A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

Poderes do relator e decisões monocráticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

O ministro Marco Aurélio Mello foi, sem dúvida, um ministro marcante e importante na história do Supremo Tribunal Federal (STF).

Marcante por seus votos – vencedores, vencidos e que se tornaram vencedores, ou que ficaram mesmo como votos vencidos clivando o Plenário. E marcante ainda por sua postura e comportamento públicos – quase sempre disposto a falar e a dar a sua opinião publicamente.

Um ministro importante porque é um ministro longevo como poucos, e que por isso teve o que muito poucos ministros têm – tempo! Um grande tempo de mandato na Corte[1]. E assim, não só integrou diferentes composições do Supremo, como também participou de praticamente todos os principais casos do STF.

Marco Aurélio Mello no colegiado do STF

O meu ângulo de análise aqui se circunscreve à atuação do ministro Marco Aurélio no colegiado, especificamente sobre poderes do relator e decisões monocráticas. E esse é um ângulo generoso porque não é agudo. Ao contrário, é um ângulo obtuso, bastante aberto. Por isso, eu separei esta breve análise em 3 pontos:

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento;

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos.

3 – As lições que ficam do ministro Marco Aurélio.

Vejamos.

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento

O ministro Marco Aurélio em diversas oportunidades fez questão de registrar que sempre se dispôs a ir aberto a toda e qualquer rota do caso a partir das sustentações orais e do voto do relator. Afinal, como ele diz “eu não troco figurinhas”, quando outros ministros o procuram para uma decisão consensual – passagem, muito bem contada no livro Os Onze, do Felipe Recondo e Luiz Weber[2].

Essa forma de se colocar e atuar tem um aspecto positivo, relevante e pouco praticado hoje no Supremo: o de estar aberto à deliberação e a um trabalho efetivamente em colegiado; de se deixar ser persuadido pelas sustentações orais, pelo voto indicativo do ministro relator e se engajar numa troca de argumentos a partir desses pontos de partida.

Por outro lado, essa forma de se colocar e atuar também tem um aspecto negativo: se ele “não troca figurinhas”, então quando precisa decidir, ele decide sem avisar ninguém. E decide sozinho. Não tem deliberação e não tem colegiado. O caso da ADPF 402, sobre quem pode ou não ocupar os cargos que estão na linha de substituição do presidente da república (art. 80, CRFB/88) ilustrou bem esse aspecto negativo.

O ministro Teori Zavascki, no auge da Lava jato, era relator de um pedido de medida cautelar feito pela Procuradoria-Geral da República para afastar o então presidente da Câmara dos Deputados – deputado Eduardo Cunha. Mas o ministro Teori não decidiu de plano. Enquanto Teori analisava o pedido e decidia se afastava ou não o dep. Eduardo Cunha da presidência da Câmara, a Rede Sustentabilidade ajuizou a ADPF 402, sob o argumento de que quem ocupa cargo que está na linha de substituição do presidente da república (presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF), não pode ser réu em ação penal, pois se o presidente da república se torna réu por crime comum, ele fica suspenso de suas funções (art. 86, §1°, CRFB/88). Como o deputado Eduardo Cunha havia se tornado réu perante o STF, a Rede pediu o seu afastamento imediato da presidência da Câmara dos Deputados. E a ADPF 402 foi distribuída para o ministro Marco Aurélio.

Naqueles idos de 2016, os tempos eram super turbulentos, fosse em razão da Lava Jato, fosse em razão da tensão política e da ameaça de impeachment que caminhava em marcha rápida (e que hoje em dia nem anda). O ministro Marco Aurélio não falou com ninguém, e ninguém foi falar com ele. Mas dava para imaginar que ele poderia dar a liminar sozinho e afastar Cunha. O ministro Teori então, numa decisão concertada com outros ministros, retomou aquele pedido cautelar da PGR e afastou o deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, e levou a liminar para referendo do Plenário logo em seguida.

O resultado, como sabemos, foi 11×0 pelo afastamento de Cunha. Mas, e a ADPF 402 do ministro Marco Aurélio? Ficou para outro momento. Mas voltou à tona, meses depois, com pedido de afastamento do então presidente do Senado – senador Renan Calheiros, que também havia se tornado réu. O ministro Marco Aurélio desta vez fez o que se supôs antes: deu a liminar e determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado[3].

