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II Conferência de Direito Constitucional | CCONS UFPR

II Conferência de Direito Constitucional

os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988

O Centro de Estudos da Constituição, com alegria, anuncia a II Conferência de Direito Constitucional: os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988!

O evento, que será no dia 05/10/2023, 10h, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFPR, contará com as conferências de Deborah Duprat e de Ela Wiecko!

Neste 8 de março, por que celebrar o constitucionalismo feminista?

 

Neste 8 de março, por que celebrar o constitucionalismo feminista?

Direito reproduz desigualdades de gênero, mas pode também ser um instrumento a favor da emancipação

Por Christine Peter, Estefânia Barboza, Marina Bonatto e Melina Fachin

 

O universo feminino é plural, complexo e diverso. O constitucionalismo feminista não pretende reduzir todas as desigualdades e multiplicidades numa única lente, mas, independente destes recortes diversos, há um consenso de que a carga para as mulheres é mais pesada.

As mulheres vivem os reflexos da sociedade patriarcal que habitamos. O direito é um espelho desta sociedade e, portanto, reproduz estereótipos e desigualdades de gênero. Mas o mesmo direito que oprime pode também ser um instrumento a favor da emancipação. Por isso, o constitucionalismo feminista aposta nas potentes ferramentas do constitucionalismo para o resgate de sua proposta (ou melhor dizer promessa?) de igualdade.

E as razões deste reconhecimento são justamente as justificativas que nos levam a ter que celebrar o constitucionalismo feminista neste dia de luta das mulheres, buscando repensar o direito a partir de uma perspectiva de gênero, quer seja no momento de sua elaboração, questionando a participação das mulheres no Legislativo e o impacto que as leis causam sobre as mulheres, quer seja compensando a desproporcionalidade de leis injustas no momento de sua interpretação e aplicação pelos tribunais.

Se concorda com a assertiva acima, talvez nem precisasse ler o presente texto até o final, mas convidamos à leitura para que possamos compartilhar um pouco das pautas que movem o constitucionalismo feminista. O presente texto se dirige, especialmente, para aqueles (isso, no masculino!) que ainda têm dúvidas sobre as desigualdades de gênero que vivemos. Deste modo, cabe destacar algumas razões, em rol não exauriente, do porquê precisamos celebrar o constitucionalismo feminista neste dia 8 de março.

A divisão sexual do trabalho é uma das fontes de violência contra as mulheres porque demonstra as relações de dominação em razão de gênero. Com base nela, há funções tidas como tipicamente femininas, remuneradas ou não, especialmente relacionadas aos afazeres domésticos (por vezes sequer percebidos socialmente como trabalho) e às atribuições voltadas ao cuidado, especialmente com crianças e idosos. Esta ótica inferioriza a mulher, pois, com base nela, cabe a mulher sempre ser em relação ao outro, numa posição de servir, devendo à família e filhos ou aos outros.

Desafio inicial é reconhecer isto como trabalho: cozinhar, educar, cuidar, limpar – trabalhos não pagos e invisíveis, extremamente extenuantes, travestidos de mera atividade de cuidado e de afeto que fomos convencidas se tratar de uma incumbência natural da mulher.

Daí decorrem efeitos nefastos tanto na esfera pública quanto na esfera privada – e é imprescindível percebermos estes dois campos como interligados. Na arena pública, mesmo tendo ingressado no mercado de trabalho, e em muitos casos sendo mais qualificadas, as mulheres continuam a receber menos pelo mesmo trabalho nas mesmas funções. Outra consequência disto é que as mulheres são a maioria da força de trabalho no mercado informal; o que em momentos econômicos recessivos como a pandemia aguçou ainda mais as desigualdades. Tais desigualdades acabam por impactar também nas estatísticas relacionadas à Previdência Social: mulheres recebem aposentadorias menores e um grande percentual só conseguem se aposentar por idade no RGPS, uma vez que as incumbências de cuidados com os filhos as retiram do mercado de trabalho, impactando em menor tempo de contribuição.

Na arena privada, o ingresso no mercado de trabalho não implicou em distribuição equânime dos afazeres domésticos; as mulheres se dedicam mais aos trabalhos domésticos do que os homens e, por vezes, exercem dupla ou tripla jornada de trabalho, para além da carga mental majorada. Na divisão sexual do trabalho, as múltiplas jornadas ainda pendem sobre os ombros femininos.

A perversidade aqui se acentua pela questão da dependência econômica: a distribuição desigual de tarefas domésticas faz com que as mulheres sejam sobrecarregadas, mas ainda assim permaneçam, em regra, dependentes economicamente de homens.

Esta dependência muitas vezes é em si mesma uma fonte de violência ou ainda justificadora de muitas mulheres se submeterem a relações agressivas. A endemia da violência doméstica é dado significativo da violação dos direitos das mulheres. Nos momentos de precariedade econômica e inabilidade social, a violência de gênero no ambiente doméstico ganha contornos ainda mais dramáticos. A convivência forçada com agressores, por um lado, e a dificuldade de acessar os serviços e muitas vezes demora ou precariedade de reposta oficial, por outro, impulsionam o aumento da violência, em especial, na sua face mais nefasta que é a violência física e sexual.

Por fim, para aqueles que não se convenceram, o argumento definitivo: não somos donas dos nossos próprios corpos. É inconcebível que ainda perpetuemos juridicamente a ausência de autonomia sobre nossos próprios corpos e de decidir sobre maternidade, ou não. O tema da autonomia sobre o corpo precisa de debates racionais no espaço público, para além das disputas religiosas, e que equiparem às mulheres em sua igual liberdade, aos homens.

Isso tudo nos demonstra como a sociedade e o direito, a partir da divisão sexual do trabalho, e da artificial dicotomia público e privado, normalizam e legitimam a perpetuação deste sistema patriarcal.

 

CHRISTINE PETER – Doutora em direito, Estado e Constituição pela UnB (2013), mestra em direito e Estado pela UnB (2001) e graduada em direito pela UnB. Ex-assessora da Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Procurador-Geral da República (PGR). Atualmente é professora associada do mestrado e doutorado em direito das relações internacionais do Centro Universitário de Brasília (UniCeub), líder de pesquisa do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC-UniCeub), pesquisadora do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (ICPD-UniCeub), membro efetivo da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional e assessora do ministro do STF Edson Fachin
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
MARINA BONATTO – Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição da UFPR. Advogada.
MELINA GIRARDI FACHIN – Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH) e do Centro de Estudos da Constituição (CCONS), ambos da UFPR

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/neste-8-de-marco-por-que-celebrar-constitucionalismo-feminista-08032022

Imunidade Parlamentar e Feminicídio: 10ª Condenação do Brasil na Corte IDH, Caso Márcia Barbosa

Imunidade Parlamentar e Feminicídio: 10ª Condenação do Brasil na Corte IDH, Caso Márcia Barbosa

Por Melina Girardi Fachin, Isabella Louise Traub Soares de Souza, Erick Kiyoshi Nakamura e Sthefany Felipp dos Santos

 

O Brasil foi responsabilizado internacionalmente, de forma unânime, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. A sentença, proferida em 07 de setembro de 2021 e publicada no dia 24 de novembro de 2021, foi a 10ª condenação do Estado brasileiro, sendo a primeira responsabilização do país por feminicídio e o primeiro caso julgado pela Corte IDH sobre o tema da imunidade parlamentar.

Este caso já foi tema de artigo pelo Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Cosmopolita, antes do caso ter sido julgado, intitulado como Feminicídio na América Latina: o caso Márcia Barbosa vs. Brasil.

 

O Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil: fatos e trâmite perante a CIDH

O Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros se refere à responsabilidade internacional do Estado pelo assassinato da jovem Márcia Barbosa de Souza, em 18 de junho de 1998, que teve seu corpo encontrado em um terreno baldio nos arredores da cidade de João Pessoa/Paraíba.

Após investigação policial, o crime foi atribuído a Aércio Pereira de Lima, deputado estadual à época e suposto amante da vítima. Devido ao cargo político ocupado, a Procuradoria-Geral de Justiça se viu impedida de iniciar o processo criminal em desfavor do deputado, em virtude da imunidade parlamentar, que previa a necessidade de licença prévia, negada, por duas vezes, pela Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Em 20 de dezembro de 2001, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 35/2001, a qual previu a possibilidade de instauração de processo penal em face de parlamentares independentemente de autorização por parte da Casa Legislativa. Entretanto, as autoridades competentes não deram encaminhamento à ação penal até março de 2003. Após mais de 4 anos do envio de informações, o caso ainda não havia sido julgado e tramitava em plena morosidade. Apenas em setembro de 2007 a sentença condenatória foi exarada, tendo sido objeto de recurso, que, todavia, não foi apreciado em razão do falecimento superveniente de Pereira de Lima.

O caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste e o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), em 28 março de 2000, sob alegação de violações de direitos de Márcia Barbosa de Souza por parte do Estado brasileiro relativas aos artigos 2, 4, 24, 25 e 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), bem como aos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida por Convenção Belém do Pará.

O Relatório de Admissibilidade nº 38/07 foi aprovado pela CIDH em 26 de julho de 2007, que entendeu pela admissão da petição em face do Estado Brasileiro em relação aos artigos 4, 8.1, 24 e 25 da CADH em conexão ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, bem como ao artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

Após a análise de provas, reunião e estudo de relatórios, pesquisas e demais informações, bem como a partir de materiais produzidos pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pelo Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e pelo Senado brasileiro, acerca da violência contra a mulher e o não cumprimento integral da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), a CIDH emitiu, em 12 de fevereiro de 2019, o Relatório de Mérito nº 10/19.

No Relatório, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro que adote as devidas medidas para: i) reparar as violações de direitos humanos no aspecto material e imaterial, com medidas de satisfação e compensação econômica; ii) dispor de medidas de atenção à saúde física e mental para a reabilitação dos pais de Márcia Barbosa de Souza, a partir de seu consentimento e vontade; iii) reabrir a investigação de forma diligente, efetiva e dentro de um prazo razoável, visando a identificar os responsáveis e responsabilidades que culminaram na impunidade; e vi) dispor de mecanismos de não repetição, adequando o quadro normativo como forma de assegurar que a imunidade parlamentar seja bem delimitada e regulada, que as decisões relacionadas à aplicabilidade de imunidade sejam bem fundamentadas, e visando ao cumprimento integral da Lei Maria da Penha, que se disponha de políticas públicas e medidas para prevenir, investigar e punir a violência contra mulheres no Brasil.

