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Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós.

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e VERA KARAM DE CHUEIRI

Depois de o procurador-geral da República, Augusto Aras, perseguir o professor Conrado Hübner Mendes por suposta violação à honra e violação ética, agora é a vez de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques se melindrar com as críticas do professor Conrado e também pedir instauração de persecução penal contra ele.

O ministro Nunes Marques entendeu que as críticas que o professor Conrado fez a ele em seu artigo “O STF come o pão que o STF amassou”, publicado em sua coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, são “afirmações falsas e/ou lesivas” à sua honra. E que “em razão das funções que exerce” no STF pode haver crime de calúnia, injúria e difamação.

O artigo do professor Conrado foi publicado em abril e criticava de forma contundente a decisão de Nunes Marques que autorizou, sozinho, em medida liminar monocrática, a realização de cultos presenciais durante a pandemia, colocando abaixo normas regionais ou locais que vedavam temporariamente a realização de celebrações religiosas para tentar controlar a pandemia. Na época da decisão do ministro Nunes Marques e da publicação do artigo escrito por Conrado Hübner Mendes, já tínhamos mais de 330 mil mortos. Nunes Marques não viu aí um empecilho. Atualmente já temos mais de meio milhão de vidas perdidas.

Voltando à decisão monocrática do ministro Nunes Marques: ela foi contra o Plenário do STF, pois afrontava o entendimento unânime da Corte, tomado na ADPF 703, que não reconhecia a legitimidade ativa da Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) para a propositura de ADPF. O ministro Nunes Marques integrou o julgamento da ADPF 703. Mas, mesmo assim, a nova decisão de Nunes Marques suplantou o Plenário, e não só reconheceu a legitimidade da ANAJURE como deferiu o pedido liminar.

A decisão de Nunes Marques foi um típico caso de decisionismo individual, onde a posição pessoal e particular do ministro vale mais do que a decisão do Plenário do STF e se sobrepõe à posição institucional já consolidada do Tribunal. Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Pereira, que há muito pesquisam sobre o STF, demostraram como essa decisão foi uma das piores da história do STF, pela falta de plausibilidade do pedido ou perigo na demora. No mérito, apontam o mal uso da jurisprudência do STF, o uso equivocado de decisão da Suprema Corte dos EUA, sem falar no argumento absurdo acerca do direito de reunião religiosa, mesmo em circunstância extremas, como numa guerra.

Não à toa, a decisão de Nunes Marques foi cassada pelo Plenário do STF dias depois.

Essas controvérsias da decisão do ministro Nunes Marques mostram como ela não só foi polêmica, mas foi também considerada errada e reformada por seus pares. O professor Conrado Hübner Mendes chamou atenção justamente para esses problemas da decisão e da postura do ministro Nunes Marques.

Mas, onde vimos debate público robusto, com escrutínio detalhado, normativo, institucional e de perfil de atuação, o ministro Nunes Marques viu ofensas à sua honra, sobretudo pelo cargo de ministro do STF que ocupa.

No entanto, ocupar cargo de ministro do STF deve ser motivo para estar sujeito a esse debate público robusto, a esse escrutínio detalhado. E não para fugir dele. Tampouco o cargo de ministro do STF deve servir para inibir a liberdade de pensamento e manifestação (art. 5º, IV, IX, CF/88), a liberdade de pesquisa, ensino e o pluralismo de ideias de um professor (art. 206, II, III, CF/88) que, sendo cientista, também escreve para o grande público em um dos maiores jornais do país.

O ministro Nunes Marques e sua representação à PGR parecem recair no mesmo equívoco de Augusto Aras. Confundem críticas contundentes com ofensas à sua honra. O cargo público que ocupam sujeitam o PGR, os ministros do STF, a um nível mais intenso de debate e críticas, pois o que fazem ou deixam de fazer interessa a todos nós. É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio STF tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4]. No caso específico, o debate sobre a decisão do ministro Nunes Marques ganha ainda mais importância neste momento de pandemia, onde sua decisão pode ter o efeito de reforçar ou enfraquecer o combate ao covid-19.

Assim, ainda que o ministro Nunes Marques se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão da decisão que tomou, dos efeitos dela decorrentes e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado. As representações do PGR Augusto Aras e do ministro do STF Nunes Marques, se submetidas a um controle de constitucionalidade ou controle de convencionalidade, não resistem, ao contrário, sucumbem à primeira análise, pois suportadas por argumentos outros que não jurídico-constitucionais ou jurídico-convencionais.

A Constituição brasileira de 1988 proíbe a censura (porque protege, garante, prestigia, obriga a observância da liberdade de expressão). A perseguição por agentes estatais a quem vocaliza e lhes dirige publicamente críticas é próprio de ditaduras.

É dado ao intelectual público, professor, pesquisador, analisar criticamente as instituições e seu agentes. Por sua vez, perseguir quem exerce tal mister é enfraquecer a democracia, rebaixar o debate público e socavar os direitos de liberdade. Esse tipo de conduta, uma espécie de ‘sabe com quem você está lidando?’ remete ao passado recente da nossa história política e constitucional, mas não passa ao escrutínio do seu presente e do seu futuro.

Como apontou Daniel Sarmento, não é preciso concordar com as críticas do professor Conrado Hübner Mendes, mas é preciso concordar com o seu direito de fazê-las. Outros ministros do STF também já foram duramente criticados, mas jamais recorreram a persecuções criminais ou civis, em respeito às regras do jogo democrático.

Augusto Aras e Nunes Marques fariam um bem à democracia e à honorabilidade dos cargos que ocupam se revissem suas condutas e retirassem as representações e queixas que apresentaram. Passariam pelo escrutínio do presente da democracia constitucional brasileira e projetariam seu futuro; estariam à altura das funções que exercem e do prestígio que a crítica pública invoca, quanto mais aquelas de um pesquisador e professor de escola.

