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Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’

Eu, Tu, Ele: Todas as pessoas têm liberdade de chamar o Sr. Presidente de ‘genocida’

Mas isso não é questão de segurança nacional

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA

 

Recentemente, foi divulgada a notícia de que celebridade do mundo digital teria sido intimado a, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), prestar depoimento na polícia civil carioca. O motivo  seria o fato de haver chamado o Sr. Presidente da República de genocida. Eis aqui uma oportunidade para refletirmos a propósito da liberdade de expressão e suas fronteiras, bem como do alcance da legislação autoritária em nossa vida constitucional.

“Genocida” é termo recente na história da humanidade. Criado por Raphael Lenkin, foi, após anos de lutas, reconhecido na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948). Designa a sucessão de horrores consistentes no extermínio – ou na tentativa – de povos, grupos, etnias, raças e adeptos de religiões. A lógica é a da morte indiscriminada e calculada de pessoas, unicamente devido ao fato de pertencerem a um coletivo que desagrada aos detentores do poder.

São crimes cujo sujeito ativo promove ações agressivas a coletividades, destinadas ao assassinato, danos graves, submissão a condições violentas e indignas, impedimentos à reprodução, deslocamentos forçados, etc. Além da já citada convenção, a triste palavra consta no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1998)e, no Brasil, na Lei 2.889/1956.

Por conseguinte, a designação de “genocida” é algo muito sério. Mas, para além do sentido técnico-jurídico, a palavra pode também representar uma metáfora ou insulto genérico.

O genocida não é apenas quem comete deliberadamente o crime, mas pode ser também, por extensão, um dirigente que adota comportamentos, omissivos ou comissivos, que submetam a vida de uma coletividade a práticas degradantes, de péssima qualidade (com decorrências morais e/ou físicas).

Aquele que ameaça o bem-estar da população e a proteção ativa de sua dignidade, não se importando com as consequências.

O assunto merece debate, portanto, e existe a liberdade para manifestações que o coloquem em foco. Afinal, ao nos aproximarmos da Constituição brasileira, temos um leque de dispositivos que determinam ao Estado – e a seus representantes – o respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinção de qualquer natureza, inclusive por meio de medidas ativas de saúde pública. Está nos arts. 1º, inc. III, c/c 5º, 6º, 23, inc. II, e, sobretudo, no 196, que reza ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. Ao Estado cumpre adotar todas as medidas, necessárias e suficientes, à proteção da saúde dos habitantes do Brasil. Todos, sem discriminação.

Quando o Sr. Presidente, seus ministros e acólitos tergiversam, negam ou fazem troça das boas práticas internacionais no combate à pandemia da COVID-19, estão a violar abertamente a Constituição. Não respeitam a dignidade humana nem protegem a saúde. Mas a indagação é a de se alguém, diante desse oceano de violações à Lei Fundamental, pode qualificar autoridades públicas de “genocidas”. Aqui entra em cena a Lei de Segurança Nacional (LSN).

A LSN faz parte de tradição vinculada à Doutrina de Segurança Nacional, a qual se pauta na concepção de que a proteção da soberania e segurança deve ser feita por meio do combate aos “inimigos”. A atual lei foi publicada durante a ditadura civil-militar, e é sucessora de outras LSNs (a primeira, de 1935). Ela tipifica condutas que “lesam ou expõe a perigo de lesão […] a pessoa dos chefes dos Poderes da União” (art. 1º, inc. III) e trata de crimes como espionagem, invasão de território nacional, comércio de armamento, terrorismo, sabotagem, devastação, saques, etc. Nenhum deles está no caso em análise. Mas o art. 26 pode despertar atenção: “Caluniar ou difamar o Presidente da República (…), imputando-lhe fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Estaríamos diante da possibilidade de aplicação dessa norma?

Ora, a atual LSN data de 1983. Foi positivada à luz da Emenda Constitucional 1/69, bem antes da Constituição de 1988. Quando esta foi promulgada, instalou nova base objetiva para todo o Ordenamento Jurídico, automaticamente revogando as leis incompatíveis ou recepcionando as adequadas. Hoje, estão no Supremo Tribunal Federal (STF) as arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 797 e 799, que questionam a revogação, a recepção e eventual alcance da LSN. Como argumento, suponhamos que a LSN não tenha sido revogada, mas recepcionada.

O fenômeno da recepção não implica apenas o acolhimento formal das leis pretéritas. Na justa medida em que a nova Constituição instala fundamento jurídico diverso para toda a ordem normativa, ela igualmente confere distintos significados à legislação infraconstitucional. O que importa dizer que as leis anteriores, para ser recepcionadas, precisam ser conformes a substância da atual Constituição.

E se existe uma característica que marca a atual Constituição, trata-se do prestígio aos direitos e liberdades humanas. Na Emenda Constitucional 1/69 eles estavam nos fundos (art. 153 e seguintes), mas na atual estão desde o Preâmbulo, irradiando-se em todo o sistema constitucional e infra. Direitos fundamentais que exigem o respeito ativo da dignidade da pessoa pelo Estado e lhe impõe o dever de garantir todas as liberdades, inclusive, e sobremaneira, a de expressão. A liberdade de pensar e de exteriorizar o pensamento, ainda que de modo a ofender terceiros.