Em 11 de julho de 2019, a CIDH apresentou o caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil à Corte IDH, tendo concluído que o fato se constituiu em um ato gravíssimo de violência contra a mulher, afetando a integridade psicológica de seus familiares, o que se comprova pelo corpo jogado em um matagal após ter sofrido diversas violências e de ter ido a óbito, bem como as falhas na investigação, a morosidade na tramitação da ação penal contra Aércio Pereira de Lima e a sua impunidade. A CIDH apontou que a imunidade parlamentar gerou uma demora excessiva e de caráter discriminatório no processo penal, tendo a investigação durado mais de 9 anos, o que resultou em violação da garantia ao prazo razoável de duração do processo e em denegação à justiça. Entendeu ainda que não foram esgotadas todas as linhas investigativas, sendo caracterizada a violação ao dever de investigar com a devida diligência. Assim, a CIDH concluiu que o Estado brasileiro foi responsável pela violação dos artigos 5.1, 8.1, 24 e 25.1 da CADH, com relação ao artigo 4, 1.1 e 2, do mesmo instrumento, bem como pela violação ao artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

 

A Responsabilização Internacional do Estado pela Corte IDH: questões de mérito

O caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil é pioneiro porque trata sobre feminicídio aplicado à realidade brasileira e sobre o uso indevido da imunidade parlamentar, de modo primeiro, na jurisprudência da Corte. Trata-se de um homicídio cometido em razão de gênero, que envolve assimetria e imposição de poder econômico e político do agressor, um homem, branco, deputado estadual, à vítima, que teve seu corpo encontrado num terreno baldio, com indícios de ter sido arrastado, golpeado e violado.

A decisão da Corte IDH se pautou, para além das reparações, em dois pontos: i) direitos às garantias judiciais, proteção judicial e igualdade perante à lei, em relação às obrigações de respeitar e garantir o dever do Estado em adotar disposições de direito interno e obrigações previstas no artigo 7º da Convenção Belém do Pará; e ii) direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

Acerca do primeiro ponto, a Corte IDH tratou sobre: i) aplicação indevida da imunidade parlamentar; ii) falta de devida diligência na investigação acerca dos demais suspeitos; iii) violação do prazo razoável; iv) utilização de estereótipos de gênero nas investigações; e v) conclusões.

A Corte IDH entendeu que a imunidade parlamentar somente pode ser analisada perante um caso concreto, para o fim de evitar que decisões adotadas pela Casa Legislativa sejam arbitrárias e, como consequência, ensejem impunidade. Para tanto, a Corte considera que a aplicação do instituto no caso concreto deve: “i) seguir um procedimento célere, previsto em lei ou no regimento interno do órgão legislativo, que contenha regras claras e respeite as garantias do devido processo; ii) incluir um teste de proporcionalidade estrito, através do qual se deve analisar a acusação formulada contra o parlamentar e levar em consideração o impacto ao direito de acesso à justiça das pessoas que podem ser afetadas e as consequências de se impedir o julgamento de um fato delitivo, e iii) ser motivada e ter sua motivação vinculada à identificação e justificativa da existência ou não de um fumus persecutionis no exercício da ação penal proposta contra o parlamentar”.

Tudo isso se confere, para a Corte, diante da necessária ponderação entre a garantia do exercício do mandato e o direito de acesso à justiça, bem como a avaliação de impactos e consequências. Neste sentido, a motivação e a boa fundamentação das decisões de órgãos legislativos relativas à imunidade parlamentar são exigíveis para que não se incorra na violação de direitos e em danos materiais e imateriais. Acerca deste ponto, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro obstacularizou de forma arbitrária o acesso à justiça por parte dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, o que se vislumbra das irregularidades do processo de denegação da licença pela Assembleia Legislativa, além da falta de motivação das decisões por ela adotadas, que não realizam exame de proporcionalidade, tornando os mecanismos existentes à época como propícios à impunidade e tornando o acesso à justiça ilusório.

Quanto à falta de devida diligência na investigação acerca dos outros suspeitos, o entendimento da Corte IDH recordou que, quando existem indícios ou suspeitas de violência de gênero, a falta de investigação se mostra discriminatória e pode constituir em uma forma de discriminação baseada em gênero. Esta ineficácia judicial pode propiciar um ambiente de impunidade, facilitando a repetição de atos de violência e deixando a mensagem de que a violência de gênero pode ser tolerada ou aceita, o que favorece a perpetuação de crimes e o sentimento de insegurança por parte das mulheres.

Além disso, quando há a morte de uma mulher, a investigação deve ser tomada a partir de uma perspectiva de gênero. Lembrou a Corte IDH que o dever de investigar é uma obrigação de meio e não de resultado, devendo ser séria, objetiva e efetiva, em busca da verdade e da responsabilização dos envolvidos. Desta forma, entendeu-se que o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de atuar com a devida diligência para investigar o caso, de forma a possibilitar o descobrimento da real participação de todos os suspeitos pelo feminicídio de Márcia Barbosa de Souza. Mais uma vez, a malversação do uso do instituto e a discriminação de gênero das autoridades investigativas impediram o acesso à justiça.

Em relação à violação da garantia do prazo razoável, a Corte IDH assinalou que é direito das vítimas e seus familiares que seja feito todo o possível para conhecer a verdade dos fatos, devendo o caso ser investigado, e os responsáveis julgados e responsabilizados. Quanto a este ponto, assinalou que não seria necessário analisar o direito à garantia de prazo razoável à luz do elementos estabelecidos em sua jurisprudência, pelo fato de que o processo criminal demorou quase 5 anos para ser iniciado devido à negativa arbitrária da Assembleia Legislativa da Paraíba, aplicando a imunidade parlamentar que, neste caso, degenerou-se em “impunidade parlamentar”, como textualmente indica a sentença. Desta forma, a Corte IDH considerou a aplicação do instituto, no caso, como arbitrária e, além disso, como excessiva a demora processual, para além dos quase 10 anos dos fatos à sentença condenatória, causando a sensação de impunidade.

A Corte IDH assinalou que, apesar da obrigação geral do artigo 1.1 da CADH se referir ao dever do Estado de respeitar e garantir direitos sem discriminação, o artigo 24 se refere ao direito de igualdade perante à lei, de maneira que se proíbe a discriminação de direito ou fato, não se limitando ao estabelecido pelo artigo 1.1, pois o princípio da igualdade e da não discriminação é salvaguarda de outros direitos, nas legislações internas e internacionais. Especificamente quanto à violência contra a mulher, o Comitê CEDAW da Organização das Nações Unidas se manifestou no sentido de que a presença de estereótipo de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o gozo e efetivação dos direitos humanos por mulheres. A Corte IDH reconheceu que o estereótipo de gênero afeta a objetividade daqueles encarregados de investigar denúncias relacionadas à temática, o que acaba interferindo no seu entendimento acerca dos fatos que culminaram na violência, avaliação e credibilidade trazida pela própria vítima. Ou seja, os estereótipos distorcem percepções e acabam se pautando em crenças e ideias pré concebidas que distorcem os fatos e revitimizam as vítimas. Neste sentido, considerou-se que estereótipos de gênero são prejudiciais e incompatíveis com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Durante o processo do caso em tela, a imagem de Márcia Barbosa de Souza foi deturpada. Por todos os motivos expostos, a Corte IDH concluiu que o processo penal teve um caráter discriminatório por razão de gênero, devendo o estado adotar medidas para garantir a igualdade material de acesso à justiça às vítimas mulheres.

Acerca deste primeiro grande ponto, a Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro violou o direito às garantias judiciais, igualdade perante à lei e a proteção judicial, conforme disposto nos artigos 8.1, 24 e 25 da CADH, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e com as obrigações do artigo 7 da Convenção Belém do Pará.

Quanto ao segundo ponto tratado na decisão, relacionado ao direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, a Corte IDH relembrou o seu entendimento de que familiares das vítimas podem também ser vítimas, bem como o direito à integridade psíquica e moral dos familiares e outras pessoas relacionadas. Considerando a repercussão midiática do caso, os danos sofridos pelos familiares e, inclusive, a realização de uma homenagem da Assembleia Legislativa da Paraíba ao ex-deputado, a Corte concluiu evidente o impacto à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

 

As medidas de reparação como possibilidade de transformação

No cumprimento de seu mandato transformador, a decisão da Corte IDH quanto ao Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, não focou apenas nas vítimas e seus familiares, mas na mudança estrutural, de forma a obrigar o Estado brasileiro a se comprometer alterar substancialmente sua atuação no tocante à violência de gênero. Neste sentido, considerando o mérito e as violações ocorridas à CADH e à Convenção Belém do Pará, a Corte tratou em suas reparações sobre: i) obrigação de investigar os fatos e identificar, julgar e responsabilizar os responsáveis; ii) medidas de satisfação; iii) medidas de reabilitação; iv) garantias de não repetição; e v) indenização compensatória.

Assim, a Corte IDH considerou a obrigação do Estado em combater a impunidade por todos os meios disponíveis, tendo em vista que a não investigação completa e efetiva sobre os fatos constitui em violação ao direito do conhecimento da verdade sobre os fatos. Determinou que as investigações tenham uma ótica de gênero e também para que não sejam permeadas por estereótipos de gênero, para que outras vítimas não sejam revitimizadas. Além disso, tendo em vista o dano gerado, entendeu pela não procedência de eventual reabertura de investigações quanto aos possíveis quatro partícipes do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza.

Acerca das medidas de satisfação, a Corte assinalou que o Estado deve publicar, no prazo de seis meses: i) resumo oficial da Sentença elaborado pela Corte IDH, em Diário Oficial, assim como nos sítios eletrônicos da Assembleia Legislativa da Paraíba e do Poder Judiciário da Paraíba, e em outros diários de circulação nacional; ii) deixar disponível a sentença em sua íntegra, por um período de ao menos 1 ano, nos sítios eletrônicos do Estado da Paraíba e do Governo Federal, devendo o Estado informar quando do cumprimento de tais publicações. Além disso, ordenou ao Estado, com o fim de reparar os danos causados e visando a não repetição, que seja realizado um ato de reconhecimento da responsabilidade internacional em relação ao presente caso, podendo ser realizado na Assembleia Legislativa da Paraíba e devendo ao menos uma autoridade do Ministério das Relações Exteriores e da Assembleia Legislativa da Paraíba assistirem. Tal ato deverá ser realizado em comum acordo com os familiares de Márcia Barbosa dos Santos.

Quanto às medidas de reabilitação, a Corte IDH determinou que os fatos do caso geraram graves violações à integridade pessoal dos familiares da vítima, considerando necessária, portanto, uma medida de reparação visando a atenção médica, psicológica e/ou psiquiátrica adequadas, bem como pagamento em dinheiro para custeio dos gastos em tratamentos necessários.

Em relação às garantias de não repetição, a Corte IDH recordou que é dever do Estado prevenir que violações de direitos humanos ocorram, devendo adotar medidas que sejam efetivas. Neste sentido, relembra dos avanços normativos realizados após os fatos do caso, como a Emenda Constitucional nº 35/2001, a Lei Maria da Penha, a inclusão do feminicídio no rol de crimes do Código Penal brasileiro, bem como os programas, os projetos e as iniciativas que visam ao enfrentamento à violência e discriminação contra a mulher. Todavia, o cenário ainda é de escassos dados oficiais e não oficiais disponíveis, para além do contexto de discriminação e violência estrutural, especialmente, quanto às mulheres afrodescendentes e pobres. Desta forma, a Corte entendeu necessária a coleta de informações sobre as várias formas de violência de gênero, visando à construção de políticas públicas efetivas e estratégias para prevenir e erradicar a discriminação e violência. Indicadores são fundamentais para pensar políticas públicas de proteção aos direitos humanos. Assim, ordenou que o Estado implemente um sistema nacional e centralizado de recompilação de dados por idade, raça, classe social, perfil da vítima, lugar da ocorrência, perfil do agressor, relação com as vítimas, meios e métodos utilizados, dentre outras variáveis, como forma de permitir a análise quantitativa e qualitativa dos fatos que geram a violência contra a mulher, e feminicídios. Tais informações deverão ser difundidas pelo Estado anualmente, garantindo o acesso à informação por parte de todos.

