A segurança jurídica na Constituição Federal

A segurança jurídica na Constituição Federal

Por Ilton Norberto Robl Filho e Marco Aurélio Marrafon

1 – Constituição. O direito fundamental à segurança encontra-se previsto nos artigos 5º, caput, e 6º, Constituição de 1988. Em verdade, o Estado democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, caput, CF/88, possui na sua estrutura a promoção dos direitos fundamentais, a legalidade e a separação dos poderes, que são elementos relevantes para concretização da segurança[3].

Por sua vez, o direito fundamental à segurança é dotado de aspectos individual, coletivo e difuso. A tradição constitucional brasileira reconhece o direito fundamental à segurança individual, conforme se observa no artigo 179, caput, Constituição de 1824. Apesar da inexistência da previsão expressa sobre a tutela da segurança individual na CF/88, a topografia (caput, do artigo 5º, CF/88) e o reconhecimento de inúmeros direitos em espécie acerca da segurança individual impõem a titularidade do direito fundamental à segurança aos indivíduos, sendo exemplo de direito em espécie a vedação à retroatividade da lei penal com exceção da situação de produzir benefício ao réu, de acordo com XL, artigo 5º, CF/88.

Também são titulares desse direito fundamental os coletivos e toda comunidade. Nesse sentido, as ações constitucionais são importantes instrumentos para proteção e segurança dos direitos e interesses, sendo garantias constitucionais o mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX, CF/88) e a ação civil pública (artigo 127, III, CF/88) que tutela os direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos. No âmbito do direito social à segurança (artigo 6º, CF/88), vislumbra-se a segurança pública, a qual promove a incolumidade das pessoas e do patrimônio, além da promoção da ordem pública em conformidade com o respeito aos direitos fundamentais, segundo o art. 144, CF/88. O direito fundamental social à segurança é integrado ainda pela seguridade social, que possui como função constitucional efetivar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme o artigo 194, caput, CF/88.

De outro lado, a dimensão subjetiva consiste no conjunto de faculdades e direitos que é atribuído aos titulares desse direito fundamental, sendo garantido tanto pelo direito mãe à segurança (artigo 5º, caput, e 6º, CF/88) como por diversos direitos fundamentais em espécie que também tutelam esse valor. Acerca dos direitos fundamentais em espécie, indicam-se: a) direito de que apenas a lei pode obrigar ou proibir a prática de uma ação ou omissão (artigo 5º, II, CF/88), b) proteção da propriedade com função social (artigo 5º, XXII e XXIII, CF/88), c) direito de herança (artigo 5º, XXX, CF/88), d) direito de petição e direito à tutela jurisdicional tempestiva, adequada e célere (artigo 5º, XXXIV, ‘b’, XXXV e LXXVIII, CF/88), e) direito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (artigo, XXXVI, CF/88), f) vedação de juízo e tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF/88), g) garantias penais e processuais penais como legalidade no direito penal (artigo 5º, XXXIX, CF/88) e h) e outros direitos fundamentais em espécie.

A dimensão objetiva desse direito impõe a observância da segurança pelos agentes, órgãos e poderes estatais nas suas atividades cotidianas, assim como é empregada pela interpretação jurídica na concretização e na aplicação do ordenamento jurídico, incidindo nas relações privadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Mesmo com a enorme relevância, por muito tempo, os estudos constitucionais deixaram em segundo plano as reflexões sobre a segurança nos fenômenos jurídicos e sociais[4].

2 – Fundamentos. Na modernidade, há a adoção da clássica teoria da separação dos poderes, segundo a qual cumpria ao Legislativo elaborar a ordem jurídica geral e abstrata e ao Judiciário apenas aplicá-la aos casos concretos com o mínimo de interferência possível na determinação do legislador. Nesse período do alvorecer do constitucionalismo, é predominante o viés liberal de proteção do indivíduo contra o Estado, da democracia representativa, da defesa dos direitos fundamentais individuais e da não intervenção na economia e na esfera privada, cabendo ao direito apenas regular o mínimo necessário para a convivência pacífica dos diferentes espíritos e projetos de vida humanos (NOVAIS, 2006, p. 59 e ss.).

