Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós.

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e VERA KARAM DE CHUEIRI

Depois de o procurador-geral da República, Augusto Aras, perseguir o professor Conrado Hübner Mendes por suposta violação à honra e violação ética, agora é a vez de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques se melindrar com as críticas do professor Conrado e também pedir instauração de persecução penal contra ele.

O ministro Nunes Marques entendeu que as críticas que o professor Conrado fez a ele em seu artigo “O STF come o pão que o STF amassou”, publicado em sua coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, são “afirmações falsas e/ou lesivas” à sua honra. E que “em razão das funções que exerce” no STF pode haver crime de calúnia, injúria e difamação.

O artigo do professor Conrado foi publicado em abril e criticava de forma contundente a decisão de Nunes Marques que autorizou, sozinho, em medida liminar monocrática, a realização de cultos presenciais durante a pandemia, colocando abaixo normas regionais ou locais que vedavam temporariamente a realização de celebrações religiosas para tentar controlar a pandemia. Na época da decisão do ministro Nunes Marques e da publicação do artigo escrito por Conrado Hübner Mendes, já tínhamos mais de 330 mil mortos. Nunes Marques não viu aí um empecilho. Atualmente já temos mais de meio milhão de vidas perdidas.

Voltando à decisão monocrática do ministro Nunes Marques: ela foi contra o Plenário do STF, pois afrontava o entendimento unânime da Corte, tomado na ADPF 703, que não reconhecia a legitimidade ativa da Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) para a propositura de ADPF. O ministro Nunes Marques integrou o julgamento da ADPF 703. Mas, mesmo assim, a nova decisão de Nunes Marques suplantou o Plenário, e não só reconheceu a legitimidade da ANAJURE como deferiu o pedido liminar.

A decisão de Nunes Marques foi um típico caso de decisionismo individual, onde a posição pessoal e particular do ministro vale mais do que a decisão do Plenário do STF e se sobrepõe à posição institucional já consolidada do Tribunal. Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Pereira, que há muito pesquisam sobre o STF, demostraram como essa decisão foi uma das piores da história do STF, pela falta de plausibilidade do pedido ou perigo na demora. No mérito, apontam o mal uso da jurisprudência do STF, o uso equivocado de decisão da Suprema Corte dos EUA, sem falar no argumento absurdo acerca do direito de reunião religiosa, mesmo em circunstância extremas, como numa guerra.

Não à toa, a decisão de Nunes Marques foi cassada pelo Plenário do STF dias depois.

Essas controvérsias da decisão do ministro Nunes Marques mostram como ela não só foi polêmica, mas foi também considerada errada e reformada por seus pares. O professor Conrado Hübner Mendes chamou atenção justamente para esses problemas da decisão e da postura do ministro Nunes Marques.

Mas, onde vimos debate público robusto, com escrutínio detalhado, normativo, institucional e de perfil de atuação, o ministro Nunes Marques viu ofensas à sua honra, sobretudo pelo cargo de ministro do STF que ocupa.

No entanto, ocupar cargo de ministro do STF deve ser motivo para estar sujeito a esse debate público robusto, a esse escrutínio detalhado. E não para fugir dele. Tampouco o cargo de ministro do STF deve servir para inibir a liberdade de pensamento e manifestação (art. 5º, IV, IX, CF/88), a liberdade de pesquisa, ensino e o pluralismo de ideias de um professor (art. 206, II, III, CF/88) que, sendo cientista, também escreve para o grande público em um dos maiores jornais do país.

O ministro Nunes Marques e sua representação à PGR parecem recair no mesmo equívoco de Augusto Aras. Confundem críticas contundentes com ofensas à sua honra. O cargo público que ocupam sujeitam o PGR, os ministros do STF, a um nível mais intenso de debate e críticas, pois o que fazem ou deixam de fazer interessa a todos nós. É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio STF tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4]. No caso específico, o debate sobre a decisão do ministro Nunes Marques ganha ainda mais importância neste momento de pandemia, onde sua decisão pode ter o efeito de reforçar ou enfraquecer o combate ao covid-19.

