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Rodrigo Kanayama concede entrevista à Band Jornalismo: “Dinheiro público para shows: tem algo de errado?”

Rodrigo Kanayama concede entrevista à Band Jornalismo: “Dinheiro público para shows: tem algo de errado?

Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida em 31/05/2022 pelo Professor Rodrigo Kanayama (DIRPOL / CCONS) à jornalista Joana Treptow, da Band Jornalismo, a respeito das recentes polêmicas envolvendo uso de dinheiro público para pagamento de cachês de artistas para a realização de shows:

Créditos: Band News / Band Jornalismo. Produção: Emanuele Braga. Edição: Larissa Zapata.

Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Por Rodrigo Luís Kanayama e Ilton Norberto Robl Filho

Introdução
Ninguém pode duvidar da relevância da internet para a construção de uma sociedade melhor. De outro lado, surgem relevantes preocupações com a privacidade [1] e com o impacto sobre as preferências das pessoas.

Além disso, as redes sociais atualmente são acusadas de manipulação de eleições, violência contra os jovens (cyberbullying), vazamento de informações privadas, entre outras denúncias. Notícias falsas correm por computadores e smartphones na velocidade de um pressionar de um botão, às vezes propositalmente, às vezes ingenuamente, corroendo a democracia constitucional.

As notícias falsas deterioram a qualidade da democracia, porque produzem um cenário falso que interfere ilegitimamente no processo de escolha dos eleitores. Dessa forma, este texto analisa o tema e apresenta sugestões simples baseadas em análises comportamentais para coibir o compartilhamento de notícias falsas.

Eleições e Redes Sociais no Brasil
Nas eleições brasileiras de 2018 e de 2020, o fenômeno das notícias falsas, apesar de combatida por relevantes campanhas da Justiça Eleitoral, de mecanismos de comunicação social e de entidades da sociedade civil, encontrou-se presente. Duas características se destacaram: primeiro, o uso massivo da Internet e das redes sociais para substituir as formas tradicionais de propaganda eleitoral; segundo, os polos extremos que se formaram, tornando-se os grupos em entidades absolutamente fechadas.

Nos últimos anos, as posições políticas extremas tornaram-se mais radicais, a ponto de não haver pontos de contato entre os polos. Há dificuldade de comunicação e consenso, pois se tornam grupos que não discordam entre si, já que não há possibilidade de diálogo.[2]

Podemos observar, embora existissem preferências diferentes, que havia coesão social, com vários pontos de contato, em 2013[3]. Quando, antes da Copa de 2014, eclodiram os protestos contra o governo, a configuração mudou e os grupos ficaram mais distantes entre si. O tema da corrupção sistêmica trouxe ainda mais insatisfação e mais polarização. Basicamente, formaram-se dois polos definidos: os que se declararam contra o partido político que se encontrava na Presidência da República à época e os pró-governo (mais à esquerda no espectro ideológico).

Em 2016, segundo os mesmos autores, o cenário ficou ainda pior, uma sociedade mais dividida. De um lado, aqueles que protestaram contra a corrupção, junto com alguns liberais, conservadores, partidos de direita, proponentes do regime ditatorial e, do outro lado, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, políticos de esquerda. Depois, ocorreu o impeachment da Presidenta da República e a eleição extremamente polarizada, eventos que ajudaram a distanciar os lados.

O primeiro efeito óbvio foi o fim dos consensos (e consensos são fundamentais na política). Outro efeito foi o dano à liberdade de expressão. O excesso de notícias falsas, somado às opiniões extremas, desestimulou a manifestação dos moderados. Hoje, não é aceitável criticar um extremo, porque a crítica o fará pertencer ao outro extremo. Essa situação tem trazido desencanto a muitos usuários das redes sociais, pois fica difícil (quase impossível) estabelecer um diálogo saudável (com argumentos).

O que queremos dizer ao falar de liberdade?
liberdade de expressão trata-se de direito fundamental constitucionalmente previsto e de elemento central para a existência da democracia. As redes sociais são por excelência espaços virtuais de comunicação com pouca limitação aos usuários e, com um único clique, milhares de pessoas são alcançadas.

John Stuart Mill afirma enfaticamente que “[a] única liberdade que merece o nome é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar”[4]. As pessoas devem ser livres para atingir seus objetivos. No entanto, a liberdade de expressão enfrenta um limite importante: a liberdade de expressão de outra pessoa. Portanto, manifestações extremas que limitam e impedem a liberdade de expressão de terceiros não podem ser toleradas.

Notícias falsas causam danos à liberdade de expressão, pois resultam em posições extremas e desinformadas do interlocutor, distorcendo sua manifestação. Nesse sentido, a notícia falsa é muito prejudicial à democracia, pois promove mal-entendidos e falsos fundamentos e fatos que levam a mais falsas manifestações. Poucos buscam dados que contestem as notícias falsas e as câmaras de ressonância digital agravam ainda mais a disseminação de falsidades[5].

A questão é que criação de uma regra de proibição de notícias falsas não resolverá todos os problemas. Além disso, proibir sem cautela o que se entende por notícia falsa poderia arriscar, novamente, à própria liberdade de expressão, porque deixaríamos para o Poder Judiciário, moderadores e administradores de redes sociais o que se entende por notícia falsa. Não devemos tirar do controle dos próprios usuários a faculdade de dizer o que é falso e o que não é. Afinal, se os usuários cometem erros, o que impede o governo ou as empresas de cometê-los? Portanto, outras ferramentas contra notícias falsas devem ser consideradas (sem ignorar, obviamente, eventual regulação).

