O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

A Constituição já consolidou o repúdio contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas

Por LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO, MIGUEL GUALANO DE GODOY e CAROLINA SANTANA

Em 5 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro prestou informações ao Supremo Tribunal Federal (STF), por intermédio da Advocacia-Geral da União (AGU), na ADI 6.622, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Partido dos Trabalhadores (PT). A ADI 6.622, questiona o art. 13 da Lei 14.021/2020, que permite a permanência de missões religiosas em comunidades indígenas.

A notícia foi veiculada, inclusive, pelo JOTA. No entanto, cabe ressaltar aqui, tanto para a notícia quanto para o caso, que não se trata de qualquer comunidade indígena que se está a falar, mas, sim, de indígenas que vivem em isolamento, os quais são considerados os mais vulneráveis do ponto de vista sócio-epidemiológico.[1]

Os povos indígenas isolados não são povos que vivem na ignorância, ou sem saber da existência de mundos outros que os seus, mas sim que, conscientemente, optaram por essa forma de vida. Em seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam.

Isso significa dizer que esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se desejam abrirem-se “ou não ao recebimento de religiosos”.

A restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987.[2] O caput do artigo 13, da Lei 14.021/2020, portanto, está em harmonia com a atual Política Brasileira de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados.

Isso porque a política indigenista adotada pelo Estado brasileiro, desde 1987 frise-se, possui como diretriz primordial o não contato com esses povos ou segmentos de povos, como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física.

Por outro lado, o parágrafo primeiro do artigo 13 da Lei 14.021/2020 contraria todo o arcabouço teórico e prático desta política, elaborada e aperfeiçoada ao longo de 33 anos.

Como mencionado anteriormente, o histórico dos contatos ocorridos antes de 1987 revela que contatá-los, como estratégia de proteção, é mais prejudicial do que não contatá-los e garantir a proteção do seu território.

Do ponto de vista epidemiológico, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas.

Apesar de o direito à vida, à autodeterminação e à saúde dessas populações estar garantido na Constituição de 1988, também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 18, item 3) garante que a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença e a liberdade de professar sua religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

E nada de antidemocrático há nisso. A democracia pressupõe o tratamento desigual aos desiguais. E aqui, incluem-se os indígenas e, sobretudo, os indígenas isolados.

Diante da vulnerabilidade sócio-epidemiológica de tais populações indígenas isoladas é dever do Estado – que o tem feito há mais de 30 anos – garantir tanto a liberdade religiosa quanto a autonomia pautada pela diversidade prevista em nossa Constituição Federal.

A autonomia neste caso é a autonomia de permanecer em isolamento, ainda que os missionários religiosos estejam bem de saúde. A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da Constituição.

Aliás, não deixa de ser curioso que tal liberação tenha se dado justamente em um governo que cada vez se mostra mais alinhado a valores de certas religiões e ainda de alguns grupos específicos e determinados.

Por fim, cabe especial crítica à afirmação da AGU de que a autora – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – não possui legitimidade para representar os povos indígenas. Ora, a APIB é a organização que representa nacionalmente os povos indígenas. Trata-se, aliás, da única entidade nacional de representação dos indígenas brasileiros.

De acordo com o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes  organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)[3]; (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia  Brasileira (COIAB)[4]; (iii) Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL)[5]; (iv)  Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE)[6];  (v) Conselho do Povo  Terena[7]; (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani[8]; e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa[9].

Ela está presente em mais de nove unidades da federação brasileira, satisfazendo o requisito assentado pela jurisprudência sobre o caráter nacional da entidade.

Além disso, o artigo 232 da CF/1988 já botou fim a essa discussão, pois garantiu aos indígenas legitimidade para defender em juízo seus direitos e interesses.

O próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade ativa da APIB para provocação do controle concentrado de constitucionalidade quando julgou a admissão da ADPF 709, proposta pela APIB para que o governo federal adote medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas.

A prática de deslegitimar os indígenas não é nova. Seja por meio de artifícios processuais como esses de que Jair Bolsonaro e sua AGU lançam mão na ADI 6.622, seja por meio de suas novas normativas como o art. 13, parágrafo único, da lei 14.021/2020.

Esse indigenismo de exceção que o Planalto e suas normas querem estabelecer, porém, merece não apenas especial atenção – sanitária, jurídica e social –, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

 

[1] RODRIGUES, D. A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no Brasil. OTCA: São Paulo, 2014. p. 80.

[2] Portaria nº 1900 e nº  1901, ambas de 06 de julho de 1987 e Portaria nº 1047 de 29 de agosto de 1988.

[3] Composta por povos presentes nos estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.

[4] Abrange povos dos estados do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, de Rondônia, de Roraima e do Tocantins.

[5] Representa povos localizados nos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

[6] Organização que abrange povos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.

[7] Organização tradicional de Mato Grosso do Sul.

[8] Localizada no estado do Mato Grosso do Sul.

[9] Abrange povos dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO – Advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris. Realizou estágio pós-doutoral na Brandon University, Canadá, com foco em conflitos territoriais indígenas. Integra o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Tortura da Organização Mundial de Combate à Tortura (OMCT).
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
CAROLINA SANTANA – Advogada. Indigenista. Doutoranda em Direito na UnB. Pesquisadora Visitante do ICS da Universidade de Lisboa. Assessora Jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato e Membro do Indigenous Peoples Rights International no Brasil.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-indigenismo-de-excecao-o-planalto-e-suas-novas-normativas-20022021