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós, contra todos nós.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/critica-publica-e-um-sinal-vital-da-democracia-perseguicao-a-um-professor-nao-29072021

O ministro pode até ser ‘terrivelmente evangélico’, o tribunal não!

O ministro pode até ser ‘terrivelmente evangélico’, o tribunal não!

Por Gustavo Buss e Estefânia Maria de Queiroz Barboza

O presidente Jair Bolsonaro sempre deixou muito transparente sua insatisfação com decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que, em sua visão, afrontariam a moralidade cristã majoritariamente compartilhada pela população brasileira. Em sua participação na 27ª Marcha para Jesus, ocorrida no dia 20/6/2019, exprimiu a célebre visão de que o Estado é laico, mas ele é cristão. Ao mesmo tempo, cunhou-se a promessa de indicação de alguém “terrivelmente evangélico” ao Supremo, que acabou não se confirmando na decisão do substituto do ministro Celso de Mello. No entanto, logo após sua primeira indicação ao STF, em outubro de 2020, Bolsonaro fez questão de repisar o compromisso de outrora: Mais que terrivelmente evangélico, se Deus quiser nós teremos lá dentro um pastor”.

Com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio, restou ao presidente a tarefa de confirmar sua promessa. No último dia 13, foi finalmente oficializada a indicação do advogado-geral da União, André Mendonça, para a vaga. Bolsonaro parece ter encontrado seu ministro “terrivelmente evangélico” na figura do advogado, que é também pastor presbiteriano. Tal característica poderia até se atenuar em face do compromisso constitucional a ser assumido, não tivesse o presidente pedido a ele que, uma vez por semana, comece a sessão (no Supremo) com uma oração.

O argumento que aparece subjacente à postura de Bolsonaro é o de que o STF teria uma composição muito destoante daquela encontrada no povo brasileiro. Os ministros seriam em grande medida antirreligiosos, ao menos segundo o raciocínio avançado pelas correntes bolsonaristas, enquanto a nossa população ostentaria fortes raízes cristãs. Entretanto, em análise conduzida em 2019 se constatou o oposto. Sete ministros se declaravam católicos, dois se declaravam judeus e apenas dois não informavam professar uma religião específica.

ADI nº 4439, de relatoria do ministro Roberto Barroso, julgada em setembro de 2017, é igualmente ilustrativa do papel que a religiosidade ocupa dentro da nossa Corte Constitucional. Naquela ocasião, foi enfrentada a questão particularmente sensível acerca da possibilidade de oferta de ensino religioso confessional em escolas públicas. A posição do relator, seguida por uma minoria em plenário, caminhava no sentido da inconstitucionalidade com base na exigência da laicidade, revelando algum indício de antirreligiosidade. No entanto, é relevante destacar que a posição majoritária e vencedora afirmou o contrário. O ministro Alexandre de Moraes, em voto que conduziu a maioria, destacou expressamente que o Estado, embora laico, jamais poderá neutralizar o ensino religioso e nem tampouco censurar a livre manifestação de concepções religiosas em sala de aula. Seguindo tal raciocínio, o ministro Gilmar Mendes destacou até mesmo a influência cristã na formação cultural do Estado brasileiro, que tornaria legítima a presença de símbolos religiosos em espaços públicos.

Essa breve constatação já permite apontar que o Supremo ostenta uma composição fortemente marcada pelo traço da religiosidade judaico-cristã. Nesse contexto, a insistente promessa do presidente parece denotar algo além. Ele parece combater a ideia de que, mesmo religiosos, os ministros possam colocar suas convicções pessoais e crenças de lado para que, no momento do julgamento, se atenham a uma racionalidade estritamente constitucional. Sua fala vai diretamente de encontro àquela proferida pela ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI nº 3510, em 2010, que discutia a constitucionalidade da pesquisa em células-tronco embrionárias. Ela ressaltava, com ancoro em sua posição institucional: “Aqui, a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz, no foro, cultua o Direito”. Um ministro “terrivelmente evangélico” seria, em contraponto, aquele que sobreporia a moralidade religiosa aos ditames da Constituição que está comprometido a proteger.

O Estado brasileiro, assentado na Constituição Federal de 1988, deve ser compreendido como um Estado que, embora não seja antirreligioso, é definitivamente laico. Isso significa dizer que todas as expressões religiosas professadas em sua circunscrição devem ser igualmente protegidas, prezando-se pela diversidade, sem que nenhuma assuma posição privilegiada. De outro lado, essa mesma concepção de laicidade passa a demandar a construção de deliberações consensuais mínimas, que permitam a condução da vida pública sem que quaisquer cosmovisões se imponham às demais.

O Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição, se eleva como instituição necessariamente afeta às limitações da laicidade. Ainda que a população brasileira seja majoritariamente cristã, seu papel não deve ser o de endosso aos conceitos morais específicos do cristianismo. Historicamente, o papel do Supremo tem sido reiteradamente o de proteção às minorias e garantia dos postulados básicos conscritos no texto constitucional, especialmente fundamentado no pluralismo. Destarte, qualquer predisposição individual “terrivelmente religiosa”, quando concebida sob o prisma institucional, deve se converter em uma defesa “terrivelmente constitucional” do primado da liberdade religiosa que assegura igual trato e consideração a todas as manifestações de crença e fé individual, inclusive a de não manifestar ou professar qualquer fé ou religião.

A imposição de uma moralidade unívoca e fundamentalista é incompatível com o quadro constitucional protetivo à diferença. Mesmo que se reconheça nas diferentes religiões expressões culturais importantes, a possibilidade de justificação pública exige que qualquer argumento absolutista seja excluído do embate político. Nesse sentido, a pretensão de que o STF tenha suas sessões iniciadas com uma oração ecoa a limitação da visão do presidente Bolsonaro acerca do que seja o real compromisso do Estado republicano com a tutela isonômica dos seus cidadãos. Sua defesa de uma moralidade religiosa revela uma visão fortemente centrada no absolutismo de determinadas verdades preconcebidas, que ameaçam a existência da diversidade enquanto fenômeno de um constitucionalismo comprometido com o pluralismo.

