O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

No último dia 27 de outubro completaram-se 4 anos da decisão do STF que determinou o desconto nos vencimentos dos servidores públicos dos dias não trabalhados em virtude do exercício do direito de greve (RE 693.456, Tema 531 da Repercussão Geral, Rel. Min. Dias Toffoli).

Este breve artigo tem por objetivo retomar o tema e oferecer um outro aporte, de teoria dos direitos fundamentais, pois a discussão do ponto de vista das normas trabalhistas parece estar bem posta no acórdão, e ainda mais bem posta nos votos vencidos. Este texto tem, assim, a finalidade de oferecer uma fundamentação complementar ainda não enfrentada, que coloca em xeque a decisão tomada pelo STF e possibilita, desse modo, a rediscussão do tema e da própria decisão até aqui prevalecente.

1. O caso

O RE teve origem na impetração de um mandado de segurança por parte de servidores do Estado do Rio de Janeiro que tentaram impedir o desconto dos seus vencimentos pelos dias parados em razão de movimento grevista. A sentença de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos e denegou a segurança, autorizando os descontos pelos dias parados em razão da greve.

O TJ-RJ reformou a sentença e reconheceu a ilegalidade no desconto dos vencimentos, já que a paralização ocorreu para o exercício de um direito constitucional – o direito de greve, que também se aplica aos servidores públicos.

Contra essa decisão do TJ-RJ foi interposto o RE 693.456, que ficou sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, e cuja repercussão geral foi reconhecida (Tema 531).

2. A decisão do STF

Levado a julgamento em Plenário, o RE 693.456 foi paradigmático em forma e mérito.

Seu julgamento foi relevante sob o aspecto formal, porque, iniciado o julgamento em 02/09/2015, o Supremo decidiu em questão de ordem que, uma vez reconhecida a repercussão geral do recurso, não cabe pedido de desistência. Importante recordar que nesse momento do julgamento ainda não havia entrado em vigor o novo Código de Processo Civil, que resolveu essa questão em seu art. 998, parágrafo único, ao dispor que “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.

Definida a questão formal, o Min. Luís Roberto Barroso pediu vista.

O julgamento de mérito somente foi retomado e concluído em 27/10/2016.

No mérito, o STF decidiu que o exercício do direito de greve por servidor público corresponde à suspensão do trabalho. Assim, mesmo a greve não sendo abusiva, a regra deve ser o desconto dos dias não trabalhados. O desconto só não pode ser realizado se a greve tiver sido provocada (i) por atraso no pagamento, ou (ii) por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da relação funcional com o Poder Público como, por exemplo, a realização de condutas recrimináveis pela Administração Pública, ou quando houver negociação para a compensação dos dias parados ou parcelamento dos descontos.

O STF fixou então a seguinte tese de: A administração pública deve proceder aos descontos dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público.

A decisão foi tomada por maioria de votos, nos termos do voto do Ministro Relator Dias Toffoli, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

3. O problema da decisão tomada

O raciocínio subjacente ao RE e à decisão do STF é o de que se a greve é paralisação, não há trabalho. Se não há trabalho, não há pagamento devido, salvo se a greve for decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas esse raciocínio se fundamenta em uma contradição que, numa tacada só, reconhece o direito de greve, mas ao mesmo tempo o viola ao permitir o desconto dos vencimentos pelos dias parados.

3.1 A greve como direito fundamental

Mas greve não é qualquer paralisação. É paralisação por demandas trabalhistas, pretensão de defesa de direitos dos trabalhadores, ajuste do contrato de trabalho firmado por interesses contrapostos (prestação de trabalho X remuneração necessária de ajustes). É, pois, uma paralisação qualificada. E tanto é assim que recebe nomenclatura especial e especial local de previsão e proteção: a greve como direito fundamental previsto no art. 9º e art. 37, VII, da Constituição da República.

A greve como direito fundamental tem como suporte fático uma série de medidas. A principal delas é, sem dúvida, a paralisação do trabalho.

