer menção séria ao uso do estado de defesa ou do estado de sítio (mesmo porque estes mecanismos não fornecem nenhum instrumento útil para a atual situação).

A emergência sanitária demanda respostas distintas daquelas próprias a crises políticas e jurídicas, de forma que mesmo os instrumentos excepcionais são incapazes de fornecer diretrizes úteis (além do risco de uso para supressão das liberdades).

Não é adequado falar-se – e espera-se que assim se persista – de exceção ao direito público. A pandemia vem sendo debelada por meio de instrumentos jurídicos. Bons ou maus, novos ou velhos, patéticos ou nobres, certos ou errados, tanto faz – ainda assim, afirmam respeitar o Estado de Direito. Têm por base as normas postas e o respeito à permanência da constituição.

O exemplo da lei 13.979/2020 é significativo. Ela tem vigência temporária enquanto durar a pandemia e estabelece medidas como o isolamento. Parametriza as ações executivas a evidências científicas e boas práticas protetivas internacionais.

Entretanto, tampouco fornece quadro mais amplo de mecanismos jurídicos aptos a lidar com a situação (o que se complica, pois não há expectativa temporal do término da anormalidade). Caso se confirme a necessidade de isolamento parcial até que haja vacina, podemos estar falando de anos.

A situação é delicada e estamos tateando à procura de soluções no ambiente constitucional. Mas, como num antigo provérbio, “é muito difícil achar um gato preto num quatro escuro – especialmente quando não há nenhum gato.” Se não houver sensatez, podemos ser conduzidos a terras de ninguém, em que se conjugam ausência de instrumentos jurídicos com a possibilidade de permanência indefinida da situação.

À ausência de parâmetros jurídicos excepcionais aplicáveis somam-se as incertezas provenientes de conflitos federativos e “declarações governamentais de Schrödinger”: que corroboram e, simultaneamente, minimizam a crise e as medidas adotadas. Essa constância inconstante inibe as respostas jurídicas, pois delas se espera o enfrentamento do desafio da permanência e provisoriedade.

O importante está em medidas jurídicas capazes de diminuir o impacto da pandemia, mas, ao mesmo tempo, democráticas e coerentes – para que possam perdurar só enquanto durar a crise, sem risco de ameaça ao estado constitucional. Pactos fáusticos, fora da constituição, devem ser refutados de plano, a fim de que a crise temporária não engendre a exceção permanente.

As respostas não estão prontas, mas demandam construção coerente para, quem sabe, encontrar o inexistente gato preto no quarto escuro. O direito público excepcional fornece instrumentos jurídicos hábeis à construção de perguntas adequadas. Mas exige que a urgência por respostas não oblitere o fato de que as soluções dadas neste momento têm enorme potencial de permanecer muito tempo no horizonte.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

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