Não é difícil constatar que os ministros da corte já expressam, cada um, sua própria religiosidade. Assim, a nomeação de um ministro evangélico não deveria ser elemento de acentuada ênfase. A diversidade na composição do STF é salutar e apenas reforça a exigência de construções consensuais. É através da negociação das diferenças que se permitirá alcançar um resultado institucional verdadeiramente democrático e plural, aberto à experiência da diversidade. Se cada indivíduo carrega consigo sua específica visão de mundo, é no diálogo estabelecido entre eles, centrado no compromisso de respeito mútuo, que se afirmará o compromisso constitucional.

Portanto, resta plenamente aceitável que um ministro revele um forte compromisso pessoal com determinada fé, mas nunca se poderá admitir que o tribunal, enquanto instituição, partilhe qualquer preferência a um ou outro credo. Isso porque, embora cada ministro ingresse no processo deliberativo carregando sua própria bagagem, o resultado deliberativo que se pretenda universalmente oponível deve, invariavelmente, racionalizá-las. É inafastável o compromisso mínimo com o consenso, ainda que tal consenso deva ser tomado como precário, já que sempre sujeito à renegociação.

A atividade decisória, em particular, exige que se compatibilizem diferentes cosmovisões a fim de permitir um convívio social que não resulte no favorecimento do cristianismo hegemônico em detrimento de expressões religiosas minoritárias, já que dotadas de igual dignidade constitucional. É justamente por isso que o Supremo não deve nunca iniciar suas atividades com uma oração, ao contrário do requerido pelo presidente ao seu novo ministro “terrivelmente evangélico”, se aprovado pelo Senado Federal. É preciso que se reconheça e que se reforce a missão institucional do STF, que não é a do endosso a qualquer moralidade unívoca, ainda que majoritária, mas a de proteção isonômica a todas as expressões de religiosidade e, até mesmo, de não religiosidade.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/buzz-barboza-ministro-terrivelmente-evangelico

A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

Poderes do relator e decisões monocráticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

O ministro Marco Aurélio Mello foi, sem dúvida, um ministro marcante e importante na história do Supremo Tribunal Federal (STF).

Marcante por seus votos – vencedores, vencidos e que se tornaram vencedores, ou que ficaram mesmo como votos vencidos clivando o Plenário. E marcante ainda por sua postura e comportamento públicos – quase sempre disposto a falar e a dar a sua opinião publicamente.

Um ministro importante porque é um ministro longevo como poucos, e que por isso teve o que muito poucos ministros têm – tempo! Um grande tempo de mandato na Corte[1]. E assim, não só integrou diferentes composições do Supremo, como também participou de praticamente todos os principais casos do STF.

Marco Aurélio Mello no colegiado do STF

O meu ângulo de análise aqui se circunscreve à atuação do ministro Marco Aurélio no colegiado, especificamente sobre poderes do relator e decisões monocráticas. E esse é um ângulo generoso porque não é agudo. Ao contrário, é um ângulo obtuso, bastante aberto. Por isso, eu separei esta breve análise em 3 pontos:

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento;

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos.

3 – As lições que ficam do ministro Marco Aurélio.

Vejamos.

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento

O ministro Marco Aurélio em diversas oportunidades fez questão de registrar que sempre se dispôs a ir aberto a toda e qualquer rota do caso a partir das sustentações orais e do voto do relator. Afinal, como ele diz “eu não troco figurinhas”, quando outros ministros o procuram para uma decisão consensual – passagem, muito bem contada no livro Os Onze, do Felipe Recondo e Luiz Weber[2].

Essa forma de se colocar e atuar tem um aspecto positivo, relevante e pouco praticado hoje no Supremo: o de estar aberto à deliberação e a um trabalho efetivamente em colegiado; de se deixar ser persuadido pelas sustentações orais, pelo voto indicativo do ministro relator e se engajar numa troca de argumentos a partir desses pontos de partida.

Por outro lado, essa forma de se colocar e atuar também tem um aspecto negativo: se ele “não troca figurinhas”, então quando precisa decidir, ele decide sem avisar ninguém. E decide sozinho. Não tem deliberação e não tem colegiado. O caso da ADPF 402, sobre quem pode ou não ocupar os cargos que estão na linha de substituição do presidente da república (art. 80, CRFB/88) ilustrou bem esse aspecto negativo.

O ministro Teori Zavascki, no auge da Lava jato, era relator de um pedido de medida cautelar feito pela Procuradoria-Geral da República para afastar o então presidente da Câmara dos Deputados – deputado Eduardo Cunha. Mas o ministro Teori não decidiu de plano. Enquanto Teori analisava o pedido e decidia se afastava ou não o dep. Eduardo Cunha da presidência da Câmara, a Rede Sustentabilidade ajuizou a ADPF 402, sob o argumento de que quem ocupa cargo que está na linha de substituição do presidente da república (presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF), não pode ser réu em ação penal, pois se o presidente da república se torna réu por crime comum, ele fica suspenso de suas funções (art. 86, §1°, CRFB/88). Como o deputado Eduardo Cunha havia se tornado réu perante o STF, a Rede pediu o seu afastamento imediato da presidência da Câmara dos Deputados. E a ADPF 402 foi distribuída para o ministro Marco Aurélio.

Naqueles idos de 2016, os tempos eram super turbulentos, fosse em razão da Lava Jato, fosse em razão da tensão política e da ameaça de impeachment que caminhava em marcha rápida (e que hoje em dia nem anda). O ministro Marco Aurélio não falou com ninguém, e ninguém foi falar com ele. Mas dava para imaginar que ele poderia dar a liminar sozinho e afastar Cunha. O ministro Teori então, numa decisão concertada com outros ministros, retomou aquele pedido cautelar da PGR e afastou o deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, e levou a liminar para referendo do Plenário logo em seguida.