Ainda sobre as garantias de não repetição, a Corte IDH entendeu que a capacitação dos agentes que atuam na administração da justiça deve se dar a partir da perspectiva de gênero, assim, deve o Estado implementar uma plano de formação e capacitação continuada, além da sensibilização das forças policiais quanto à investigação com perspectiva de gênero e raça. Além disso, ordenou à Assembleia Legislativa da Paraíba que realize uma jornada de reflexão e sensibilização, sobre feminicídio, violência contra a mulher e a utilização da imunidade parlamentar, a partir do conteúdo da sentença proferida. Ordenou, ainda, a adoção e implementação de um protocolo nacional com critérios compreensíveis e uniformes, para investigação do crime de feminicídio, devendo estar alinhado ao Modelo de protocolo latinoamericano de investigação de mortes de mulheres por razões de gênero, bem como à jurisprudência da Corte IDH. Por último, entendeu pela necessidade de adequação normativa interna ao estabelecido pela sentença, a respeito da imunidade parlamentar e de sua aplicação, do processo penal contra um membro de órgão legislativo e da salvaguarda do direito de acesso à justiça.

Por fim, acerca das indenizações compensatórias, a Corte IDH entendeu que houve dano material e imaterial aos familiares da vítima, determinando a sua compensação de forma pecuniária, o qual inclui o montante pela indenização pela impossibilidade de reabertura da investigação penal sobre os possíveis partícipes, bem como os danos causados à saúde dos familiares da vítima.

 

Reflexões sobre o caso Márcia Barbosa de Souza: entre avanços, proteções, imunidades e transformações

Como assegurado, o caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, foi o primeiro caso de condenação do Estado brasileiro sobre feminicídio e o primeiro julgado da Corte IDH sobre imunidade parlamentar, trazendo diretrizes iniciais sobre a temática, um precedente importante à luz dos direitos humanos. Pelo impacto do instituto da imunidade parlamentar e pela falta de enfoque de gênero foram observadas deficiências na investigação e demora na abertura de processo, culminando no não estabelecimento da verdade dos fatos em relação ao ex-parlamentar por seu falecimento superveniente, quase dez anos após o episódio. As investigações conduzidas em face dos demais envolvidos foram arquivadas por falta de provas. A decisão da Corte considera que o Estado Brasileiro prestou proteção insuficiente aos direitos da vítima e o condena a prestar reparações aos seus familiares, bem como a tomar providências para garantir a não repetição do ocorrido, centradas na luta contra o feminicídio e a violência contra a mulher e na reflexão acerca da utilização da figura da imunidade parlamentar.

No que toca à violência de gênero, o contexto de violência contra as mulheres no Brasil, na época dos fatos do caso Márcia Barbosa de Souza à atualidade, chama atenção, pois se mostra como um problema sistêmico e estrutural. Por mais que normativas, programas e ações em prol ao enfrentamento da violência de gênero sejam fomentados em âmbito nacional, ainda faltam dados, formações e capacitações aos agentes públicos, educação de gênero nas escolas, dentre outras questões, o que dificulta a construção de políticas públicas efetivas e eficazes no combate à violência de gênero. Os informes sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, publicados em 1997 e 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, se analisados em conjunto, apontam para a incapacidade do Estado brasileiro em implementar a legislação nacional e os tratados sobre a temática de forma a combater efetivamente a violência contra mulher.

O desvio na utilização das imunidades formais, ainda sob a previsão da redação original da Constituição de 1988, instou a modificação do texto por emendas e aprimorou a possibilidade de responsabilização e transparência. Contudo, não resolveu todo o problema. A Emenda Constitucional nº 35/2001, motivada, inclusive, com a repercussão internacional deste caso à época, excluiu a necessidade de licença prévia para o processamento criminal de parlamentar, dando à Casa legislativa a possibilidade de sustar o andamento de processos, em juízo político, desde que o crime tenha ocorrido após a diplomação. Além disso, retirou a possibilidade de a deliberação sobre a prisão de parlamentar ser feita de forma secreta, o que foi estendido à decisão de perda do mandato pela Emenda nº 76/2013.

A condenação vem nos lembrar que em caso de abuso das prerrogativas, ato considerado incompatível com o decoro parlamentar, o Legislativo deve promover a cassação do mandato eletivo em processo interno que respeite o devido processo legal, seja transparente e possua tempo razoável de duração. O descumprimento a este comando demonstra desrespeito ao parlamento e à própria Constituição.

Além disso, é certo que, conquanto seja essencial à proteção do parlamento, as imunidades formais não são estanques, submetendo-se a debates e a deliberações constantes – de forma a garantir o livre exercício da atividade parlamentar, imune às perseguições arbitrárias dos órgãos de controle, mas impassível de converter a imunidade formal em impunidade material, como ocorreu no caso de Márcia Barbosa.

Por todo o exposto, nestes dois pontos que a sentença pioneiramente aponta, ainda há muito que fazer para transformar a realidade brasileira adequada ao padrão de proteção dos direitos humanos e aos padrões interamericanos. Espera-se que o cumprimento desta obrigação internacional nos aproxime deles e, além de fazer justiça a Márcia e seus familiares, evite outras graves violações de direitos como esta.

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* Melina Girardi Fachin é Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UFPR. Pós doutorado em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra. Fundadora e Coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR). Isabella Louise Traub Soares de Souza é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Fundadora e Presidente do Instituto de Políticas Públicas Migratórias (IPPMI). Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR) desde 2020. Erick Kiyoshi Nakamura é Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, com bolsa CAPES/PROEX. Graduado em Direito pela UFPR. Associado Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (PARLA). Sthefany Felipp dos Santos é Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Advogada. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR) desde 2020.

Originalmente publicado em: https://www.cosmopolita.org/post/imunidade-parlamentar-e-feminic%C3%ADdio-10%C2%AA-condena%C3%A7%C3%A3o-do-brasil-na-corte-idh-caso-m%C3%A1rcia-barbosa

Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e MELINA GIRARDI FACHIN

Vivemos a persistência da violência institucional no Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020[1] mostram que o número de vítimas de intervenções policiais também aumentou; vítimas estas que têm cor e classe – negros e pobres. O lamentável episódio em Jacarezinho corrobora os dados de truculência da violência policial no Brasil, situação que já foi reconhecida pela comunidade internacional.

A condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília, em 2017, assinalou a demora injustificada na investigação e punição dos responsáveis envolvidos na execução extrajudicial de 26 pessoas e na prática de tortura e estupro, por parte de agentes policiais, na Favela Nova Brasília, no município do Rio de Janeiro.[2] Neste caso, o Estado foi condenado às medidas necessárias para que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial. Vinte e sete anos separam as operações policiais na Favela Nova Brasília e em Jacarezinho; o que mudou parece ser apenas o aumento do número de mortos!

O cenário ainda enfrenta ameaças de retrocessos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública, principalmente com o emprego das Forças Armadas em atividades típicas da segurança pública, e com o aumento da impunidade a partir de leis em discussão no Legislativo Federal. A Comissão também mencionou um aumento nas mortes em operações policiais, sendo que as ações de integração e inteligência não resultaram em uma maior efetividade no combate ao crime organizado. Ou seja, as operações matam muito e são ineficientes[3].

É urgente que a segurança pública seja estruturada a partir de uma concepção constitucionalmente adequada, centrada na proteção de direitos, com proporcionalidade no uso da força e transparência na condução das políticas, dados dos resultados e de procedimentos investigatórios. As Polícias, como instrumento de realização da segurança pública, devem comprometer-se com os direitos humanos e fundamentais, previstos nacional e internacionalmente, e não serem os agentes de violação de tais direitos.

Como todas as atividades da administração pública, é fundamental que o controle – sobretudo de ângulo externo – sobre a atividade policial seja efetivamente desempenhado. Ao mandamento constitucional de controle soma-se a jurisprudência da Corte IDH, pacífica no sentido de que o Estado é responsável pela apuração de crimes, tendo o Ministério Público papel central, pois a apuração deve ser feita de forma independente e imparcial, assegurando às vítimas e aos seus familiares os direitos à proteção e às garantias judiciais.

Apesar da disposição constitucional que impõe a competência do MP no controle externo da atividade policial, há severas lacunas nessa atividade, impondo a necessidade de estruturação de mecanismos eficazes.

Mesmo com as condenações internacionais, o sentimento é de frustração de que pouco ou nada mudou. Talvez o grande diferencial seja o impacto do direito internacional dos direitos humanos no poder judiciário, sendo a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 exemplo marcante. Em agosto de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou liminar proferida pelo relator da ADPF, determinando que as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, devem ser restritas aos casos excepcionais e informadas e acompanhadas pelo Ministério Público estadual (MPRJ).

Uma das maiores e mais impactantes audiências públicas no STF, a audiência para a redução da letalidade policial foi conduzida no contexto da ADPF em abril de 2021 e conferiu oportunidade histórica de manifestação da sociedade e das instituições sobre as causas e consequências da letalidade policial. Menos de um mês depois, sobreveio a chacina de Jacarezinho; que a CIDH reconheceu esta como a ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.

Justamente em função do massacre, o STF foi novamente instado a se manifestar no bojo da ADPF citada a fim de determinar, o conceito de excepcionalidade a justificar as operações policiais nas comunidades – e aqui o nome dado à operação em Jacarezinho, Exceptis, parece ser desrespeito à institucionalidade do decidido pelo plenário do STF – e, além disto, cobrar a investigação e responsabilidade sobre o ocorrido. Em voto de 21 de maio deste ano, o relator circunscreveu os requisitos de excepcionalidade para fins de operação policial: número suficiente de agentes para minimizar as chances de se utilizar a força, acompanhamento de equipe pericial e número suficiente de agentes para assegurar a realização da perícia conforme o Protocolo de Minnesota. Sempre com atenção ao planejamento e inteligência.

O que nos resta é a esperança de quando vier a condenação internacional do Estado brasileiro sobre a Chacina de Jacarezinho – que virá! –  tenhamos já melhorado na democratização da segurança pública. Entendê-la a partir de sua função pública, implica em estabelecer controles internos, externos e sociais, para que a segurança se faça com a proteção de direitos humanos e das pessoas mais vulneráveis que, muitas vezes, só conhecem o Estado na atuação policial. Até lá, o massacre em Jacarezinho ainda persistirá!

 

[1] BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo, 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP.

[2] CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília Vs Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 28 jan. 2021

[3] G1. Estudo aponta que apenas 1,7% das operações policiais no Rio são eficazes. Disponível em:< https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/05/09/estudo-aponta-que-apenas-17percent-das-operacoes-policiais-no-rio-sao-eficazes.ghtml>. Acesso em 18 de mai. 2021.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

Mesma remuneração para o mesmo trabalho

A Constituição têxtil

Respostas dos poderes instituídos mostram que maleabilidade do tecido constitucional foi abusada

Por ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO, MELINA GIRARDI FACHIN, CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA e ALINE OSÓRIO.

