O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

A Constituição já consolidou o repúdio contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas

Por LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO, MIGUEL GUALANO DE GODOY e CAROLINA SANTANA

Em 5 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro prestou informações ao Supremo Tribunal Federal (STF), por intermédio da Advocacia-Geral da União (AGU), na ADI 6.622, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Partido dos Trabalhadores (PT). A ADI 6.622, questiona o art. 13 da Lei 14.021/2020, que permite a permanência de missões religiosas em comunidades indígenas.

A notícia foi veiculada, inclusive, pelo JOTA. No entanto, cabe ressaltar aqui, tanto para a notícia quanto para o caso, que não se trata de qualquer comunidade indígena que se está a falar, mas, sim, de indígenas que vivem em isolamento, os quais são considerados os mais vulneráveis do ponto de vista sócio-epidemiológico.[1]

Os povos indígenas isolados não são povos que vivem na ignorância, ou sem saber da existência de mundos outros que os seus, mas sim que, conscientemente, optaram por essa forma de vida. Em seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam.

Isso significa dizer que esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se desejam abrirem-se “ou não ao recebimento de religiosos”.

A restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987.[2] O caput do artigo 13, da Lei 14.021/2020, portanto, está em harmonia com a atual Política Brasileira de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados.

Isso porque a política indigenista adotada pelo Estado brasileiro, desde 1987 frise-se, possui como diretriz primordial o não contato com esses povos ou segmentos de povos, como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física.

Por outro lado, o parágrafo primeiro do artigo 13 da Lei 14.021/2020 contraria todo o arcabouço teórico e prático desta política, elaborada e aperfeiçoada ao longo de 33 anos.

Como mencionado anteriormente, o histórico dos contatos ocorridos antes de 1987 revela que contatá-los, como estratégia de proteção, é mais prejudicial do que não contatá-los e garantir a proteção do seu território.

Do ponto de vista epidemiológico, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas.

Apesar de o direito à vida, à autodeterminação e à saúde dessas populações estar garantido na Constituição de 1988, também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 18, item 3) garante que a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença e a liberdade de professar sua religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

E nada de antidemocrático há nisso. A democracia pressupõe o tratamento desigual aos desiguais. E aqui, incluem-se os indígenas e, sobretudo, os indígenas isolados.

Diante da vulnerabilidade sócio-epidemiológica de tais populações indígenas isoladas é dever do Estado – que o tem feito há mais de 30 anos – garantir tanto a liberdade religiosa quanto a autonomia pautada pela diversidade prevista em nossa Constituição Federal.

A autonomia neste caso é a autonomia de permanecer em isolamento, ainda que os missionários religiosos estejam bem de saúde. A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da Constituição.

Aliás, não deixa de ser curioso que tal liberação tenha se dado justamente em um governo que cada vez se mostra mais alinhado a valores de certas religiões e ainda de alguns grupos específicos e determinados.

Por fim, cabe especial crítica à afirmação da AGU de que a autora – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – não possui legitimidade para representar os povos indígenas. Ora, a APIB é a organização que representa nacionalmente os povos indígenas. Trata-se, aliás, da única entidade nacional de representação dos indígenas brasileiros.

De acordo com o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes  organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)[3]; (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia  Brasileira (COIAB)[4]; (iii) Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL)[5]; (iv)  Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE)[6];  (v) Conselho do Povo  Terena[7]; (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani[8]; e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa[9].

Ela está presente em mais de nove unidades da federação brasileira, satisfazendo o requisito assentado pela jurisprudência sobre o caráter nacional da entidade.

Além disso, o artigo 232 da CF/1988 já botou fim a essa discussão, pois garantiu aos indígenas legitimidade para defender em juízo seus direitos e interesses.

O próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade ativa da APIB para provocação do controle concentrado de constitucionalidade quando julgou a admissão da ADPF 709, proposta pela APIB para que o governo federal adote medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas.

A prática de deslegitimar os indígenas não é nova. Seja por meio de artifícios processuais como esses de que Jair Bolsonaro e sua AGU lançam mão na ADI 6.622, seja por meio de suas novas normativas como o art. 13, parágrafo único, da lei 14.021/2020.

Esse indigenismo de exceção que o Planalto e suas normas querem estabelecer, porém, merece não apenas especial atenção – sanitária, jurídica e social –, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

 

[1] RODRIGUES, D. A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no Brasil. OTCA: São Paulo, 2014. p. 80.

[2] Portaria nº 1900 e nº  1901, ambas de 06 de julho de 1987 e Portaria nº 1047 de 29 de agosto de 1988.

[3] Composta por povos presentes nos estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.

