Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Por Rodrigo Luís Kanayama e Ilton Norberto Robl Filho

Introdução
Ninguém pode duvidar da relevância da internet para a construção de uma sociedade melhor. De outro lado, surgem relevantes preocupações com a privacidade [1] e com o impacto sobre as preferências das pessoas.

Além disso, as redes sociais atualmente são acusadas de manipulação de eleições, violência contra os jovens (cyberbullying), vazamento de informações privadas, entre outras denúncias. Notícias falsas correm por computadores e smartphones na velocidade de um pressionar de um botão, às vezes propositalmente, às vezes ingenuamente, corroendo a democracia constitucional.

As notícias falsas deterioram a qualidade da democracia, porque produzem um cenário falso que interfere ilegitimamente no processo de escolha dos eleitores. Dessa forma, este texto analisa o tema e apresenta sugestões simples baseadas em análises comportamentais para coibir o compartilhamento de notícias falsas.

Eleições e Redes Sociais no Brasil
Nas eleições brasileiras de 2018 e de 2020, o fenômeno das notícias falsas, apesar de combatida por relevantes campanhas da Justiça Eleitoral, de mecanismos de comunicação social e de entidades da sociedade civil, encontrou-se presente. Duas características se destacaram: primeiro, o uso massivo da Internet e das redes sociais para substituir as formas tradicionais de propaganda eleitoral; segundo, os polos extremos que se formaram, tornando-se os grupos em entidades absolutamente fechadas.

Nos últimos anos, as posições políticas extremas tornaram-se mais radicais, a ponto de não haver pontos de contato entre os polos. Há dificuldade de comunicação e consenso, pois se tornam grupos que não discordam entre si, já que não há possibilidade de diálogo.[2]

Podemos observar, embora existissem preferências diferentes, que havia coesão social, com vários pontos de contato, em 2013[3]. Quando, antes da Copa de 2014, eclodiram os protestos contra o governo, a configuração mudou e os grupos ficaram mais distantes entre si. O tema da corrupção sistêmica trouxe ainda mais insatisfação e mais polarização. Basicamente, formaram-se dois polos definidos: os que se declararam contra o partido político que se encontrava na Presidência da República à época e os pró-governo (mais à esquerda no espectro ideológico).

Em 2016, segundo os mesmos autores, o cenário ficou ainda pior, uma sociedade mais dividida. De um lado, aqueles que protestaram contra a corrupção, junto com alguns liberais, conservadores, partidos de direita, proponentes do regime ditatorial e, do outro lado, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, políticos de esquerda. Depois, ocorreu o impeachment da Presidenta da República e a eleição extremamente polarizada, eventos que ajudaram a distanciar os lados.

O primeiro efeito óbvio foi o fim dos consensos (e consensos são fundamentais na política). Outro efeito foi o dano à liberdade de expressão. O excesso de notícias falsas, somado às opiniões extremas, desestimulou a manifestação dos moderados. Hoje, não é aceitável criticar um extremo, porque a crítica o fará pertencer ao outro extremo. Essa situação tem trazido desencanto a muitos usuários das redes sociais, pois fica difícil (quase impossível) estabelecer um diálogo saudável (com argumentos).

O que queremos dizer ao falar de liberdade?
liberdade de expressão trata-se de direito fundamental constitucionalmente previsto e de elemento central para a existência da democracia. As redes sociais são por excelência espaços virtuais de comunicação com pouca limitação aos usuários e, com um único clique, milhares de pessoas são alcançadas.

John Stuart Mill afirma enfaticamente que “[a] única liberdade que merece o nome é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar”[4]. As pessoas devem ser livres para atingir seus objetivos. No entanto, a liberdade de expressão enfrenta um limite importante: a liberdade de expressão de outra pessoa. Portanto, manifestações extremas que limitam e impedem a liberdade de expressão de terceiros não podem ser toleradas.

Notícias falsas causam danos à liberdade de expressão, pois resultam em posições extremas e desinformadas do interlocutor, distorcendo sua manifestação. Nesse sentido, a notícia falsa é muito prejudicial à democracia, pois promove mal-entendidos e falsos fundamentos e fatos que levam a mais falsas manifestações. Poucos buscam dados que contestem as notícias falsas e as câmaras de ressonância digital agravam ainda mais a disseminação de falsidades[5].

