Entre a vida da mulher e a honra do homem

A limitação da plenitude de defesa nos casos de feminicídio

Por MARINA BONATTO, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLARA MARIA ROMAN

 

Em 26 de fevereiro de 2021, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu parcialmente medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 a fim de firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, pois contrária aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), pretende-se com a ADPF que seja dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, II e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e aos arts. 65 e 483, III, §2º do Código de Processo Penal, para afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos.

Os artigos 23 e 25 do Código Penal dizem respeito a figura da legítima defesa, excludente de ilicitude apta a ensejar a absolvição do acusado da prática de um crime. Se reconhecido que o ato fora praticado por meio da utilização moderada dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (art. 25 CP), o acusado deve ser absolvido (art. 483, §2º, CPP), dada a inexistência de crime (art. 23 CP) e a sentença penal proferida faz coisa julgada no cível (art. 65 CPP).

A tese da legítima defesa da honra, por sua vez, como apontado pelo ministro em sua decisão, “não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico pátrio”.

Trata-se de um recurso retórico utilizado no Tribunal do Júri na tentativa de absolver acusados da prática de feminicídio ou violência contra a mulher. Sustenta-se, nesses casos, o absurdo de que a prática teria sido justa e proporcional para reprimir um adultério sofrido pelo acusado, como se a sociedade tivesse autorizado o cidadão a matar nessa situação.

Um dos países que mais mata mulheres no mundo, o Brasil é marcado por uma cultura de violência contra as mulheres. Vivemos em uma sociedade machista em que o assassinato de mulheres é incentivado, tolerado e justificado, sendo as mulheres negras e pobres as principais vítimas, segundo o 14º Anuário do Fórum de Segurança de Pública.

Quase 15 anos depois da edição da Lei Maria da Penha e 5 anos depois de o feminicídio ter se tornado uma qualificadora do homicídio, os números da violência não param de crescer, tendo, inclusive, acelerado no contexto criado pela pandemia de Covid-19.

Diante desse cenário, uma tese jurídica que culpa a vítima por seu próprio assassinato é, para além de inconstitucional, intolerável também sob o ponto de vista moral.

Apesar de os Códigos Penal e de Processo Penal atuais serem anteriores à Constituição Federal, a instituição do Júri é reconhecida por esta, que assegura, ainda, dentre o rol de direitos e garantias fundamentais, a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos.

A plenitude de defesa, exercida no Tribunal do Júri, permite a utilização de todos os meios de defesa possíveis para o convencimento dos jurados, cabendo argumentos jurídicos e extrajurídicos. No entanto, tal como não o é nenhum direito, essa garantia não é absoluta e deve ser interpretada em conjunto com os demais preceitos constitucionais.

O plenário do júri não é um ringue de vale tudo, embora alguns se comportem como se fosse, não estão autorizados atos de racismo ou de desqualificação de minorias vulneráveis, afinal o Código de Ética e Disciplina da OAB, estabelece no seu art. 2º, V, que é dever do advogado “contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e da lei”.

A utilização e aceitação da tese da legítima defesa da honra nos casos em que o marido ou companheiro mata a mulher que decidiu se relacionar com outro homem é resultado de uma estrutura social discriminatória que subjuga e desvalora as mulheres.

É uma representação retrógrada de uma sociedade em que a honra do homem é mais digna de defesa do que a própria vida da mulher. O argumento de salvaguarda da honra como justificativa da conduta de um homem que mata uma mulher por ser mulher, desqualifica e discrimina todas as mulheres que ousam transgredir o papel da esposa ou da companheira submissa, o que viola preceitos constitucionais e contribui para a naturalização e perpetuação do feminicídio e da violência contra a mulher.

Ademais, são casos como esses que fazem regredir anos de lutas das mulheres por seus direitos, pela igualdade e por suas próprias vidas. Nesse sentido, é inadmissível e incoerente que, após a edição da lei que tornou o feminicídio um crime hediondo, seja afastada a ilicitude da conduta do homem que tirou a vida de uma mulher por ciúme ou vergonha de ter sido substituído.