A internet, notícias falsas (fake news), algoritmos
Na edição de 13 de agosto de 2012, a revista The New Yorker publicou um artigo do escritor James Surowieck, intitulado “Downsizing supersize”[6], apresentando que o prefeito de Nova York, com vistas ao combate à obesidade, proibiu em 2012 os refrigerantes de grande porte do cardápio de restaurantes, estádios, cinemas e outros locais de entretenimento. As pessoas tomam decisões todos os dias, porém podem ser empurradas por outros indivíduos e cidadãos, por empresas e pelo governo com mais ou menos força. Embora se possa dizer que o governo tem tentado interferir nas escolhas de quem consome bebidas doces, também é verdade que as empresas interferem nas escolhas de compra das pessoas ao oferecer copos grandes.

É a arquitetura de escolha, sendo o termo adotado por Richard Thaler e Cass Sunstein[7] e criando um cenário que fornece o empurrão (nudge) para a melhor escolha. É difícil aceitar a realidade: todos somos, a todo o momento, influenciados, pressionados, bloqueados nas nossas escolhas quotidianas por agentes externos, como as empresas, governo, um amigo, a internet, opiniões e avaliações de terceiros, algoritmos.

Sem correr o risco de infringir a liberdade de expressão — por meio de proibições ou sanções contra os usuários — é possível criar um quadro para as pessoas refletirem ao se manifestarem nas redes sociais. A intenção será a redução de discursos radicais na internet e a divulgação de notícias falsas.

A programação do que se vê na internet depende do algoritmo e, consequentemente, do comportamento de cada usuário. Claro, o algoritmo interfere no comportamento do usuário. Em 2014, a revista Wired fez um experimento no Facebook. Mat Honan, redator sênior da Wired, “curtiu” de todas as postagens em sua linha do tempo por 48 horas, postagens boas ou ruins. Como resultado, em primeiro lugar, seus amigos foram embora da linha do tempo dele. Os anúncios permaneceram. Em seguida, os posts caminharam, no espectro político-ideológico, para a direita, uma extrema direita. Sua linha do tempo enviesada (biased).[8] Os algoritmos são escritos para parecer que o usuário está controlando o conteúdo, mas na verdade o controle está nas mãos de quem escreve o algoritmo[9].

O Facebook promoveu mudanças em seu algoritmo, tentando reduzir notícias falsas. No entanto, não parece ter sido bem-sucedido. No Brasil, durante as eleições de 2018 e de 2020, notícias falsas foram espalhadas com intensidade e compartilhadas por pessoas comuns, além de robôs, deliberadamente ou não.[10]

1. Nathan Mathias da Cornell University é autor do site CivilServant[11], encorajando comportamentos responsáveisna redeReddit, usando o que chamou de AI-Nudge, baseado no trabalho de Richard Thaler e Cass Sunstein[12]. A ideia era encorajar as pessoas a fazer o check-in antes de postar qualquer comentário e a verificação de fatos aprimora o algoritmo em si. Segundo sua pesquisa, houve aprimoramento das publicações compartilhadas, mantendo a liberdade do usuário, mas reduzindo as notícias falsas.

A adoção de cutucadas deve seguir algumas regras básicas, como afirmou Richard Thaler: “Três princípios devem orientar o uso de nudges: Todas os nudges devem ser transparentes e nunca enganosos. Deve ser o mais fácil possível desativar o nudge, de preferência com um pequeno clique do mouse. Deve haver uma boa razão para acreditar que o comportamento que está sendo encorajado melhorará o bem-estar daqueles que estão sofrendo nudge”.[13]

Da mesma forma, há nudges malignos nas redes sociais. Um bom exemplo é o WhatsApp, que pertence ao Facebook. Observe os botões para compartilhar notícias e fotos. Eles são facilmente acessíveis, são visíveis e não há nenhum outro recurso destacado. Apenas compartilhando. Nesse caso, a vida das pessoas não melhora com o compartilhamento de informações sem a necessária reflexão e análise crítica de seu conteúdo.

Dito isso, uma pesquisa apresentou uma possível solução[14]. Em 2012, muito antes da escalada da polarização política, eles propuseram mudanças no funcionamento do Facebook, usando plug-ins no navegador de internet Chrome e fizeram experiências com alguns voluntários. Três foram as sugestões, todas baseadas no conceito de nudge. A primeira, denominada picture nudge, consistia em mostrar cinco fotos de perfis de amigos ou não que potencialmente leriam a publicação, porque “uma pesquisa anterior descobriu que os usuários do Facebook muitas vezes não pensam em quem está em seu público e não têm uma ideia clara de quem pode ver suas postagens”. A segunda, temporizador, serve “para encorajar os usuários a refletirem sobre suas postagens, nós projetamos um temporizador que insere um pequeno atraso antes que um post seja realmente postado”. A terceira, cutucada sentimental, fornecendo “aos usuários feedback imediato sobre o conteúdo de suas postagens”.[15]

De fato, aconteceram melhorias quando os usuários compartilharam suas postagens, porque muitos refletiram antes de publicar, especialmente no que diz respeito à privacidade. Embora a pesquisa não tenha sido realizada com um grande grupo — e houve problemas técnicos — foi demonstrado inicialmente que é possível melhorar as redes sociais.

Considerações finais
É possível, sem desfigurar a liberdade de expressão dos usuários, aprimorar a internet e as redes sociais com a adoção de ferramentas simples, mas que promovem resultados sociais benéficos.

