Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

De Marbury v Madison para Facebook v Trump

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOÃO VICTOR ARCHEGAS

 

Ao acordarem na manhã do dia 9 de novembro de 2016, diversos funcionários do Facebook foram surpreendidos pela notícia de que Donald Trump havia sido eleito presidente durante a madrugada. Observadores chegaram a relatar uma comoção generalizada no escritório da empresa em Menlo Park, Califórnia. Alguns empregados choravam e eram consolados pelos seus pares. No mesmo dia, Mark Zuckerberg convocou uma reunião de emergência para traçar os próximos passos da empresa na era Trump [1].

Durante uma entrevista dois dias depois, o CEO do Facebook disse que a acusação de que a rede social influenciou o resultado das eleições era, na sua percepção, uma “ideia maluca”.

Para ele, a prova cabal de que sua empresa não poderia ser responsabilizada pela ascensão de Trump era o fato de que as “fake news” representavam apenas uma ínfima parcela do conteúdo hospedado pela plataforma.

Ele apenas esqueceu de mencionar que é justamente essa pequena fatia do conteúdo que mais promove engajamento entre os usuários, polarizando o debate e contribuindo para a radicalização na Internet. Reconhecendo o erro, Zuckerberg se desculpou alguns meses depois.

De certa maneira, a presidência de Trump obrigou o Facebook a encarar e assumir suas responsabilidades na arena pública. Aceitar a existência do problema é sempre o primeiro passo para solucioná-lo. Nesse caso, a solução envolveu a criação de um órgão independente capaz de revisar as decisões de moderação de conteúdo na rede social.

O CEO, que até então tinha a última palavra sobre os limites da liberdade de expressão na plataforma, decidiu delegar seus poderes ao Oversight Board, um comitê de supervisão independente, criado especialmente para receber apelações de usuários insatisfeitos com as decisões da empresa.

No dia 6 de janeiro de 2021, durante a penúltima semana da administração Trump, a relação entre o quadragésimo quinto presidente dos EUA e seu megafone digital teve um final inesperado (embora não surpreendente).

Após instigar uma insurreição armada contra o Congresso – que estava, naquela ocasião, reunido para certificar a vitória de Joe Biden no colégio eleitoral –, Trump foi banido de diversas plataformas, incluindo Facebook, Twitter e YouTube.

Após a suspensão repercutir mundo afora, Zuckerberg decidiu acionar o Oversight Board e solicitar uma revisão da decisão. No dia 21 de janeiro o comitê aceitou o caso. A próxima etapa será a formação de um painel de cinco julgadores que terão até 90 dias para tomar uma decisão.

O caso Facebook v Trump (ou, oficialmente, 2021-001-FB-FBR) levanta uma importante discussão sobre os limites da jurisdição do comitê, o que poderá ter impactos diretos no processo de construção de sua legitimidade institucional.

Segundo seu estatuto, o Oversight Board pode revisar apenas casos envolvendo conteúdos que tenham sido removidos por violar as políticas do Facebook. O estatuto menciona que “no futuro” o comitê poderá expandir sua jurisdição para revisar, por exemplo, a remoção de perfis, páginas, grupos e até mesmo anúncios, mas não chega a dar uma data ou estipular uma condição para tal expansão.

Ou seja, ao menos em tese, a decisão de remover a conta de Trump do Facebook (e não um conteúdo específico) estaria fora da competência do comitê. Apesar disso, o Facebook se valeu da prerrogativa de sugerir casos diretamente ao Oversight Board para contornar essa barreira estatutária.

Por um lado, impedir que o comitê se pronunciasse sobre o caso seria um péssimo sinal para o futuro da instituição – afinal, ela foi criada justamente para revisar as decisões mais importantes tomadas pela empresa.

Banir Trump é, certamente, a mais importante até agora. Por outro lado, convidar o comitê a expandir sua jurisdição logo no início de suas operações envolve uma série de complexidades. Vale lembrar que o Oversight Board ainda não publicou nenhuma decisão e sequer teve todos os seus membros nomeados.

Esse certamente será um ponto de inflexão na ainda curta história do comitê. Instituições julgadoras, a exemplo de cortes constitucionais, precisam se ater aos desdobramentos de suas decisões. Trocar os pés pelas mãos, principalmente quando a instituição ainda não angariou uma “reserva de boa vontade”, pode ser fatal [2].

E é justamente aqui que o cálculo estratégico passa a ser importante. Apenas referendar a decisão do Facebook pode passar um sinal de fraqueza institucional. Para alívio do comitê, além de decidir o caso, o painel também poderá recomendar atualizações ou modificações às regras de moderação de conteúdo da rede social. Assim, é possível que o comitê, ao mesmo tempo, referende o banimento de Trump e reforçe a sua presença institucional ao iniciar um diálogo com a empresa.