A questão é que criação de uma regra de proibição de notícias falsas não resolverá todos os problemas. Além disso, proibir sem cautela o que se entende por notícia falsa poderia arriscar, novamente, à própria liberdade de expressão, porque deixaríamos para o Poder Judiciário, moderadores e administradores de redes sociais o que se entende por notícia falsa. Não devemos tirar do controle dos próprios usuários a faculdade de dizer o que é falso e o que não é. Afinal, se os usuários cometem erros, o que impede o governo ou as empresas de cometê-los? Portanto, outras ferramentas contra notícias falsas devem ser consideradas (sem ignorar, obviamente, eventual regulação).

A internet, notícias falsas (fake news), algoritmos
Na edição de 13 de agosto de 2012, a revista The New Yorker publicou um artigo do escritor James Surowieck, intitulado “Downsizing supersize”[6], apresentando que o prefeito de Nova York, com vistas ao combate à obesidade, proibiu em 2012 os refrigerantes de grande porte do cardápio de restaurantes, estádios, cinemas e outros locais de entretenimento. As pessoas tomam decisões todos os dias, porém podem ser empurradas por outros indivíduos e cidadãos, por empresas e pelo governo com mais ou menos força. Embora se possa dizer que o governo tem tentado interferir nas escolhas de quem consome bebidas doces, também é verdade que as empresas interferem nas escolhas de compra das pessoas ao oferecer copos grandes.

É a arquitetura de escolha, sendo o termo adotado por Richard Thaler e Cass Sunstein[7] e criando um cenário que fornece o empurrão (nudge) para a melhor escolha. É difícil aceitar a realidade: todos somos, a todo o momento, influenciados, pressionados, bloqueados nas nossas escolhas quotidianas por agentes externos, como as empresas, governo, um amigo, a internet, opiniões e avaliações de terceiros, algoritmos.

Sem correr o risco de infringir a liberdade de expressão — por meio de proibições ou sanções contra os usuários — é possível criar um quadro para as pessoas refletirem ao se manifestarem nas redes sociais. A intenção será a redução de discursos radicais na internet e a divulgação de notícias falsas.

A programação do que se vê na internet depende do algoritmo e, consequentemente, do comportamento de cada usuário. Claro, o algoritmo interfere no comportamento do usuário. Em 2014, a revista Wired fez um experimento no Facebook. Mat Honan, redator sênior da Wired, “curtiu” de todas as postagens em sua linha do tempo por 48 horas, postagens boas ou ruins. Como resultado, em primeiro lugar, seus amigos foram embora da linha do tempo dele. Os anúncios permaneceram. Em seguida, os posts caminharam, no espectro político-ideológico, para a direita, uma extrema direita. Sua linha do tempo enviesada (biased).[8] Os algoritmos são escritos para parecer que o usuário está controlando o conteúdo, mas na verdade o controle está nas mãos de quem escreve o algoritmo[9].

O Facebook promoveu mudanças em seu algoritmo, tentando reduzir notícias falsas. No entanto, não parece ter sido bem-sucedido. No Brasil, durante as eleições de 2018 e de 2020, notícias falsas foram espalhadas com intensidade e compartilhadas por pessoas comuns, além de robôs, deliberadamente ou não.[10]

1. Nathan Mathias da Cornell University é autor do site CivilServant[11], encorajando comportamentos responsáveisna redeReddit, usando o que chamou de AI-Nudge, baseado no trabalho de Richard Thaler e Cass Sunstein[12]. A ideia era encorajar as pessoas a fazer o check-in antes de postar qualquer comentário e a verificação de fatos aprimora o algoritmo em si. Segundo sua pesquisa, houve aprimoramento das publicações compartilhadas, mantendo a liberdade do usuário, mas reduzindo as notícias falsas.

A adoção de cutucadas deve seguir algumas regras básicas, como afirmou Richard Thaler: “Três princípios devem orientar o uso de nudges: Todas os nudges devem ser transparentes e nunca enganosos. Deve ser o mais fácil possível desativar o nudge, de preferência com um pequeno clique do mouse. Deve haver uma boa razão para acreditar que o comportamento que está sendo encorajado melhorará o bem-estar daqueles que estão sofrendo nudge”.[13]

Da mesma forma, há nudges malignos nas redes sociais. Um bom exemplo é o WhatsApp, que pertence ao Facebook. Observe os botões para compartilhar notícias e fotos. Eles são facilmente acessíveis, são visíveis e não há nenhum outro recurso destacado. Apenas compartilhando. Nesse caso, a vida das pessoas não melhora com o compartilhamento de informações sem a necessária reflexão e análise crítica de seu conteúdo.