Não descartamos a relevante regulamentação estatal, embora reconheçamos a difícil tarefa de regulamentar a conduta do usuário, limitando sua liberdade de expressão. Por outro lado, os nudges mantêm a liberdade dos usuários, mas promovem algum grau adicional de reflexão sobre o conteúdo publicado. As redes sociais devem criar ferramentas que evitem o compartilhamento quase automático, simples e desimpedido. Impõe-se principalmente a promoção de um ambiente saudável para o usuário possua tempo e condições de decidir por si mesmo se a notícia (o link da internet) é uma fonte segura, verdadeira e responsável. A democracia do futuro depende de informações compartilhadas com extrema velocidade, mas também depende do grau de maturidade de seus usuários.

*O texto é resultado de pesquisa e debates no âmbito do Núcleo de Direito e Política (Dirpol) do PPGD/UFPR e foi apresentado em março de 2019 no Wasserstein Hall, Harvard Law School, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos, por convite da Associação Brasileira de Estudos Jurídicos de Harvard.

[1] Cf. PASQUALE, Frank. The Black Box Society. Cambridge: Harvard University Press. 2015.

[2] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[3] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[4] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 28.

[5] Cf. BENKLER, Yochai; FARIS, Robert; ROBERTS, Hal. Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 4

[6] SUROWIECK, James. Downsizing supersize.  The New Yorker.  Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2012/08/13/downsizing-supersize. Acesso em: 30.5.2021.

[7] A construção do argumento está em: THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009, p. 83 e seguintes.

[8] HONAN, Mat. I Liked Everything I Saw on Facebook for Two Days. Here’s What It Did to Me. Wired Magazine, 2014. Disponível em https://www.wired.com/2014/08/i-liked-everything-i-saw-on-facebook-for-two-days-heres-what-it-did-to-me/, acesso em maio de 2021.

[9] Sobre essas questões, cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford University Press, 2018.

[10] MELLO, Patricia Campos. WhatsApp admite envio maciço ilegal de mensagens nas eleições de 2018. In.: Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/whatsapp-admite-envio-massivo-ilegal-de-mensagens-nas-eleicoes-de-2018.shtml. Acesso em maio de 2021.

[11] Persuading Algorithms With an AI Nudge Disponível em: https://civilservant.io/persuading_ais_preserving_liberties_r_worldnews.html, acesso em maio de 2021.

[12] THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009.

[13] THALER, Richard H. The Power of Nudges, for Good and Bad. In.: New York Times. Disponível em https://www.nytimes.com/2015/11/01/upshot/the-power-of-nudges-for-good-and-bad.html, acesso em maio de 2021, tradução livre.  

[14] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038 .

[15] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038, p. 765 (tradução livre).

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-10/observatorio-constitucional-liberdade-expressao-redes-sociais-democracia

‘Teje preso’ e a convocação de testemunha pela CPI

‘Teje preso’ e a convocação de testemunha pela CPI

Julgamento no STF envolve manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito

Por RODRIGO LUÍS KANAYAMA e RODRIGO SÁNCHEZ RIOS


Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sempre causa algum furor. O folclore político brasileiro é permeado por histórias interessantes – por vezes, engraçadas – de CPIs que “terminaram em pizza” (tradução: não trouxe resultados relevantes), convocadas para investigar “anões do orçamento” (tradução: investigados eram parlamentares do “baixo clero”), interessadas em apurar os detalhes do contrato entre Nike e CBF e da participação do jogador Ronaldo na final da Copa de 1998, ou que contaram com o famoso “
teje preso” (declarado pela então senadora Heloísa Helena na CPI dos Bancos).

Por onde passa, uma CPI faz história, deixa feridas expostas, e causa dor de cabeça aos governos. Inquestionável é a sua importância no sentido de apurar responsabilidades – comissivas e omissivas – de agentes políticos, sobretudo quando atuam com aparente desídia e minimizam o trágico número de vidas perdidas.

Comum a todas elas é a origem: o art. 58, §3º da Constituição. Deste dispositivo podemos retirar que as CPIs: (a) têm poderes de autoridades judiciais (e outros previstos nos Regimentos); (b) podem ser criadas por uma das Casas ou em conjunto (Senado e Câmara), pelo requerimento de um terço de seus membros; (c) servem à apuração de fato determinado; (d) têm prazo certo de duração; (e) suas conclusões podem ser enviadas ao Ministério Público para responsabilização.

A CPI, portanto, é inerente ao Poder Legislativo, ou seja, o poder investigativo é ínsito ao parlamento[1]. Na teoria jurídica, uma CPI serve como instrumento para fornecer ao Legislativo informações para seu melhor funcionamento, para controlar o governo (na perspectiva do sistema de pesos e contrapesos, evocado sobretudo no art. 2º da Constituição Federal) e para influenciar a opinião pública[2]. Na prática, contudo, a CPI acaba servindo como ferramenta congressual da oposição para incentivar/coibir alguma conduta dos demais atores políticos e também tem objetivo eleitoral, na medida em que expõe à opinião pública as entranhas do governo – sem dar-lhe a mesma voz.

Não entraremos na discussão sobre a criação da CPI pela minoria[3]. Consideremos que, se um terço dos membros da Casa requerer a criação, será criada a CPI. Instituída a CPI e constituída nos termos do Regimento Interno, passa a convocar pessoas, requisitar documentos e informações – em resumo, pode produzir provas como “autoridades judiciais”. Conforme a Lei 1.579/1952 (alterada em 2016), as CPIs poderão “determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença” (art. 2º). As intimações seguirão os ditames e formalidades da legislação penal (art. 3º).

