Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós.

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e VERA KARAM DE CHUEIRI

Depois de o procurador-geral da República, Augusto Aras, perseguir o professor Conrado Hübner Mendes por suposta violação à honra e violação ética, agora é a vez de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques se melindrar com as críticas do professor Conrado e também pedir instauração de persecução penal contra ele.

O ministro Nunes Marques entendeu que as críticas que o professor Conrado fez a ele em seu artigo “O STF come o pão que o STF amassou”, publicado em sua coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, são “afirmações falsas e/ou lesivas” à sua honra. E que “em razão das funções que exerce” no STF pode haver crime de calúnia, injúria e difamação.

O artigo do professor Conrado foi publicado em abril e criticava de forma contundente a decisão de Nunes Marques que autorizou, sozinho, em medida liminar monocrática, a realização de cultos presenciais durante a pandemia, colocando abaixo normas regionais ou locais que vedavam temporariamente a realização de celebrações religiosas para tentar controlar a pandemia. Na época da decisão do ministro Nunes Marques e da publicação do artigo escrito por Conrado Hübner Mendes, já tínhamos mais de 330 mil mortos. Nunes Marques não viu aí um empecilho. Atualmente já temos mais de meio milhão de vidas perdidas.

Voltando à decisão monocrática do ministro Nunes Marques: ela foi contra o Plenário do STF, pois afrontava o entendimento unânime da Corte, tomado na ADPF 703, que não reconhecia a legitimidade ativa da Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) para a propositura de ADPF. O ministro Nunes Marques integrou o julgamento da ADPF 703. Mas, mesmo assim, a nova decisão de Nunes Marques suplantou o Plenário, e não só reconheceu a legitimidade da ANAJURE como deferiu o pedido liminar.

A decisão de Nunes Marques foi um típico caso de decisionismo individual, onde a posição pessoal e particular do ministro vale mais do que a decisão do Plenário do STF e se sobrepõe à posição institucional já consolidada do Tribunal. Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Pereira, que há muito pesquisam sobre o STF, demostraram como essa decisão foi uma das piores da história do STF, pela falta de plausibilidade do pedido ou perigo na demora. No mérito, apontam o mal uso da jurisprudência do STF, o uso equivocado de decisão da Suprema Corte dos EUA, sem falar no argumento absurdo acerca do direito de reunião religiosa, mesmo em circunstância extremas, como numa guerra.

Não à toa, a decisão de Nunes Marques foi cassada pelo Plenário do STF dias depois.

Essas controvérsias da decisão do ministro Nunes Marques mostram como ela não só foi polêmica, mas foi também considerada errada e reformada por seus pares. O professor Conrado Hübner Mendes chamou atenção justamente para esses problemas da decisão e da postura do ministro Nunes Marques.

Mas, onde vimos debate público robusto, com escrutínio detalhado, normativo, institucional e de perfil de atuação, o ministro Nunes Marques viu ofensas à sua honra, sobretudo pelo cargo de ministro do STF que ocupa.

No entanto, ocupar cargo de ministro do STF deve ser motivo para estar sujeito a esse debate público robusto, a esse escrutínio detalhado. E não para fugir dele. Tampouco o cargo de ministro do STF deve servir para inibir a liberdade de pensamento e manifestação (art. 5º, IV, IX, CF/88), a liberdade de pesquisa, ensino e o pluralismo de ideias de um professor (art. 206, II, III, CF/88) que, sendo cientista, também escreve para o grande público em um dos maiores jornais do país.

O ministro Nunes Marques e sua representação à PGR parecem recair no mesmo equívoco de Augusto Aras. Confundem críticas contundentes com ofensas à sua honra. O cargo público que ocupam sujeitam o PGR, os ministros do STF, a um nível mais intenso de debate e críticas, pois o que fazem ou deixam de fazer interessa a todos nós. É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio STF tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4]. No caso específico, o debate sobre a decisão do ministro Nunes Marques ganha ainda mais importância neste momento de pandemia, onde sua decisão pode ter o efeito de reforçar ou enfraquecer o combate ao covid-19.

Assim, ainda que o ministro Nunes Marques se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão da decisão que tomou, dos efeitos dela decorrentes e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado. As representações do PGR Augusto Aras e do ministro do STF Nunes Marques, se submetidas a um controle de constitucionalidade ou controle de convencionalidade, não resistem, ao contrário, sucumbem à primeira análise, pois suportadas por argumentos outros que não jurídico-constitucionais ou jurídico-convencionais.

A Constituição brasileira de 1988 proíbe a censura (porque protege, garante, prestigia, obriga a observância da liberdade de expressão). A perseguição por agentes estatais a quem vocaliza e lhes dirige publicamente críticas é próprio de ditaduras.

É dado ao intelectual público, professor, pesquisador, analisar criticamente as instituições e seu agentes. Por sua vez, perseguir quem exerce tal mister é enfraquecer a democracia, rebaixar o debate público e socavar os direitos de liberdade. Esse tipo de conduta, uma espécie de ‘sabe com quem você está lidando?’ remete ao passado recente da nossa história política e constitucional, mas não passa ao escrutínio do seu presente e do seu futuro.

Como apontou Daniel Sarmento, não é preciso concordar com as críticas do professor Conrado Hübner Mendes, mas é preciso concordar com o seu direito de fazê-las. Outros ministros do STF também já foram duramente criticados, mas jamais recorreram a persecuções criminais ou civis, em respeito às regras do jogo democrático.

Augusto Aras e Nunes Marques fariam um bem à democracia e à honorabilidade dos cargos que ocupam se revissem suas condutas e retirassem as representações e queixas que apresentaram. Passariam pelo escrutínio do presente da democracia constitucional brasileira e projetariam seu futuro; estariam à altura das funções que exercem e do prestígio que a crítica pública invoca, quanto mais aquelas de um pesquisador e professor de escola.

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós, contra todos nós.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/critica-publica-e-um-sinal-vital-da-democracia-perseguicao-a-um-professor-nao-29072021