Dito isso, uma pesquisa apresentou uma possível solução[14]. Em 2012, muito antes da escalada da polarização política, eles propuseram mudanças no funcionamento do Facebook, usando plug-ins no navegador de internet Chrome e fizeram experiências com alguns voluntários. Três foram as sugestões, todas baseadas no conceito de nudge. A primeira, denominada picture nudge, consistia em mostrar cinco fotos de perfis de amigos ou não que potencialmente leriam a publicação, porque “uma pesquisa anterior descobriu que os usuários do Facebook muitas vezes não pensam em quem está em seu público e não têm uma ideia clara de quem pode ver suas postagens”. A segunda, temporizador, serve “para encorajar os usuários a refletirem sobre suas postagens, nós projetamos um temporizador que insere um pequeno atraso antes que um post seja realmente postado”. A terceira, cutucada sentimental, fornecendo “aos usuários feedback imediato sobre o conteúdo de suas postagens”.[15]

De fato, aconteceram melhorias quando os usuários compartilharam suas postagens, porque muitos refletiram antes de publicar, especialmente no que diz respeito à privacidade. Embora a pesquisa não tenha sido realizada com um grande grupo — e houve problemas técnicos — foi demonstrado inicialmente que é possível melhorar as redes sociais.

Considerações finais
É possível, sem desfigurar a liberdade de expressão dos usuários, aprimorar a internet e as redes sociais com a adoção de ferramentas simples, mas que promovem resultados sociais benéficos.

Não descartamos a relevante regulamentação estatal, embora reconheçamos a difícil tarefa de regulamentar a conduta do usuário, limitando sua liberdade de expressão. Por outro lado, os nudges mantêm a liberdade dos usuários, mas promovem algum grau adicional de reflexão sobre o conteúdo publicado. As redes sociais devem criar ferramentas que evitem o compartilhamento quase automático, simples e desimpedido. Impõe-se principalmente a promoção de um ambiente saudável para o usuário possua tempo e condições de decidir por si mesmo se a notícia (o link da internet) é uma fonte segura, verdadeira e responsável. A democracia do futuro depende de informações compartilhadas com extrema velocidade, mas também depende do grau de maturidade de seus usuários.

*O texto é resultado de pesquisa e debates no âmbito do Núcleo de Direito e Política (Dirpol) do PPGD/UFPR e foi apresentado em março de 2019 no Wasserstein Hall, Harvard Law School, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos, por convite da Associação Brasileira de Estudos Jurídicos de Harvard.

[1] Cf. PASQUALE, Frank. The Black Box Society. Cambridge: Harvard University Press. 2015.

[2] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[3] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[4] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 28.

[5] Cf. BENKLER, Yochai; FARIS, Robert; ROBERTS, Hal. Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 4

[6] SUROWIECK, James. Downsizing supersize.  The New Yorker.  Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2012/08/13/downsizing-supersize. Acesso em: 30.5.2021.

[7] A construção do argumento está em: THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009, p. 83 e seguintes.

[8] HONAN, Mat. I Liked Everything I Saw on Facebook for Two Days. Here’s What It Did to Me. Wired Magazine, 2014. Disponível em https://www.wired.com/2014/08/i-liked-everything-i-saw-on-facebook-for-two-days-heres-what-it-did-to-me/, acesso em maio de 2021.

[9] Sobre essas questões, cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford University Press, 2018.

[10] MELLO, Patricia Campos. WhatsApp admite envio maciço ilegal de mensagens nas eleições de 2018. In.: Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/whatsapp-admite-envio-massivo-ilegal-de-mensagens-nas-eleicoes-de-2018.shtml. Acesso em maio de 2021.

[11] Persuading Algorithms With an AI Nudge Disponível em: https://civilservant.io/persuading_ais_preserving_liberties_r_worldnews.html, acesso em maio de 2021.

[12] THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009.

[13] THALER, Richard H. The Power of Nudges, for Good and Bad. In.: New York Times. Disponível em https://www.nytimes.com/2015/11/01/upshot/the-power-of-nudges-for-good-and-bad.html, acesso em maio de 2021, tradução livre.  

[14] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038 .

[15] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038, p. 765 (tradução livre).

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-10/observatorio-constitucional-liberdade-expressao-redes-sociais-democracia

A segurança jurídica na Constituição Federal

A segurança jurídica na Constituição Federal

Por Ilton Norberto Robl Filho e Marco Aurélio Marrafon

1 – Constituição. O direito fundamental à segurança encontra-se previsto nos artigos 5º, caput, e 6º, Constituição de 1988. Em verdade, o Estado democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, caput, CF/88, possui na sua estrutura a promoção dos direitos fundamentais, a legalidade e a separação dos poderes, que são elementos relevantes para concretização da segurança[3].

