Normalizando o anormal? As decisões do STF após um ano de pandemia
Virada jurisprudencial a favor da descentralização permanece carecendo de maior fundamentação pela Corte
Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, JOSÉ ARTHUR DE MACEDO e RENATA NAOMI TRANJAN
Há cerca de um ano, escrevemos o artigo “As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?”. Naquela ocasião, apontamos dois pontos que indicavam possíveis mudanças e continuidades na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). As mudanças podiam ser vistas em relação ao conteúdo das decisões sobre matéria federativa. A continuidade podia ser vista na permanência do modo monocrático de decidir em relação aos outros Poderes.
Atravessado este primeiro e terrível ano pandêmico, retomamos essas questões: o Supremo manteve em 2020 e no início deste 2021 suas decisões a favor da descentralização federativa? Essas decisões foram tomadas ou proferidas monocraticamente?
Primeiro, quanto à mudança de atuação do STF em matéria federativa, se, antes da pandemia a atuação do Supremo tendia explicitamente para uma maior centralização da federação, o início da crise sanitária indicou uma alteração substancial desse cenário.
Como se sabe, no início da pandemia o Supremo afirmou, nas paradigmáticas ADI 6.341 e ADI 6.343, as competências comum e concorrente da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para o enfrentamento do COVID-19. A ADI 6.343 reconheceu a possibilidade de que Estados e Municípios adotassem medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local enquanto durar o estado de emergência sanitária. Muitas dessas medidas foram questionadas em sede de reclamação, mas foram mantidas em razão deste precedente.
Segundo essa linha de raciocínio, para o STF, respeitadas as competências que lhes são próprias, os entes da federação não só podem, como devem atuar no combate a pandemia.
Nesse sentido, temos também como casos exemplares a ADI 6.362/DF – que debatia a possibilidade de a União realizar requisição administrativa de leitos privados de UTI. E também as ADIs 6.587/DF e 6.586/DF – ambas versando sobre a possibilidade de estados realizarem vacinação compulsória.
Apenas para mencionar um exemplo julgado em plenário e com acórdão publicado, a ADPF 672/DF (Rel. min. Alexandre de Moraes), por exemplo, discutia os atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal no combate ao coronavírus. O STF entendeu que, ao tratar do direito à saúde e assistência pública, a Constituição consagrou a existência de competência administrativa comum dos entes (art. 23, II e IX, CRFB/88), bem como previu competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CRFB/88), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, CRFB/88). Ademais, previu a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CRFB/88, e art. 7º, Lei 8.080/1990), inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, Lei 8.080/1990).
Portanto, apesar do Poder Executivo federal ter papel central no planejamento e coordenação das ações governamentais, não pode ele afastar unilateralmente as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus territórios.
Em outras palavras, nestas decisões, o STF percebeu a omissão inconstitucional do Executivo e coibiu o federalismo bolsonarista, que pretende praticar uma descentralização irresponsável (política e juridicamente). O que não fica claro é se a junção desses fatores será, por si só, capaz de alterar e justificar o entendimento do Supremo em matéria federativa a longo prazo.
Além disso, em um ano, ficou mais nítida a imagem que apenas se antevia no horizonte de abril de 2020: o presidente da república é, atualmente, o principal ator a tensionar a federação, e, em muitas situações, procrastinou as medidas de enfrentamento ao COVID-19, tais como o uso de máscaras, a compra de vacinas e a tomada de medidas baseada em evidências científicas.
Apesar de haver uma jurisprudência evidente autorizando a atuação dos entes da federação, o presidente da república decidiu, ao seu modo, questionar a interpretação – absolutamente correta, ao nosso ver – da Corte a respeito dos deveres que a Constituição impõe aos entes da federação.
Em 18 de março de 2021, o presidente da república ajuizou a ADI 6764 para suspender decretos estaduais que estabelecem medidas restritivas no combate à pandemia, como o fechamento de atividades não-essenciais e o toque de recolher noturno. O presidente visava obter o entendimento de que medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas.
Como quem diz “quem manda aqui sou eu”, o presidente questionou de uma só vez, no mínimo duas coisas: i) um ano de reiteradas decisões do STF a respeito da matéria; ii) a autoridade dos governadores e prefeitos para impor medidas restritivas. Isto, não é demais lembrar, no ápice da pandemia com milhares de mortos por dia e sem perspectiva de diminuição imediata.