A confusão não foi pequena. Renan Calheiros se recusou a receber a intimação da decisão. No referendo da decisão, o ministro Marco Aurélio ficou vencido e o STF decidiu que quem ocupa cargo da linha de substituição do presidente da república e também está na condição de réu, não pode assumir a presidência da república, mas tampouco está impedido de continuar a exercer a chefia de seu órgão de origem.

O caso da ADPF 402 reflete bem aqui como interagir com os pares, trocar figurinhas, não só não é vedado, nem necessariamente ruim, como pode ser também importante e, às vezes, até mesmo necessário, como bem percebeu o ministro Teori Zavascki. E também como ficou nítido com a solução intermediária encontrada pelo Plenário do STF.

Estar aberto a um trabalho colegiado e ao desenvolvimento deliberativo do julgamento não significa que o único modo de interação entre os ministros se restrinja ao espaço do plenário. Trocar figurinhas pode ser também trocar argumentos, refinar posições, não necessariamente combinar votos. A lição que fica dessa postura e modo de atuar do ministro Marco Aurélio é como o colegiado importa, como o julgamento e suas etapas podem ser mais bem aproveitados pelos ministros. Mas também como é possível e necessário haver maior e melhor interação entre eles.

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos

O ministro Marco Aurélio sempre disse julgar de acordo com a ciência e consciência possuídas. Recorreu a essa dupla – ciência e consciência – em inúmeras ocasiões[4] para demonstrar seu rigor no seguimento da ciência do direito e sua coerência com sua consciência. Nunca explicou muito bem que rigor é esse (um rigor normativo? Interpretativo? De qual interpretação? Um rigor fiel ao que já fora decidido antes pelo STF?). E nem tampouco que consciência é essa (é uma consciência de si, e para os outros? Uma consciência sobre suas compreensões sobre o direito e, assim, sobre sua consequente uniformidade decisória?). É difícil dizer. Mas nosso papel é analisar essa atuação do ministro e essa dupla argumentativa – ciência e consciência – sob a melhor luz. Ou seja, sob o melhor modo para se poder entender a atuação do ministro Marco Aurélio – alguém que busca se manter fiel à Constituição (o rigor da ciência) e que não abre mão de uma atuação coerente no exercício de sua função (a retidão de sua consciência).

Mas, se isso mostra rigor e coerência, também não pode contradizer àquela abertura ao julgamento e ao trabalho em colegiado? Até que ponto ciência e consciência são balizas firmes, que até podem alterar-se diante de um julgamento colegiado que mostre a evolução necessária (seja do direito, seja da consciência sobre o direito)? Ou são apenas pilares que firmam uma recalcitrância? A resposta mais imediata que talvez venha à lume é dada pelo próprio ministro Marco Aurélio: “não tenho compromisso com meus erros”, já disse ele várias vezes, no Plenário ou fora dele, para mostrar que está aberto a mudanças. Mas é exatamente aí que pode estar também uma chave de leitura que mostra um lado positivo e um negativo desse tipo de postura.

O rigor com o direito e com sua consciência coerente são bem-vindos. Não há dúvida disso. Por outro lado, as mudanças têm que ser dele, pessoal e individualmente, e não do Tribunal. Se ele não muda, se sua consciência não muda, então o direito também não pode mudar. Nada mais individual e individualista. Sob a roupagem de estar aberto ao colegiado, em realidade ele apenas colegiadamente se abre a si próprio. O compromisso então parece ser mais com ele do que com o colegiado. E o que me faz ter essa impressão é a postura que ele tem de ser recalcitrante e atuar contra o plenário quando ele mesmo já ficou vencido.

Dois casos são significativos: o da liminar monocrática suspendendo a execução da pena após condenação em segunda instância, na ADC 54. E a liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54.

No caso da ADC 54, o ministro Marco Aurélio, às vésperas do recesso judiciário de 2018, suspendeu a execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado, quando a orientação prevalecente até então no plenário era pela possibilidade da execução provisória da pena após condenação em segundo grau. Ele decidiu sozinho, sem consultar ninguém, de acordo com sua ciência e consciência, no último dia antes do recesso e contra decisão e entendimento vigentes do plenário. Não era só um entendimento vencido, ou um desacordo, mas a imposição de uma posição individual. E contra a autoridade do plenário.