[4] Abrange povos dos estados do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, de Rondônia, de Roraima e do Tocantins.

[5] Representa povos localizados nos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

[6] Organização que abrange povos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.

[7] Organização tradicional de Mato Grosso do Sul.

[8] Localizada no estado do Mato Grosso do Sul.

[9] Abrange povos dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO – Advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris. Realizou estágio pós-doutoral na Brandon University, Canadá, com foco em conflitos territoriais indígenas. Integra o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Tortura da Organização Mundial de Combate à Tortura (OMCT).
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
CAROLINA SANTANA – Advogada. Indigenista. Doutoranda em Direito na UnB. Pesquisadora Visitante do ICS da Universidade de Lisboa. Assessora Jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato e Membro do Indigenous Peoples Rights International no Brasil.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-indigenismo-de-excecao-o-planalto-e-suas-novas-normativas-20022021

O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos

O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos

Resolução 364 é forte indicação de que Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção de direitos humanos

Por INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES, MELINA GIRARDI FACHIN e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

Resolução 364 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 12 de janeiro de 2021, criou a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o Estado brasileiro, vinculada ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).

Pela Resolução aprovada, caberá à Unidade de Monitoramento e Fiscalização, inter alia, manter banco de dados com as decisões da Corte Interamericana envolvendo o Brasil, providenciar o monitoramento e fiscalização do cumprimento das sentenças, medidas provisórias e opiniões consultivas da Corte Interamericana, sugerir propostas de melhor atendimento ao cumprimento de suas deliberações, verificar a tramitação dos processos e procedimentos relativos à reparação material e imaterial das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana, relatar anualmente as providências adotadas pelo Brasil para o cumprimento de tais decisões, bem assim acompanhar a implementação de parâmetros de direitos humanos estabelecidos pela Corte ou de outros instrumentos internacionais que que estabeleçam obrigações internacionais ao Brasil no âmbito dos direitos humanos (art. 2º).

Como se nota, a iniciativa é muito bem-vinda e consolida, ainda mais, a mirada multinível que o direito constitucional brasileiro aceitou pela própria opção constituinte, ao dar lugar de destaque ao direito internacional dos direitos humanos na nossa ordem jurídica interna, conforme expressamente prevê a cláusula de abertura contida no art. 5º, parágrafo 2º, segundo a qual os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros” decorrentes de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte.

Vivemos a emergência de um novo paradigma jurídico que conclama a necessidade dos diálogos entre as ordens interna e internacional. Presenciamos as modificações do direito internacional, a renovação do direito constitucional e, com isso, o redesenho do direito público do século XXI. Essa lógica “dialógica” começa, doravante, a ser também compreendida pelos órgãos de controle brasileiros, como é o caso do CNJ.

Mais do que monismos e dualismos e de regras obsoletas de resolução de antinomias baseadas num “monólogo” jurídico, o que agora se presencia é a emersão de uma nova arquitetura que não vê dentro e fora, mas, sim, coloca temas e sujeitos que transversalmente desafiam a nossa compreensão ainda fechada, dogmática e estática – ainda calcada no state centered approach.

Se até bem pouco tempo a lógica da resolução de antinomias entre o direito internacional e o direito interno era baseada nos critérios “clássicos” (hierárquico, da especialidade e cronológico) postos à disposição dos operadores jurídicos, hodiernamente o arsenal protetivo – proveniente de tratados internacionais de direitos humanos – colaciona novos elementos de resolução de controvérsias, que não se excluem mutuamente, mas são complementares uns dos outros. Nesse sentido, a crescente internacionalização dos direitos humanos acaba impactando no direito interno, o direito internacional se associa à ordem doméstica e essa nova ordem jurídica surge exuberante dessa catarse.

Doravante, como se nota, os direitos humanos ganham novos contornos e um colorido renovado provindo da interação da ordem internacional com a interna, no ensejo de melhor proteger o ser humano sujeito de direitos.

Essa nova ordem multifacetada – que agrega as normas internacionais e as normas internas – abandona a ideia de espacialidade única para trazer à luz a conexão plúrima de normas internacionais e internas, que poderão atuar em conjunto (e, portanto, simultaneamente) em prol da proteção dos direitos humanos.

Nesse sentido, novos espaços (da ordem interna e internacional) e atores (seja no reconhecimento das novas responsabilidades internacionais em relação a entes não estatais como as empresas; seja na incorporação de outros sujeitos de proteção, superando o paradigma antropocêntrico) demandam outra mirada da proteção dos direitos, do direito constitucional e do direito internacional, sem a qual as violações de direitos que a contemporaneidade apresenta não logram ser resolvidas integralmente. Assim, a restauração da coerência, no plano internacional, tem por consectário a abertura da ordem interna para o diálogo com a sociedade internacional, transformando as aberturas axiológicas em “razão de existir” do mundo contemporâneo.

