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‘Teje preso’ e a convocação de testemunha pela CPI

‘Teje preso’ e a convocação de testemunha pela CPI

Julgamento no STF envolve manutenção da independência da OAB como voz da sociedade na defesa do Estado Democrático de Direito

Por RODRIGO LUÍS KANAYAMA e RODRIGO SÁNCHEZ RIOS


Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sempre causa algum furor. O folclore político brasileiro é permeado por histórias interessantes – por vezes, engraçadas – de CPIs que “terminaram em pizza” (tradução: não trouxe resultados relevantes), convocadas para investigar “anões do orçamento” (tradução: investigados eram parlamentares do “baixo clero”), interessadas em apurar os detalhes do contrato entre Nike e CBF e da participação do jogador Ronaldo na final da Copa de 1998, ou que contaram com o famoso “
teje preso” (declarado pela então senadora Heloísa Helena na CPI dos Bancos).

Por onde passa, uma CPI faz história, deixa feridas expostas, e causa dor de cabeça aos governos. Inquestionável é a sua importância no sentido de apurar responsabilidades – comissivas e omissivas – de agentes políticos, sobretudo quando atuam com aparente desídia e minimizam o trágico número de vidas perdidas.

Comum a todas elas é a origem: o art. 58, §3º da Constituição. Deste dispositivo podemos retirar que as CPIs: (a) têm poderes de autoridades judiciais (e outros previstos nos Regimentos); (b) podem ser criadas por uma das Casas ou em conjunto (Senado e Câmara), pelo requerimento de um terço de seus membros; (c) servem à apuração de fato determinado; (d) têm prazo certo de duração; (e) suas conclusões podem ser enviadas ao Ministério Público para responsabilização.

A CPI, portanto, é inerente ao Poder Legislativo, ou seja, o poder investigativo é ínsito ao parlamento[1]. Na teoria jurídica, uma CPI serve como instrumento para fornecer ao Legislativo informações para seu melhor funcionamento, para controlar o governo (na perspectiva do sistema de pesos e contrapesos, evocado sobretudo no art. 2º da Constituição Federal) e para influenciar a opinião pública[2]. Na prática, contudo, a CPI acaba servindo como ferramenta congressual da oposição para incentivar/coibir alguma conduta dos demais atores políticos e também tem objetivo eleitoral, na medida em que expõe à opinião pública as entranhas do governo – sem dar-lhe a mesma voz.

Não entraremos na discussão sobre a criação da CPI pela minoria[3]. Consideremos que, se um terço dos membros da Casa requerer a criação, será criada a CPI. Instituída a CPI e constituída nos termos do Regimento Interno, passa a convocar pessoas, requisitar documentos e informações – em resumo, pode produzir provas como “autoridades judiciais”. Conforme a Lei 1.579/1952 (alterada em 2016), as CPIs poderão “determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença” (art. 2º). As intimações seguirão os ditames e formalidades da legislação penal (art. 3º).

Seus poderes são amplos. Dentre tantos, analisemos o assunto em maior evidência, impulsionado pela atual CPI em curso: o dever de comparecimento (de testemunhas e investigados). Uma das principais discussões dos últimos dias – mormente em razão do depoimento, na qualidade de testemunha, do ex-ministro Eduardo Pazuello – é a compulsoriedade do comparecimento à comissão. Em 2019, no contexto da CPI de Brumadinho, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, no HC 171.438-DF, convolou a obrigação de comparecer em faculdade, tratando-se de investigado. Afirmou que o indivíduo, na qualidade de investigado, não poderia ser instado a falar e, nessa linha, seu comparecimento não seria compulsório (sendo ilegal condução coercitiva).[4] Como fundamento da decisão, adotou o precedente das ADPFs 395 e 444 (as quais versaram sobre proibição de conduções coercitivas de investigados no âmbito do Processo Penal).