 Eis o cerne da legalidade e da segurança jurídica moderna: permitir que os cidadãos conhecessem anteriormente as condutas vedadas e as consequências jurídicas de seu descumprimento, cabendo-lhes o exercício do livre arbítrio e da autonomia para cumprir ou não os ditames legais, respondendo por eventuais sanções. Com Cartas sintéticas e pouco interventivas, o direito acabou concentrado na legislação infraconstitucional, em especial, nas grandes codificações. O conceito de norma jurídica restou confinado à dimensão das regras legais, vinculando os julgamentos. Já os princípios seriam diretrizes políticas, com baixa ou nenhuma normatividade, cabendo aplicação subsidiária no preenchimento de lacunas.

Por sua vez, a guinada filosófica dá ensejo ao racionalismo e cientificismo que irão influenciar toda a epistemologia jurídica da modernidade em torno da busca da confiabilidade, estabilidade e certeza no direito, formando uma tríade de conceitos que compõe a significação da noção de segurança jurídica. Para alcançá-la, a teoria do direito se reduziu a uma teoria analítica da norma e do ordenamento (as grandes codificações), de modo a atingir o  status de ciência cujo objeto era análise das normas jurídicas individualmente tomadas ou em seu conjunto, a partir de critérios de validade, consistência lógica e coerência interna (MARRAFON, 2018, p. 59 e ss.).

Do ponto de vista do método, desenvolveu-se a teoria hermenêutica tradicional, subdividida em um tríplice processo i) teoria da interpretação, ii) teoria da aplicação, que envolve a conexão entre o sentido auferido da lei e o do fato, em uma combinação que levasse à conclusão contida na decisão, como, por exemplo, o processo de subsunção e iii) teoria da integração do Direito. Assim, é possível constatar que a segurança jurídica almejada deitava raízes  i) em uma teoria do Estado de Direito e da legalidade baseada em uma rígida separação de poderes e na distinção entre o âmbito político e o jurídico, ii) na adoção do conceito de norma jurídica enquanto regra e de ordenamento como um conjunto de regras, iii) no fundamento filosófico do paradigma da filosofia da consciência, iv) na redução do direito a uma teoria analítica de cunho científico e v) em uma teoria hermenêutica racionalista e subdividida em etapas cientificamente demonstráveis.

O dilema contemporâneo é que nenhuma dessas cinco premissas premissas subsiste.

O pensamento constitucionalista brasileiro, a partir da Constituição de 1988, paulatinamente consolidou a tese de que o Poder Judiciário, enquanto guardião da Constituição, tem o poder-dever de limitar os outros Poderes, quando há violação por ação ou omissão dos ditames constitucionais. Elevou-se a estatura do Poder Judiciário em relação aos demais, de modo a flexibilizar a separação dos poderes clássica e ensejar a progressiva confusão entre o campo jurídico e o campo político.

Assim, para além da aspecto liberal de proteção ao indivíduo (dimensão negativa), assumiu-se a tese de que o Poder Judiciário deve contribuir para a concretização dos direitos fundamentais sociais, seja por meio de intervenções diretas ou por controle da omissão dos demais poderes (dimensão positiva). Em consequência, difundiu-se no imaginário jurídico brasileiro uma certa leitura substancialista da concretização da Constituição, o que pavimentou o terreno para incursões ativistas, tópicas e voluntaristas, em detrimento da cultura da preservação da legalidade e da coerência jurisprudencial.  