Por sua vez, o direito fundamental à segurança é dotado de aspectos individual, coletivo e difuso. A tradição constitucional brasileira reconhece o direito fundamental à segurança individual, conforme se observa no artigo 179, caput, Constituição de 1824. Apesar da inexistência da previsão expressa sobre a tutela da segurança individual na CF/88, a topografia (caput, do artigo 5º, CF/88) e o reconhecimento de inúmeros direitos em espécie acerca da segurança individual impõem a titularidade do direito fundamental à segurança aos indivíduos, sendo exemplo de direito em espécie a vedação à retroatividade da lei penal com exceção da situação de produzir benefício ao réu, de acordo com XL, artigo 5º, CF/88.

Também são titulares desse direito fundamental os coletivos e toda comunidade. Nesse sentido, as ações constitucionais são importantes instrumentos para proteção e segurança dos direitos e interesses, sendo garantias constitucionais o mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX, CF/88) e a ação civil pública (artigo 127, III, CF/88) que tutela os direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos. No âmbito do direito social à segurança (artigo 6º, CF/88), vislumbra-se a segurança pública, a qual promove a incolumidade das pessoas e do patrimônio, além da promoção da ordem pública em conformidade com o respeito aos direitos fundamentais, segundo o art. 144, CF/88. O direito fundamental social à segurança é integrado ainda pela seguridade social, que possui como função constitucional efetivar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme o artigo 194, caput, CF/88.

De outro lado, a dimensão subjetiva consiste no conjunto de faculdades e direitos que é atribuído aos titulares desse direito fundamental, sendo garantido tanto pelo direito mãe à segurança (artigo 5º, caput, e 6º, CF/88) como por diversos direitos fundamentais em espécie que também tutelam esse valor. Acerca dos direitos fundamentais em espécie, indicam-se: a) direito de que apenas a lei pode obrigar ou proibir a prática de uma ação ou omissão (artigo 5º, II, CF/88), b) proteção da propriedade com função social (artigo 5º, XXII e XXIII, CF/88), c) direito de herança (artigo 5º, XXX, CF/88), d) direito de petição e direito à tutela jurisdicional tempestiva, adequada e célere (artigo 5º, XXXIV, ‘b’, XXXV e LXXVIII, CF/88), e) direito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (artigo, XXXVI, CF/88), f) vedação de juízo e tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF/88), g) garantias penais e processuais penais como legalidade no direito penal (artigo 5º, XXXIX, CF/88) e h) e outros direitos fundamentais em espécie.

A dimensão objetiva desse direito impõe a observância da segurança pelos agentes, órgãos e poderes estatais nas suas atividades cotidianas, assim como é empregada pela interpretação jurídica na concretização e na aplicação do ordenamento jurídico, incidindo nas relações privadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Mesmo com a enorme relevância, por muito tempo, os estudos constitucionais deixaram em segundo plano as reflexões sobre a segurança nos fenômenos jurídicos e sociais[4].

2 – Fundamentos. Na modernidade, há a adoção da clássica teoria da separação dos poderes, segundo a qual cumpria ao Legislativo elaborar a ordem jurídica geral e abstrata e ao Judiciário apenas aplicá-la aos casos concretos com o mínimo de interferência possível na determinação do legislador. Nesse período do alvorecer do constitucionalismo, é predominante o viés liberal de proteção do indivíduo contra o Estado, da democracia representativa, da defesa dos direitos fundamentais individuais e da não intervenção na economia e na esfera privada, cabendo ao direito apenas regular o mínimo necessário para a convivência pacífica dos diferentes espíritos e projetos de vida humanos (NOVAIS, 2006, p. 59 e ss.).

 Eis o cerne da legalidade e da segurança jurídica moderna: permitir que os cidadãos conhecessem anteriormente as condutas vedadas e as consequências jurídicas de seu descumprimento, cabendo-lhes o exercício do livre arbítrio e da autonomia para cumprir ou não os ditames legais, respondendo por eventuais sanções. Com Cartas sintéticas e pouco interventivas, o direito acabou concentrado na legislação infraconstitucional, em especial, nas grandes codificações. O conceito de norma jurídica restou confinado à dimensão das regras legais, vinculando os julgamentos. Já os princípios seriam diretrizes políticas, com baixa ou nenhuma normatividade, cabendo aplicação subsidiária no preenchimento de lacunas.

Por sua vez, a guinada filosófica dá ensejo ao racionalismo e cientificismo que irão influenciar toda a epistemologia jurídica da modernidade em torno da busca da confiabilidade, estabilidade e certeza no direito, formando uma tríade de conceitos que compõe a significação da noção de segurança jurídica. Para alcançá-la, a teoria do direito se reduziu a uma teoria analítica da norma e do ordenamento (as grandes codificações), de modo a atingir o  status de ciência cujo objeto era análise das normas jurídicas individualmente tomadas ou em seu conjunto, a partir de critérios de validade, consistência lógica e coerência interna (MARRAFON, 2018, p. 59 e ss.).