Conquanto o julgamento do HC 171.438 tenha como fato o pedido de um investigado, o julgado deixa em aberto algumas questões. O relator, ministro Gilmar Mendes, no início do seu voto, cita o HC 79.812 (ministro-relator Celso de Mello, J. 16/02/2001), que garantiu direito ao silêncio a investigados e testemunhas em observância ao direito constitucional de não auto-incriminação (sendo toda a argumentação construída sobre esse pilar). No decorrer do voto, o ministro-relator menciona excerto de seu próprio voto na ADPF 395 para justificar o dever ao comparecimento de testemunha[5].

Tal entendimento foi repetido em diversos outros habeas corpus concedidos para investigados ou testemunhas (o ministro Celso de Mello concedeu habeas corpus em favor de pessoas convocadas na qualidade de testemunhas).[6] O argumento central advindo do HC 171.438 (ministro-relator Gilmar Mendes) é: “se o investigado não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação“.

No caso do ex-ministro Eduardo Pazuello, a ordem de habeas corpus (HC 201.912 MC–DF – decisão de 14/05/2021)[7] foi concedida parcialmente, mantendo-se na linha dos procedentes já citados e outros prolatadas pela Corte Constitucional.

Primeiro, o relator, ministro Ricardo Lewandowski, entendeu que o atendimento à convocação na qualidade de testemunha constitui um dever. Segundo, afastou como precedente as ADPFs 395 e 444 pois, segundo sua decisão, a questão em tela não envolve “convocações coercitivas impostas de forma arbitrária aos investigados“. Terceiro, manteve a linha do precedente e concedeu a ordem para garantir o direito ao silêncio (com a finalidade de afastar a auto-incriminação – não podendo faltar com a verdade naquilo que não o envolvesse diretamente como investigado em procedimentos outros já instaurados nas searas competentes), o direito de ser assistido por advogado, o direito a ser tratado com urbanidade e de não sofrer constrangimento físico ou moral (especialmente ameaça de prisão).

distinguishing da ordem concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski é coerente. Separou as convocações na qualidade de testemunhas das realizadas na qualidade de investigados. Não obstante o necessário respeito aos direitos de testemunhas (e investigados), limitando-se o famoso “teje preso”, o STF tende à compreensão no sentido do dever do comparecimento de testemunhas. O que jamais poderá se olvidar, contudo, é a prevalência do nemo tenetur se detegere em qualquer circunstância na qual o inquirido – seja na qualidade de testemunha ou investigado – possa vir a ser compelido a confessar a realização de um delito ou participação neste – linha essa a qual parece ter sido edificada na decisão monocrática de lavra do ministro Ricardo Lewandowski em favor do ex-ministro da Saúde.

[1]  No Direito norte-americano, conferir McGrain v. Daugherty, 273 U.S. 135 (1927).

[2]  SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 99-103.

[3]  Esse assunto foi bem debatido no artigo da Roberta Simões Nascimento – Pode o STF determinar a criação da CPI da Pandemia?, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/pode-o-stf-determinar-a-criacao-da-cpi-da-pandemia-31032021 – e na decisão do STF no MS 37.760 (Rel. Min. Roberto Barroso).

[4]  Conforme o voto do Min. Gilmar Mendes, “por sua qualidade de investigado, não pode o paciente ser convocado a comparecimento compulsório, menos ainda sob ameaça de responsabilização penal.

Ora, se o paciente não é obrigado a falar, não faz qualquer sentido que seja obrigado a comparecer ao ato, a menos que a finalidade seja de registrar as perguntas que, de antemão, todos já sabem que não serão respondidas, apenas como instrumento de constrangimento e intimidação, como sói ocorrer nos interrogatórios havidos pelo País.

É autêntica lawfare da acusação: registram-se as perguntas apenas tentar provocar prejuízo ao interrogado, por exercer seu direito ao silêncio.” (STF – HC 171.438 DF, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 28/05/2019).