Nesse movimento, fortaleceu-se a força normativa dos princípios constitucionais, que passaram a fundamentar decisões e serem aplicados diretamente enquanto fonte do direito, inclusive com possibilidade de afastamento da regra legal no caso concreto sem que haja inconstitucionalidade evidenciada. Ou seja, afasta-se a lei em nome de um princípio ante a alegadas exigências de justiça do caso concreto (derrotabilidade), ainda que, em geral, a lei não esteja eivada de vício de inconstitucionalidade e permaneça vigente[5].

Demonstrada a insustentabilidade das duas primeiras premissas, o cenário não se revela diverso em relação às demais.

O paradigma da filosofia da consciência restou superado enquanto fundamento filosófico. A crítica ao racionalismo e a emergência do paradigma da linguagem[6] levaram à denúncia da dimensão existencial e histórica do sujeito, que não mais se apresenta como razão pura, neutra e imparcial. A filosofia promoveu uma guinada linguístico-filosófica em que, ao invés do sujeito, a linguagem se torna a categoria de trabalho para a compreensão da racionalidade, em dimensão hermenêutica e também lógico-formal (Stein, 1996).

Assim, a crítica antimoderna de Nietzsche se transformou em vetor para a formação de um ambiente niilista que tem fomentado o que se entende como pós-verdade processual. Nesse ambiente niilista formou-se a era das narrativas, a qual enseja o voluntarismo na práxis judicial e inibe incursões de epistemologia jurídica, solapando, assim, a quarta e a quinta premissas ora estabelecidas. A noção de ordenamento jurídico fechado necessária à garantia do status científico do direito se transformou e deu lugar a um sistema aberto de princípios e regras (Marrafon, 2018, p. 124 e ss.), aumentando a incerteza no processo decisório, uma vez que tanto princípios quanto as regras se tornaram verdadeiros topoi argumentativos para justificar as decisões judiciais, favorecendo a realização tópico-argumentativa do direito, sem metodologia e sem hierarquia normativa clara e estável[7].

Apesar dos inúmeros esforços contemporâneos (Dworkin, 2014; Alexy, 2019), enquanto tentativas de racionalizar o processo decisório, a contraposição de narrativas e a pós-verdade que levam ao voluntarismo judicial se tornam antíteses à ideia de segurança jurídica, além da forte crise na teoria das fontes (Marrafon, Robl Filho, 2014) e do predomínio do sincretismo metodológico na applicatio judicial (Rosa, 2006).

3 – Conclusão.No contexto de crise das fontes e de sincretismo metodológico, corretamente o Código de Processo Civil de 2015 (NCPC) inovou e estabeleceu regras que, em tese, permitem a controlabilidade da decisão judicial, notadamente em casos de conflitos de princípios e ponderação (§2° do artigo 489, NCPC), bem como determinam o dever de os tribunais uniformizarem “sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (caput, artigo 926, NCPC). Dessa forma, o Excelso Supremo Tribunal Federal (2019) entendeu que “ao consagrar diversos mecanismos para o sobrestamento de causas similares com vistas à aplicação de orientação uniforme em todos eles (artigo 1.035, § 5º; artigo 1.036, § 1º; artigo 1.037, II; artigo 982, § 3º), conferiu primazia à segurança jurídica, à estabilização da jurisprudência, à isonomia e à economia processual”.  

Ainda, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro com a redação da Lei Federal nº 13.655/2018 concretizou e densificou o direito fundamental à segurança, estabelecendo a) a obrigatoriedade de as decisões administrativas e judiciais considerarem as consequências práticas, quando interpretarem valores jurídicos abstratos (artigo 20), e b) que as decisões administrativas e judiciais que fixem interpretação ou orientação nova prevejam regime de transição (artigo 23). Observa-se majoritariamente a desconsideração inconstitucional dessas normas. De outra banda, o Superior Tribunal de Justiça (2018) levou a sério a segurança jurídica: “A LINBD (…) também passou a dispor expressamente sobre a segurança jurídica relacionada à atuação das esferas administrativa, controladora e judicial”. Há um longo caminho para o substancial respeito ao direito fundamental à segurança jurídica, mas as bases teóricas e as estruturas do direito constitucional positivo estão postas.