Do ponto de vista do método, desenvolveu-se a teoria hermenêutica tradicional, subdividida em um tríplice processo i) teoria da interpretação, ii) teoria da aplicação, que envolve a conexão entre o sentido auferido da lei e o do fato, em uma combinação que levasse à conclusão contida na decisão, como, por exemplo, o processo de subsunção e iii) teoria da integração do Direito. Assim, é possível constatar que a segurança jurídica almejada deitava raízes  i) em uma teoria do Estado de Direito e da legalidade baseada em uma rígida separação de poderes e na distinção entre o âmbito político e o jurídico, ii) na adoção do conceito de norma jurídica enquanto regra e de ordenamento como um conjunto de regras, iii) no fundamento filosófico do paradigma da filosofia da consciência, iv) na redução do direito a uma teoria analítica de cunho científico e v) em uma teoria hermenêutica racionalista e subdividida em etapas cientificamente demonstráveis.

O dilema contemporâneo é que nenhuma dessas cinco premissas premissas subsiste.

O pensamento constitucionalista brasileiro, a partir da Constituição de 1988, paulatinamente consolidou a tese de que o Poder Judiciário, enquanto guardião da Constituição, tem o poder-dever de limitar os outros Poderes, quando há violação por ação ou omissão dos ditames constitucionais. Elevou-se a estatura do Poder Judiciário em relação aos demais, de modo a flexibilizar a separação dos poderes clássica e ensejar a progressiva confusão entre o campo jurídico e o campo político.

Assim, para além da aspecto liberal de proteção ao indivíduo (dimensão negativa), assumiu-se a tese de que o Poder Judiciário deve contribuir para a concretização dos direitos fundamentais sociais, seja por meio de intervenções diretas ou por controle da omissão dos demais poderes (dimensão positiva). Em consequência, difundiu-se no imaginário jurídico brasileiro uma certa leitura substancialista da concretização da Constituição, o que pavimentou o terreno para incursões ativistas, tópicas e voluntaristas, em detrimento da cultura da preservação da legalidade e da coerência jurisprudencial.  

Nesse movimento, fortaleceu-se a força normativa dos princípios constitucionais, que passaram a fundamentar decisões e serem aplicados diretamente enquanto fonte do direito, inclusive com possibilidade de afastamento da regra legal no caso concreto sem que haja inconstitucionalidade evidenciada. Ou seja, afasta-se a lei em nome de um princípio ante a alegadas exigências de justiça do caso concreto (derrotabilidade), ainda que, em geral, a lei não esteja eivada de vício de inconstitucionalidade e permaneça vigente[5].

Demonstrada a insustentabilidade das duas primeiras premissas, o cenário não se revela diverso em relação às demais.

O paradigma da filosofia da consciência restou superado enquanto fundamento filosófico. A crítica ao racionalismo e a emergência do paradigma da linguagem[6] levaram à denúncia da dimensão existencial e histórica do sujeito, que não mais se apresenta como razão pura, neutra e imparcial. A filosofia promoveu uma guinada linguístico-filosófica em que, ao invés do sujeito, a linguagem se torna a categoria de trabalho para a compreensão da racionalidade, em dimensão hermenêutica e também lógico-formal (Stein, 1996).

Assim, a crítica antimoderna de Nietzsche se transformou em vetor para a formação de um ambiente niilista que tem fomentado o que se entende como pós-verdade processual. Nesse ambiente niilista formou-se a era das narrativas, a qual enseja o voluntarismo na práxis judicial e inibe incursões de epistemologia jurídica, solapando, assim, a quarta e a quinta premissas ora estabelecidas. A noção de ordenamento jurídico fechado necessária à garantia do status científico do direito se transformou e deu lugar a um sistema aberto de princípios e regras (Marrafon, 2018, p. 124 e ss.), aumentando a incerteza no processo decisório, uma vez que tanto princípios quanto as regras se tornaram verdadeiros topoi argumentativos para justificar as decisões judiciais, favorecendo a realização tópico-argumentativa do direito, sem metodologia e sem hierarquia normativa clara e estável[7].