O resultado, como sabemos, foi 11×0 pelo afastamento de Cunha. Mas, e a ADPF 402 do ministro Marco Aurélio? Ficou para outro momento. Mas voltou à tona, meses depois, com pedido de afastamento do então presidente do Senado – senador Renan Calheiros, que também havia se tornado réu. O ministro Marco Aurélio desta vez fez o que se supôs antes: deu a liminar e determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado[3].

A confusão não foi pequena. Renan Calheiros se recusou a receber a intimação da decisão. No referendo da decisão, o ministro Marco Aurélio ficou vencido e o STF decidiu que quem ocupa cargo da linha de substituição do presidente da república e também está na condição de réu, não pode assumir a presidência da república, mas tampouco está impedido de continuar a exercer a chefia de seu órgão de origem.

O caso da ADPF 402 reflete bem aqui como interagir com os pares, trocar figurinhas, não só não é vedado, nem necessariamente ruim, como pode ser também importante e, às vezes, até mesmo necessário, como bem percebeu o ministro Teori Zavascki. E também como ficou nítido com a solução intermediária encontrada pelo Plenário do STF.

Estar aberto a um trabalho colegiado e ao desenvolvimento deliberativo do julgamento não significa que o único modo de interação entre os ministros se restrinja ao espaço do plenário. Trocar figurinhas pode ser também trocar argumentos, refinar posições, não necessariamente combinar votos. A lição que fica dessa postura e modo de atuar do ministro Marco Aurélio é como o colegiado importa, como o julgamento e suas etapas podem ser mais bem aproveitados pelos ministros. Mas também como é possível e necessário haver maior e melhor interação entre eles.

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos

O ministro Marco Aurélio sempre disse julgar de acordo com a ciência e consciência possuídas. Recorreu a essa dupla – ciência e consciência – em inúmeras ocasiões[4] para demonstrar seu rigor no seguimento da ciência do direito e sua coerência com sua consciência. Nunca explicou muito bem que rigor é esse (um rigor normativo? Interpretativo? De qual interpretação? Um rigor fiel ao que já fora decidido antes pelo STF?). E nem tampouco que consciência é essa (é uma consciência de si, e para os outros? Uma consciência sobre suas compreensões sobre o direito e, assim, sobre sua consequente uniformidade decisória?). É difícil dizer. Mas nosso papel é analisar essa atuação do ministro e essa dupla argumentativa – ciência e consciência – sob a melhor luz. Ou seja, sob o melhor modo para se poder entender a atuação do ministro Marco Aurélio – alguém que busca se manter fiel à Constituição (o rigor da ciência) e que não abre mão de uma atuação coerente no exercício de sua função (a retidão de sua consciência).

Mas, se isso mostra rigor e coerência, também não pode contradizer àquela abertura ao julgamento e ao trabalho em colegiado? Até que ponto ciência e consciência são balizas firmes, que até podem alterar-se diante de um julgamento colegiado que mostre a evolução necessária (seja do direito, seja da consciência sobre o direito)? Ou são apenas pilares que firmam uma recalcitrância? A resposta mais imediata que talvez venha à lume é dada pelo próprio ministro Marco Aurélio: “não tenho compromisso com meus erros”, já disse ele várias vezes, no Plenário ou fora dele, para mostrar que está aberto a mudanças. Mas é exatamente aí que pode estar também uma chave de leitura que mostra um lado positivo e um negativo desse tipo de postura.

O rigor com o direito e com sua consciência coerente são bem-vindos. Não há dúvida disso. Por outro lado, as mudanças têm que ser dele, pessoal e individualmente, e não do Tribunal. Se ele não muda, se sua consciência não muda, então o direito também não pode mudar. Nada mais individual e individualista. Sob a roupagem de estar aberto ao colegiado, em realidade ele apenas colegiadamente se abre a si próprio. O compromisso então parece ser mais com ele do que com o colegiado. E o que me faz ter essa impressão é a postura que ele tem de ser recalcitrante e atuar contra o plenário quando ele mesmo já ficou vencido.

Dois casos são significativos: o da liminar monocrática suspendendo a execução da pena após condenação em segunda instância, na ADC 54. E a liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54.

No caso da ADC 54, o ministro Marco Aurélio, às vésperas do recesso judiciário de 2018, suspendeu a execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado, quando a orientação prevalecente até então no plenário era pela possibilidade da execução provisória da pena após condenação em segundo grau. Ele decidiu sozinho, sem consultar ninguém, de acordo com sua ciência e consciência, no último dia antes do recesso e contra decisão e entendimento vigentes do plenário. Não era só um entendimento vencido, ou um desacordo, mas a imposição de uma posição individual. E contra a autoridade do plenário.

A atitude não foi surpreendente. Quatorze anos antes, em 2004, quando as monocráticas não eram comuns e nem ordinárias, o ministro Marco Aurélio fez a mesma coisa: no último dia antes do recesso, deu uma liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54. Quando sua decisão foi levada ao Plenário, recebeu críticas fortes do ministro Joaquim Barbosa, que concordava com o mérito da decisão, mas discordou veementemente da forma monocrática com que decidira, e ainda às vésperas do recesso[5]. Marco Aurélio, com sua ciência e consciência, havia decidido sozinho e esvaziado o órgão que mais prezava – o plenário.

O mesmo aconteceu na ADC 54. Diante de recurso interposto pela PGR no mesmo dia, o então presidente do STF – ministro Dias Toffoli, suspendeu a liminar de Marco Aurélio e agendou o julgamento do caso quando da retomada dos trabalhos no ano seguinte. A posição do ministro Marco Aurélio acabou se tornando vencedora no fim de 2019. Mas sua decisão, baseada em sua ciência e consciência, menos informou o plenário sobre a controvérsia, e mais parece ter sido produto de sua idiossincrasia, já que na prática, conforme observou Diego Werneck Arguelhes, ela praticamente equivaleu a fazer o que o ministro quis e quando quis porque tinha certeza de que a sua postura era a correta.