No último dia 27 de abril, foi enviado à sanção presidencial o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 130, de 2011, aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional, que acrescenta o § 7º ao art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452/43, para combater a diferença de remuneração entre homens e mulheres no Brasil. O projeto de lei estabelece que considerar o sexo, a idade, a cor ou a situação familiar como variável determinante para fins de remuneração importará na imposição, pela Justiça do Trabalho ao empregador, de “multa em favor da empregada de até 5 (cinco) vezes a diferença verificada em todo o período da contratação, observado o prazo prescricional”.

Não há dúvida de que o PLC 130/2011 é instrumento de realização da proibição constitucional de desigualdade salarial entre homens e mulheres, prevista expressamente no art. 7º, inciso XXX, pelo qual se estabeleceu a “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.  Antes mesmo da Constituição de 1988, a própria Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 já previa em seu art. 5º: “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo”. Também seu art. 461 já previa que, sendo idêntica a função, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo.

Em 1999, a Lei nº 9.799 inseriu na CLT regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho, entre as quais se destaca a vedação de, entre outras condutas, considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional (art. 373-A, inciso III, da CLT).

Nada obstante, tais normativas não têm sido suficientes para impedir a persistência da discriminação sofrida pelas mulheres no mercado de trabalho. E, notadamente, a diferença de salários (em relação ao que é pago aos homens que exercem as mesmas funções) é a feição mais perniciosa dessa discriminação. Dados recentes do IBGE[1] dão conta que o gap chega a ser de quase 25%. Entre diretores e gerentes, grupo com rendimentos mais elevados, a diferença é ainda maior: a remuneração das mulheres foi de cerca de 62% daquela auferida por homens (uma diferença de quase 40%, portanto).[2]

A diferença salarial, que tem maior impacto nas classes mais baixas, é justamente uma das razões que impedem as mulheres de formar poupança ao longo da vida.

Afinal, qualquer quantia de diferença salarial mensal, por menor que seja, quando capitalizada mês a mês durante a vida útil laboral média de uma trabalhadora mulher pela taxa de juros básica da economia, torna-se um valor expressivo, demonstrando o caráter abismal dessa discrepância.

Diante desse contexto, o que podem fazer as mulheres? Reclamar individualmente (e correr o risco de perder o emprego)?

Não há dúvida que um caminho eficaz para garantir a igualdade salarial é aquele traçado pelo Congresso Nacional ao aprovar o PLC nº 130, de 2011, após 10 anos de tramitação, impondo-se multa para a infração ao citado art. 373-A, III, da CLT.

Durante os debates parlamentares, foram feitas diversas alterações ao texto originário: 1) inseriu-se a possibilidade de gradação da multa (na versão original, o valor era fixo, correspondente a 5 vezes a diferença verificada em todo o período da contratação); 2) determinou-se a observância do prazo prescricional de 5 anos; e 3) mudou-se a natureza administrativa (a previsão seria inserida no art. 401 da CLT) para fixar seu caráter judicial, somando-se às sanções já existentes no art. 461 da CLT.

A Lei nº 13.467/2017, que implementou reforma trabalhista no governo Temer, já havia acrescentado uma multa aos empregadores por discriminação de gênero. Trata-se do § 6º inserido no art. 461, que dispõe que: “No caso de comprovada discriminação por motivo de sexo ou etnia, o juízo determinará, além do pagamento das diferenças salariais devidas, multa, em favor do empregado discriminado, no valor de 50% (cinquenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”. A multa, que independente da diferença verificada e do período de trabalho, surtiu pouco efeito, ante seu valor fixo e módico (hoje equivale a aproximadamente R$ 3.200,00)

Em que pese sua constitucionalidade e inegável relevância, o PLC n. 130, de 2011, vem enfrentando resistências para a sanção. No dia 22 de abril, durante a sua live semanal (a partir do minuto 31 do vídeo), o presidente Bolsonaro apresentou um falso dilema: se vetar o projeto, afirma que seria “massacrado” (politicamente); se sancionar, insinuou que a novidade poderia “quebrar as empresas”. Além disso, o Presidente questionou se a sanção não imporia maior dificuldade para as mulheres arranjarem emprego. No seu raciocínio, pôr fim à discriminação salarial pode piorar a situação das mulheres. Perguntou: se sancionar, como será o mercado de trabalho para as mulheres no futuro?

Esses questionamentos devem – é claro – ser levados a sério: a atenção para as consequências é uma das marcas do raciocínio legislativo. Porém, é preciso tomar cuidado com a versão falaciosa do argumento consequencialista, que pode estar presente quando não são apresentados dados ou estudos que embasem o raciocínio.

A decisão legislativa é orientada para o futuro: guia-se para a realização do estado de coisas desejado (ou para acabar com aquele considerado problemático), sendo certo que, entre as razões que justificam a aprovação das leis, está precisamente o potencial (da medida que se pretende adotar) para alcançar os objetivos fixados (a adequação meios-fins).

Normalmente, com a aprovação das leis, pretende-se mudar uma dada realidade (no caso, a “discriminação salarial entre homens e mulheres”), o que exige que a decisão legislativa se paute em um adequado diagnóstico sobre o que causa esse “problema social”.

A respeito do primeiro argumento, de que a multa ameaçaria a sobrevivência das empresas, parece que a resposta já foi dada pelo próprio Poder Legislativo quando incluiu a possibilidade de gradação, estabelecendo como teto a quantia de 5 vezes a diferença salarial identificada. A aplicação da multa pelos juízes e tribunais será, assim, pautada pela observância do princípio da proporcionalidade. Na fixação da quantia, por óbvio, a capacidade da empresa de arcar com o valor poderá ser considerada. Em todo caso, se a multa for aplicada de forma imoderada e desproporcional por juízes e tribunais, isso pode ser corrigido pelo sistema recursal. Além disso, deve-se considerar que, na prática, a observância do prazo prescricional também funcionará como limitadora das quantias a serem pagas.

Ainda sobre esse ponto, vale lembrar que, nas situações em que o trabalho prestado por homens e mulheres não for idêntico, é claro que não incidirá a multa pretendida com o § 7º, se acrescido ao art. 461 da CLT. Isso porque a sanção somente será aplicável nos casos de discrepância salarial injustificada, arbitrária e discriminatória. Não haveria, nessa hipótese, qualquer inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público que pudessem justificar o veto à proposição legislativa, nos termos do art. 66, § 1º, da CF.

A respeito do segundo argumento, de que a multa teria o efeito perverso de dificultar a obtenção de empregos pelas mulheres, não há dado empírico a sustentar essa conclusão. Pelo contrário, cada vez mais a presença de mulheres em empresas, em especial em cargos diretivos, tem sido relacionada à melhoria da performance corporativa. A título exemplificativo, o estudo “Women in Business and Management: The Business Case for Change”, da OIT/ONU, apontou que a diversidade de gênero produz aumento de lucros e da produtividade de 62,6%[3],

Aliás, a própria reforma trabalhista, aprovada em 2017, é um exemplo ilustrativo de que a flexibilização de direitos trabalhistas não gera aumento do emprego, considerando que 2 anos após a sua aprovação o desemprego atingia 12,5 milhões de brasileiro, ao passo que na época da aprovação da reforma o desemprego estava na casa de 12,7 milhões.[4]

Ademais, dados do Banco Mundial no relatório “Unrealized Potential: The High Cost of Gender Inequality in Earnings”[5] apontam que riqueza mundial aumentaria 14% se não houvesse diferenciação de salário em razão do sexo e que a perda de riqueza de capital humano alcança a quantia de U$ 160,2 trilhões.

Nada obstante tudo isso, mesmo diante da legitimidade dos objetivos legislativos (que são constitucionais) e da presença de racionalidade teleológica, não se descarta a possibilidade de que não seja alcançado o estado de coisas desejado (ou, de que eventualmente surjam consequências não previstas ou indesejadas). Isso pode acontecer porque a “origem” da discrepância salarial entre homens e mulheres tem uma raiz mais profunda do que a conduta de alguns empregadores, sendo um problema complexo, relacionado ao patriarcado que sustenta a discriminação estrutural e institucional contra as mulheres.

Para essas situações, no entanto, o remédio seria nada mais do que proceder ao monitoramento dos efeitos da lei (um dever inerente ao devido processo pós-legislativo) e, conforme os resultados das avaliações ex post, a norma do PLC nº 130, de 2011, poderá ser objeto de alterações legislativas futuras. Inclusive, para fins de aprofundamento das conquistas em direção à igualdade salarial entre homens e mulheres, incorporando adequadamente a perspectiva de gênero, como já sugerido aqui, inclusive. Nesse sentido, a legislação da Islândia, que prevê que os empregadores devem ter sistemas de remuneração transparentes e devem comprovar a paridade salarial, obtendo certificação – pode servir de inspiração para avanços futuros.[6]

Em suma, a PLC nº 130, de 2011 apenas buscar cumprir uma das promessas da redemocratização, qual seja, o postulado constitucional da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I, da CF).

 

[1] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/03/04/mulheres-ganham-77-7-dos-salarios-dos-homens-no-brasil-diz-ibge

[2] Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/30172-estatisticas-de-genero-ocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-com-criancas-de-ate-tres-anos

[3] Disponível em: https://www.ilo.org/global/publications/books/WCMS_700953/lang–en/index.htm

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2020/11/11/reforma-trabalhista-completa-3-anos-veja-os-principais-efeitos.ghtml; https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/#page1.

[5] Disponível em https://www.worldbank.org/en/topic/gender/publication/unrealized-potential-the-high-cost-of-gender-inequality-in-earnings

[6] Ines Wagner, How Iceland is Closing the Gender Gap, Harvard Business Review (Jan. 8, 2021), https://hbr.org/2021/01/how-iceland-is-closing-the-gender-wage-gap

 

ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO – Professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB). Advogada do Senado Federal desde 2009. Doutora em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha. Doutora e mestre em Direito pela UnB.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
CRISTINA MARIA GAMA NEVES DA SILVA – Advogada e sócia do Lacombe e Neves da Silva Advogados Associados. Mestre pela University of California Berkeley. Especialista em direito constitucional e teoria crítica em direitos humanos. Presidente da Elas Pedem Vista. Membro do LiderA, observatório eleitoral e IBRADE. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB/DF. Diretora Jurídica do Instituto Gloria.
ALINE OSÓRIO – Secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mestre em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e LL.M pela Harvard Law School. Professora de Direito Constitucional e Eleitoral do UniCeub e atual autora do livro “Direito eleitoral e liberdade de expressão”.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/mesma-remuneracao-para-o-mesmo-trabalho-06052021

O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos

O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos

Resolução 364 é forte indicação de que Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção de direitos humanos

Por INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES, MELINA GIRARDI FACHIN e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

Resolução 364 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 12 de janeiro de 2021, criou a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o Estado brasileiro, vinculada ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).