Assim, ainda que o ministro Nunes Marques se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão da decisão que tomou, dos efeitos dela decorrentes e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado. As representações do PGR Augusto Aras e do ministro do STF Nunes Marques, se submetidas a um controle de constitucionalidade ou controle de convencionalidade, não resistem, ao contrário, sucumbem à primeira análise, pois suportadas por argumentos outros que não jurídico-constitucionais ou jurídico-convencionais.

A Constituição brasileira de 1988 proíbe a censura (porque protege, garante, prestigia, obriga a observância da liberdade de expressão). A perseguição por agentes estatais a quem vocaliza e lhes dirige publicamente críticas é próprio de ditaduras.

É dado ao intelectual público, professor, pesquisador, analisar criticamente as instituições e seu agentes. Por sua vez, perseguir quem exerce tal mister é enfraquecer a democracia, rebaixar o debate público e socavar os direitos de liberdade. Esse tipo de conduta, uma espécie de ‘sabe com quem você está lidando?’ remete ao passado recente da nossa história política e constitucional, mas não passa ao escrutínio do seu presente e do seu futuro.

Como apontou Daniel Sarmento, não é preciso concordar com as críticas do professor Conrado Hübner Mendes, mas é preciso concordar com o seu direito de fazê-las. Outros ministros do STF também já foram duramente criticados, mas jamais recorreram a persecuções criminais ou civis, em respeito às regras do jogo democrático.

Augusto Aras e Nunes Marques fariam um bem à democracia e à honorabilidade dos cargos que ocupam se revissem suas condutas e retirassem as representações e queixas que apresentaram. Passariam pelo escrutínio do presente da democracia constitucional brasileira e projetariam seu futuro; estariam à altura das funções que exercem e do prestígio que a crítica pública invoca, quanto mais aquelas de um pesquisador e professor de escola.

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós, contra todos nós.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/critica-publica-e-um-sinal-vital-da-democracia-perseguicao-a-um-professor-nao-29072021

O STF na corda bamba da E/exceção?

O STF na corda bamba da E/exceção?

O que as respostas do STF à crise do coronavírus promovem?

Por VERA KARAM DE CHUEIRI e MIGUAL GUALANO DE GODOY 

1 – O Brasil, a crise e a pandemia

No cenário de crise dupla, política e sanitária, o Presidente tem governado com base em decretos e medidas provisórias. O nosso sistema de freios e contrapesos permite ao Supremo Tribunal Federal (STF) revisar esses atos. Mas, se algumas decisões do STF (ou atuações de seus ministros), parecem ser positivas em suas intenções e méritos, por outro lado, parecem ser negativas em termos formais e procedimentais.

Essa contradição entre decisões formalmente negativas, e meritoriamente positivas cria excepcionalidades e coloca o STF em uma espécie de movimento pendular entre a normalidade e a exceção. Esse artigo pretende explorar essa contradição e enfatizar os perigos de um Supremo pendular para a democracia constitucional, especialmente neste período de pandemia.

2 – As respostas do STF à crise: o que elas promovem?

Duas recentes atuações do STF frente à pandemia que evidenciam nossa hipótese de que as excepcionalidades estão no limite entre a normalidade e a exceção – entre a regra e o que está além dela.

2.1 – o caso da LRF, LDO e a ADI 6.357

A primeira decisão é a que afastou exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A medida cautelar monocrática do ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357[1], de 29/03/2020 (um domingo), permitiu uma atuação ampla do Estado sem as exigências e formalidades da LRF e LDO.

Ainda que razoável no mérito, a decisão é controversa na forma e no que informa. Primeiro, porque é uma decisão cautelar monocrática em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), algo que não encontra amparo na Constituição, que, nesse ponto, não concedeu nenhum poder individual aos ministros do STF. Tampouco na Lei 9.868/99, que determina que cautelar em ADI seja sempre colegiada, podendo ser monocrática apenas no período do recesso. Também não encontra amparo no Código de Processo Civil (CPC), nem no Regimento Interno do STF.

A decisão poderia ter sido colegiada. Mesmo num domingo. Afinal, dias antes o STF havia ampliado o uso do plenário virtual pelos ministros. E ampliado para todo e qualquer processo ou decisão do STF. Ora, se o STF pode, agora, julgar tudo pelo plenário virtual, então por que não julgar também uma medida cautelar urgente como essa num período de pandemia? A urgência pode quebrar a regra do rito que impõe uma deliberação colegiada e que pode ser realizada remotamente?