Esses dois casos são significativos porque mostram como a dupla ciência e consciência pode ser bom guia de retidão e conduta grave. Mas não garante por si só que assim será a decisão ou a postura do ministro. E nem que contribuirá com o plenário.

3- As lições que ficam do ministro Marco Aurélio Mello

O ministro Marco Aurélio, como todo trabalhador cioso de seu ofício, sempre buscou fazer o melhor. E nos deu o seu melhor. Teve tempo, trabalho, experiência e possibilidades para formar e conformar o plenário, para vencer e ficar vencido. Sua postura grave, sempre pública e transparente, sua busca por rigor e coerência são a prova disso. Os possíveis erros, as possíveis falhas, não devem servir aqui para diminuir essa grandeza, mas para mostrarem e reafirmarem um caminho e um local bastante esquecidos ultimamente: o colegiado e o plenário do Supremo Tribunal Federal.

[1] O ministro Marco Aurélio Mello terá sido ministro por 31 anos e 29 dias ao se aposentar quando faz 75 anos em 12/07/2021 (sete dias a mais do que teria se tivesse se aposentado em 05/07/2021, como havia antecipado antes de mudar de decisão). Será, assim, o segundo ministro mais longevo do STF desde a instauração da República. O ministro mais longevo é o min. Celso de Mello, que ficou 31 anos 1 mês e 26 dias. O ministro Marco Aurélio tinha 43 anos quando tomou posse como ministro do STF. Nasceu em 12/07/1946 e tomou posse em 13/06/1990, ocupando a cadeira do ministro Carlos Alberto Madeira.

[2] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277.

[3] O episódio é narrado em detalhes no livro Os Onze e vale ser lido para se ter ideia das nuances do ambiente antes, durante e após a decisão. Vide: RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 234-246.

[4] Mencione-se, exemplificativamente, seu discurso em 06/11/2008; discurso proferido em 17/06/2010, quando fez vinte anos de judicatura no STF; voto vencido na ADI 3.330/DF sobre o PROUNI, julgada em 03/05/2012; entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 31/05/2012; voto nas ADCs 43 e 44 sobre execução provisória da pena após condenação em segunda instância, julgadas em 23/10/2019. Esses e outros exemplos também constam do livro comemorativo dos 25 anos do ministro Marco Aurélio Mello no STF e editado pelo próprio Tribunal. Vide:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalComemoracoes/anexo/Ministro_Marco_Aurelio_25_anos_no_STF.pdf

A Ed. Migalhas também editou um livro intitulado “Marco Aurélio Mello: Ciência e Consciência”, nos 25 anos de judicatura constitucional do ministro Marco Aurélio no STF. Vide:

https://www.migalhas.com.br/quentes/222038/marco-aurelio-mello-e-homenageado-por-seus-25-anos-no-stf

O STF editou um livro oficial de homenagem ao Min. Marco Aurélio por seus 31 anos na Corte e colocou no título a dupla ciência e consciência. Vide: Ministro Marco Aurélio. Edição de Homenagem. 31 anos de ciência e consciência constitucionais. Disponível em:

https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalEdicaoHomenagem/anexo/31_anos_min_marcoaurelio.pdf

[5] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277. pg. 209-215.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-atuacao-do-ministro-marco-aurelio-mello-no-colegiado-do-stf-19072021

Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Liberdade de Expressão, Redes Sociais e a Democracia

Por Rodrigo Luís Kanayama e Ilton Norberto Robl Filho

Introdução
Ninguém pode duvidar da relevância da internet para a construção de uma sociedade melhor. De outro lado, surgem relevantes preocupações com a privacidade [1] e com o impacto sobre as preferências das pessoas.

Além disso, as redes sociais atualmente são acusadas de manipulação de eleições, violência contra os jovens (cyberbullying), vazamento de informações privadas, entre outras denúncias. Notícias falsas correm por computadores e smartphones na velocidade de um pressionar de um botão, às vezes propositalmente, às vezes ingenuamente, corroendo a democracia constitucional.

As notícias falsas deterioram a qualidade da democracia, porque produzem um cenário falso que interfere ilegitimamente no processo de escolha dos eleitores. Dessa forma, este texto analisa o tema e apresenta sugestões simples baseadas em análises comportamentais para coibir o compartilhamento de notícias falsas.

Eleições e Redes Sociais no Brasil
Nas eleições brasileiras de 2018 e de 2020, o fenômeno das notícias falsas, apesar de combatida por relevantes campanhas da Justiça Eleitoral, de mecanismos de comunicação social e de entidades da sociedade civil, encontrou-se presente. Duas características se destacaram: primeiro, o uso massivo da Internet e das redes sociais para substituir as formas tradicionais de propaganda eleitoral; segundo, os polos extremos que se formaram, tornando-se os grupos em entidades absolutamente fechadas.

Nos últimos anos, as posições políticas extremas tornaram-se mais radicais, a ponto de não haver pontos de contato entre os polos. Há dificuldade de comunicação e consenso, pois se tornam grupos que não discordam entre si, já que não há possibilidade de diálogo.[2]

Podemos observar, embora existissem preferências diferentes, que havia coesão social, com vários pontos de contato, em 2013[3]. Quando, antes da Copa de 2014, eclodiram os protestos contra o governo, a configuração mudou e os grupos ficaram mais distantes entre si. O tema da corrupção sistêmica trouxe ainda mais insatisfação e mais polarização. Basicamente, formaram-se dois polos definidos: os que se declararam contra o partido político que se encontrava na Presidência da República à época e os pró-governo (mais à esquerda no espectro ideológico).