Pela Resolução aprovada, caberá à Unidade de Monitoramento e Fiscalização, inter alia, manter banco de dados com as decisões da Corte Interamericana envolvendo o Brasil, providenciar o monitoramento e fiscalização do cumprimento das sentenças, medidas provisórias e opiniões consultivas da Corte Interamericana, sugerir propostas de melhor atendimento ao cumprimento de suas deliberações, verificar a tramitação dos processos e procedimentos relativos à reparação material e imaterial das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana, relatar anualmente as providências adotadas pelo Brasil para o cumprimento de tais decisões, bem assim acompanhar a implementação de parâmetros de direitos humanos estabelecidos pela Corte ou de outros instrumentos internacionais que que estabeleçam obrigações internacionais ao Brasil no âmbito dos direitos humanos (art. 2º).

Como se nota, a iniciativa é muito bem-vinda e consolida, ainda mais, a mirada multinível que o direito constitucional brasileiro aceitou pela própria opção constituinte, ao dar lugar de destaque ao direito internacional dos direitos humanos na nossa ordem jurídica interna, conforme expressamente prevê a cláusula de abertura contida no art. 5º, parágrafo 2º, segundo a qual os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros” decorrentes de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte.

Vivemos a emergência de um novo paradigma jurídico que conclama a necessidade dos diálogos entre as ordens interna e internacional. Presenciamos as modificações do direito internacional, a renovação do direito constitucional e, com isso, o redesenho do direito público do século XXI. Essa lógica “dialógica” começa, doravante, a ser também compreendida pelos órgãos de controle brasileiros, como é o caso do CNJ.

Mais do que monismos e dualismos e de regras obsoletas de resolução de antinomias baseadas num “monólogo” jurídico, o que agora se presencia é a emersão de uma nova arquitetura que não vê dentro e fora, mas, sim, coloca temas e sujeitos que transversalmente desafiam a nossa compreensão ainda fechada, dogmática e estática – ainda calcada no state centered approach.

Se até bem pouco tempo a lógica da resolução de antinomias entre o direito internacional e o direito interno era baseada nos critérios “clássicos” (hierárquico, da especialidade e cronológico) postos à disposição dos operadores jurídicos, hodiernamente o arsenal protetivo – proveniente de tratados internacionais de direitos humanos – colaciona novos elementos de resolução de controvérsias, que não se excluem mutuamente, mas são complementares uns dos outros. Nesse sentido, a crescente internacionalização dos direitos humanos acaba impactando no direito interno, o direito internacional se associa à ordem doméstica e essa nova ordem jurídica surge exuberante dessa catarse.

Doravante, como se nota, os direitos humanos ganham novos contornos e um colorido renovado provindo da interação da ordem internacional com a interna, no ensejo de melhor proteger o ser humano sujeito de direitos.

Essa nova ordem multifacetada – que agrega as normas internacionais e as normas internas – abandona a ideia de espacialidade única para trazer à luz a conexão plúrima de normas internacionais e internas, que poderão atuar em conjunto (e, portanto, simultaneamente) em prol da proteção dos direitos humanos.

Nesse sentido, novos espaços (da ordem interna e internacional) e atores (seja no reconhecimento das novas responsabilidades internacionais em relação a entes não estatais como as empresas; seja na incorporação de outros sujeitos de proteção, superando o paradigma antropocêntrico) demandam outra mirada da proteção dos direitos, do direito constitucional e do direito internacional, sem a qual as violações de direitos que a contemporaneidade apresenta não logram ser resolvidas integralmente. Assim, a restauração da coerência, no plano internacional, tem por consectário a abertura da ordem interna para o diálogo com a sociedade internacional, transformando as aberturas axiológicas em “razão de existir” do mundo contemporâneo.

Ademais, diante dessa ordem emergente se forma uma normatividade complexa impactada pela internacionalização e regionalização dos direitos humanos com o foco nas vítimas e nas vulnerabilidades que se pretende proteger. Trata-se do human centered approach, segundo o qual são os indivíduos e coletividades a se protegerem que iluminam a articulação dos diversos planos protetivos (global-regional-local) ao entorno da primazia da norma mais favorável à pessoa (princípio pro persona).

No âmbito interno, o direcionamento das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro não pode ser compreendido como de atuação exclusiva do Poder Executivo, no cumprimento das medidas internacionalmente estabelecidas. A complexidade das situações de violações a direitos humanos, especialmente nas democracias latino-americanas, que lutam para se consolidar em cenários de desigualdade social, econômica e cultural, exige o envolvimento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na realização de tarefas capazes de reverter a situação de inconvencionalidade identificada pelos órgãos de controle internacional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Muitas vezes, é preciso que os desenhos e a implementação de políticas públicas sejam alinhados à edição de leis e à garantia de institutos que permitam a vigilância e participação da sociedade, com amplo acesso à justiça e com a obtenção de respostas judiciais céleres, pautadas na perspectiva e nos pilares dos direitos humanos.

A previsão, na Resolução 364, da realização pelo DMF, de atividade de monitoramento e fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana, é forte indicação de que o Poder Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção dos direitos humanos. Essas boas expectativas se pautam no reconhecimento da DMF como uma unidade do CNJ que  funciona com excelência e de forma estruturada, com capilaridade e incidência em todo território brasileiro, por interfaces congêneres em todos os tribunais (os GMF – Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas).

Nesse sentido, vale destacar o relevante trabalho do DMF, de sistematização e divulgação de dados que permitem compreender o contexto da pandemia, tais como (i) o uso de recursos federais no combate à Covid-19, (ii) ações dos comitês locais de enfrentamento e a destinação de penas pecuniárias, bem como (iii) dados sobre equipamentos de prevenção, alimentação, materiais de higiene e de limpeza, medicamentos e testes sobre contágio.

Há um último ponto que merece ser iluminado: a referida Resolução tem uma ligação intrínseca e indissociável com o compromisso que o Judiciário assumiu com os chamados “17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e abre mais uma porta para valorização e cumprimento da Meta 9 do mesmo conselho, que prevê a integração da Agenda 2030 da ONU pelo Poder Judiciário. Dentre os 17 ODS, consagrou-se, em seu ODS 16, o compromisso de promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

Algumas metas deste ODS foram adequadas à realidade brasileira, como a de número 16.3 (Fortalecer o Estado de Direito e garantir acesso à justiça a todos, especialmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade), a de número 16.6 (Ampliar a transparência, a accountability e a efetividade das instituições, em todos os níveis), a de número 16.a (Fortalecer as instituições relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência, do crime e da violação dos direitos humanos) e a de número 16.b (Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias e afirmativas).

Muitos dos pontos aqui destacados encontram pouso nos consideranda que levaram o CNJ a adotar a bem-vinda Resolução 364, o que, a um só tempo demonstra que o órgão de controle brasileiro está afinado com os preceitos internacionalmente definitos e, além disso, toma atitudes proativas para o fim de lograr conjugação dos ditames internacionais estabelecidos com a aplicabilidade na ordem doméstica.

Tout court, o que se tem pela frente é o grande desafio de incorporar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos na jurisdição brasileira, numa conjugação de esforços na cooperação para a superação das violações graves de direitos humanos ocorridas todos os dias no Brasil. Essa tarefa, que já era necessária, foi amplificada e se revelou urgente, com a pandemia da Covid-19. Neste cenário, sempre com soluções articuladas e dialogadas, o desenvolvimento sustentável parece ser a trilha mais segura a ser seguida pelo sistema de justiça, para a abreviação dos pontos tortuosos que enfrentaremos no caminho pós-pandêmico.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3ª Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI – Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB, pós-doutor em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cnj-e-o-compromisso-do-judiciario-com-a-nova-arquitetura-dos-direitos-humanos-16022021

Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos

Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos

Por Inês Virgínia P. Soares, Valerio de Oliveira Mazzuoli e Melina Girardi Fachin

Uma fábrica de fogos de artifício explodiu na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, em 11 de dezembro de 1998, ceifando a vida de 64 mulheres, dentre elas 20 crianças, e ferindo seis trabalhadoras, todas em situação de vulnerabilidade econômica e social e, na sua amplíssima maioria, negras. As operações da fábrica eram irregulares e, por mais de duas décadas, nenhuma responsabilização — seja cível, trabalhista ou criminal — lhe pesou aos ombros ou ao de seus dirigentes.

O Brasil foi denunciado, em razão da falta de diligência para com o caso, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença internacional condenatória foi publicada no mês passado, deixando claro, mais uma vez, que o nosso país faltou com o dever de responder de modo eficaz contra o cometimento de crimes em seu território, descumprindo obrigações positivas em matéria criminal previstas pelas normas internacionais de direitos humanos em vigor, em especial na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 [1].

Essa foi a nona condenação do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos. Novamente, como em outros sete dos oito casos anteriores (exceto o da comunidade indígena Xucuru), houve responsabilização internacional do Estado por persecução penal ineficaz ou ineficiente, bem assim por não ter o país seguido os parâmetros interamericanos sobre a matéria. O Brasil falhou, novamente, com o dever de assegurar a devida diligência em processos criminais, no sentido de que a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis, buscando determinar a verdade e a responsabilização dos responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos [2].

No caso da explosão na cidade do Recôncavo Baiano, a situação de extrema vulnerabilidade e pobreza obrigava as vítimas a se submeter a trabalho extremamente perigoso, na fábrica de fogos. Além do mais, a remuneração recebida era absolutamente desproporcional à periculosidade e à insalubridade do trabalho. Cada trabalhadora, por exemplo, recebia R$ 0,50 para cada mil traques (pequenos artefatos explosivos) confeccionados. Tais atividades, somadas à exploração do trabalho infantil e à falta de fiscalização do Estado, foram responsáveis pela tragédia que retirou a vida daquelas trabalhadoras.

A falta de punição por parte do Estado durante mais de 20 anos foi o fator da imediata responsabilização internacional, pois o dever de punir os responsáveis pelo cometimento de crimes é um reconhecido standard de direitos humanos, que, ademais, reafirma a centralidade das vítimas no sistema interamericano. Não se trata de punitivismo internacional, sequer de ingerência arbitrária de organismos internacionais no Direito interno. Os que pensam contrariamente desconhecem a jurisprudência das cortes regionais de direitos humanos (europeia e interamericana) e têm dos mecanismos regionais de monitoramento apenas uma notícia anedótica, de oitiva, que faz tábula rasa da realidade dos Estados e, sobretudo, das vítimas e de seus familiares, por desconhecerem — na prática e teoricamente — o sistema e sua finalidade histórica.

Como se sabe, os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos não são dicotômicos, mas complementares uns dos outros em prol do victim centred approach. Essa aglutinação de forças se faz indispensável em face do cenário complexo e plural crescente que os processos de reconhecimento e concretização dos direitos humanos demandam. Nesse sentido, relembre-se a “tríade formada pela vitimização, o sofrimento humano e a reabilitação das vítimas”, mencionada por Cançado Trindade, atualmente juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia) e ocupante de um assento na Corte Interamericana de Direitos Humanos por dois mandatos, de 1994 a 2008. Nas suas palavras, as vítimas não são figuras neutras e, sim, “titulares dos direitos violados” ou “sujeitos de direito vitimados por um conflito humano” [3].