Se a decisão não parece errada no conteúdo, ela erra na forma. E por meio desse erro formal, levou o STF diretamente para a gestão do dia a dia da crise financeira e orçamentária do País, substituindo o Poder Executivo. De quebra, isenta o Presidente de gerir o combate à crise, especialmente no que diz respeito à gestão financeira e orçamentária, com impactos gerais para os outros entes da Federação. É fato que o Presidente da República tem governado muito mal a crise e vem extrapolando as suas competências constitucionais. Mas isso não autoriza o Poder Judiciário, especialmente o STF, a fazer o mesmo. Ou autoriza?

2.2 – O PL das relações privadas e o STF legislador

Uma outra resposta significativa à pandemia foi a iniciativa do ex-Presidente do Supremo – ministro Dias Toffoli- para a elaboração de um projeto de lei que definisse um regime jurídico emergencial para o direito privado durante a pandemia.

A iniciativa do ex-Presidente do STF contou com a coordenação do ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Carlos Ferreira e, ainda, com a colaboração de diversos juristas. Entre outras medidas, o PL prevê a suspensão dos prazos de prescrição, usucapião e aplicação do CDC.

O projeto de lei foi então protocolado no Senado pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), no dia 30/03/2020 – PL 1.179/2020[2], que deu origem à Lei 14.010/2020 de 10/06/2020.

Parece uma resposta legislativa tão importante (em razão da urgência e emergência) quanto corriqueira (em razão da necessidade de tomar decisões políticas). Todavia, a aparência de normalidade traz em si algo que sequer deveria ser excepcional: magistrados atuando como legisladores.

O PL era necessário? Sem dúvida. Oportuno? Claro que sim. Deveria ter sido de iniciativa, coordenação e elaboração de magistrados, que podem ter de vir a julgar a constitucionalidade da lei pretendida (e depois aprovada)? Evidentemente que não. Afinal, ministros são magistrados. Não são legisladores. Tampouco são consultores legislativos (formais ou informais).

Se ministros e juízes querem dar suas contribuições e sugestões, devem fazê-lo dentro dos quadrantes e possibilidades que o cargo judicial lhes permite. Podem, por exemplo, fornecer informações sobre entendimentos prevalecentes na jurisprudência, ou com dados sobre as decisões mais comuns ou casos pendentes de julgamento.

Adiantar soluções através da iniciativa, coordenação e elaboração de projeto de lei, ou dizendo como o Legislativo deve conformar as relações privadas na crise, nos parece afronta à separação de poderes, ainda por boas e honestas intenções.

Esse modo de atuar ainda tem um efeito secundário mais nefasto. A mensagem que o ex-Presidente do STF passa com esse tipo de iniciativa é a de que os problemas do País passam, antes de tudo, por conversas, bons papos, com quem responde pelo Poder Judiciário brasileiro. Uma discussão prévia, consultiva, sobre medidas adequadas, sobre a constitucionalidade dessas medidas.

Essa é uma forma perniciosa de se estabelecer diálogo com os outros Poderes. Desinstitucionaliza o Supremo, politiza indevidamente a Presidência do Tribunal e expressa um personalismo individual, voluntário e voluntarista.

Acaba também isentando os legisladores do seu ônus de legislar adequadamente, e faz do STF um consultor legislativo informal e ad hoc.

De forma semelhante à LRF, ninguém vai discordar da relevância e urgência da Lei 14.010/2020, que veio em boa hora. Mas, por isso mesmo, caberia aqui um projeto de lei, eventualmente uma medida provisória, sem juízes atuando como legisladores.

Há quem interprete tais atitudes como circunstâncias normais do cotidiano institucional, agravadas pelas demandas emergenciais e urgentes. Sabemos que a temperatura da política é alta e só tende a aumentar na crise sobreposta como a que está em curso no Brasil. Mas é nesses tempos que limites constitucionais garantem a institucionalidade se impõem ainda mais. Não é possível dizer que os representantes dos poderes máximos da República apenas fazem política como sói acontecer na realidade dura e crua da vida institucional.  A realpolitk tem (e deve ter) diques constitucionais de contenção de maneira que naturalizar o excesso e o excepcional significa ultrapassar a linha da regra para o caos; da exceção para a Exceção.