BIBLIOGRAFIA.

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014.

DWORKIN, Ronald. O Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica: una garantía del derecho y la justicia. Boletín de la Facultad de Derecho, nº. 15, p. 25-38, 2000.

NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006.

______. Princípios estruturantes de Estado de Direito. Lisboa: Almedina, 2019.

MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica, sistema constitucional e aplicação do direito. 2ª ed. Florianópolis: Emais Editora, 2018.

MARRAFON, Marco Aurélio; ROBL FILHO, Ilton Norberto. A crise das fontes jurídicas enquanto crise do Estado Democrático de Direito. Revista eletrônica direito e política, Programa de pós-graduação stricto sensu em ciência jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.9, n.3, 3o quadrimestre de 2014.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista eletrônica do direito do Estado, nº. 32, out/dez, 2012.

SERBENA, Cesar Antonio (coord). Teoria da derrotabilidade: pressupostos teóricos e aplicações. Curitiba: Juruá, 2012.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Embargos de Declaração no Recurso Especial nº. 1630659/DF, 2016/0263672-7, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Julgamento em 27/11/2018, DJe de 06/12/2018.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição 8002 – Agravo Regimental. Órgão julgador: Primeira Turma, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Julgamento: 12/03/2019, Publicação: 01/08/2019.

STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. 2. ed. São Paulo: RT, 2012.  

VIEHWEG, Theodor.  Tópica e jurisprudência.  Brasília: Departamento da imprensa nacional, 1979.

3] Cf. Novais, 2019, p. 147-169; 219-289; Torres, 2015, p. 125.

[4]Cf. Sarlet, 2012; Pérez Luño, 2000; Barboza, 2014.

[5] Cf. Serbena, 2012.

[6] Cf. Habermas, 1990.

[7] Cf. Viehweg, 1979.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-21/observatorio-constitucional-seguranca-juridica-constituicao-federal

O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

No último dia 27 de outubro completaram-se 4 anos da decisão do STF que determinou o desconto nos vencimentos dos servidores públicos dos dias não trabalhados em virtude do exercício do direito de greve (RE 693.456, Tema 531 da Repercussão Geral, Rel. Min. Dias Toffoli).

Este breve artigo tem por objetivo retomar o tema e oferecer um outro aporte, de teoria dos direitos fundamentais, pois a discussão do ponto de vista das normas trabalhistas parece estar bem posta no acórdão, e ainda mais bem posta nos votos vencidos. Este texto tem, assim, a finalidade de oferecer uma fundamentação complementar ainda não enfrentada, que coloca em xeque a decisão tomada pelo STF e possibilita, desse modo, a rediscussão do tema e da própria decisão até aqui prevalecente.

1. O caso

O RE teve origem na impetração de um mandado de segurança por parte de servidores do Estado do Rio de Janeiro que tentaram impedir o desconto dos seus vencimentos pelos dias parados em razão de movimento grevista. A sentença de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos e denegou a segurança, autorizando os descontos pelos dias parados em razão da greve.

O TJ-RJ reformou a sentença e reconheceu a ilegalidade no desconto dos vencimentos, já que a paralização ocorreu para o exercício de um direito constitucional – o direito de greve, que também se aplica aos servidores públicos.

Contra essa decisão do TJ-RJ foi interposto o RE 693.456, que ficou sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, e cuja repercussão geral foi reconhecida (Tema 531).

2. A decisão do STF

Levado a julgamento em Plenário, o RE 693.456 foi paradigmático em forma e mérito.

Seu julgamento foi relevante sob o aspecto formal, porque, iniciado o julgamento em 02/09/2015, o Supremo decidiu em questão de ordem que, uma vez reconhecida a repercussão geral do recurso, não cabe pedido de desistência. Importante recordar que nesse momento do julgamento ainda não havia entrado em vigor o novo Código de Processo Civil, que resolveu essa questão em seu art. 998, parágrafo único, ao dispor que “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.