Por isso, quando se fala em “vítimas” do Estado brasileiro, se está a referir propriamente às vítimas de crimes, é dizer, aquelas contra as quais ilícitos penais foram perpetrados — quer por agentes do Estado ou por particulares — e que não obtiveram do sistema interno de Justiça uma devida e justa reparação, em tempo hábil e segundo os padrões internacionais relativos à matéria, bem assim os familiares daqueles contra os quais foram praticados crimes.

No cenário local, portanto, a punição criminal dos agentes que deram causa ao crime está diretamente vinculada à reparação e à reabilitação das vítimas. A reparação coletiva da comunidade do interior baiano encontra o desafio de lidar com a discriminação estrutural, aquela inerente à ordem social, a suas estruturas e a seus mecanismos jurídicos, institucionalizada e que resulta em práticas expõem os mais frágeis a maiores riscos e perigos.

É importante lembrar que a primeira vez em que a Corte Interamericana expressamente determinou a responsabilidade internacional contra um Estado por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão foi exatamente na condenação do Brasil no “caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, em 2016. Na sentença relativa ao caso, a corte entendeu que toda pessoa que se encontre em uma situação de vulnerabilidade é titular de uma proteção especial, em razão dos deveres especiais cujo cumprimento por parte do Estado é necessário para satisfazer as obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos”, razão pela qual “não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das particulares necessidades de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontre, como a extrema pobreza ou a marginalização” [4].

No caso da fábrica de fogos do Recôncavo Baiano, novamente as vítimas foram vulneradas pela desigualdade da realidade brasileira, marcada por pobreza, desigualdades regionais e restrição de acesso ao emprego. Além dos fatores raciais e de gênero, que caracterizam o sofrimento das vítimas, a tragédia da explosão alterou o futuro de dezenas de famílias. O Estado brasileiro, a seu turno, quando deveria punir os responsáveis por tais arbitrariedades, não o fez, certo de que essa falta de punição — em razão de inação do Estado ou de inconvencionalidades na persecução penal — não passou incólume ao exame realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Considerando, ademais, os processos de racialização e feminização das desigualdades, há a necessidade de identificar e visibilizar tais vulnerabilidades com políticas voltadas ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às negras e negros, adotar políticas de gênero “neutras” alimenta a desigualdade e a exclusão.

A “perda de chances” da comunidade atingida pela explosão da fábrica de fogos já seria grave em um contexto de reparação concomitante às mortes, mas foi potencializada pela ausência de respostas e punições adequadas do Brasil por mais de duas décadas. Tal, per se, já seria causa de responsabilidade internacional do Estado brasileiro, notadamente por ter contribuído, a um só tempo, com a impunidade baseada em relações de poder — econômica, neste caso e no da “Fazenda Brasil Verde”, e política, nos crimes da ditadura militar — e com o irreparável dano ao “projeto de vida” das vítimas e seus familiares [5].

Nesse enfoque, é possível observar que a Corte Interamericana tem identificado quatro postulados violados nas condenações do Brasil no que diz respeito ao direito das vítimas: o direito de acesso à Justiça, à garantia judicial e a um julgamento; o direito à proteção judicial, também interpretado como o direito a um remédio efetivo; o direito à reparação do dano; e o direito à verdade. A violação a esses direitos se liga à ideia de ausência ou deficiência de punição por parte do Estado.

Entre tantos pontos importantes dessa nona condenação brasileira pela Corte Interamericana, ressalta-se a vinculação do dever de punição à projeção de um futuro mais justo. Nesse sentido, o julgamento criminal é uma afirmação dos direitos das vítimas e do poder da Justiça, porque o processamento dos responsáveis retém o crime e o mantém dentre aquilo que não se pode esquecer nem pode se repetir.

Portanto, aceitar as regras do Estado de Direito não é apenas se colocar em oposição à ilegalidade e à exploração da vulnerabilidade dos moradores da cidade baiana de Santo Antônio de Jesus — e de tantas outras cidades que abrigam comunidades vulneráveis, mas também fazer algo a mais, pois o grande temor e prejuízo para a comunidade seria que o crime caísse no esquecimento, que a passagem do tempo, tal como um solvente natural, libertasse os responsáveis e perpetuasse a situação de injustiça, com a manutenção daquelas desigualdades econômicas. Nessa perspectiva, o julgamento é um espaço que resiste e rechaça o temor e o prejuízo coletivos. Julgamentos contra perpetradores são, portanto, um aceno à “não repetição”, bem como um sopro de esperança: determinam como a comunidade afetada se tornará a partir da resposta punitiva àquele fato criminoso.

Punir as graves violações a direitos humanos, especialmente as cometidas em cenário de discriminação estrutural, é um standard interamericano de direitos humanos e um aceno para um futuro com chances iguais. Em razão disso, deve ser observado pelo Brasil. Afinal, não é justo que um dia — como aquele 11 de dezembro de 1998 — dure mais de 20 anos.


[1] Para um comentário completo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, v. PIOVESAN, Flávia, FACHIN, Melina Girardi & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[2] Corte IDH, Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 407, § 220.

[3] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Curso de Direito Internacional da Comissão Jurídica Interamericana da OEA. Rio de Janeiro: CJI, 2006, p. 435-463.

[4] Corte IDH, Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 318, § 337.

[5] Sobre o direito ao “projeto de vida” na jurisprudência da Corte IDH, v. os casos Loayza Tamayo vs. Paru, sentença de 27 de novembro de 1998, Reparações e Custas, Série C, nº 42, § 144 e ss; e Cantoral Venavides vs. Peru, sentença de 3 de dezembro de 2001, Reparações e Custas, Série C, nº 88, §§ 60-63.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/opiniao-dia-dura-decadas

Responsabilidade social da empresa e vidas negras

Responsabilidade social da empresa e vidas negras

Por Danielle Anne Pamplona, Inês Virgínia Soares e Melina Girardi Fachin

“Do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos /(E são quase todos pretos) / E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados” (Haiti, Caetano Veloso)

Nas últimas semanas, a violência policial que ceifou a vida de um homem negro nos Estados Unidos urdiu a ferida aberta do racismo e da desigualdade. E, desde então, a atenção mundial em relação à pandemia da Covid-19 tem dividido espaço com protestos pela igualdade racial, que acontecem em diversos países, inclusive, no Brasil.

A imprensa local, especialmente os telejornais, noticiaram os protestos em diversas cidades americanas e ao redor do mundo. O fato de os programas jornalísticos serem apresentados por profissionais não negros chamou a atenção do público e o debate do programa “Em Pauta”, da GloboNews, sobre racismo, foi alvo de críticas e polêmicas. A resposta do canal por assinatura foi rápida: no dia seguinte, houve uma edição composta apenas por jornalistas negras, com um negro como âncora; e duas das jornalistas negras passaram a integrar permanentemente o programa. Além disso, a edição especial do “Em Pauta” foi veiculada, na mesma semana, na TV aberta, no tradicional “Globo Repórter”.

Não foi a primeira vez que as Organizações Globo vieram a público pedir desculpas por práticas violadoras dos direitos humanos, com ações que demonstram compromisso com a mudança de postura. Em 2013, a empresa reconheceu que foi um erro ter apoiado a ditadura brasileira (1964-1985). Esse pedido de desculpas, embora seja um gesto desejado e importante para democracias que passaram por períodos autoritários no passado recente, foi recebido com desconfiança e como algo insuficiente. E até hoje o apoio da Globo à ditadura é lembrado e relembrado, tanto pela esquerda como pela direita, inclusive pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, quando era candidato ao cargo que hoje ocupa.

Em 2018, o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que marcou a gestão do presidente militar Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e o período de maior endurecimento da repressão à resistência política, figurou como propaganda veiculada em rede de canal aberto pela empresa de telecomunicações SBT. Diante da reação negativa do público, a empresa tirou a vinheta do ar, alegando não ter tido a intenção de lembrar a ditadura, mas sim de passar uma mensagem de união.

Não são as telecomunicações o único setor da economia alvo de protestos e reações. A indústria da moda também tem tido prejuízos e desgastes das marcas em decorrência de práticas consideradas racistas. Em 2016, o repúdio nas redes sociais a uma marca de roupa feminina que lançou coleção com estampa que retratava uma negra, provavelmente escravizada, com cesto na cabeça vendendo produtos ou conversando, e uma branca, sentada e parecendo se sentir confortável levou à decisão da empresa de retirar todas as peças das prateleiras. Houve pedidos de desculpas e justificativa de que a estampa se inspirava em Debret. No entanto, dias depois, pesquisadora mostrou que a estampa pivô da polêmica foi inspirada reprodução da litografia “Negras no Rio de Janeiro”, de autoria de Johann Moritz Rugendas, de 1835. Na imagem de Rugendas, no entanto, as duas mulheres, tanto a sentada como a que está com o cesto na cabeça, são negras. Nesse ano, a marca também foi acusada de nunca veicular, em seus catálogos, modelos negras para apresentação de seus produtos.

Em 2017, novamente por conta da estampa com imagens cotidianas do século XIX que traziam mulheres escravizadas, outra marca nacional foi criticada fortemente nas redes sociais e imediatamente veio a público pedir desculpas e informar o recolhimento e não comercialização das peças. Em 2019, essa marca criou um comitê de igualdade racial e consta na página que se trata de um “comitê majoritariamente preto dentro de uma empresa majoritariamente branca. Juntar nossas vozes foi o ponto de partida pra abertura de um maior diálogo interno sobre o racismo estrutural e institucional que vivemos dentro e fora da marca”. Também é dito que a marca “reconhece que ainda não é uma marca antirracista, mas quer ser”.

Os exemplos de empresas de comunicação e da indústria da moda se estendem para outras áreas, indicando que há necessidade de uma mudança de postura empresarial já que a ocupação dos espaços físicos e virtuais por imagens, monumentos, mensagens ou veiculação de estereótipos que ferem direitos e reforçam injustiças históricas não é mais aceita com passividade ou indiferença.

As empresas têm se preocupado em não vincular suas marcas a práticas racistas ou que violem outros pilares dos direitos humanos.

A preocupação chega em bom momento. Toda a comunidade é impactada por decisões tomadas no setor privado, mas há grupos mais vulneráveis que absorvem esses impactos — positivos ou negativos — de modo mais profundo. Ao direcionar luzes para o papel que as empresas (não) podem ter no combate ao racismo, as manifestações inevitavelmente provocam a reflexão sobre a participação de corporações na violação de direitos humanos no Brasil e sua contribuição para manutenção (ou não) das desigualdades.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-13/opiniao-responsabilidade-social-empresa-vidas-negras

(Des)acatando um controle de convencionalidade rigoroso

(Des)acatando um controle de convencionalidade rigoroso

O julgamento da ADPF 496 pelo Supremo Tribunal Federal

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MELINA GIRARDI FACHIN

 

O controle de convencionalidade é uma forma explícita, normativa e institucionalizada de diálogo entre o constitucionalismo local e o sistema internacional de direitos humanos. É marca indelével dos sistemas multinivelados e porosos que marcam o direito constitucional contemporâneo com a aproximação das fronteiras e o trânsito global cada vez mais intenso.

A concepção que mais se coaduna com o projeto constitucional – a tese da paridade constitucional dos tratados de direitos humanos espelhada no art. 5o, §2o, restou vencida em julgamento pelo STF.