Seus poderes são amplos. Dentre tantos, analisemos o assunto em maior evidência, impulsionado pela atual CPI em curso: o dever de comparecimento (de testemunhas e investigados). Uma das principais discussões dos últimos dias – mormente em razão do depoimento, na qualidade de testemunha, do ex-ministro Eduardo Pazuello – é a compulsoriedade do comparecimento à comissão. Em 2019, no contexto da CPI de Brumadinho, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, no HC 171.438-DF, convolou a obrigação de comparecer em faculdade, tratando-se de investigado. Afirmou que o indivíduo, na qualidade de investigado, não poderia ser instado a falar e, nessa linha, seu comparecimento não seria compulsório (sendo ilegal condução coercitiva).[4] Como fundamento da decisão, adotou o precedente das ADPFs 395 e 444 (as quais versaram sobre proibição de conduções coercitivas de investigados no âmbito do Processo Penal).

Conquanto o julgamento do HC 171.438 tenha como fato o pedido de um investigado, o julgado deixa em aberto algumas questões. O relator, ministro Gilmar Mendes, no início do seu voto, cita o HC 79.812 (ministro-relator Celso de Mello, J. 16/02/2001), que garantiu direito ao silêncio a investigados e testemunhas em observância ao direito constitucional de não auto-incriminação (sendo toda a argumentação construída sobre esse pilar). No decorrer do voto, o ministro-relator menciona excerto de seu próprio voto na ADPF 395 para justificar o dever ao comparecimento de testemunha[5].

Tal entendimento foi repetido em diversos outros habeas corpus concedidos para investigados ou testemunhas (o ministro Celso de Mello concedeu habeas corpus em favor de pessoas convocadas na qualidade de testemunhas).[6] O argumento central advindo do HC 171.438 (ministro-relator Gilmar Mendes) é: “se o investigado não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação“.

No caso do ex-ministro Eduardo Pazuello, a ordem de habeas corpus (HC 201.912 MC–DF – decisão de 14/05/2021)[7] foi concedida parcialmente, mantendo-se na linha dos procedentes já citados e outros prolatadas pela Corte Constitucional.

Primeiro, o relator, ministro Ricardo Lewandowski, entendeu que o atendimento à convocação na qualidade de testemunha constitui um dever. Segundo, afastou como precedente as ADPFs 395 e 444 pois, segundo sua decisão, a questão em tela não envolve “convocações coercitivas impostas de forma arbitrária aos investigados“. Terceiro, manteve a linha do precedente e concedeu a ordem para garantir o direito ao silêncio (com a finalidade de afastar a auto-incriminação – não podendo faltar com a verdade naquilo que não o envolvesse diretamente como investigado em procedimentos outros já instaurados nas searas competentes), o direito de ser assistido por advogado, o direito a ser tratado com urbanidade e de não sofrer constrangimento físico ou moral (especialmente ameaça de prisão).

distinguishing da ordem concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski é coerente. Separou as convocações na qualidade de testemunhas das realizadas na qualidade de investigados. Não obstante o necessário respeito aos direitos de testemunhas (e investigados), limitando-se o famoso “teje preso”, o STF tende à compreensão no sentido do dever do comparecimento de testemunhas. O que jamais poderá se olvidar, contudo, é a prevalência do nemo tenetur se detegere em qualquer circunstância na qual o inquirido – seja na qualidade de testemunha ou investigado – possa vir a ser compelido a confessar a realização de um delito ou participação neste – linha essa a qual parece ter sido edificada na decisão monocrática de lavra do ministro Ricardo Lewandowski em favor do ex-ministro da Saúde.

[1]  No Direito norte-americano, conferir McGrain v. Daugherty, 273 U.S. 135 (1927).

[2]  SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 99-103.

[3]  Esse assunto foi bem debatido no artigo da Roberta Simões Nascimento – Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pode-o-stf-determinar-a-criacao-da-cpi-da-pandemia-31032021 – e na decisão do STF no MS 37.760 (Rel. Min. Roberto Barroso).

[4]  Conforme o voto do Min. Gilmar Mendes, “por sua qualidade de investigado, não pode o paciente ser convocado a comparecimento compulsório, menos ainda sob ameaça de responsabilização penal.

Ora, se o paciente não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação, como sói ocorrer nos interrogatórios havidos pelo País.

É autêntica lawfare da acusação: registram-se as perguntas apenas tentar provocar prejuízo ao interrogado, por exercer seu direito ao silêncio.” (STF – HC 171.438 DF, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 28/05/2019).

Nesse julgamento votou com o Min. Relator o Min. Celso de Mello. E concedendo a ordem em menor extensão (não convolando a compulsoriedade em facultatividade) os Ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia.

[5]  “Para que a condução coercitiva fosse legítima, ela deveria destinar-se à prática de um ato ao qual a pessoa tem o dever de comparecer, ou ao menos que possa ser legitimamente obrigada a comparecer.

Veja-se a condução da testemunha, por exemplo. Existe o dever de depor como testemunha – art. 202 do CPP. O testigo deve fazer-se presente na hora e no local assinalados na intimação. Inexiste a prerrogativa de fazer-se ausente.

A condução coercitiva da testemunha faltante é simples meio de exigir o cumprimento do dever de apresentar-se para depor – art. 218 do CPP.

Nesse caso, há uma finalidade claramente estabelecida, a ser afirmada por medidas proporcionais, conferidas pelo legislador.” (STF – ADPF 395 – excerto do voto do Min. Gilmar Mendes – proferido em 07/06/2018).

[6]  Conferir: HC 174.853, HC 172.199, HC 175.087, HC 175.555, HC 175.657 e outros, todos da Relatoria do Min. Celso de Mello. E RCl 39.449, da Relatoria do Min. Gilmar Mendes.