Em 2016, segundo os mesmos autores, o cenário ficou ainda pior, uma sociedade mais dividida. De um lado, aqueles que protestaram contra a corrupção, junto com alguns liberais, conservadores, partidos de direita, proponentes do regime ditatorial e, do outro lado, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, políticos de esquerda. Depois, ocorreu o impeachment da Presidenta da República e a eleição extremamente polarizada, eventos que ajudaram a distanciar os lados.

O primeiro efeito óbvio foi o fim dos consensos (e consensos são fundamentais na política). Outro efeito foi o dano à liberdade de expressão. O excesso de notícias falsas, somado às opiniões extremas, desestimulou a manifestação dos moderados. Hoje, não é aceitável criticar um extremo, porque a crítica o fará pertencer ao outro extremo. Essa situação tem trazido desencanto a muitos usuários das redes sociais, pois fica difícil (quase impossível) estabelecer um diálogo saudável (com argumentos).

O que queremos dizer ao falar de liberdade?
liberdade de expressão trata-se de direito fundamental constitucionalmente previsto e de elemento central para a existência da democracia. As redes sociais são por excelência espaços virtuais de comunicação com pouca limitação aos usuários e, com um único clique, milhares de pessoas são alcançadas.

John Stuart Mill afirma enfaticamente que “[a] única liberdade que merece o nome é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar”[4]. As pessoas devem ser livres para atingir seus objetivos. No entanto, a liberdade de expressão enfrenta um limite importante: a liberdade de expressão de outra pessoa. Portanto, manifestações extremas que limitam e impedem a liberdade de expressão de terceiros não podem ser toleradas.

Notícias falsas causam danos à liberdade de expressão, pois resultam em posições extremas e desinformadas do interlocutor, distorcendo sua manifestação. Nesse sentido, a notícia falsa é muito prejudicial à democracia, pois promove mal-entendidos e falsos fundamentos e fatos que levam a mais falsas manifestações. Poucos buscam dados que contestem as notícias falsas e as câmaras de ressonância digital agravam ainda mais a disseminação de falsidades[5].

A questão é que criação de uma regra de proibição de notícias falsas não resolverá todos os problemas. Além disso, proibir sem cautela o que se entende por notícia falsa poderia arriscar, novamente, à própria liberdade de expressão, porque deixaríamos para o Poder Judiciário, moderadores e administradores de redes sociais o que se entende por notícia falsa. Não devemos tirar do controle dos próprios usuários a faculdade de dizer o que é falso e o que não é. Afinal, se os usuários cometem erros, o que impede o governo ou as empresas de cometê-los? Portanto, outras ferramentas contra notícias falsas devem ser consideradas (sem ignorar, obviamente, eventual regulação).

A internet, notícias falsas (fake news), algoritmos
Na edição de 13 de agosto de 2012, a revista The New Yorker publicou um artigo do escritor James Surowieck, intitulado “Downsizing supersize”[6], apresentando que o prefeito de Nova York, com vistas ao combate à obesidade, proibiu em 2012 os refrigerantes de grande porte do cardápio de restaurantes, estádios, cinemas e outros locais de entretenimento. As pessoas tomam decisões todos os dias, porém podem ser empurradas por outros indivíduos e cidadãos, por empresas e pelo governo com mais ou menos força. Embora se possa dizer que o governo tem tentado interferir nas escolhas de quem consome bebidas doces, também é verdade que as empresas interferem nas escolhas de compra das pessoas ao oferecer copos grandes.

É a arquitetura de escolha, sendo o termo adotado por Richard Thaler e Cass Sunstein[7] e criando um cenário que fornece o empurrão (nudge) para a melhor escolha. É difícil aceitar a realidade: todos somos, a todo o momento, influenciados, pressionados, bloqueados nas nossas escolhas quotidianas por agentes externos, como as empresas, governo, um amigo, a internet, opiniões e avaliações de terceiros, algoritmos.

Sem correr o risco de infringir a liberdade de expressão — por meio de proibições ou sanções contra os usuários — é possível criar um quadro para as pessoas refletirem ao se manifestarem nas redes sociais. A intenção será a redução de discursos radicais na internet e a divulgação de notícias falsas.

A programação do que se vê na internet depende do algoritmo e, consequentemente, do comportamento de cada usuário. Claro, o algoritmo interfere no comportamento do usuário. Em 2014, a revista Wired fez um experimento no Facebook. Mat Honan, redator sênior da Wired, “curtiu” de todas as postagens em sua linha do tempo por 48 horas, postagens boas ou ruins. Como resultado, em primeiro lugar, seus amigos foram embora da linha do tempo dele. Os anúncios permaneceram. Em seguida, os posts caminharam, no espectro político-ideológico, para a direita, uma extrema direita. Sua linha do tempo enviesada (biased).[8] Os algoritmos são escritos para parecer que o usuário está controlando o conteúdo, mas na verdade o controle está nas mãos de quem escreve o algoritmo[9].

O Facebook promoveu mudanças em seu algoritmo, tentando reduzir notícias falsas. No entanto, não parece ter sido bem-sucedido. No Brasil, durante as eleições de 2018 e de 2020, notícias falsas foram espalhadas com intensidade e compartilhadas por pessoas comuns, além de robôs, deliberadamente ou não.[10]

1. Nathan Mathias da Cornell University é autor do site CivilServant[11], encorajando comportamentos responsáveisna redeReddit, usando o que chamou de AI-Nudge, baseado no trabalho de Richard Thaler e Cass Sunstein[12]. A ideia era encorajar as pessoas a fazer o check-in antes de postar qualquer comentário e a verificação de fatos aprimora o algoritmo em si. Segundo sua pesquisa, houve aprimoramento das publicações compartilhadas, mantendo a liberdade do usuário, mas reduzindo as notícias falsas.