3 – O STF entre a exceção e a Exceção?

Vivemos tempos estranhos, diz sempre o ministro Marco Aurélio. Sem dúvida, mais do que estranhos. Mas, qual o limite dessa estranheza? Com que nível de excepcionalidade ela se relaciona? A de uma excepcionalidade com “e” minúsculo ou ao Estado de Exceção com dois “Es” maiúsculos? A exceção diz respeito às excepcionalidades, singularidades, surgidas em momentos de crise. E a Exceção é o que está ou vai além disso, rompendo os diques constitucionais de contenção, ou simplesmente mantendo-os, mas não mais respeitando-os.

Diante disso, as duas atuações do STF apontadas no item 2 podem ser uma amostragem de qual excepcionalidade?

O STF tem um papel fundamental, desde que não normalize ou naturalize em suas práticas a exceção, nem produza ou aceite a Exceção.

A exceção (em minúsculo) – é a que se lê no mérito da decisão monocrática da ADI 6.357 sobre a aplicação da LRF e LDO. Isto é, a permissão ao Executivo para gastar sem prévia exigência de custeio, a fim de custear o combate à pandemia entre outras medidas.

Sua forma monocrática, em sede de ADI, todavia, não é apenas excepcional, uma decisão atípica em razão das circunstâncias e da pandemia. Antes, é mais um exemplo de uma atuação que se tornou permanente no STF. E que com a pandemia parece também se normalizar. É, assim, uma decisão que parece entrar na categoria de Exceção (com E maiúsculo), pois não encontra amparo na Constituição ou em qualquer norma infraconstitucional (Lei 9.868/99, CPC ou RISTF), mas existe e se aplica apesar delas. Vale dizer, a Constituição vige, as leis também, mas não se aplicam. E a decisão se impõe, rompendo forma e arrastando conteúdo (ainda que, nesse caso, o mérito seja louvável).

A atuação de ministros e juízes como legisladores parece seguir o mesmo caminho de Exceção. Ao atuar com iniciativa de proposição legislativa, o presidente do Supremo larga a toga e assume a caneta de legislador. Magistrados atuando como legisladores, ou consultores legislativos, violam a separação de Poderes. No mínimo, inauguram diálogo institucional pernicioso. Aqui também a Constituição vige, mas não se aplica e a atuação em nome do STF acontece apesar do que dispõe a Constituição.

Nossa crítica e argumento aqui apresentados são, em sua urgência, tanto uma espécie de alerta, quanto o acionar de um alarme. No limiar entre o caos e a normalidade, a E/exceção e a regra, não é possível dizer que as instituições estão funcionando normalmente. Justamente elas, que deveriam ser a garantia de freio e contrapeso diante da irracionalidade ou monstruosidade de quem, atualmente, governa este país.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-pandemia-coronavirus-03122020

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Quando se fala em direitos fundamentais, também se fala de deveres públicos

Por VERA KARAM DE CHUEIRI e EGON BOCKMANN MOREIRA 

A África do Sul é um país lindo, com maravilhosa história de superação que vem sendo construída há décadas. Dá importantes exemplos ao mundo, inclusive em sua Constituição e na experiência de sua Suprema Corte. Mas, existe também uma experiência que vem de lá quanto ao papel reservado aos governantes frente a questões de saúde pública.

Em 2006, ao depor em um processo em que era acusado de estupro, o futuro presidente da África do Sul, Jacob Zuma, afirmou que o sexo teria sido consensual. E foi além: disse que sabia que a mulher era HIV positiva, mas que depois havia tomado uma ducha para evitar o contágio. Para ele, guerreiro Zulu, bastaria uma ducha para reduzir o risco de infecção – por isso, não havia usado preservativo. Para além do estupro, isso foi estarrecedor.

À época, a África do Sul tinha o maior número de pessoas com HIV do globo – e a manifestação desse homem público de suma importância nacional foi repudiada mundialmente, por médicos e educadores de práticas preventivas contra a irresponsabilidade na contaminação. Posteriormente eleito presidente, Zuma voltou atrás e defendeu o uso de preservativos em campanhas públicas.