Ademais, diante dessa ordem emergente se forma uma normatividade complexa impactada pela internacionalização e regionalização dos direitos humanos com o foco nas vítimas e nas vulnerabilidades que se pretende proteger. Trata-se do human centered approach, segundo o qual são os indivíduos e coletividades a se protegerem que iluminam a articulação dos diversos planos protetivos (global-regional-local) ao entorno da primazia da norma mais favorável à pessoa (princípio pro persona).

No âmbito interno, o direcionamento das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro não pode ser compreendido como de atuação exclusiva do Poder Executivo, no cumprimento das medidas internacionalmente estabelecidas. A complexidade das situações de violações a direitos humanos, especialmente nas democracias latino-americanas, que lutam para se consolidar em cenários de desigualdade social, econômica e cultural, exige o envolvimento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na realização de tarefas capazes de reverter a situação de inconvencionalidade identificada pelos órgãos de controle internacional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Muitas vezes, é preciso que os desenhos e a implementação de políticas públicas sejam alinhados à edição de leis e à garantia de institutos que permitam a vigilância e participação da sociedade, com amplo acesso à justiça e com a obtenção de respostas judiciais céleres, pautadas na perspectiva e nos pilares dos direitos humanos.

A previsão, na Resolução 364, da realização pelo DMF, de atividade de monitoramento e fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana, é forte indicação de que o Poder Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção dos direitos humanos. Essas boas expectativas se pautam no reconhecimento da DMF como uma unidade do CNJ que  funciona com excelência e de forma estruturada, com capilaridade e incidência em todo território brasileiro, por interfaces congêneres em todos os tribunais (os GMF – Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas).

Nesse sentido, vale destacar o relevante trabalho do DMF, de sistematização e divulgação de dados que permitem compreender o contexto da pandemia, tais como (i) o uso de recursos federais no combate à Covid-19, (ii) ações dos comitês locais de enfrentamento e a destinação de penas pecuniárias, bem como (iii) dados sobre equipamentos de prevenção, alimentação, materiais de higiene e de limpeza, medicamentos e testes sobre contágio.

Há um último ponto que merece ser iluminado: a referida Resolução tem uma ligação intrínseca e indissociável com o compromisso que o Judiciário assumiu com os chamados “17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e abre mais uma porta para valorização e cumprimento da Meta 9 do mesmo conselho, que prevê a integração da Agenda 2030 da ONU pelo Poder Judiciário. Dentre os 17 ODS, consagrou-se, em seu ODS 16, o compromisso de promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

Algumas metas deste ODS foram adequadas à realidade brasileira, como a de número 16.3 (Fortalecer o Estado de Direito e garantir acesso à justiça a todos, especialmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade), a de número 16.6 (Ampliar a transparência, a accountability e a efetividade das instituições, em todos os níveis), a de número 16.a (Fortalecer as instituições relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência, do crime e da violação dos direitos humanos) e a de número 16.b (Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias e afirmativas).

Muitos dos pontos aqui destacados encontram pouso nos consideranda que levaram o CNJ a adotar a bem-vinda Resolução 364, o que, a um só tempo demonstra que o órgão de controle brasileiro está afinado com os preceitos internacionalmente definitos e, além disso, toma atitudes proativas para o fim de lograr conjugação dos ditames internacionais estabelecidos com a aplicabilidade na ordem doméstica.

Tout court, o que se tem pela frente é o grande desafio de incorporar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos na jurisdição brasileira, numa conjugação de esforços na cooperação para a superação das violações graves de direitos humanos ocorridas todos os dias no Brasil. Essa tarefa, que já era necessária, foi amplificada e se revelou urgente, com a pandemia da Covid-19. Neste cenário, sempre com soluções articuladas e dialogadas, o desenvolvimento sustentável parece ser a trilha mais segura a ser seguida pelo sistema de justiça, para a abreviação dos pontos tortuosos que enfrentaremos no caminho pós-pandêmico.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3ª Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI – Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB, pós-doutor em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cnj-e-o-compromisso-do-judiciario-com-a-nova-arquitetura-dos-direitos-humanos-16022021

Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

De Marbury v Madison para Facebook v Trump

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOÃO VICTOR ARCHEGAS

 

Ao acordarem na manhã do dia 9 de novembro de 2016, diversos funcionários do Facebook foram surpreendidos pela notícia de que Donald Trump havia sido eleito presidente durante a madrugada. Observadores chegaram a relatar uma comoção generalizada no escritório da empresa em Menlo Park, Califórnia. Alguns empregados choravam e eram consolados pelos seus pares. No mesmo dia, Mark Zuckerberg convocou uma reunião de emergência para traçar os próximos passos da empresa na era Trump [1].