Mas o Tribunal consagrou uma proposta que deu novo e destacado espaço para os tratados de direitos humanos no nosso âmbito local de proteção: a tese da hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, dos tratados de direitos humanos anteriores à Emenda 45.

O reconhecimento jurisprudencial consolidou o que a doutrina nacional já vinha há muito apontando: a necessidade de uma leitura constitucional conforme da hierarquia dessas normas.

Recentemente o STF ganhou oportunidade de revisitar a temática no julgamento da ADPF 496, proposta pelo Conselho Federal da OAB, tendo por objetivo a análise da constitucionalidade – e convencionalidade – do dispositivo contido no art. 331 do Código Penal que prevê o crime de desacato.

O tema não é novo e, no exercício do controle difuso de convencionalidade, diversas decisões judiciais abordaram o tema. Umas das mais destacadas foram proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a convencionalidade do crime de desacato.

Em 2016, no REsp 1.640.084, a 5ª Turma do STJ entendeu que o tipo penal era incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Valeu-se na fundamentação de inúmeros expedientes da Comissão Interamericana para concluir que leis de desacato não podiam permanecer incólumes nos ordenamentos internos face à Convenção.

Todavia, em 2017, decisão tomada no HC 379.269 pela 3ª Seção do STJ – responsável por uniformizar a jurisprudência do Tribunal – derrotou a tese anteriormente fixada.

Este imbróglio que chegou ao STF no contexto da ADPF 496. Infelizmente, com uma leitura restrita do controle de constitucionalidade e dos precedentes internacionais, a maioria formou-se no sentido de que não há inconvencionalidade em si no tipo penal. O posicionamento vencedor parte da noção de que como o próprio sistema interamericano rechaça a liberdade de expressão como direito absoluto, podendo ser limitada.

Em distinguishing à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (nomeadamente o caso Palamara Iribarne vs. Chile), o voto vencedor aponta a ausência de similitude fática entre os julgados da Corte Interamericana, os quais tratavam de manifestação de opinião de jornalistas e escritores seguido de imposição de restrições por conta da crítica, e não a ofensas, proferidas na presença de um servidor público.

Destaca, ainda, a posição da Corte Interamericana sublinha a aderência à análise do caso concreto, de forma que a legislação de desacato não foi reputada violadora da Convenção aprioristicamente.

Todavia, em visão sistemática e integrada do sistema interamericano resta evidente a incompatibilidade do tipo penal.

A Comissão Interamericana definiu, a partir de um conjunto decisório de casos, informes e relatorias[1], que as restrições impressas por leis de desacato não são legítimas. Para a Comissão, as leis de desacato buscam proteger a honra dos funcionários públicos, mas tal proteção é outorgada injustificadamente pois dessa proteção especial não goza qualquer um dos demais integrantes da sociedade.

Em verdade, pelo tipo do desacato inverte-se, segundo a Comissão, a lógica aplicável em uma sociedade democrática, pois os funcionários públicos estão sujeitos a constantes escrutínios da população pela posição que ocupam.

Desse modo, faz parte desse palco discursos críticos, e às vezes inclusive ofensivos, proferidos pela população em relação aqueles que ocupam cargos públicos[2]. Ao fim e ao cabo, funcionários públicos estão (e devem mesmo estar) mais expostos a críticas da população.

Soma-se a deslegitimar as leis de desacato, conforme a Comissão, o fato de tais leis intimidarem toda pessoa que busca dar voz a seus pensamentos em relação à determinada atividade prestada pelo governo.

Diplomas normativos que contenham a tipificação do desacato funcionariam, de acordo com a Comissão, como método de supressão apriorístico de críticas, gerando, em última instância, censura prévia.

É certo que a Corte Interamericana não foi tão expressa no principal precedente sobre o tema, Caso Palamara Iribarne v. Chile em 2005. Para a Corte, no exame dos fatos, a adequação de determinada lei de desacato e dos resultados que produz perante a Convenção são determinados necessariamente ao caso concreto[3].

Afastou-se, assim, o entendimento que se vinha esboçando na Comissão que leis de desacato são ipso fato per se incompatíveis com o sistema regional e proteção dos direitos humanos.

Dessa forma, como teste para a convencionalidade, a Corte estabeleceu que a restrição à liberdade de expressão, dado que esta não é um direito absoluto[4] (e os próprios parágrafos do art. 13 da Convenção deixam claro isso), deve se dar por responsabilidades ulteriores que estejam expressamente fixadas em lei; que procurem proteger a reputação dos demais, segurança nacional, ordem pública e ou a moral pública e devem ser necessárias em uma sociedade democrática[5].

Neste diapasão, o requisito da necessidade, a seu turno, corresponde ao fato de que a restrição deverá buscar satisfazer um interesse público imperativo e, para alcançar esse objetivo, deve-se escolher os meios que restrinjam em menor escala os direitos[6].

Em síntese, nota-se que não há uniformidade no sistema sobre a matéria. Ainda que haja uma coerência entre os resultados obtidos na Comissão e Corte – em ambos as leis de desacato foram extirpadas do sistema.

No caso da APDF 496, todavia, o desacato permaneceu sendo considerado constitucional e convencional. Os fundamentos adotados pela corrente majoritária no STF estabeleceram um diálogo de pouca troca com o sistema interamericano e pouco rigor com os ditames republicanos da nossa Constituição.

Os expedientes da Comissão Interamericana são bastante contundentes ao expressarem a inconvencionalidade do tipo de desacato. E a decisão da Corte Interamericana, ainda que em menor grau, não deixou de repudiar o tipo como proteção especial de determinada categoria de pessoas (servidores públicos).

No Brasil já possuímos tipos penais destinados à punição de quem ofender uma pessoa (injúria, calúnia, difamação) e também meios civis, reparatórios e indenizatórios, de responsabilização. Não há, portanto, desabrigo jurídico de quem possa exorbitar da sua liberdade de expressão e ofender alguém, seja funcionário público ou não.

A decisão majoritária do STF, assim, expressa pouco rigor no diálogo com o sistema interamericano de direitos humanos e ainda mais com a decisão que busca objetar.

Mais do que isso, perdeu a oportunidade de promover o controle de convencionalidade de matriz nacional, expressando a proteção da liberdade de expressão, a possibilidade de sua limitação e a inadmissão de uma categoria de pessoas especialmente protegidas apenas por ocuparem cargo público.

Não fosse isso suficiente, o tipo de desacato viola nossos compromissos mais básicos, a igualdade e o republicanismo. Não há justificativa para se tratar de forma desigual e avantajada um servidor público. Sua honra não é maior do que a de qualquer outra pessoa.

E a eventual proteção que se busca dar à Administração Pública não precisa de tipificação especial para o servidor em si. Sua honra encontra amparo na legislação penal e civil caso seja violada. A Administração Pública possui à sua disposição todos os meios, administrativos e legais, inclusive com presunções positivas a seu favor, para fazer valer sua decisão.

O diálogo, e o controle de convencionalidade como uma de suas vertentes, é um compromisso duradouro com a abertura do direito constitucional. É fundado na força expansiva dos direitos humanos, do princípio da dignidade que justifica a possibilidade de exercício do controle de convencionalidade que deve ser feito com o rigor necessário que, infelizmente, não espelhou a jurisprudência majoritária do STF, inclusive na ADPF 496. Não fosse isso, e já era tanto, ainda resta o controle de constitucionalidade: igualdade e republicanismo continuarão aguardando por redenção nesse aspecto.

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[1] Cite-se, dentre muitos: CIDH. Antecedentes e Interpretação da Declaração de Princípios. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=132&lID=4>, com acesso em 21 de novembro de 2017. Informe sobre la Compatibilidad entre las Leyes de Desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. 1994. Caso Horacio Verbitsky v. Argentina. Relatório n.º 22/94, Caso 11.012. 20 de setembro de 1994. Criminalização de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, 2015. Marco Jurídico Interamericano sobre el Derecho a la Libertad de Expresión. 2010. Zonas Silenciadas: Regiones de alta peligrosidad para ejercer la libertad de expresión. 2013. Una Agenda Hemisférica para la Defensa de la Libertad de Expresión.

[2] “El tipo de debate político a que dá lugar el derecho a la libertad de expresión generará inevitablemente ciertos discursos críticos o incluso ofensivos para quienes ocupan cargos públicos o están íntimamente vinculados a la formulación de la política pública.  De ello se desprende que una ley que ataque el discurso que se considera crítico de la administración pública en la persona del individuo objeto de esa expresión afecta a la esencia misma y al contenido de la libertad de expresión” (CIDH. Informe sobre la Compatibilidad entre las Leyes de Desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. 1994).

[3] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 80

[4] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 79

[5] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 178

[6] “El Tribunal ha señalado que la “necesidad” y, por ende, la legalidad de las restricciones a la libertad de expresión fundadas en el artículo 13.2 de la Convención Americana, dependerá de que estén orientadas a satisfacer un interés público imperativo. Entre varias opciones para alcanzar ese objetivo, debe escogerse aquélla que restrinja en menor escala el derecho protegido. Dado este estándar, no es suficiente que se demuestre, por ejemplo, que la ley cumple un propósito útil u oportuno; para que sean compatibles con la Convención las restricciones deben justificarse según objetivos colectivos que, por su importancia, preponderen claramente sobre la necesidad social del pleno goce del derecho que el artículo 13 de la Convención garantiza y no limiten más de lo estrictamente necesario el derecho proclamado en dicho artículo. Es decir, la restricción debe ser proporcional al interés que la justifica y ajustarse estrechamente al logro de ese legítimo objetivo, interfiriendo en la menor medida posible en el efectivo ejercicio del derecho a la libertad de pensamiento y de expresión”. (Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 2005. par. 85).

 

MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desacatando-um-controle-de-convencionalidade-rigoroso-01072020

Auxílio emergencial: existem vidas que pouco importam?

Auxílio emergencial: existem vidas que pouco importam?

Por Inês Virgínia Prado Soares e Melina Girardi Fachin

Durante esta grave crise sanitária causada pela Covid-19, os governos federal, estaduais e municipais têm criado medidas e mecanismos como respostas para minimizar ou reduzir as violações de direitos. No entanto, algumas ações não são acessíveis para as pessoas hipervulneráveis, aquelas que, por diferentes razões, têm chances baixíssimas de acesso a instituições ou ferramentas para resguardar seus direitos básicos, e tampouco conseguem enfrentar as eventuais violações a esses direitos.

A vulnerabilidade e o aumento das desigualdades têm atraído especial atenção dos principais órgãos de defesa dos direitos humanos neste momento. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu, em 10 de abril, a Resolução 01/2020, intitulada Pandemia e Direitos Humanos nas Américas, na qual apresenta um conjunto de medidas e abordagens para o enfrentamento da Covid-19 pelos países latino-americanos. Entre as 85 recomendações da Resolução 01/2020, as de número 39 e 40 tratam de grupos de especial vulnerabilidade, indicando que os Estados-membros devem:

“39 — Considerar abordagens diferenciadas ao tomar medidas necessárias para garantir os direitos dos grupos em uma situação de especial vulnerabilidade, adotando medidas de cuidado, tratamento e contenção para a pandemia da Covid-19; bem como mitigar os impactos diferenciados que tais medidas podem gerar.