[7]  Conforme decisão do Min. Relator: “No que diz respeito à situação concreta do paciente, que ocupou o cargo de Ministro de Estado da Saúde por aproximadamente 10 meses, não vejo como dispensá-lo da convocação feita pelo Senado Federal para depor perante a CPI, tendo em conta a importante contribuição que poderá prestar para a elucidação dos fatos investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Pandemia da Covid-19.

Salta à vista, porém, que a sua presença na indigitada CPI, ainda que na qualidade de testemunha, tem o potencial de repercutir em sua esfera jurídica, ensejando-lhe possível dano. Por isso, muito embora o paciente tenha o dever de pronunciar-se sobre os fatos e acontecimentos relativos à sua gestão, enquanto Ministro da Saúde, poderá valer-se do legítimo exercício do direito de manter-se silente, porquanto já responde a uma investigação, no âmbito criminal, quanto aos fatos que, agora, também integram o objeto da CPI.

(…)

Aqui, convém esclarecer que a obrigação de comparecimento do paciente para depor não pode ser afastada, pois, ao menos em um juízo de cognição sumária, o direito ao silêncio e o dever de atender à convocação da CPI, são institutos de conteúdo normativo distintos, em que pese haver uma tênue linha de separação entre eles, não se tratando, a meu ver, da mesma situação delimitada nos precedentes firmados nas ADPFs 395 e 444, ambas de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que o Plenário desta Suprema Corte proibiu as conduções coercitivas impostas de forma arbitrária aos investigados.

Tenho que o atendimento à convocação expedida pela Comissão Parlamentar de Inquérito, segundo os termos constitucionalmente estabelecidos, consubstancia um dever do paciente, especialmente porque comparecerá na condição de testemunha. O atendimento à convocação, em verdade, configura uma obrigação imposta a todo cidadão, e não uma mera faculdade jurídica.” (STF – HC 201.912 MC–DF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – decisão de 14/05/2021).

 

RODRIGO LUÍS KANAYAMA – membro do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR). Na Faculdade de Direito da UFPR, é Professor Adjunto de Direito Financeiro e Chefe do Departamento de Direito Público. É Conselheiro Estadual da OAB/PR, onde também preside a Comissão de Estudos Constitucionais, e sócio da Kanayama Advocacia em Curitiba.
RODRIGO SÁNCHEZ RIOS – Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli studi di Roma III – La Sapienza. Professor de Direito Penal da PUCPR. Advogado Criminalista.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/teje-preso-convocacao-testemunha-cpi-25052021

A OAB e o controle externo do TCU

A OAB e o controle externo do TCU

Julgamento no STF envolve manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito

Por MARILENA INDIRA WINTER e RODRIGO LUÍS KANAYAMA

 

O nascimento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não foi por acaso, nem foi por vontade oficial (embora tenha sido criada por lei[1]). Partiu de um movimento de juristas que, imbuídos pelo ideal da advocacia, se organizaram para a sua criação. Na década de 1930, nascia a OAB, capitaneada pelo advogado Levi Carneiro, que ocupou cargos no Instituto dos Advogados Brasileiros e da Ordem dos Advogados do Brasil, onde foi seu primeiro presidente.

A despeito de previsão legal, a Ordem não é fruto estatal. Por essa razão, desde o início agiu contra cerceamento a liberdades individuais e foi entidade independente do Estado. Não depende do Estado para seu sustento, para obtenção de suas receitas, para atuação perante o Poder Público e em favor dos direitos. A liberdade e a defesa dos direitos são suas bandeiras inegociáveis e é por isso que o julgamento que se avizinha no Supremo Tribunal Federal (STF) é tão relevante.

O STF começou a julgar o Tema 1054 (“controvérsia relativa ao dever, por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, de prestar contas ao Tribunal de Contas da União” – RE 1.182.189, Rel. Min. Marco Aurélio). A questão, que não é nova (foi aventada no julgamento da ADI 3026), é de suma relevância para traçar os rumos da mais importante organização civil do Brasil.

O ministro Lewandowski pediu destaque no julgamento do plenário virtual sobre a submissão ou não da OAB à fiscalização do TCU. Marco Aurélio votou e foi favorável à necessidade de fiscalização das contas da entidade. O ministro Edson Fachin inaugurou a divergência: para ele, a OAB não está obrigada a prestar contas ao TCU nem a qualquer outra entidade externa. O julgamento continuará no plenário físico.

A posição que ocupa a OAB no texto constitucional é singular. É a única entidade civil que participa de concursos públicos (Magistratura – art. 93, I; Ministério Público – art. 129, §3º; Advocacia Pública – art. 132). A OAB é legitimada para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade (art. 103, VII); indica membros para o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, XII) e para o Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, V); escolhe membros de tribunais (art. 94).

Por fim, importante destacar que a advocacia, que ela representa, é a única função não exclusivamente estatal da estrutura do sistema de Justiça brasileiro: “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (art. 133).

Não se trata de autarquia de fiscalização profissional (conselhos profissionais) nos moldes adotados por outras profissões, como a medicina e engenharia. Essas estão sob o controle externo do TCU, recebem tributos (taxas) estabelecidos por lei, realizam concurso público e processos licitatórios. A OAB funciona como entidade privada no manejo de sua estrutura: estabelece suas anuidades, contrata pelo regime trabalhista e não está limitada por processos licitatórios públicos.