Nesse julgamento votou com o Min. Relator o Min. Celso de Mello. E concedendo a ordem em menor extensão (não convolando a compulsoriedade em facultatividade) os Ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia.

[5]  “Para que a condução coercitiva fosse legítima, ela deveria destinar-se à prática de um ato ao qual a pessoa tem o dever de comparecer, ou ao menos que possa ser legitimamente obrigada a comparecer.

Veja-se a condução da testemunha, por exemplo. Existe o dever de depor como testemunha – art. 202 do CPP. O testigo deve fazer-se presente na hora e no local assinalados na intimação. Inexiste a prerrogativa de fazer-se ausente.

A condução coercitiva da testemunha faltante é simples meio de exigir o cumprimento do dever de apresentar-se para depor – art. 218 do CPP.

Nesse caso, há uma finalidade claramente estabelecida, a ser afirmada por medidas proporcionais, conferidas pelo legislador.” (STF – ADPF 395 – excerto do voto do Min. Gilmar Mendes – proferido em 07/06/2018).

[6]  Conferir: HC 174.853, HC 172.199, HC 175.087, HC 175.555, HC 175.657 e outros, todos da Relatoria do Min. Celso de Mello. E RCl 39.449, da Relatoria do Min. Gilmar Mendes.

[7]  Conforme decisão do Min. Relator: “No que diz respeito à situação concreta do paciente, que ocupou o cargo de Ministro de Estado da Saúde por aproximadamente 10 meses, não vejo como dispensá-lo da convocação feita pelo Senado Federal para depor perante a CPI, tendo em conta a importante contribuição que poderá prestar para a elucidação dos fatos investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Pandemia da Covid-19.

Salta à vista, porém, que a sua presença na indigitada CPI, ainda que na qualidade de testemunha, tem o potencial de repercutir em sua esfera jurídica, ensejando-lhe possível dano. Por isso, muito embora o paciente tenha o dever de pronunciar-se sobre os fatos e acontecimentos relativos à sua gestão, enquanto Ministro da Saúde, poderá valer-se do legítimo exercício do direito de manter-se silente, porquanto já responde a uma investigação, no âmbito criminal, quanto aos fatos que, agora, também integram o objeto da CPI.

(…)

Aqui, convém esclarecer que a obrigação de comparecimento do paciente para depor não pode ser afastada, pois, ao menos em um juízo de cognição sumária, o direito ao silêncio e o dever de atender à convocação da CPI, são institutos de conteúdo normativo distintos, em que pese haver uma tênue linha de separação entre eles, não se tratando, a meu ver, da mesma situação delimitada nos precedentes firmados nas ADPFs 395 e 444, ambas de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que o Plenário desta Suprema Corte proibiu as conduções coercitivas impostas de forma arbitrária aos investigados.

Tenho que o atendimento à convocação expedida pela Comissão Parlamentar de Inquérito, segundo os termos constitucionalmente estabelecidos, consubstancia um dever do paciente, especialmente porque comparecerá na condição de testemunha. O atendimento à convocação, em verdade, configura uma obrigação imposta a todo cidadão, e não uma mera faculdade jurídica.” (STF – HC 201.912 MC–DF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – decisão de 14/05/2021).

 

RODRIGO LUÍS KANAYAMA – membro do Centro de Estudos da Constituição (CCONS/UFPR) e do Núcleo de Direito e Política (DIRPOL/UFPR). Na Faculdade de Direito da UFPR, é Professor Adjunto de Direito Financeiro e Chefe do Departamento de Direito Público. É Conselheiro Estadual da OAB/PR, onde também preside a Comissão de Estudos Constitucionais, e sócio da Kanayama Advocacia em Curitiba.
RODRIGO SÁNCHEZ RIOS – Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Università degli studi di Roma III – La Sapienza. Professor de Direito Penal da PUCPR. Advogado Criminalista.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/teje-preso-convocacao-testemunha-cpi-25052021

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