A liberdade de expressão é ponto com especial importância em nossa ordem constitucional, que se torna ainda mais central quando se está diante da oposição a autoridades públicas. Agentes políticos – como é o caso do Sr. Presidente – têm o ônus de tolerar críticas à sua atuação, ainda que ofensivos. Isso é o padrão mínimo em uma democracia que se pretenda civilizada. Porém ainda que não tolerem os ataques, isso nada tem a ver com a Segurança Nacional.

O Sr. Presidente não é um primus inter pares, cujas ofensas que porventura receba tenham a ver com interesses nacionais. Assim, se o art. 26 da LSN foi recepcionado pela atual Constituição, o foi na condição de norma do Código Penal: calúnia, injúria ou difamação (CP, arts. 138 a 143). Todas as autoridades públicas merecem ter sua integridade física preservada – inclusive, quanto a ameaças a si e/ou a seus familiares. Todavia, as agressões verbais e/ou escritas ocupam outro espaço normativo, subordinado à máxima eficácia do direito fundamental à liberdade de expressão. 

Em suma, e para além da incompetência da polícia civil para tratar do assunto, adjetivar autoridades públicas de “genocidas” não atrai a incidência da LSN. Trata-se de exercício da liberdade de expressão, gostemos ou não disso.

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/eu-tu-ele-todas-as-pessoas-tem-liberdade-de-chamar-o-sr-presidente-de-genocida-17032021

Entre a vida da mulher e a honra do homem

Entre a vida da mulher e a honra do homem

A limitação da plenitude de defesa nos casos de feminicídio

Por MARINA BONATTO, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLARA MARIA ROMAN

 

Em 26 de fevereiro de 2021, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu parcialmente medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 a fim de firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, pois contrária aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), pretende-se com a ADPF que seja dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, II e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e aos arts. 65 e 483, III, §2º do Código de Processo Penal, para afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos.

Os artigos 23 e 25 do Código Penal dizem respeito a figura da legítima defesa, excludente de ilicitude apta a ensejar a absolvição do acusado da prática de um crime. Se reconhecido que o ato fora praticado por meio da utilização moderada dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (art. 25 CP), o acusado deve ser absolvido (art. 483, §2º, CPP), dada a inexistência de crime (art. 23 CP) e a sentença penal proferida faz coisa julgada no cível (art. 65 CPP).

A tese da legítima defesa da honra, por sua vez, como apontado pelo ministro em sua decisão, “não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico pátrio”.

Trata-se de um recurso retórico utilizado no Tribunal do Júri na tentativa de absolver acusados da prática de feminicídio ou violência contra a mulher. Sustenta-se, nesses casos, o absurdo de que a prática teria sido justa e proporcional para reprimir um adultério sofrido pelo acusado, como se a sociedade tivesse autorizado o cidadão a matar nessa situação.

Um dos países que mais mata mulheres no mundo, o Brasil é marcado por uma cultura de violência contra as mulheres. Vivemos em uma sociedade machista em que o assassinato de mulheres é incentivado, tolerado e justificado, sendo as mulheres negras e pobres as principais vítimas, segundo o 14º Anuário do Fórum de Segurança de Pública.

Quase 15 anos depois da edição da Lei Maria da Penha e 5 anos depois de o feminicídio ter se tornado uma qualificadora do homicídio, os números da violência não param de crescer, tendo, inclusive, acelerado no contexto criado pela pandemia de Covid-19.

Diante desse cenário, uma tese jurídica que culpa a vítima por seu próprio assassinato é, para além de inconstitucional, intolerável também sob o ponto de vista moral.

Apesar de os Códigos Penal e de Processo Penal atuais serem anteriores à Constituição Federal, a instituição do Júri é reconhecida por esta, que assegura, ainda, dentre o rol de direitos e garantias fundamentais, a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos.

A plenitude de defesa, exercida no Tribunal do Júri, permite a utilização de todos os meios de defesa possíveis para o convencimento dos jurados, cabendo argumentos jurídicos e extrajurídicos. No entanto, tal como não o é nenhum direito, essa garantia não é absoluta e deve ser interpretada em conjunto com os demais preceitos constitucionais.

O plenário do júri não é um ringue de vale tudo, embora alguns se comportem como se fosse, não estão autorizados atos de racismo ou de desqualificação de minorias vulneráveis, afinal o Código de Ética e Disciplina da OAB, estabelece no seu art. 2º, V, que é dever do advogado “contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e da lei”.

A utilização e aceitação da tese da legítima defesa da honra nos casos em que o marido ou companheiro mata a mulher que decidiu se relacionar com outro homem é resultado de uma estrutura social discriminatória que subjuga e desvalora as mulheres.