Apesar dos inúmeros esforços contemporâneos (Dworkin, 2014; Alexy, 2019), enquanto tentativas de racionalizar o processo decisório, a contraposição de narrativas e a pós-verdade que levam ao voluntarismo judicial se tornam antíteses à ideia de segurança jurídica, além da forte crise na teoria das fontes (Marrafon, Robl Filho, 2014) e do predomínio do sincretismo metodológico na applicatio judicial (Rosa, 2006).

3 – Conclusão.No contexto de crise das fontes e de sincretismo metodológico, corretamente o Código de Processo Civil de 2015 (NCPC) inovou e estabeleceu regras que, em tese, permitem a controlabilidade da decisão judicial, notadamente em casos de conflitos de princípios e ponderação (§2° do artigo 489, NCPC), bem como determinam o dever de os tribunais uniformizarem “sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (caput, artigo 926, NCPC). Dessa forma, o Excelso Supremo Tribunal Federal (2019) entendeu que “ao consagrar diversos mecanismos para o sobrestamento de causas similares com vistas à aplicação de orientação uniforme em todos eles (artigo 1.035, § 5º; artigo 1.036, § 1º; artigo 1.037, II; artigo 982, § 3º), conferiu primazia à segurança jurídica, à estabilização da jurisprudência, à isonomia e à economia processual”.  

Ainda, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro com a redação da Lei Federal nº 13.655/2018 concretizou e densificou o direito fundamental à segurança, estabelecendo a) a obrigatoriedade de as decisões administrativas e judiciais considerarem as consequências práticas, quando interpretarem valores jurídicos abstratos (artigo 20), e b) que as decisões administrativas e judiciais que fixem interpretação ou orientação nova prevejam regime de transição (artigo 23). Observa-se majoritariamente a desconsideração inconstitucional dessas normas. De outra banda, o Superior Tribunal de Justiça (2018) levou a sério a segurança jurídica: “A LINBD (…) também passou a dispor expressamente sobre a segurança jurídica relacionada à atuação das esferas administrativa, controladora e judicial”. Há um longo caminho para o substancial respeito ao direito fundamental à segurança jurídica, mas as bases teóricas e as estruturas do direito constitucional positivo estão postas.

BIBLIOGRAFIA.

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VIEHWEG, Theodor.  Tópica e jurisprudência.  Brasília: Departamento da imprensa nacional, 1979.

3] Cf. Novais, 2019, p. 147-169; 219-289; Torres, 2015, p. 125.

[4]Cf. Sarlet, 2012; Pérez Luño, 2000; Barboza, 2014.

[5] Cf. Serbena, 2012.

[6] Cf. Habermas, 1990.

[7] Cf. Viehweg, 1979.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-21/observatorio-constitucional-seguranca-juridica-constituicao-federal

Restrição e garantia dos direitos fundamentais em tempos de Covid-19

Restrição e garantia dos direitos fundamentais em tempos de Covid-19

Por Ilton Norberto Robl Filho

 
Ponto Inicial [1]

Com 26.754 óbitos e 438.238 casos confirmados até 28 de maio de 2020, em virtude da Covid-19 [2], o Brasil encontra-se no centro mundial dessa situação de Emergência de Saúde Pública de importância internacional, a qual causa efeitos sociais e econômicos nefastos, impondo rápida e adequada resposta estatal.

Por sua vez, o art. 3º da Lei Federal nº. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, com a redação da Medida Provisória nº. 926, de 2020, estabelece que: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; (…) VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal (…) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.”

Saúde pública e ciência nas restrições aos direitos fundamentais
Na doutrina especializada, é comum refletir sobre as restrições aos direitos fundamentais a partir de questões referentes à saúde pública. Martin Borowski analisa o direito dos nacionais de ingressar e sair do país, asseverando ser constitucional, por exemplo, lei que, para proteger a saúde da população contra pandemias, veda o ingresso de pessoa com enfermidade contagiosa grave. De outro lado, quando a lei proíbe qualquer cidadão enfermo de entrar no território nacional, de forma independente do grau de infecciosidade e da gravidade da doença, esse ato normativo infraconstitucional viola o direito fundamental de ir e vir de modo desproporcional[3], pois se uma pessoa possui uma doença inofensiva a proibição de seu ingresso não é adequada para proteger a saúde pública e a integridade física dos demais indivíduos.

As restrições aos direitos fundamentais, em tema de saúde pública, precisam ser fundadas em razões médicas, não sendo constitucional a adoção de motivos meramente políticos ou ideológicos na limitação desses direitos[4]. O conhecimento científico é substancialmente diverso de uma opinião política ou de uma concepção ideológica específica, tratando aquele saber de maneira sistemática, metodológica, especializada e verificável os problemas científicos, auxiliando na correta compreensão de condutas danosas aos direitos à vida, à saúde e às integridades física e psíquica.