A posição da OAB a partir da Constituição é clara: procurou o constituinte dar-lhe independência no seu funcionamento e nas suas escolhas, não estando sob os limites estatais de controle externo, nada obstante sujeite-se a regras de gestão, transparência e controle interno, a exemplo do Provimento 185/2018 do Conselho Federal.

O fim é evidente: serve a OAB como um sustentáculo civil às normas constitucionais; serve como um contraponto ao Poder Público expressando vozes de cidadãos comuns; não defende só a classe da advocacia, mas a sociedade por inteiro, a teor do disposto expressamente no art. 44, I da Lei 8.906/1994. Diferencia-se, claramente, das demais autarquias e conselhos profissionais, que têm como fim delimitado a regulação e controle de determinada classe profissional; e também se diferencia das associações e sindicatos, os quais são igualmente voltados para apenas uma fatia da sociedade.

No passado, o STF já se debruçou sobre a questão. Em 2006, na ADI 3026, sob relatoria do Ministro Eros Grau, entendeu o STF que “por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça (…)”. [2]

Aliás, o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) prevê que a “Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade (…) defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (inciso I, art. 44).

Por outro lado, dentre as competência constitucionais atribuídas ao Tribunal de Contas da União (TCU) não se encontra nenhuma que albergue a fiscalização das contas da OAB, haja vista que seus recursos não são provenientes dos cofres públicos. Diferentemente de outras carreiras integrantes do sistema de Justiça, que muito embora sejam também essencias à sua administração, e às quais também são asseguradas independência e autonomia para exercer suas funções, são integralmente remuneradas e suas estruturas mantidas com recursos totalmente provenientes dos cofres públicos.

Resta salientar que a OAB estabeleceu diversas normas de transparência e responsabilidade orçamentária, preocupada com a necessidade de expor suas decisões, suas receitas e despesas, e seus investimentos. Não é porque não está sujeita a controle externo do TCU que não será accountable perante à advocacia e à sociedade.

A manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito, muitas vezes a voz mais crítica, por sua independência, necessariamente toca no julgado do Tema 1054 do STF. O controle externo por um órgão do Estado (o TCU) adicionará ingrediente arriscado na receita democrática da Constituição da República. A OAB mantém o equilíbrio de forças entre Poder Público e sociedade civil e um julgamento que a alije da independência vergará o já combalido equilíbrio da nossa democracia.

[1]            O Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930, previu: “Art. 17. Fica criada a Ordem dos Advogados Brasileiros, órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados, que se regerá pelos estatutos que forem votados pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, com a colaboração dos Institutos dos Estados, e aprovados pelo Governo”.

[2]            Podemos citar mais dois julgados do STF:

(1) Em 2016, no Recurso Extraordinário 595.332 PR o Ministro Marco Aurélio compreendeu a OAB como “autarquia corporativista”, e por essa razão a competência para julgar processos judiciais será da Justiça Federal. Nesse julgamento, destaca-se o voto do Ministro Roberto Barroso:

“Eu acho que a Ordem tem uma posição muito singular. Eu acho que ela presta um serviço público, mas tenho dúvida se ela pode ser tipificada como uma entidade estatal, até pelo tipo de independência que precisa ter e porque acho que ela não é obrigada a fazer concurso público, o que seria uma consequência natural, se eu a considerasse uma pessoa jurídica de direito público.

Desse modo, eu gostaria de ressalvar algumas dúvidas quanto à natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil. Porém, não tenho nenhuma dúvida de que é pacífico o entendimento de que a competência é da Justiça Federal. Portanto, eu estou acompanhando o Ministro Marco Aurélio, apenas me reservando para, em algum lugar do futuro, se vier a ser oportuno, tentar refletir sobre esta natureza singular da OAB.”

(2) No Recurso Extraordinário 405.267, sob relatoria do Ministro Fachin, assim julgou o STF:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA AFETADA PARA JULGAMENTO NO TRIBUNAL PLENO PELA SEGUNDA TURMA. ARTIGOS 11, I, PARÁGRAFO ÚNICO C/C 22, PARÁGRAFO ÚNICO, “B”, AMBOS DO RISTF. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. ART. 150, VI, “A”, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS. 1. A questão referente à imunidade aplicável às entidades assistenciais (CF, 150, VI, “c”) é impassível de cognição na via do recurso extraordinário, quando não há apreciação pelas instâncias ordinárias, nem foram interpostos embargos declaratórios para fins de prequestionamento. Súmulas 282 e 356 do STF. 2. É pacífico o entendimento de que a imunidade tributária gozada pela Ordem dos Advogados do Brasil é da espécie recíproca (CF, 150, VI, “a”), na medida em que a OAB desempenha atividade própria de Estado. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta, tal como as autarquias, porquanto não se sujeita a controle hierárquico ou ministerial da Administração Pública, nem a qualquer das suas partes está vinculada. ADI 3.026, de relatoria do Ministro Eros Grau, DJ 29.09.2006. 4. Na esteira da jurisprudência do STF, considera-se que a Ordem dos Advogados possui finalidades institucionais e corporativas, além disso ambas devem receber o mesmo tratamento de direito público. 5. As Caixas de Assistências dos Advogados prestam serviço público delegado, possuem status jurídico de ente público e não exploram atividades econômicas em sentido estrito com intuito lucrativo. 6. A Caixa de Assistência dos Advogados de Minas Gerais encontra-se tutelada pela imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, “a”, do Texto Constitucional, tendo em vista a impossibilidade de se conceder tratamento tributário diferenciado a órgãos da OAB, de acordo com as finalidades que lhe são atribuídas por lei. 7. Recurso extraordinário parcialmente conhecido a que se nega provimento”(RE 405267, Rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 06/09/2018).