É uma representação retrógrada de uma sociedade em que a honra do homem é mais digna de defesa do que a própria vida da mulher. O argumento de salvaguarda da honra como justificativa da conduta de um homem que mata uma mulher por ser mulher, desqualifica e discrimina todas as mulheres que ousam transgredir o papel da esposa ou da companheira submissa, o que viola preceitos constitucionais e contribui para a naturalização e perpetuação do feminicídio e da violência contra a mulher.

Ademais, são casos como esses que fazem regredir anos de lutas das mulheres por seus direitos, pela igualdade e por suas próprias vidas. Nesse sentido, é inadmissível e incoerente que, após a edição da lei que tornou o feminicídio um crime hediondo, seja afastada a ilicitude da conduta do homem que tirou a vida de uma mulher por ciúme ou vergonha de ter sido substituído.

É papel das e dos advogados e juristas zelar pela Constituição e pelos direitos humanos. O fato de a defesa no Tribunal do Júri ser realizada por um advogado ou defensor público com formação jurídica e conhecimento técnico já demonstra a preocupação de garantir ao acusado e a vítima um julgamento que não seja pautado única e exclusivamente em preconceitos e estereótipos discriminatórios.

O fato de ter o STF decidido em sede de liminar que a tese da legítima defesa da honra é uma ofensa à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação, ao direito à vida e à igualdade não cria um precedente acerca da limitação da plenitude de defesa, mas acerca da inconstitucionalidade da discriminação, do feminicídio e da violência contra a mulher, porque essa é a verdadeira razão de ser da decisão.

O Compromisso do Estado brasileiro assumido quando da ratificação da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, implica em adotar políticas públicas efetivas por todos os órgãos do Estado, incluindo  aí o Poder Judiciário, que deve promover também a Convenção e os artigos da Constituição que colocam como obrigação do Estado a promoção da igualdade de gênero, bem como a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

A decisão cautelar na ADPF 779 representa um constitucionalismo que caminha pari passu à democracia e aos direitos humanos e a um julgamento com perspectiva de gênero e que, ao contrário do que alguns argumentam, não limitou o exercício da advocacia no Tribunal do Júri e nem cerceou a plenitude de defesa, apenas lembrou que a atuação do defensor perante os jurados deve ser ética e priorizar a vida, compromissada com os demais direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

Ainda, é preciso ter clareza que a imposição dessa restrição poderá gerar uma reação dos que atuam no plenário e a adoção de outro argumento para justificar a conduta do homem que mata a mulher “em nome de sua honra”, tal como a inexigibilidade de conduta diversa, ainda pouco explorado nos casos de feminicídio.

Essa tese configura uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade e pode ser alegada quando diante de uma situação fática não seria possível exigir do sujeito a realização de outra conduta, senão aquela descrita no tipo penal e não autorizada pela legislação.

Assim, o advogado poderia arguir que seu cliente abalado pelo ciúme e pelo sentimento de traição matou sua esposa ou companheira, como qualquer homem faria em seu lugar.

Entretanto, não se pode esquecer que esse argumento foi usado pelos criminosos de guerra alemães para eximir-se das atrocidades do holocausto, o que por si só diz muito sobre aqueles que decidirem utilizá-lo desmedidamente para exculpar feminicídios.

Portanto, não é demais repetir que o Supremo Tribunal Federal tem papel contramajoritário e deve ser, sim, ativista para proteção de direitos das mulheres. Não se trata de tema meramente político ao qual caiba ao STF ser deferente às esferas políticas, ao contrário, num país com altos índices de violência contra a mulher por seus próprios companheiros, aceitar a legítima defesa da honra como possível argumento de defesa seria atuar justamente de modo contrário à Constituição e aos Tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Como foi dito, nenhuma garantia ou direito fundamental é absoluta e que não há que se pensar em teorias da pena ou do delito que não sejam compatíveis com a moralidade política alicerçada na Constituição de 1988.

Pensar que o direito penal ou processual penal pode ter uma realidade paralela só utilizando a Constituição para as normas que trazem garantias penais é uma visão que ainda não compreendeu princípios básicos de interpretação constitucional, como da supremacia e da unidade da Constituição.

Não podemos admitir que o conteúdo dos significados da Constituição seja construído a partir de teorias concebidas ainda sob a égide de um sistema machista e patriarcal. A Constituição exige um compromisso com a dignidade da pessoa humana, da não discriminação, da prevalência dos direitos humanos e com os direitos humanos das mulheres de ter liberdade e igualdade nas suas escolhas e proteção contra toda e qualquer forma de violência.

Não basta que o STF não reproduza o machismo é preciso também ser antimachista, é preciso que o compromisso do STF com a promoção da igualdade de gênero tenha de fato reflexo também no sistema penal, onde a violência contra a mulher é mais explícita.

Esperamos que a cautelar do ministro Toffoli seja ratificada pelos demais ministros e promova de fato mudanças nos estereótipos, comportamentos e, principalmente, na atuação do sistema de justiça criminal.

MARINA BONATTO – Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição da UFPR. Advogada.
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-vida-da-mulher-e-a-honra-do-homem-09032021

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