Outrora já escrevemos que: “o conhecimento científico possui peculiaridades, tratando-se, por exemplo, a) da construção de conhecimento por meio de regras, de etapas, de processos e de métodos que conduzem à compreensão dos problemas científicos, b) da construção e da adoção de hipóteses para compreender, analisar e solucionar (ainda que parcialmente) as questões estudadas, c) do desenvolvimento e do emprego de conceitos, de perspectivas e de teorias que auxiliam na reflexão crítica sobre os temas e fenômenos e d) da apresentação de fundamentos fáticos e teóricos que suportam as conclusões e os resultados científicos obtidos. Nesse contexto, as ideias científicas são produzidas a partir de razoáveis ideais regulativos, sendo o mercado de ideias dos cientistas mais restrito do que o mercado de ideias dos cidadãos em geral, o qual é protegido pela liberdade de expressão em sentido lato”[5].

Dessa forma, corretamente o § 1º do art. 3º da Lei Federal nº. 13.979/2020 previu que as medidas restritivas para proteção da saúde pública e dos direitos à vida e à proteção da integridade física precisam ser tomadas a partir evidências científicas. As meras crenças e opiniões, apesar de constitucionalmente garantidas e relevantes no Estado Democrático de Direito, não são razões aptas a informar políticas públicas de saúde e estratégias sanitárias adequadas. Um entendimento político não pode fixar procedimentos e protocolos médicos desprovidos de respaldo científico.

Constituição, indivíduos e comunidade na restrição e na concretização dos direitos fundamentais
O constitucionalismo não deve ser dogmático e ingênuo, transformando-se em uma superstição e distanciando-se da análise crítica da realidade[6]. A ausência de desenvolvimento de uma Teoria Constitucional adequada ao Estado Democrático de Direito causa inexoravelmente a aplicação do texto constitucional de forma equivocada, criando um ordenamento jurídico com regulamentações e práticas absurdas.

Em verdade, líderes populistas de tendência autoritária utilizam-se seletivamente das liberdades de expressão, de crença, de opinião e até mesmo do direito à privacidade, assim como de instrumentos democráticos, com objetivo de chegar e manter-se no poder. Infelizmente, essa é uma tendência em diversos países, a qual deve ser conscientemente combatida pelos mecanismos constitucionais e teóricos existentes. Como precisamente aponta Kim Schepelle, os populistas são oportunistas que buscam o poder acima de qualquer apelo democrático, usando desonestamente a democracia constitucional e os direitos fundamentais [7].

De outro lado, a teoria constitucional de Peter Häberle apresenta uma visão sincera e democrática dos direitos fundamentais, sustentando a relevância do legislador e dos atos de conformação dos direitos fundamentais, na concretização tanto dos interesses públicos e legítimos da comunidade como dos interesses individuais. Novamente, o exemplo do referido jurista versa acerca da saúde pública.

Uma perspectiva unilateral da obrigação de o cidadão ser submetido à vacinação apontaria para uma simples restrição do seu direito fundamental individual à liberdade em prol do interesse da comunidade no campo da saúde pública e coletiva. Por sua vez, a determinação de vacinação detém fundamento especialmente nos benefícios produzidos ao próprio indivíduo, já que concretiza os seus direitos individuais à vida e à integridade pessoal[8]. Dessa maneira, há deveres impostos ao legislador de harmonizar os diversos direitos fundamentais específicos e de integrar os interesses individuais com os coletivos.

Em síntese, o ideal regulativo de uma adequada conformação dos direitos fundamentais, em tema de saúde pública, é a busca por benefícios para a sociedade e o cidadão, apostando nos direitos fundamentais como um sistema pautado na integração desses direitos com outros bens constitucionais[9]. A constituição é um ordenamento de valor duradouro que informa a ação dos cidadãos, políticos, governantes e sociedade, devendo o dinamismo do legislador promover os direitos fundamentais em leitura sistemática e harmonizadora com outros bens constitucionais[10] como o desenvolvimento econômico nacional, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos.