A atitude não foi surpreendente. Quatorze anos antes, em 2004, quando as monocráticas não eram comuns e nem ordinárias, o ministro Marco Aurélio fez a mesma coisa: no último dia antes do recesso, deu uma liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54. Quando sua decisão foi levada ao Plenário, recebeu críticas fortes do ministro Joaquim Barbosa, que concordava com o mérito da decisão, mas discordou veementemente da forma monocrática com que decidira, e ainda às vésperas do recesso[5]. Marco Aurélio, com sua ciência e consciência, havia decidido sozinho e esvaziado o órgão que mais prezava – o plenário.

O mesmo aconteceu na ADC 54. Diante de recurso interposto pela PGR no mesmo dia, o então presidente do STF – ministro Dias Toffoli, suspendeu a liminar de Marco Aurélio e agendou o julgamento do caso quando da retomada dos trabalhos no ano seguinte. A posição do ministro Marco Aurélio acabou se tornando vencedora no fim de 2019. Mas sua decisão, baseada em sua ciência e consciência, menos informou o plenário sobre a controvérsia, e mais parece ter sido produto de sua idiossincrasia, já que na prática, conforme observou Diego Werneck Arguelhes, ela praticamente equivaleu a fazer o que o ministro quis e quando quis porque tinha certeza de que a sua postura era a correta.

Esses dois casos são significativos porque mostram como a dupla ciência e consciência pode ser bom guia de retidão e conduta grave. Mas não garante por si só que assim será a decisão ou a postura do ministro. E nem que contribuirá com o plenário.

3- As lições que ficam do ministro Marco Aurélio Mello

O ministro Marco Aurélio, como todo trabalhador cioso de seu ofício, sempre buscou fazer o melhor. E nos deu o seu melhor. Teve tempo, trabalho, experiência e possibilidades para formar e conformar o plenário, para vencer e ficar vencido. Sua postura grave, sempre pública e transparente, sua busca por rigor e coerência são a prova disso. Os possíveis erros, as possíveis falhas, não devem servir aqui para diminuir essa grandeza, mas para mostrarem e reafirmarem um caminho e um local bastante esquecidos ultimamente: o colegiado e o plenário do Supremo Tribunal Federal.

[1] O ministro Marco Aurélio Mello terá sido ministro por 31 anos e 29 dias ao se aposentar quando faz 75 anos em 12/07/2021 (sete dias a mais do que teria se tivesse se aposentado em 05/07/2021, como havia antecipado antes de mudar de decisão). Será, assim, o segundo ministro mais longevo do STF desde a instauração da República. O ministro mais longevo é o min. Celso de Mello, que ficou 31 anos 1 mês e 26 dias. O ministro Marco Aurélio tinha 43 anos quando tomou posse como ministro do STF. Nasceu em 12/07/1946 e tomou posse em 13/06/1990, ocupando a cadeira do ministro Carlos Alberto Madeira.

[2] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277.

[3] O episódio é narrado em detalhes no livro Os Onze e vale ser lido para se ter ideia das nuances do ambiente antes, durante e após a decisão. Vide: RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 234-246.

[4] Mencione-se, exemplificativamente, seu discurso em 06/11/2008; discurso proferido em 17/06/2010, quando fez vinte anos de judicatura no STF; voto vencido na ADI 3.330/DF sobre o PROUNI, julgada em 03/05/2012; entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 31/05/2012; voto nas ADCs 43 e 44 sobre execução provisória da pena após condenação em segunda instância, julgadas em 23/10/2019. Esses e outros exemplos também constam do livro comemorativo dos 25 anos do ministro Marco Aurélio Mello no STF e editado pelo próprio Tribunal. Vide:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalComemoracoes/anexo/Ministro_Marco_Aurelio_25_anos_no_STF.pdf

A Ed. Migalhas também editou um livro intitulado “Marco Aurélio Mello: Ciência e Consciência”, nos 25 anos de judicatura constitucional do ministro Marco Aurélio no STF. Vide:

https://www.migalhas.com.br/quentes/222038/marco-aurelio-mello-e-homenageado-por-seus-25-anos-no-stf

O STF editou um livro oficial de homenagem ao Min. Marco Aurélio por seus 31 anos na Corte e colocou no título a dupla ciência e consciência. Vide: Ministro Marco Aurélio. Edição de Homenagem. 31 anos de ciência e consciência constitucionais. Disponível em:

https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalEdicaoHomenagem/anexo/31_anos_min_marcoaurelio.pdf

[5] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277. pg. 209-215.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-atuacao-do-ministro-marco-aurelio-mello-no-colegiado-do-stf-19072021