Durante uma entrevista dois dias depois, o CEO do Facebook disse que a acusação de que a rede social influenciou o resultado das eleições era, na sua percepção, uma “ideia maluca”.

Para ele, a prova cabal de que sua empresa não poderia ser responsabilizada pela ascensão de Trump era o fato de que as “fake news” representavam apenas uma ínfima parcela do conteúdo hospedado pela plataforma.

Ele apenas esqueceu de mencionar que é justamente essa pequena fatia do conteúdo que mais promove engajamento entre os usuários, polarizando o debate e contribuindo para a radicalização na Internet. Reconhecendo o erro, Zuckerberg se desculpou alguns meses depois.

De certa maneira, a presidência de Trump obrigou o Facebook a encarar e assumir suas responsabilidades na arena pública. Aceitar a existência do problema é sempre o primeiro passo para solucioná-lo. Nesse caso, a solução envolveu a criação de um órgão independente capaz de revisar as decisões de moderação de conteúdo na rede social.

O CEO, que até então tinha a última palavra sobre os limites da liberdade de expressão na plataforma, decidiu delegar seus poderes ao Oversight Board, um comitê de supervisão independente, criado especialmente para receber apelações de usuários insatisfeitos com as decisões da empresa.

No dia 6 de janeiro de 2021, durante a penúltima semana da administração Trump, a relação entre o quadragésimo quinto presidente dos EUA e seu megafone digital teve um final inesperado (embora não surpreendente).

Após instigar uma insurreição armada contra o Congresso – que estava, naquela ocasião, reunido para certificar a vitória de Joe Biden no colégio eleitoral –, Trump foi banido de diversas plataformas, incluindo Facebook, Twitter e YouTube.

Após a suspensão repercutir mundo afora, Zuckerberg decidiu acionar o Oversight Board e solicitar uma revisão da decisão. No dia 21 de janeiro o comitê aceitou o caso. A próxima etapa será a formação de um painel de cinco julgadores que terão até 90 dias para tomar uma decisão.

O caso Facebook v Trump (ou, oficialmente, 2021-001-FB-FBR) levanta uma importante discussão sobre os limites da jurisdição do comitê, o que poderá ter impactos diretos no processo de construção de sua legitimidade institucional.

Segundo seu estatuto, o Oversight Board pode revisar apenas casos envolvendo conteúdos que tenham sido removidos por violar as políticas do Facebook. O estatuto menciona que “no futuro” o comitê poderá expandir sua jurisdição para revisar, por exemplo, a remoção de perfis, páginas, grupos e até mesmo anúncios, mas não chega a dar uma data ou estipular uma condição para tal expansão.

Ou seja, ao menos em tese, a decisão de remover a conta de Trump do Facebook (e não um conteúdo específico) estaria fora da competência do comitê. Apesar disso, o Facebook se valeu da prerrogativa de sugerir casos diretamente ao Oversight Board para contornar essa barreira estatutária.

Por um lado, impedir que o comitê se pronunciasse sobre o caso seria um péssimo sinal para o futuro da instituição – afinal, ela foi criada justamente para revisar as decisões mais importantes tomadas pela empresa.

Banir Trump é, certamente, a mais importante até agora. Por outro lado, convidar o comitê a expandir sua jurisdição logo no início de suas operações envolve uma série de complexidades. Vale lembrar que o Oversight Board ainda não publicou nenhuma decisão e sequer teve todos os seus membros nomeados.

Esse certamente será um ponto de inflexão na ainda curta história do comitê. Instituições julgadoras, a exemplo de cortes constitucionais, precisam se ater aos desdobramentos de suas decisões. Trocar os pés pelas mãos, principalmente quando a instituição ainda não angariou uma “reserva de boa vontade”, pode ser fatal [2].

E é justamente aqui que o cálculo estratégico passa a ser importante. Apenas referendar a decisão do Facebook pode passar um sinal de fraqueza institucional. Para alívio do comitê, além de decidir o caso, o painel também poderá recomendar atualizações ou modificações às regras de moderação de conteúdo da rede social. Assim, é possível que o comitê, ao mesmo tempo, referende o banimento de Trump e reforçe a sua presença institucional ao iniciar um diálogo com a empresa.