MARILENA INDIRA WINTER – Vice-Presidente da OAB/PR, Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR, Pro-fessora de Direito Civil da PUC/PR, Procuradora do Município de Curitiba.
RODRIGO LUÍS KANAYAMA – membro do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR). Na Faculdade de Direito da UFPR, é Professor Adjunto de Direito Financeiro e Chefe do Departamento de Direito Público. É Conselheiro Estadual da OAB/PR, onde também preside a Comissão de Estudos Constitucionais, e sócio da Kanayama Advocacia em Curitiba.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/oab-controle-externo-tcu-11102020

Como ficam o empenho e a liquidação da despesa no pagamento antecipado?

Como ficam o empenho e a liquidação da despesa no pagamento antecipado?

Por Rodrigo Luís Kanayama e Thiago Lima Breus

Empenhar, em tese, é reservar a respectiva dotação orçamentária para futuro pagamento ao credor (fornecedor do bem ou prestador de serviço). O artigo 58 da Lei 4.320/64 define empenho como ato que “cria para Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição”. A finalidade do empenho é dar ordem às finanças do Poder Público, organizando-as para que, no futuro, o orçamento público permaneça nos limites aprovados pelo Poder Legislativo.

Por força da Covid-19, foi editada a Medida Provisória 961, de 6 de maio de 2020, aplicável “aos atos realizados durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020” (artigo 2º, Medida Provisória 961). Entre outras normas, estabelece o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração, obedecidas algumas condições para a mitigação do risco de inadimplemento contratual, o qual, se superveniente, ensejará a devolução integral pelo particular do valor a ele antecipado pelo poder público.

Entre as medidas de cautela, destacam-se: I) a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente; II) a prestação de garantia de até trinta por cento do valor do objeto pelo contratado; III) a emissão de título de crédito pelo contratado; IV) o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e V) a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.

Observadas as condições acima e demonstrado que o pagamento antecipado representa: I) condição indispensável para obter o bem ou a prestação do serviço; ou II) que ele propicie significativa economia de recursos, ele poderá ser utilizado, com sua previsão expressa no edital ou no instrumento formal de adjudicação.

Embora não expressamente reguladas pela Medida Provisória 961, observamos que as fases da execução da despesa pública foram ligeiramente alteradas enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020 e para os casos por ela abrangidos.

A dúvida que surge é quanto: I) ao empenho; e II) à liquidação da despesa. À primeira leitura da medida provisória, parecem ser exigidos apenas o processo licitatório (ou sua dispensa) e o imediato pagamento do credor, dispensando-se o ato de empenho e a liquidação. Não nos parece, porém, a interpretação mais adequada à luz do conjunto de normas, constitucionais e legais, que disciplinam a execução da despesa pública.

Como dissemos acima, o ato de empenho tem como função a reserva da dotação orçamentária, visando a preservar o crédito para futuro pagamento ao credor, após regular liquidação. Como ele constitui expediente fundamental para o correto funcionamento do orçamento público — e porque todas as despesas públicas devem ser autorizadas por leis orçamentárias —, é correto afirmar que o empenho continua imprescindível.

Uma despesa pública “antecipada” sem o devido empenho representa a ausência de correspondência no orçamento público, na contabilidade pública e, eventualmente, na prestação de contas. Ademais, não há regra de exceção à Lei 4.320/64, que estabelece, em seu artigo 60, que “é vedada a realização de despesa sem prévio empenho”, norma repetida no artigo 24 do Decreto 93.872/86 (este, só para a União).

Quanto à segunda fase da execução da despesa pública, que é a liquidação, a Medida Provisória 961 trouxe pontual regime de exceção — embora a antecipação se assemelhe com “suprimento de fundos” [1], mas a restringiu para uso somente quando a antecipação de pagamento contratual for vantajosa à Administração Pública [2].

Em regra, sobrevirá a liquidação da despesa — pois o “pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação”.

O artigo 63 da Lei 4.320/64 prevê que a “liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito”. A finalidade é determinar a origem, o objeto, o valor e o credor do crédito (§1º) e será fundada no contrato, na nota de empenho, e nos “comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço” (inciso III, §2º, artigo 63 da Lei 4.320/64).

Durante a vigência do Decreto Legislativo 6/2020 (durante o estado de calamidade pública da Covid-19), será possível realizar o pagamento após liquidação, mesmo sem a entrega do material e antes da prestação do serviço, desde que a liquidação se baseie no contrato, na nota de empenho ou em estudos fundamentados que comprovem sua real necessidade ou economicidade para a Administração, além de, obviamente, terem sido cumpridos os demais requisitos da medida provisória.

No período excepcional em que vivemos, a autorização legal para o pagamento antecipado pelo poder público aproxima a realização da despesa pública à prática comercial privada. No entanto, ela não significa a supressão das fases da execução da despesa pública, muito menos liberação para a realização de gastos indevidos.

[1] Conferir: artigo 68, Lei 4.320/64; artigo 45 e ss., Decreto 93.872/86; Manual do SIAFI (suprimento de fundos).

[2] Conferir: Lei 8.666/93, artigo 40, XIV, “d”; Decreto 93.872/86, artigo 38; TCU, acórdão 1826/2017, Plenário, Representação, Rel. Ministro Vital do Rêgo.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-25/kanayama-breus-empenho-liquidacao-despesa

A Constituição têxtil

A Constituição têxtil

Respostas dos poderes instituídos mostram que maleabilidade do tecido constitucional foi abusada

Por MELINA GIRARDI FACHIN e RODRIGO LUÍS KANAYAMA

A Constituição é um tecido normativo, econômico, político e social complexo. Para que fibras e fios cumpram a sua vocação há necessidade de que a trama constitucional se adapte à dinâmica social e histórica. Assim, a Constituição estabelece um sistema normativo de emenda para, ao mesmo tempo que permanecer, mudar.