Definida a questão formal, o Min. Luís Roberto Barroso pediu vista.

O julgamento de mérito somente foi retomado e concluído em 27/10/2016.

No mérito, o STF decidiu que o exercício do direito de greve por servidor público corresponde à suspensão do trabalho. Assim, mesmo a greve não sendo abusiva, a regra deve ser o desconto dos dias não trabalhados. O desconto só não pode ser realizado se a greve tiver sido provocada (i) por atraso no pagamento, ou (ii) por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da relação funcional com o Poder Público como, por exemplo, a realização de condutas recrimináveis pela Administração Pública, ou quando houver negociação para a compensação dos dias parados ou parcelamento dos descontos.

O STF fixou então a seguinte tese de: A administração pública deve proceder aos descontos dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público.

A decisão foi tomada por maioria de votos, nos termos do voto do Ministro Relator Dias Toffoli, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

3. O problema da decisão tomada

O raciocínio subjacente ao RE e à decisão do STF é o de que se a greve é paralisação, não há trabalho. Se não há trabalho, não há pagamento devido, salvo se a greve for decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas esse raciocínio se fundamenta em uma contradição que, numa tacada só, reconhece o direito de greve, mas ao mesmo tempo o viola ao permitir o desconto dos vencimentos pelos dias parados.

3.1 A greve como direito fundamental

Mas greve não é qualquer paralisação. É paralisação por demandas trabalhistas, pretensão de defesa de direitos dos trabalhadores, ajuste do contrato de trabalho firmado por interesses contrapostos (prestação de trabalho X remuneração necessária de ajustes). É, pois, uma paralisação qualificada. E tanto é assim que recebe nomenclatura especial e especial local de previsão e proteção: a greve como direito fundamental previsto no art. 9º e art. 37, VII, da Constituição da República.

A greve como direito fundamental tem como suporte fático uma série de medidas. A principal delas é, sem dúvida, a paralisação do trabalho.

O âmbito de proteção do direito fundamental à greve abarca, assim, justamente a possibilidade de se parar o trabalho. E que essa possibilidade de paralisação do trabalho não seja impedida ou afetada por uma intervenção sem amparo na Constituição. Vale dizer, a paralisação só poderia ser mitigada se houvesse fundamentação constitucional para tanto. Mas não há.

Assim, a premissa é a possibilidade de realização da greve (suporte fático composto por um âmbito de proteção que abarca, elementar e principalmente, a paralisação do trabalho), a possibilidade de parar e não ser retaliado por isso (intervenção não fundamentada constitucionalmente). Isso significa poder parar e não ter, a priori, os vencimentos descontados. Salvo se a greve for considerada abusiva, ilegal.

3.2 O erro da decisão do STF

O que o STF fez foi inverter a premissa que fundamenta o exercício do direito fundamental de greve dos servidores públicos: se greve é paralisação, e paralisação é não trabalho, então não se justifica, a priori, o pagamento dos vencimentos.

O problema desse argumento é que ele desloca o fundamento da abusividade e ilicitude da greve como premissa da paralisação. Quer dizer, para o STF, o direito à greve implica obrigatoriamente a suspensão do pagamento dos vencimentos, salvo se decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas nessa compreensão do Supremo, então o que fundamenta o direito de greve não é mais um suporte fático com um amplo âmbito de proteção (que abarcaria a paralisação do trabalho como vimos acima), já que a paralisação deve implicar necessariamente o desconto dos dias parados. Ou seja, parar o trabalho não estaria mais no âmbito de proteção do direito de greve, já que parar o trabalho é ser descontado.