De outra sorte, reverter a decisão do Facebook também pode ser um risco. Ainda que o comitê esteja reafirmando sua independência, pode ser uma decisão delicada demais e difícil de ser implementada, atraindo críticas incisivas por parte da opinião pública e desgastando a imagem do Oversight Board [3].

É importante ressaltar que a empresa assumiu um compromisso segundo o qual as decisões do comitê vinculariam o Facebook e seriam irrecorríveis. Nada obstante, uma decisão altamente impopular nesse estágio inicial pode fazer com que a empresa deixe de sugerir novos casos ao comitê no futuro, restringindo significativamente o escopo da sua jurisdição. Afinal, vale lembrar que esse caso só está sub judice porque o Facebook assim quis.

O Facebook Oversight Board está, portanto, diante de uma encruzilhada. Há mais de 200 anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos se deparou com um caminho bifurcado semelhante.

O caso Marbury v Madison, julgado em 1803, trouxe à tona justamente a discussão sobre o fundamento de legitimidade da Corte para realizar o controle judicial de constitucionalidade das leis que conflitam com a constituição. Tal como no caso Facebook v Trump, a Corte tinha duas opções.

Afirmar seu poder de invalidar as leis – algo que naquela época era muito discutível, já que a constituição norte-americana não previu expressamente essa competência para a Suprema Corte – ou ser deferente e declinar da revisão judicial que se reclamava às suas portas.

A Suprema Corte optou pelo primeiro caminho. O então presidente da Suprema Corte, John Marshall, desenvolveu um raciocínio tão lógico quanto bem fundamentado. Para ele, a nulidade da lei inconstitucional é uma decorrência lógica da supremacia da constituição sobre as demais leis.

Dessa forma, sendo a constituição a norma maior em um dado ordenamento jurídico, compete a todo juiz ou tribunal realizar a interpretação da constituição e da lei e, assim, negar aplicação a qualquer legislação que afronte a constituição.

Foi com base nesses argumentos que o caso Marbury v Madison assentou nos Estados Unidos o controle judicial de constitucionalidade, conferindo aos juízes e às cortes o poder de invalidar leis e atos normativos dos demais Poderes.

Mas é importante lembrar que Marshall, ao assim proceder, também se livrou de uma questão politicamente espinhosa. O presidente à época, Thomas Jefferson, havia instruído seu secretário de estado, James Madison, a não entregar à William Marbury o certificado de investidura no cargo de juiz da paz.

O certificado, por sua vez, foi um ato do presidente John Adams, derrotado nas urnas por Jefferson. Ou seja, se a Suprema Corte decidisse em favor de Marbury isso significaria impor uma derrota política ao atual presidente, potencialmente desgastando a imagem da instituição.

E que luzes o caso Marbury joga, então, sobre a encruzilhada do Oversight Board?

Por um lado, o caso demonstra a importância de se agir com cautela quando a decisão envolve uma possível expansão dos poderes da instituição. Em Marbury, Marshall habilmente construiu sua argumentação para reconhecer o poder de controle de constitucionalidade da Suprema Corte e, concomitantemente, evitar um conflito político com Thomas Jefferson.

Da mesma forma, o Oversight Board deverá ponderar a expansão de sua jurisdição neste estágio inicial de sua vida institucional vis-à-vis a alta voltagem política do caso Facebook v Trump.

Por outro lado, o exercício de uma competência que parece lógica, até mesmo natural, pode também ser instrumentalizada para a expansão dos próprios poderes do comitê. Afinal, se o caso Marbury assentou o controle judicial de leis, foi a partir dele que também se pavimentou o caminho para a afirmação da ideia de supremacia judicial.

Podemos, evidentemente, discordar desse caminho e compreensão tomados a partir do controle judicial de constitucionalidade. Mas, para o que importa ao caso Facebook v Trump, o reconhecimento em sua origem de um poder, de uma competência, criou também a ideia de que a última palavra sobre a interpretação da constituição ficaria nas mãos da Suprema Corte. Esperamos que o mesmo não aconteça com o Facebook e seu Oversight Board.

[1] Para uma descrição dos eventos daquele dia na sede do Facebook, ver Steven Levy, Facebook: The Inside Story, Penguin Business, pp. 333-67 (2020).

[2] James Gibson et alOn the Legitimacy of National High Courts, 92 The American Political Science Review 343 (1998).

[3] 93% dos especialistas em tecnologia ouvidos pelo Technology 202 do The Washington Post, por exemplo, concordam com a decisão de banir Trump de plataformas digitais.

 

JOÃO VICTOR ARCHEGAS – Mestre em Direito por Harvard e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-limites-da-jurisdicao-do-facebook-oversight-board-02022021