A adoção de cutucadas deve seguir algumas regras básicas, como afirmou Richard Thaler: “Três princípios devem orientar o uso de nudges: Todas os nudges devem ser transparentes e nunca enganosos. Deve ser o mais fácil possível desativar o nudge, de preferência com um pequeno clique do mouse. Deve haver uma boa razão para acreditar que o comportamento que está sendo encorajado melhorará o bem-estar daqueles que estão sofrendo nudge”.[13]

Da mesma forma, há nudges malignos nas redes sociais. Um bom exemplo é o WhatsApp, que pertence ao Facebook. Observe os botões para compartilhar notícias e fotos. Eles são facilmente acessíveis, são visíveis e não há nenhum outro recurso destacado. Apenas compartilhando. Nesse caso, a vida das pessoas não melhora com o compartilhamento de informações sem a necessária reflexão e análise crítica de seu conteúdo.

Dito isso, uma pesquisa apresentou uma possível solução[14]. Em 2012, muito antes da escalada da polarização política, eles propuseram mudanças no funcionamento do Facebook, usando plug-ins no navegador de internet Chrome e fizeram experiências com alguns voluntários. Três foram as sugestões, todas baseadas no conceito de nudge. A primeira, denominada picture nudge, consistia em mostrar cinco fotos de perfis de amigos ou não que potencialmente leriam a publicação, porque “uma pesquisa anterior descobriu que os usuários do Facebook muitas vezes não pensam em quem está em seu público e não têm uma ideia clara de quem pode ver suas postagens”. A segunda, temporizador, serve “para encorajar os usuários a refletirem sobre suas postagens, nós projetamos um temporizador que insere um pequeno atraso antes que um post seja realmente postado”. A terceira, cutucada sentimental, fornecendo “aos usuários feedback imediato sobre o conteúdo de suas postagens”.[15]

De fato, aconteceram melhorias quando os usuários compartilharam suas postagens, porque muitos refletiram antes de publicar, especialmente no que diz respeito à privacidade. Embora a pesquisa não tenha sido realizada com um grande grupo — e houve problemas técnicos — foi demonstrado inicialmente que é possível melhorar as redes sociais.

Considerações finais
É possível, sem desfigurar a liberdade de expressão dos usuários, aprimorar a internet e as redes sociais com a adoção de ferramentas simples, mas que promovem resultados sociais benéficos.

Não descartamos a relevante regulamentação estatal, embora reconheçamos a difícil tarefa de regulamentar a conduta do usuário, limitando sua liberdade de expressão. Por outro lado, os nudges mantêm a liberdade dos usuários, mas promovem algum grau adicional de reflexão sobre o conteúdo publicado. As redes sociais devem criar ferramentas que evitem o compartilhamento quase automático, simples e desimpedido. Impõe-se principalmente a promoção de um ambiente saudável para o usuário possua tempo e condições de decidir por si mesmo se a notícia (o link da internet) é uma fonte segura, verdadeira e responsável. A democracia do futuro depende de informações compartilhadas com extrema velocidade, mas também depende do grau de maturidade de seus usuários.

*O texto é resultado de pesquisa e debates no âmbito do Núcleo de Direito e Política (Dirpol) do PPGD/UFPR e foi apresentado em março de 2019 no Wasserstein Hall, Harvard Law School, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos, por convite da Associação Brasileira de Estudos Jurídicos de Harvard.

[1] Cf. PASQUALE, Frank. The Black Box Society. Cambridge: Harvard University Press. 2015.

[2] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[3] ORTELLADO, Pablo. RIBEIRO, Márcio Moretto. Mapping Brazil’s Polarization Online. Disponível em: https://theconversation.com/mapping-brazils-political-polarization-online-96434. Acesso em: 30/05/2021.

[4] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 28.

[5] Cf. BENKLER, Yochai; FARIS, Robert; ROBERTS, Hal. Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 4

[6] SUROWIECK, James. Downsizing supersize.  The New Yorker.  Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2012/08/13/downsizing-supersize. Acesso em: 30.5.2021.

[7] A construção do argumento está em: THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009, p. 83 e seguintes.

[8] HONAN, Mat. I Liked Everything I Saw on Facebook for Two Days. Here’s What It Did to Me. Wired Magazine, 2014. Disponível em https://www.wired.com/2014/08/i-liked-everything-i-saw-on-facebook-for-two-days-heres-what-it-did-to-me/, acesso em maio de 2021.

[9] Sobre essas questões, cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech. Oxford: Oxford University Press, 2018.

[10] MELLO, Patricia Campos. WhatsApp admite envio maciço ilegal de mensagens nas eleições de 2018. In.: Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/whatsapp-admite-envio-massivo-ilegal-de-mensagens-nas-eleicoes-de-2018.shtml. Acesso em maio de 2021.

[11] Persuading Algorithms With an AI Nudge Disponível em: https://civilservant.io/persuading_ais_preserving_liberties_r_worldnews.html, acesso em maio de 2021.

[12] THALER, Richard H. SUNSTEIN, Cass. R. Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness. New York, Penguin Books, 2009.

[13] THALER, Richard H. The Power of Nudges, for Good and Bad. In.: New York Times. Disponível em https://www.nytimes.com/2015/11/01/upshot/the-power-of-nudges-for-good-and-bad.html, acesso em maio de 2021, tradução livre.  

[14] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038 .

[15] WANG, Yang et alPrivacy Nudges for Social Media: An Exploratory Facebook Study. Disponível em.  http://www2013.w3c.br/companion/p763.pdf, acesso em maio de 2021. DOI: https://doi.org/10.1145/2487788.2488038, p. 765 (tradução livre).

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-10/observatorio-constitucional-liberdade-expressao-redes-sociais-democracia

A MP da Eletrobras, os jabutis e a conta de luz

A MP da Eletrobras, os jabutis e a conta de luz

Não haverá política energética eficiente se o Congresso e o presidente insistirem nesse modo de governar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e FELIPE FRANK

A Câmara dos Deputados aprovou no dia 21 de junho a medida provisória 1031/2021, que permite a capitalização da Eletrobrás e, assim, dá andamento ao processo de desestatização da empresa, capitaneado por Jair Bolsonaro. O texto da MP já havia sido aprovado pelo Senado dias antes e a aprovação da Câmara agora é definitiva. O texto foi para a sanção do presidente da república.