Mais do que isso, ser descontado é uma intervenção contra a qual o direito de greve justamente se contrapõe e que não encontra autorização na Constituição. Só é greve porque é paralisação sem desconto. Ou seja, ao se descontar os vencimentos, não apenas se mitiga o principal suporte fático do direito de greve através da diminuição do seu âmbito de proteção (parar o trabalho), como ainda se permite uma intervenção (desconto dos vencimentos) sem fundamento constitucional que a autorize.

A decisão do STF e a tese fixada pelo Supremo não encontram amparo na Constituição porque fulminam o próprio conteúdo essencial do direto fundamental de greve.

Se o STF exclui do âmbito de proteção do direito fundamental o principal modo de atuação para sua efetivação, ele não está apenas esvaziando esse direito fundamental, ele está violando esse direito pela afronta ao que ele principalmente busca estabelecer: um ato que dá concretude ao direito. E o principal ato que dá concretude à greve é parar o trabalho.

Se se cria uma intervenção que impede o principal ato que é parar de trabalhar, então se está a violar o principal âmbito de proteção do direito fundamental. Há, assim, evidente violação do conteúdo essencial do direito fundamental à greve.

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si.

Esvaziamento seria a exclusão do âmbito de proteção de algum modo de exercício do direito, e com fundamentação na Constituição para isso. Mas não a exclusão do principal modo de exercício do direito, e sem fundamentação na Constituição para tanto.

O desconto dos vencimentos dos servidores públicos em razão do exercício do direito fundamental de greve retira dos trabalhadores públicos seu meio de subsistência, impõe um auto sacrifício para que que a parte mais fraca de uma relação contratual possa se valer do principal meio de visibilidade e oitiva e ainda aniquila o próprio direito fundamental à greve.

4. Conclusão: um STF do século XXI, mas uma decisão do século passado

O STF do século XXI, do Plenário Virtual e dos números fantásticos, fez os trabalhadores públicos voltarem ao século passado, onde qualquer reivindicação trabalhista é tratada a priori como indevida e, assim, passível de punição prévia. Nesse caso, infelizmente o Supremo deixou de guardar a Constituição, de proteger um direito fundamental, se valendo de um argumento que não encontra fundamento nem na Constituição, nem na teoria dos direitos fundamentais e muito menos na dinâmica e prática do Direito do Trabalho dos últimos 100 anos.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-erro-decisao-desconto-obrigatorio-dias-greve-13112020

Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos

Um dia que dura décadas: Brasil não pune violações a direitos humanos

Por Inês Virgínia P. Soares, Valerio de Oliveira Mazzuoli e Melina Girardi Fachin

Uma fábrica de fogos de artifício explodiu na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, em 11 de dezembro de 1998, ceifando a vida de 64 mulheres, dentre elas 20 crianças, e ferindo seis trabalhadoras, todas em situação de vulnerabilidade econômica e social e, na sua amplíssima maioria, negras. As operações da fábrica eram irregulares e, por mais de duas décadas, nenhuma responsabilização — seja cível, trabalhista ou criminal — lhe pesou aos ombros ou ao de seus dirigentes.

O Brasil foi denunciado, em razão da falta de diligência para com o caso, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a sentença internacional condenatória foi publicada no mês passado, deixando claro, mais uma vez, que o nosso país faltou com o dever de responder de modo eficaz contra o cometimento de crimes em seu território, descumprindo obrigações positivas em matéria criminal previstas pelas normas internacionais de direitos humanos em vigor, em especial na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 [1].

Essa foi a nona condenação do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos. Novamente, como em outros sete dos oito casos anteriores (exceto o da comunidade indígena Xucuru), houve responsabilização internacional do Estado por persecução penal ineficaz ou ineficiente, bem assim por não ter o país seguido os parâmetros interamericanos sobre a matéria. O Brasil falhou, novamente, com o dever de assegurar a devida diligência em processos criminais, no sentido de que a investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis, buscando determinar a verdade e a responsabilização dos responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos [2].