Seres humanos que são, Zulus podem contrair doenças sexualmente transmissíveis. O mesmo se diga de outras doenças virais, que também outros grupos étnicos de porte atlético, podem contrair. Os vírus não escolhem seus destinatários, mas são escolhidos por quem quer que faça determinado contato permitindo a sua entrada. Daí o movimento acertado do então presidente da África do Sul em reconhecer a necessidade do uso de preservativos para coibir a propagação de doenças sexualmente transmissíveis.

A falsificação da realidade coloca em risco a vida das pessoas. Nenhum guerreiro, Zulu ou não, é imune por natureza ao vírus do HIV. Nenhum banho remove o vírus do HIV. Assim como nenhum medicamento cuja toxidade é desconhecida e cujos testes não foram feitos em sua integralidade, pode significar a cura de doenças fatais – como a experiência brasileira nos faz saber.

Saltando da África do Sul para o Brasil, rememoremos o caso da “pílula do câncer”: a fosfoetanolamina, substância que, desenvolvida em laboratório universitário da USP, foi objeto de milhares de ações judiciais que pretendiam obter o medicamento para a cura de pacientes terminais.

Todavia, a agência reguladora setorial – ANVISA – não reconheceu tal substância como medicamento, o que impedia sua produção e venda. O produto não havia passado pelos protocolos internacionais e não poderia ser reconhecido e comercializado.  Nesse turbilhão, o Congresso Nacional editou a Lei 4.639/2016, que autorizava a produção e comercialização da “pílula do câncer”.

A lei foi sancionada pela Presidente da República e, imediatamente em seguida, objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.501). O voto do relator, Min. Marco Aurélio, consignou que a Lei 4.639/2016 violava o art. 196 da Constituição, que preceitua ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. A lei era inconstitucional.

Afinal, consigna o voto do Min. Marco Aurélio: “Ao dever de fornecer medicamentos à população contrapõe-se a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, ou seja, a atuação proibitiva do Poder Público, no sentido de impedir o acesso a determinadas substâncias.”

E, mais adiante: “O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano. […] O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde.”

Vejam quão revelador é esse voto, sob dois aspectos. O primeiro, ao definir que direitos fundamentais – como o importantíssimo direito à saúde – não podem ser submetidos a desvarios insensatos, mas se submetem a requisitos mínimos de boas práticas e técnicas segundo protocolos internacionalmente aceitos. O segundo, ao revelar que o direito à saúde exige que o Estado proíba ações que potencialmente possam atentar contra o bem-estar das pessoas (individual ou coletivamente).

Tal voto foi acompanhado pela maioria do Pleno do STF, fazendo com que a ratio decidendi do acórdão proferido na AD 5.501 seja de obrigatório cumprimento pela Justiça brasileira. Isto é, as políticas se saúde pública devem respeito a um mínimo de requisitos técnicos, estampados em protocolos internacionais. Se houver dúvidas ou incertezas, se necessita precaver e proteger – jamais inovar e correr o risco de implementar tragédias.

Não nos esqueçamos de que os protocolos de saúde manejam vida e morte. O controle do Estado sobre aqueles é orientado pelo dever de proteção e cuidado. É isto que se reflete na decisão do STF acerca da inconstitucionalidade da lei da “pílula do câncer” e que precisa orientar as escolhas públicas.

Logo, o que a África do Sul e o STF têm em comum? A experiência daquele país, que brindou a humanidade com pessoas da envergadura de Nelson Mandela, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, revela que nossas crenças precisam ser deixadas de lado em momentos decisivos e que a responsabilidade só aumenta em razão do cargo ocupado. Já, o nosso STF, ensina que o Estado não deve deixar “em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população” (excerto do voto do Min. Marco Aurélio).

Todo processo de aprendizado é custoso; o que é  admissível – afinal, ninguém nasce sabendo, diz o senso comum. Demanda a realização de tarefas: diárias, difíceis e desafiadoras. Exige a superação. O ato do ex-presidente sul-africano Jacob Zuma e a decisão do STF servem a esse propósito pedagógico, com o qual sabemos que os protocolos de saúde devem ser obedecidos. Aprendamos com ambos.

VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/saude-publica-o-que-a-africa-do-sul-e-o-stf-podem-nos-ensinar-10042020