É papel das e dos advogados e juristas zelar pela Constituição e pelos direitos humanos. O fato de a defesa no Tribunal do Júri ser realizada por um advogado ou defensor público com formação jurídica e conhecimento técnico já demonstra a preocupação de garantir ao acusado e a vítima um julgamento que não seja pautado única e exclusivamente em preconceitos e estereótipos discriminatórios.

O fato de ter o STF decidido em sede de liminar que a tese da legítima defesa da honra é uma ofensa à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação, ao direito à vida e à igualdade não cria um precedente acerca da limitação da plenitude de defesa, mas acerca da inconstitucionalidade da discriminação, do feminicídio e da violência contra a mulher, porque essa é a verdadeira razão de ser da decisão.

O Compromisso do Estado brasileiro assumido quando da ratificação da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, implica em adotar políticas públicas efetivas por todos os órgãos do Estado, incluindo  aí o Poder Judiciário, que deve promover também a Convenção e os artigos da Constituição que colocam como obrigação do Estado a promoção da igualdade de gênero, bem como a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

A decisão cautelar na ADPF 779 representa um constitucionalismo que caminha pari passu à democracia e aos direitos humanos e a um julgamento com perspectiva de gênero e que, ao contrário do que alguns argumentam, não limitou o exercício da advocacia no Tribunal do Júri e nem cerceou a plenitude de defesa, apenas lembrou que a atuação do defensor perante os jurados deve ser ética e priorizar a vida, compromissada com os demais direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

Ainda, é preciso ter clareza que a imposição dessa restrição poderá gerar uma reação dos que atuam no plenário e a adoção de outro argumento para justificar a conduta do homem que mata a mulher “em nome de sua honra”, tal como a inexigibilidade de conduta diversa, ainda pouco explorado nos casos de feminicídio.

Essa tese configura uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade e pode ser alegada quando diante de uma situação fática não seria possível exigir do sujeito a realização de outra conduta, senão aquela descrita no tipo penal e não autorizada pela legislação.

Assim, o advogado poderia arguir que seu cliente abalado pelo ciúme e pelo sentimento de traição matou sua esposa ou companheira, como qualquer homem faria em seu lugar.

Entretanto, não se pode esquecer que esse argumento foi usado pelos criminosos de guerra alemães para eximir-se das atrocidades do holocausto, o que por si só diz muito sobre aqueles que decidirem utilizá-lo desmedidamente para exculpar feminicídios.

Portanto, não é demais repetir que o Supremo Tribunal Federal tem papel contramajoritário e deve ser, sim, ativista para proteção de direitos das mulheres. Não se trata de tema meramente político ao qual caiba ao STF ser deferente às esferas políticas, ao contrário, num país com altos índices de violência contra a mulher por seus próprios companheiros, aceitar a legítima defesa da honra como possível argumento de defesa seria atuar justamente de modo contrário à Constituição e aos Tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Como foi dito, nenhuma garantia ou direito fundamental é absoluta e que não há que se pensar em teorias da pena ou do delito que não sejam compatíveis com a moralidade política alicerçada na Constituição de 1988.

Pensar que o direito penal ou processual penal pode ter uma realidade paralela só utilizando a Constituição para as normas que trazem garantias penais é uma visão que ainda não compreendeu princípios básicos de interpretação constitucional, como da supremacia e da unidade da Constituição.

Não podemos admitir que o conteúdo dos significados da Constituição seja construído a partir de teorias concebidas ainda sob a égide de um sistema machista e patriarcal. A Constituição exige um compromisso com a dignidade da pessoa humana, da não discriminação, da prevalência dos direitos humanos e com os direitos humanos das mulheres de ter liberdade e igualdade nas suas escolhas e proteção contra toda e qualquer forma de violência.

Não basta que o STF não reproduza o machismo é preciso também ser antimachista, é preciso que o compromisso do STF com a promoção da igualdade de gênero tenha de fato reflexo também no sistema penal, onde a violência contra a mulher é mais explícita.

Esperamos que a cautelar do ministro Toffoli seja ratificada pelos demais ministros e promova de fato mudanças nos estereótipos, comportamentos e, principalmente, na atuação do sistema de justiça criminal.

MARINA BONATTO – Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição da UFPR. Advogada.
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-vida-da-mulher-e-a-honra-do-homem-09032021