Em 23 de março de 2021, o relator ministro Marco Aurélio indeferiu a inicial e rejeitou a ADI 6764, afirmando que Estados, Municípios e União formam um “condomínio” responsável por tratar de temas relativos à saúde e que ao presidente da República “cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros”, no combate à pandemia. E ainda indicou haver erro grosseiro ante a falta de representação adequada do presidente da república pelo Advogado-Geral da União. A decisão gerou controvérsia sobre se tal representação seria ou não exigida. Afinal, há decisão antiga do STF reconhecendo a possibilidade de atuação direta e sem a representação apontada como necessária[1]. Contra a decisão do ministro Marco Aurélio, foram opostos embargos de declaração, os quais ainda não foram julgados pelo Supremo. A discussão sobre esse aspecto processual permanece, portanto.
Quanto às permanências das formas de atuação da Corte anteriores à crise, estas não só continuaram como, injustificadamente, parecem ter se assentado. Isso já era verificado tanto na forma como o STF vinha decidindo, como sobre o conteúdo do que ele vinha decidindo. A primeira é constatada na recorrente concessão de cautelares monocráticas em ADI e a segunda na recém aprovada alteração do rito de edição e análise das Medidas Provisórias (MPs).
Aliás, em relação às MPs, é importante ressaltar: ao conceder e referendar a liminar na ADPF 663, em julgamento de dezembro de 2020, o Supremo permitiu a alteração, por ato conjunto das mesas da Câmara e Senado, do rito constitucional de edição e aprovação as Medidas Provisórias. Ou seja, autorizou que ato conjunto do Poder Legislativo modifique regra constitucional expressa. A violação da Constituição pelo Poder Legislativo agora recebe o carimbo constitucional do Supremo, apesar do seu dever de zelar pelo devido processo legislativo e pela integridade da Constituição.
Ainda no tocante às permanências, convém destacar que a ampliação do uso do Plenário Virtual para todo e qualquer processo ou decisão poderia ter abrandado a corriqueira concessão de cautelares monocráticas em ADI. Apesar disso, ao longo de 2020 e 2021, a prática persevera. Veja-se o caso da ADI 6.625, de relatoria do ministro Lewandowski, cuja cautelar foi concedida em janeiro de 2021, para compreender que, “ao lado da União, cabe aos Estados, Distrito Federal e Municípios assegurar aos seus administrados os direitos fundamentais à vida e à saúde contemplados nos arts. 5°, 6° e 196 do texto constitucional”. A cautelar foi referendada em plenário por maioria dois meses depois, em março de 2021. Cite-se, ainda: a ADI 6357, ministro-relator Alexandre de Moraes, cuja cautelar foi concedida em março de 2020 e referendada em plenário em maio de 2020; a ADI 6484, ministro-relator Barroso, cuja cautelar foi concedida em julho de 2020 e foi julgada procedente em plenário em outubro do mesmo ano; por fim, a ADI 6495, ministro-relator Lewandowski, cuja cautelar foi deferida em agosto de 2020 e foi julgada procedente em plenário em novembro de 2020.
Diante disso tudo, se depreende que o diagnóstico feito no início da pandemia permanece dolorosamente atual. Mas, com acréscimos. Muito embora existam mudanças positivas no conteúdo da atuação do STF em matéria de federalismo, essa virada jurisprudencial a favor da descentralização permanece carecendo de uma maior fundamentação pela Corte. Será essa uma atuação tão somente circunstancial, fruto da emergência sanitária (a pandemia), e da atuação contrafática e anticientífica do presidente da república? Para além disso, vemos uma permanência no modo de atuação e resposta do STF, mesmo diante de novos desafios que lhe são apresentados pelo cenário de pandemia.
Neste ano de 2021 já somamos mais de 300 mil mortes, boa parte delas evitáveis. Abril de 2021 parece um déjà vu de 2020, apesar de termos mais informações e de haver vacinação. Não sabemos se ou quando voltaremos às nossas rotinas. O que parece estar normalizado são os enfrentamentos às autoridades federativas capitaneados pelo presidente da república e a atuação monocrática da Corte, ainda que, em muitos casos, em defesa das competências dos entes da federação. Esperamos, contudo, que este não seja o novo (a)normal.
[1] ADI 127 MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento: 20/11/1989.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/normalizando-o-anormal-as-decisoes-do-stf-apos-um-ano-de-pandemia-20042021