O âmbito de proteção do direito fundamental à greve abarca, assim, justamente a possibilidade de se parar o trabalho. E que essa possibilidade de paralisação do trabalho não seja impedida ou afetada por uma intervenção sem amparo na Constituição. Vale dizer, a paralisação só poderia ser mitigada se houvesse fundamentação constitucional para tanto. Mas não há.

Assim, a premissa é a possibilidade de realização da greve (suporte fático composto por um âmbito de proteção que abarca, elementar e principalmente, a paralisação do trabalho), a possibilidade de parar e não ser retaliado por isso (intervenção não fundamentada constitucionalmente). Isso significa poder parar e não ter, a priori, os vencimentos descontados. Salvo se a greve for considerada abusiva, ilegal.

3.2 O erro da decisão do STF

O que o STF fez foi inverter a premissa que fundamenta o exercício do direito fundamental de greve dos servidores públicos: se greve é paralisação, e paralisação é não trabalho, então não se justifica, a priori, o pagamento dos vencimentos.

O problema desse argumento é que ele desloca o fundamento da abusividade e ilicitude da greve como premissa da paralisação. Quer dizer, para o STF, o direito à greve implica obrigatoriamente a suspensão do pagamento dos vencimentos, salvo se decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas nessa compreensão do Supremo, então o que fundamenta o direito de greve não é mais um suporte fático com um amplo âmbito de proteção (que abarcaria a paralisação do trabalho como vimos acima), já que a paralisação deve implicar necessariamente o desconto dos dias parados. Ou seja, parar o trabalho não estaria mais no âmbito de proteção do direito de greve, já que parar o trabalho é ser descontado.

Mais do que isso, ser descontado é uma intervenção contra a qual o direito de greve justamente se contrapõe e que não encontra autorização na Constituição. Só é greve porque é paralisação sem desconto. Ou seja, ao se descontar os vencimentos, não apenas se mitiga o principal suporte fático do direito de greve através da diminuição do seu âmbito de proteção (parar o trabalho), como ainda se permite uma intervenção (desconto dos vencimentos) sem fundamento constitucional que a autorize.

A decisão do STF e a tese fixada pelo Supremo não encontram amparo na Constituição porque fulminam o próprio conteúdo essencial do direto fundamental de greve.

Se o STF exclui do âmbito de proteção do direito fundamental o principal modo de atuação para sua efetivação, ele não está apenas esvaziando esse direito fundamental, ele está violando esse direito pela afronta ao que ele principalmente busca estabelecer: um ato que dá concretude ao direito. E o principal ato que dá concretude à greve é parar o trabalho.

Se se cria uma intervenção que impede o principal ato que é parar de trabalhar, então se está a violar o principal âmbito de proteção do direito fundamental. Há, assim, evidente violação do conteúdo essencial do direito fundamental à greve.

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si.

Esvaziamento seria a exclusão do âmbito de proteção de algum modo de exercício do direito, e com fundamentação na Constituição para isso. Mas não a exclusão do principal modo de exercício do direito, e sem fundamentação na Constituição para tanto.

O desconto dos vencimentos dos servidores públicos em razão do exercício do direito fundamental de greve retira dos trabalhadores públicos seu meio de subsistência, impõe um auto sacrifício para que que a parte mais fraca de uma relação contratual possa se valer do principal meio de visibilidade e oitiva e ainda aniquila o próprio direito fundamental à greve.

4. Conclusão: um STF do século XXI, mas uma decisão do século passado

O STF do século XXI, do Plenário Virtual e dos números fantásticos, fez os trabalhadores públicos voltarem ao século passado, onde qualquer reivindicação trabalhista é tratada a priori como indevida e, assim, passível de punição prévia. Nesse caso, infelizmente o Supremo deixou de guardar a Constituição, de proteger um direito fundamental, se valendo de um argumento que não encontra fundamento nem na Constituição, nem na teoria dos direitos fundamentais e muito menos na dinâmica e prática do Direito do Trabalho dos últimos 100 anos.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-erro-decisao-desconto-obrigatorio-dias-greve-13112020