Europa e Covid-19
No boletim #1 da Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais, sobre a Pandemia do Coronavírus e as Implicações para os Direitos Fundamentais, observa-se a existência de muitos dilemas e problemas vividos na Europa que se repetem em grande medida no Brasil.. Em virtude do necessário distanciamento social, a realização presencial e física das atividades educacionais precisou ser interrompida na enorme maioria dos Estados europeus. Apesar da existência de instrumentos tecnológicos e metodológicos para o ensino remoto, não é possível esquecer que parte dos alunos não possui computador e acesso adequado à internet, precisando o Estado atuar para, no mínimo, abrandar esse obstáculo ao direito à educação em contexto de Covid-19.[11]

Acerca do mercado de trabalho, o necessário distanciamento social, além do enorme impacto em setores econômicos como turismo, vestuário e outros, produziu fortes alterações na rotina laboral e na renda dos trabalhadores. Em algumas profissões, o trabalho em casa (home office) é possível e deve ser adotado na maior medida possível, mas em diversos setores o desemprego e a queda substancial da renda imperam. Assim, a mitigação dos efeitos da perda ou diminuição de renda ocorreu com a aprovação de legislações para lidar com essa situação[12].

A busca por equilíbrio entre acesso à justiça e a segurança e a saúde dos membros do sistema de justiça e dos cidadãos em contato com esse sistema é dilema relevante. Desse modo, a tecnologia (processo eletrônico e videoconferência) foi empregada com bons resultados em linhas gerais, porém ocorrendo problemas especialmente em Tribunais que não estavam razoavelmente adaptados ao uso desses instrumentos[13].Os atos de racismos contra estrangeiros como chineses e o fenômeno da desinformação sobre práticas e medidas a serem tomadas na pandemia preocuparam países europeus e a Agência Europeia de Direitos Humanos.

O posicionamento do Diretor Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais corretamente registra que, na atual situação de Covid-19, não há um caminho de proteção da saúde pública ou de garantia dos direitos fundamentais[14], pois as políticas públicas, as leis e as atuações estatais são legítimas se promoverem a saúde pública com o maior respeito possível ao sistema de direitos fundamentais.

Assim, as medidas de contenção do coronavírus não estão dissociadas da busca de mitigação dos impactos nos campos da vida social, da educação, do trabalho e da liberdade de movimento. Importante ressaltar: não se trata de colocar o trabalho, a educação e a liberdade de movimento acima das necessárias ferramentas sanitárias e sociais de luta contra o coronavírus, e sim construir estratégias que procurem, respeitando a ciência e a vida, efetivar na maior medida possível, nesta triste realidade, os diversos direitos fundamentais.

No papel de coordenação das atividades de combate ao coronavírus, parece que falta ao governo federal brasileiro e especialmente ao Executivo Federal uma perspectiva integrada, responsável e harmônica da saúde pública e dos direitos fundamentais.


[1] Este texto apresenta algumas discussões e inquietações do autor compartilhadas com os mestrandos e doutorandos em Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público, na disciplina Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais.

[2][2] BRASIL. Ministério da Saúde. Covid-19: Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/Acesso em: 28/05/2020.

[3] BUROWSKI, Martin. La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20, Núm. 59, p. 51, Mayo-Agosto 2000.

[4] BUROWSKI, Martin. La Restricción de los Derechos Fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 20, Núm. 59, p. 55, Mayo-Agosto 2000.

[5] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Liberdade Acadêmica e Científica: Dimensões e Problemas Contemporâneos. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], 19(3), p. 763-764.

[6] Para uma visão crítica do constitucionalismo, cf. WALDRON, J. Constitutionalism: A Skeptical View. Georgetown University Law Center, 2010.

[7] Sobre o tema, cf. SCHEPELLE, K. L. The opportunism of populists and the defense of constitutional liberalism. German Law Journal, 20, pp. 314–331, 2019.

[8] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional. Granada: Editorial Comares, 2003, p. 64.

[9] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional, p. 68.

[10] HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional, p. 81-85.

[11] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 18-19.

[12] “A large majority of EU Member States have introduced legislation to compensate for loss of income related to the outbreak. In many cases, this takes the form of the government committing to paying a proportion of the wages of employees that have been or are at risk of being made redundant. Such measures – which also often involve contributions from the employer – will see staff receive 90% of their salary in Sweden, 80% in Slovenia,75% in Romania, 70% in Estonia and France, and 65-70% in Belgium, for example. Greece, in contrast, proposes a fixed sum compensation of €800 in April to employees working in enterprises which suspend their operations; a Maltese or any other EU citizen who becomes redundant in Malta will receive the same monthly amount as unemployment benefit. Ireland has instituted a specific ‘COVID-19 Pandemic Unemployment Payment’ of €203 per week, which aims to enable the newly unemployed to receive financial support quickly, while waiting for the government to calculate their longer-term entitlement” (EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 19).

[13] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 28.

[14] EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Coronavirus Pandemic in the EU ― Fundamental Rights Implications. Luxembourg: Publications Office of the European Union, April 2020, p. 5.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-30/observatorio-constitucional-restricao-garantia-direitos-fundamentais-tempos-covid-19