No caso da explosão na cidade do Recôncavo Baiano, a situação de extrema vulnerabilidade e pobreza obrigava as vítimas a se submeter a trabalho extremamente perigoso, na fábrica de fogos. Além do mais, a remuneração recebida era absolutamente desproporcional à periculosidade e à insalubridade do trabalho. Cada trabalhadora, por exemplo, recebia R$ 0,50 para cada mil traques (pequenos artefatos explosivos) confeccionados. Tais atividades, somadas à exploração do trabalho infantil e à falta de fiscalização do Estado, foram responsáveis pela tragédia que retirou a vida daquelas trabalhadoras.

A falta de punição por parte do Estado durante mais de 20 anos foi o fator da imediata responsabilização internacional, pois o dever de punir os responsáveis pelo cometimento de crimes é um reconhecido standard de direitos humanos, que, ademais, reafirma a centralidade das vítimas no sistema interamericano. Não se trata de punitivismo internacional, sequer de ingerência arbitrária de organismos internacionais no Direito interno. Os que pensam contrariamente desconhecem a jurisprudência das cortes regionais de direitos humanos (europeia e interamericana) e têm dos mecanismos regionais de monitoramento apenas uma notícia anedótica, de oitiva, que faz tábula rasa da realidade dos Estados e, sobretudo, das vítimas e de seus familiares, por desconhecerem — na prática e teoricamente — o sistema e sua finalidade histórica.

Como se sabe, os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos não são dicotômicos, mas complementares uns dos outros em prol do victim centred approach. Essa aglutinação de forças se faz indispensável em face do cenário complexo e plural crescente que os processos de reconhecimento e concretização dos direitos humanos demandam. Nesse sentido, relembre-se a “tríade formada pela vitimização, o sofrimento humano e a reabilitação das vítimas”, mencionada por Cançado Trindade, atualmente juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia) e ocupante de um assento na Corte Interamericana de Direitos Humanos por dois mandatos, de 1994 a 2008. Nas suas palavras, as vítimas não são figuras neutras e, sim, “titulares dos direitos violados” ou “sujeitos de direito vitimados por um conflito humano” [3].

Por isso, quando se fala em “vítimas” do Estado brasileiro, se está a referir propriamente às vítimas de crimes, é dizer, aquelas contra as quais ilícitos penais foram perpetrados — quer por agentes do Estado ou por particulares — e que não obtiveram do sistema interno de Justiça uma devida e justa reparação, em tempo hábil e segundo os padrões internacionais relativos à matéria, bem assim os familiares daqueles contra os quais foram praticados crimes.

No cenário local, portanto, a punição criminal dos agentes que deram causa ao crime está diretamente vinculada à reparação e à reabilitação das vítimas. A reparação coletiva da comunidade do interior baiano encontra o desafio de lidar com a discriminação estrutural, aquela inerente à ordem social, a suas estruturas e a seus mecanismos jurídicos, institucionalizada e que resulta em práticas expõem os mais frágeis a maiores riscos e perigos.

É importante lembrar que a primeira vez em que a Corte Interamericana expressamente determinou a responsabilidade internacional contra um Estado por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão foi exatamente na condenação do Brasil no “caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde”, em 2016. Na sentença relativa ao caso, a corte entendeu que toda pessoa que se encontre em uma situação de vulnerabilidade é titular de uma proteção especial, em razão dos deveres especiais cujo cumprimento por parte do Estado é necessário para satisfazer as obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos”, razão pela qual “não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das particulares necessidades de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontre, como a extrema pobreza ou a marginalização” [4].

No caso da fábrica de fogos do Recôncavo Baiano, novamente as vítimas foram vulneradas pela desigualdade da realidade brasileira, marcada por pobreza, desigualdades regionais e restrição de acesso ao emprego. Além dos fatores raciais e de gênero, que caracterizam o sofrimento das vítimas, a tragédia da explosão alterou o futuro de dezenas de famílias. O Estado brasileiro, a seu turno, quando deveria punir os responsáveis por tais arbitrariedades, não o fez, certo de que essa falta de punição — em razão de inação do Estado ou de inconvencionalidades na persecução penal — não passou incólume ao exame realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Considerando, ademais, os processos de racialização e feminização das desigualdades, há a necessidade de identificar e visibilizar tais vulnerabilidades com políticas voltadas ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às negras e negros, adotar políticas de gênero “neutras” alimenta a desigualdade e a exclusão.