Na prática, a capitalização permitida pela MP da Eletrobrás traz novos sócios, seus recursos e, assim, dilui o controle do estado sobre a empresa, tornando a União apenas sócia da companhia, e não mais sua controladora. Daí os jornais tratarem da MP 1031 como a medida provisória de privatização da Eletrobrás.

O tema não é novo. Vem desde o governo Michel Temer. Até aqui, não tinha conseguido ir adiante. No entanto, com a aprovação final na Câmara, o processo de desestatização parece ter finalmente decolado.

O processo de edição da MP 1031 parece apresentar dois problemas, um formal e um material, sobre uma previsão específica de seu texto.

O problema formal diz respeito aos jabutis inseridos na medida provisória da Eletrobrás. Jabutis são inserções de previsões diversas do objeto da medida provisória. Daí serem também chamados de contrabandos legislativos – o legislador insere na MP uma matéria nada ou pouco relacionada ao tema da medida provisória. No caso da MP da Eletrobrás, os jabutis tratam da previsão de contratação obrigatória de termelétricas movidas a gás natural em várias regiões do país, o que exigiria a criação de extensões dos gasodutos existentes para alimentar essas termelétricas nessas regiões. Essa previsão e essa obrigatoriedade foram uma novidade imposta por parlamentares no texto da MP, visando agradar à base eleitoral. O problema é que esse jabuti não fazia parte e, apesar de tratar do tema energia e Eletrobrás, altera significativamente o planejamento energético e também os custos envolvidos para todo o processo de desestatização da MP 1031.

No entanto, desde 2015 o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que os jabutis e contrabandos legislativos nas medidas provisórias são inconstitucionais (ADI 5127, julgada em 15/10/2015, Red. p/ acórdão Min. Edson Fachin). Ou seja, não é possível inserir previsão diversa do tema e objeto originários da medida provisória.

No caso dos jabutis da Eletrobrás, a relação de pertinência entre o objeto da MP 1031 (capitalização da Eletrobrás) e a compulsoriedade de contratação de inúmeras termelétricas a gás em regiões diversas do país é apenas aparente porque envolve o tema energia elétrica. Em realidade, a obrigatoriedade de contratação de termelétricas a gás e toda a operação de extensão dos gasodutos necessária para o cumprimento dessa obrigação tratam de outro assunto – geração e distribuição de energia. Ela não está vinculada, portanto, ao tema e objeto originário da MP da Eletrobrás.

O problema material da MP é exatamente essa previsão de obrigatoriedade de contratação sem que tenha havido qualquer discussão sobre esse modelo, necessidade, viabilidade, custo, eficiência e oportunidade. É, assim, uma previsão de baixa publicidade, transparência, com alto custo de implementação, mas sem estudos ou números sólidos, confiáveis, que fundamentem a correção desse tipo de decisão política e legislativa. Ou seja, é uma previsão sem qualquer compromisso com uma atuação estatal preditiva, contabilizada, eficiente. Não há avaliação de impacto legislativo, profunda e detalhada, nem tampouco estudos que demonstrem com dados e contas confiáveis os valores e impactos econômicos dessa medida. Nem mesmo a redação do texto é boa e tampouco segue boa técnica legislativa. É, assim, uma previsão que viola a Constituição, o devido processo legislativo, a publicidade, transparência e eficiência, que deveria reger a atuação do Congresso e do presidente da república.

O problema desses contrabandos legislativos é exatamente o que tem marcado este governo: populismo, falta de planejamento e uma negociação de toma lá e dá cá no Congresso que manda a conta para todos nós. No caso da pandemia do covid-19, já são mais de 500 mil vidas perdidas. No caso da MP da Eletrobrás, são bilhões que poderão vir ser cobrados de todos nós.

Tratamos aqui de um dos jabutis. Mas, há outros, sobre pequenas centrais hidrelétricas, térmicas, energias renováveis e outros interesses políticos regionais, expressados no texto da MP 1031/21. Outra questão diz respeito à ausência de estudo e de planejamento em relação à forma da desestatização e às adaptações regulatórias que o setor deveria ter em razão dela. Esse problema foi enfrentado nas privatizações russas ao longo das últimas décadas, que, ao invés de trazerem competitividade e desenvolvimento do setor privatizado, geraram graves problemas de corrupção e de concentração de mercado, inviabilizando de um modo geral a concorrência.

O simples fato de termos tantos temas sobre energia, mas diversos em objeto e objetivo daqueles previstos na proposta que originou a MP da Eletrobrás, mostram o grande problema de se tomar uma decisão legislativa e de política pública energética dessa forma e com esse conteúdo. É com pesar que temos de reconhecer que perdemos uma grande chance de reestruturar nossa economia e dar um passo de bom desenvolvimento para o setor elétrico no Brasil, encaminhando uma desestatização que carece de neutralidade e de credibilidade e, ainda, cria grave empecilho a reformas econômicas estruturais mais profundas.

Não existe democracia sem transparência e discussão adequada sobre os temas que nos afetam. Da mesma forma, não existe desenvolvimento sem planejamento e regulação responsável. Não haverá política energética eficiente se o Congresso e o presidente insistirem nesse modo de governar. Como não existe almoço grátis, quem paga a conta dessa política de desestatização pouco responsável somos nós. E a conta parece ser de bilhões. Deverá vir nos próximos meses, na sua e na nossa conta de luz, sem perspectiva segura de melhora nos serviços ou no desenvolvimento do setor.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
FELIPE FRANK – mestre e doutor pela UFPR. Atualmente cursa LL.M. na Harvard University.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

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