Pouco depois de seu 30º aniversário, a Constituição brasileira superou uma centena de emendas, taxa consideravelmente alta que merece ser pensada. Nosso tecido constitucional, por um abuso das mudanças, tornou a Constituição de 1988 uma colcha de retalhos, parafraseando Eros Grau [1].

Mas, mesmo diante dos desafios, a textura constitucional, ainda que esgarçada, mantém seus fios e fibras urdidos. É um tecido flexível, que suporta intempéries – e assim deve ser, para isto foi feita. É furta-cor, de diversas tonalidades. É permeável a novas realidades, ao desenvolvimento da sociedade.

Temos instruções gerais de preservação do nosso tecido constitucional. Rigidez e formalidade, restringindo o poder de emendar, para proteger as cláusulas pétreas consagradas na Constituição contra o efeito perigoso das maiorias oportunistas.

Todavia, em sua etiqueta não existem informações precisas de lavagem e conservação. Não se recomenda torcer, repuxar com força, ou esquecê-la sob a sombra de mudanças constitucionais contingentes.

Repuxando-a, vem o risco à flexibilidade. E esgarça-se o tecido constitucional. Se, diante da elevada taxa de mudanças formais na Constituição e da complexidade da nossa conjuntura política, a costura já mostrava sinais, em tempos excepcionais como estes da pandemia, ficamos com a sensação de que não haverá pano suficiente para agasalhar nossas inquietações.

A premissa da qual sempre devemos partir é a de que medidas que visem à diminuição do impacto do vírus estejam, sempre, em consonância com o Estado de Direito, com a Constituição, para evitar que a crise – que se espera temporária, ainda que não se saiba por quanto tempo – não se perpetue como exceção permanente – esse é o temor de Heloísa Fernandes Câmara e Egon Bockmann Moreira, em artigo publicado no JOTA.[2]

A pandemia é hiperpotencializadora das complexidades constitucionais antes já vividas, e o vírus torna a trama mais esfarrapada. Embora pareça que estamos encarando, no Brasil, uma situação de aparente normalidade institucional, o tecido constitucional foi remendado, esticado e remodelado, mas ainda parece incólume, sem buracos, sem rasgos. Se olharmos de perto, todavia, veremos seu esgarçamento e chegaremos à conclusão de que, de tanto repuxar, é roto. Esperamos que seus rasgos possam ser costurados novamente.

Quando o presidente da República testa, diariamente, os limites constitucionais, está a esticar por demais o pano da Constituição. Provocar rasgos – alguns pequenos, outros enormes – no tecido, estendendo até o ponto em que é possível que venha, rápida e instantaneamente, a total destruição do material têxtil.

Toda manhã, ao sair do Palácio da Alvorada, o presidente ofende a liberdade de imprensa e, paulatinamente, sobe o tom até o “cale a boca”. Defende, regularmente, o golpe de 1964 e desfila com seus apoiadores defensores do AI-5. Ele estica o tecido constitucional ao limite de surgirem fendas com rompimento de fios e fibras constitucionais.

Simetricamente, os demais poderes são atraídos na dinâmica de elastecimento e também, ocasionalmente, corroboram com o esfarrapar nosso tecido. A exceção perpetuada nos excessos e abusos executivos contamina o funcionamento do Judiciário e do Legislativo em comportamentos que, ao invés de coser, esgarçam ainda mais nosso tecido constitucional.

No ano do 20º aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Supremo Tribunal Federal a suspendeu parcialmente (“deu interpretação conforme”) – inovando com modalidade sem precedentes constitucionais de (algo como) inconstitucionalidade conjuntural[3]

O Congresso Nacional acompanha passivo, salvo pelas notas de repúdio e pelos tuítes oficiais. Poucos parecem estar preocupados com a incolumidade da Constituição têxtil, cada dia mais puída, esfarrapada e abandonada ao léu. Não há mais o alfaiate, aquele que cirze a nossa Constituição.

Não se pode dizer pelo acima exposto que tudo funciona bem. A qualidade (ou ausência dela) das respostas exaradas pelos poderes instituídos neste contexto nos leva a pensar que a maleabilidade do tecido constitucional foi abusada e que os rasgos já não serão de remendo tão fácil – se é que ainda é possível tal costura; ainda mais tendo em vista o pano nobre que faz a matéria constitucional.

Será um longo e árduo trabalho para suturar nossa Constituição têxtil, se isto ainda for possível. Não a reconstruiremos tão depressa, mas será nosso papel reparar as rasgaduras com retalhos que nem sempre serão da mesma cor, do mesmo tamanho ou da mesma textura. Afinal, após tantas torções e puxões, pouco poderá ser feito para restituí-la ao estado que sonhamos.


[1] Entrevista do Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal no Estado de S. Paulo, em 23 de setembro de 2018, disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,emendas-transformam-constituicao-numa-colcha-de-retalhos-diz-eros-grau,70002514715>.

[2] CÂMARA, Heloísa Fernandes. MOREIRA, Egon Bockmann. Entre exceções, estado de exceção e normalidade. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-excecoes-estado-de-excecao-e-normalidade-26042020>.

[3] STF. ADI 6351 MC, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 26/03/2020, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-076 DIVULG 27/03/2020 PUBLIC 30/03/2020.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-textil-18052020

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