De outra sorte, reverter a decisão do Facebook também pode ser um risco. Ainda que o comitê esteja reafirmando sua independência, pode ser uma decisão delicada demais e difícil de ser implementada, atraindo críticas incisivas por parte da opinião pública e desgastando a imagem do Oversight Board [3].

É importante ressaltar que a empresa assumiu um compromisso segundo o qual as decisões do comitê vinculariam o Facebook e seriam irrecorríveis. Nada obstante, uma decisão altamente impopular nesse estágio inicial pode fazer com que a empresa deixe de sugerir novos casos ao comitê no futuro, restringindo significativamente o escopo da sua jurisdição. Afinal, vale lembrar que esse caso só está sub judice porque o Facebook assim quis.

O Facebook Oversight Board está, portanto, diante de uma encruzilhada. Há mais de 200 anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos se deparou com um caminho bifurcado semelhante.

O caso Marbury v Madison, julgado em 1803, trouxe à tona justamente a discussão sobre o fundamento de legitimidade da Corte para realizar o controle judicial de constitucionalidade das leis que conflitam com a constituição. Tal como no caso Facebook v Trump, a Corte tinha duas opções.

Afirmar seu poder de invalidar as leis – algo que naquela época era muito discutível, já que a constituição norte-americana não previu expressamente essa competência para a Suprema Corte – ou ser deferente e declinar da revisão judicial que se reclamava às suas portas.

A Suprema Corte optou pelo primeiro caminho. O então presidente da Suprema Corte, John Marshall, desenvolveu um raciocínio tão lógico quanto bem fundamentado. Para ele, a nulidade da lei inconstitucional é uma decorrência lógica da supremacia da constituição sobre as demais leis.

Dessa forma, sendo a constituição a norma maior em um dado ordenamento jurídico, compete a todo juiz ou tribunal realizar a interpretação da constituição e da lei e, assim, negar aplicação a qualquer legislação que afronte a constituição.

Foi com base nesses argumentos que o caso Marbury v Madison assentou nos Estados Unidos o controle judicial de constitucionalidade, conferindo aos juízes e às cortes o poder de invalidar leis e atos normativos dos demais Poderes.

Mas é importante lembrar que Marshall, ao assim proceder, também se livrou de uma questão politicamente espinhosa. O presidente à época, Thomas Jefferson, havia instruído seu secretário de estado, James Madison, a não entregar à William Marbury o certificado de investidura no cargo de juiz da paz.

O certificado, por sua vez, foi um ato do presidente John Adams, derrotado nas urnas por Jefferson. Ou seja, se a Suprema Corte decidisse em favor de Marbury isso significaria impor uma derrota política ao atual presidente, potencialmente desgastando a imagem da instituição.

E que luzes o caso Marbury joga, então, sobre a encruzilhada do Oversight Board?

Por um lado, o caso demonstra a importância de se agir com cautela quando a decisão envolve uma possível expansão dos poderes da instituição. Em Marbury, Marshall habilmente construiu sua argumentação para reconhecer o poder de controle de constitucionalidade da Suprema Corte e, concomitantemente, evitar um conflito político com Thomas Jefferson.

Da mesma forma, o Oversight Board deverá ponderar a expansão de sua jurisdição neste estágio inicial de sua vida institucional vis-à-vis a alta voltagem política do caso Facebook v Trump.

Por outro lado, o exercício de uma competência que parece lógica, até mesmo natural, pode também ser instrumentalizada para a expansão dos próprios poderes do comitê. Afinal, se o caso Marbury assentou o controle judicial de leis, foi a partir dele que também se pavimentou o caminho para a afirmação da ideia de supremacia judicial.

Podemos, evidentemente, discordar desse caminho e compreensão tomados a partir do controle judicial de constitucionalidade. Mas, para o que importa ao caso Facebook v Trump, o reconhecimento em sua origem de um poder, de uma competência, criou também a ideia de que a última palavra sobre a interpretação da constituição ficaria nas mãos da Suprema Corte. Esperamos que o mesmo não aconteça com o Facebook e seu Oversight Board.

[1] Para uma descrição dos eventos daquele dia na sede do Facebook, ver Steven Levy, Facebook: The Inside Story, Penguin Business, pp. 333-67 (2020).

[2] James Gibson et alOn the Legitimacy of National High Courts, 92 The American Political Science Review 343 (1998).

[3] 93% dos especialistas em tecnologia ouvidos pelo Technology 202 do The Washington Post, por exemplo, concordam com a decisão de banir Trump de plataformas digitais.

 

JOÃO VICTOR ARCHEGAS – Mestre em Direito por Harvard e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-limites-da-jurisdicao-do-facebook-oversight-board-02022021