40 — Promover, pelas mais altas autoridades, a eliminação de estigmas e estereótipos negativos que podem surgir em certos grupos de pessoas no contexto de pandemia.

As recomendações supracitadas têm o mérito de recusar um modelo de atuação que reforce desigualdades e ainda inspiram os gestores locais ao falarem da possibilidade das políticas públicas da Covid-19 de serem desenhadas e implementadas longe da lógica de desigualdade estrutural que, quase sempre, permeia o sistema em tempos de normalidade.

Na tentativa de dar atenção à linha recomendada pela CIDH de conter uma das consequências provocadas pela crise da Covid-19, e dar resposta efetiva aos grupos mais atingidos, sancionou-se a Lei 13982/2020, que estruturou o programa de renda básica emergencial, consistente num auxílio financeiro pago pelo governo federal em três parcelas para sobrevivência no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia.

A iniciativa vai parcialmente ao encontro do preconizado pelas Nações Unidas, que, na voz de seu especialista independente, Juan Pablo Bohoslavsky, clamou que a melhor maneira de lidar com os efeitos econômicos da catástrofe é colocar as finanças a serviço dos direitos humanos com a adoção de programas de renda básica universal de emergência. Diversos países seguiram nessa esteira de assistência aos trabalhadores neste momento de pandemia, inclusive aos informais — Alemanha, Estados Unidos, Irlanda, Canadá, Reino Unido, Austrália, França, Espanha, Itália, Portugal, entre outros, com suporte financeiro maior do que o concedido pelo governo brasileiro.

De acordo com dados disponibilizados pelo governo, quase 100 milhões de brasileiros receberam o auxílio emergencial, mais de 30 milhões o tiveram negado por não cumprir as suas condições e, segundo dados da Caixa, o site do auxílio emergencial recebeu quase 300 milhões de visitas e o aplicativo foi baixado cerca de 60 milhões de vezes. Os números saltam aos olhos e chamaram a atenção inclusive dos idealizadores do programa. Um contingente populacional invisível — que não possui conta em banco, não tem acesso regular à internet e não tem documentos de identificação — veio à luz.

Decreto nº 10.316/2020 instrumentalizou a percepção do benefício previsto na Lei nº 13.982/2020 e estabeleceu, em seu artigo 5º, que para ter acesso ao auxílio emergencial o trabalhador deverá: “I — estar inscrito no Cadastro Único até 20 de março de 2020; ou II — preencher o formulário disponibilizado na plataforma digital, com autodeclaração que contenha as informações necessárias”. Em casos excepcionais e a depender da disponibilidade dos funcionários da Caixa, apenas para as pessoas que não tenham acesso à internet será possível fazer o registro em agências. Mesmo nessa situação, é preciso a inclusão dos dados na plataforma digital.

Portaria do Ministério da Cidadania indicou a Dataprev como agente operadora do auxílio emergencial e a Caixa Econômica Federal foi a instituição escolhida para efetuar o pagamento do benefício, disponibilizando a opções de cadastro no site ou o uso do aplicativo. As duas alternativas exigem que as pessoas tenham acesso a aparelhos celulares, pois a partir de um determinado momento receberão mensagens de SMS com códigos para completar as etapas de preenchimento do cadastro.

Em ação civil pública proposta pela Defensoria Pública da União (DPU) no início de maio, demonstrou-se que é preciso cumprir 23 passos, em ambiente digital, para o cadastramento para recebimento do auxílio. O argumento da DPU nessa ação é que pessoas em situação de extrema pobreza, migrantes, refugiados, integrantes de povos indígenas e de comunidades quilombolas, por exemplo, são também pessoas em situação de exclusão digital.

Por não terem acesso aos recursos digitais, precisam de um atendimento presencial para receberem ajuda de alguém que lhes traduza as exigências digitais, ou mesmo que lhes disponibilizem o número de celular para recebimento dos códigos. A DPU pediu que a União e a Caixa não obriguem os beneficiários a apresentar número de celular e e-mail para o saque das parcelas de R$ 600 na pandemia, bem como que apresentem uma alternativa, que chamamos aqui de “análogica”.

As enormes filas nas agências da Caixa Econômica e nas casas lotéricas, portanto, devem-se, em grande parte, à exclusão digital dos hipervulneráveis e à falta de alternativa para obtenção de ajuda para preenchimento no formulário digital, a não ser o deslocamento para o local de saque.

A corrida ao benefício transitório mostrou que há milhões de invisíveis que seguem amontoadas em filas, inconvenientemente aglomeradas, dormindo nas calçadas nas proximidades das agências bancárias e casas lotéricas.

A imagem das pessoas se colocando em risco e a percepção de que não se terá uma solução rápida para os que não se enquadram no formato pensado para execução do programa trazem o questionamento sobre a razão de não se contemplar todo o universo de vulneráveis, com suas peculiaridades.

É possível considerar que isso não foi feito de modo aleatório, mas, sim, fruto de uma determinada concepção de sociedade, que convive com imensa dificuldade com os mais vulneráveis (tanto fisicamente como também nos aspectos social, cultural ou econômico) A filósofa americana Judith Butler, em recente entrevista a Juan Dominguez e Rafael Zen, ao trazer sua visão sobre a quarentena, também expressou inquietação semelhante sobre o cenário dos Estados Unidos:

“Porém, me pergunto se não seria mais importante considerarmos como as políticas sociais são armadas e aplicadas de maneira a se configurar como a morte das populações marginalizadas, especialmente das comunidades indígenas e das populações carcerárias, e também daqueles que, como resultado de políticas públicas racistas, nunca tiveram um tratamento de saúde adequado. Afinal, a taxa de mortes nos Estados Unidos neste momento está diretamente correlacionada à pobreza e à privação de direitos das populações negras”.

O cenário brasileiro não é muito diferente do americano indicado por Butler no que diz respeito ao acesso às múltiplas formas de cuidado aos mais vulneráveis. Aliás, pelo que se tem noticiado, o panorama é bem semelhante no plano mundial, ainda que em razão de peculiaridades regionais os países mais pobres ou com maior desigualdade sejam atingidos de maneira mais severa pela pandemia.

A invisibilidade de alguns grupos sociais por certo não é temática nova para a comunidade internacional, nem chega com a Covid-19. As privações que a pobreza causa no acesso aos demais direitos se traduzem em um dos recortes do cenário das hipervulnerabilidades. Em 2012, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou e publicou, pela Resolução 21/11, os Princípios Reitores sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos (PREPDH). Os seus princípios partem que a pobreza é um problema de direitos humanos:

“4 — As pessoas que vivem na pobreza encontram enormes obstáculos, de natureza física, econômica, cultural e social, para exercerem os seus direitos. Como consequência, sofrem muitas privações que se relacionam entre si e se reforçam mutuamente, — como as condições perigosas de trabalho, a insalubridade da moradia, a falta de alimentos nutritivos, o acesso desigual à Justiça, a falta de poder político e o acesso limitado à atenção de saúde —, que os impedem de tornar realidade os seus direitos e perpetuam sua pobreza. As pessoas submetidas à pobreza extrema vivem em um círculo vicioso de impotência, estigmatização, discriminação, exclusão e privação material, que se alimentam mutuamente”

Isso se agrava com outros recortes que muitas vezes se somam à questão da renda, gerando fenômenos de discriminações sobrepostas como a racialização ou a generificação da pobreza. No dizer da relatora especial sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos:

“Isto é, o fato de que, geralmente, as pessoas que se encontram em condições de pobreza coincidentemente possam pertencer a outros setores vulneráveis (mulheres, crianças, pessoas com deficiência, indígenas, afrodescendentes, idosos etc.) não exclui a possibilidade de que as pessoas em situação de pobreza não se vinculem a outra categoria”.

Foi exatamente numa condenação do Brasil, no caso dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) usou, pela primeira vez, o fundamento da pobreza como um componente autônomo da proibição de discriminação por “posição econômica”. No voto fundamentado do juiz Eduardo Ferrer MacGregor Poisot [1], no julgamento do mencionado caso, foi destacado que:

“44 — Como podemos observar, na jurisprudência interamericana a posição econômica (pobreza ou condição econômica) esteve vinculada de três maneiras distintas: em primeiro lugar, pobreza ou condição econômica associada a grupos de vulnerabilidade tradicionalmente identificados (crianças, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, migrantes etc.); em segundo lugar, pobreza ou condição econômica analisada como uma discriminação múltipla/composta ou interseccional com outras categorias; e, em terceiro lugar, pobreza ou condição econômica analisada de maneira isolada, dadas a circunstâncias do caso, sem vinculá-la a outra categoria de proteção especial”.

Discussões mais recentes no âmbito das Nações Unidas aliam a perspectiva da hipervulnerabilidade de classe com o recorte da exclusão digital. No informe do relator especial Philip Alston, aprovado pela ONU em outubro de 2019, surgem o estado de bem-estar digital e as ameaças deste sob a perspectiva dos direitos humanos, destacando as vantagens da inclusão digital e também a desigualdade no acesso às tecnologias da informação:

“45 — A falta de alfabetização digital leva a uma total incapacidade de usar ferramentas digitais básicas, e muito menos usá-las de maneira eficaz e eficiente. O acesso limitado ou inexistente à internet coloca enormes problemas para muitas, muitas pessoas, e as pessoas que acessam a internet envolvem pagar preços altos, viajar longas distâncias ou tirar folga do trabalho, visitar instalações públicas como bibliotecas ou obter ajuda de funcionários ou amigos para gerenciar os sistemas. Além disso, embora pessoas com recursos possam obter acesso instantâneo a computadores e outros softwares modernos e fáceis de usar, além de velocidades de banda larga rápidas e eficientes, pessoas com poucos recursos têm muito mais chances de serem severamente prejudicadas pelo uso de equipamentos desatualizados e conexões digitais lentas e não confiáveis”.

Os dados para produção do informe da ONU citado acima foram colhidos há cerca de dois anos, em um cenário de normalidade. Diante do quadro catastrófico, é possível considerar que a comunidade internacional enquadraria as pessoas em situação de extrema pobreza em nosso país, que não conseguem se cadastrar para receber o auxílio emergencial por não terem acesso às plataformas digitais, na proteção do prevista no artigo 1.1. da Convenção Americana de Direitos Humanos, que proíbe qualquer forma de discriminação.

Ainda há possibilidade de ajuste da conduta estatal, com a oferta de ferramentas que permitam o cadastramento das pessoas hipervulneráveis. Se assim acontecer, os invisíveis, que até ontem frequentavam os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) espalhados pelos municípios brasileiros, mas não tinham sua existência contabilizada pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), passarão a ser um número e também clientes do sistema de seguridade social.

O desafio está posto. E a resposta precisa ser dada, ainda que esta não seja a realidade de quem escreve ou lê este artigo, ou mesmo dos idealizadores da política. Se há algo que a pandemia nos mostra é a necessidade de cooperação, solidariedade e alteridade pela responsabilidade que temos com as vidas alheias.

Todas as vidas importam.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-26/soares-fachin-auxilio-emergencial

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