A “perda de chances” da comunidade atingida pela explosão da fábrica de fogos já seria grave em um contexto de reparação concomitante às mortes, mas foi potencializada pela ausência de respostas e punições adequadas do Brasil por mais de duas décadas. Tal, per se, já seria causa de responsabilidade internacional do Estado brasileiro, notadamente por ter contribuído, a um só tempo, com a impunidade baseada em relações de poder — econômica, neste caso e no da “Fazenda Brasil Verde”, e política, nos crimes da ditadura militar — e com o irreparável dano ao “projeto de vida” das vítimas e seus familiares [5].

Nesse enfoque, é possível observar que a Corte Interamericana tem identificado quatro postulados violados nas condenações do Brasil no que diz respeito ao direito das vítimas: o direito de acesso à Justiça, à garantia judicial e a um julgamento; o direito à proteção judicial, também interpretado como o direito a um remédio efetivo; o direito à reparação do dano; e o direito à verdade. A violação a esses direitos se liga à ideia de ausência ou deficiência de punição por parte do Estado.

Entre tantos pontos importantes dessa nona condenação brasileira pela Corte Interamericana, ressalta-se a vinculação do dever de punição à projeção de um futuro mais justo. Nesse sentido, o julgamento criminal é uma afirmação dos direitos das vítimas e do poder da Justiça, porque o processamento dos responsáveis retém o crime e o mantém dentre aquilo que não se pode esquecer nem pode se repetir.

Portanto, aceitar as regras do Estado de Direito não é apenas se colocar em oposição à ilegalidade e à exploração da vulnerabilidade dos moradores da cidade baiana de Santo Antônio de Jesus — e de tantas outras cidades que abrigam comunidades vulneráveis, mas também fazer algo a mais, pois o grande temor e prejuízo para a comunidade seria que o crime caísse no esquecimento, que a passagem do tempo, tal como um solvente natural, libertasse os responsáveis e perpetuasse a situação de injustiça, com a manutenção daquelas desigualdades econômicas. Nessa perspectiva, o julgamento é um espaço que resiste e rechaça o temor e o prejuízo coletivos. Julgamentos contra perpetradores são, portanto, um aceno à “não repetição”, bem como um sopro de esperança: determinam como a comunidade afetada se tornará a partir da resposta punitiva àquele fato criminoso.

Punir as graves violações a direitos humanos, especialmente as cometidas em cenário de discriminação estrutural, é um standard interamericano de direitos humanos e um aceno para um futuro com chances iguais. Em razão disso, deve ser observado pelo Brasil. Afinal, não é justo que um dia — como aquele 11 de dezembro de 1998 — dure mais de 20 anos.


[1] Para um comentário completo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, v. PIOVESAN, Flávia, FACHIN, Melina Girardi & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[2] Corte IDH, Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e Seus Familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 407, § 220.

[3] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI. Curso de Direito Internacional da Comissão Jurídica Interamericana da OEA. Rio de Janeiro: CJI, 2006, p. 435-463.

[4] Corte IDH, Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C, nº 318, § 337.

[5] Sobre o direito ao “projeto de vida” na jurisprudência da Corte IDH, v. os casos Loayza Tamayo vs. Paru, sentença de 27 de novembro de 1998, Reparações e Custas, Série C, nº 42, § 144 e ss; e Cantoral Venavides vs. Peru, sentença de 3 de dezembro de 2001, Reparações e Custas, Série C, nº 88, §§ 60-63.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/opiniao-dia-dura-decadas