As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?

As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?

Esperamos que esse período de pandemia promova um avanço, em forma e conteúdo, e não que o novo normal seja um retorno ao passado

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOSÉ ARTHUR CASTILLO DE MACEDO

 

A Pandemia da Covid-19 gerou crise sem precedentes na história recente. Autoridades públicas são chamadas a dar respostas às crises sanitária, econômica e política. No entanto, atitudes do presidente da República têm promovido atritos entre os Poderes, e entre a União, governadores e prefeitos, colocando a separação dos Poderes e a federação sob tensionamento constante. Por sua vez, o Supremo tem atuado para tentar mediar parte desses conflitos, ou até mesmo para decidi-los alocando poder de um ente para outro, segundo a sua interpretação da Constituição.

Será que, diante da situação excepcional de três crises simultâneas, haverá uma mudança significativa na forma e no conteúdo das decisões do Supremo? Será que nada será como antes ou o “novo normal” reproduzirá práticas muitas vezes criticadas?

Abaixo apontamos para dois pontos que indicam possíveis mudanças e continuidades. As mudanças podem ser vistas em relação ao conteúdo das decisões de matéria federativa. A continuidade pode ser vista nas decisões monocráticas em relação aos outros Poderes.

Antes da crise, era possível constatar que, em matéria federativa, a jurisprudência da Corte produzia a centralização da Federação, a despeito da retórica encontrada em vários acórdãos do STF. Diversos estudos quantitativos demonstram como a Corte costuma(va) decidir a favor da União de modo a alargar as suas competências, em detrimento dos outros entes, principalmente dos estados.

Porém, a partir do julgamento da ADI 4.060 parece que o STF afirmou que deveria mudar o rumo da sua jurisprudência. O caso discutia os limites do exercício da competência concorrente por parte dos estados, especificamente para estabelecer o número mínimo e máximo de alunos em sala de aula, de modo a atender à peculiaridade da região.

A Corte entendeu, por unanimidade, que a lei de Santa Catarina que estabelecia o limite de alunos em sala de aula era constitucional. Além disso, afirmou que era a hora de iniciar a revisão de sua jurisprudência centralizadora, até então dominante. Foi reconhecido, também, que caberia ao STF dar maior protagonismo aos Estados e Municípios dentro dos limites previstos nas normas constitucionais.

Contudo, o que se pode constatar até aqui é que julgamentos posteriores do STF oscilaram entre a tradicional postura centralizadora em favor da União e uma nova postura descentralizadora, em algumas matérias (notadamente meio ambiente e saúde), em favor dos Municípios e Estados. Nessa seara, têm se destacado os votos do ministro Edson Fachin, que tem apresentado e enriquecido o debate com argumentos interessantes, ainda que passíveis de discussão, a respeito do federalismo brasileiro[1].

Apesar disso, diante da pandemia, diversas medidas adotadas por Estados e Municípios foram questionadas no STF. E, para surpresa de alguns diante da possibilidade de uma mudança de entendimento, o ministro Marco Aurélio deferiu medida cautelar na ADI 6.341, que questionava a possibilidade dos entes federativos de adotarem medidas mais restritivas que as prescritas pela União.

Trata-se de mudança jurisprudencial relevante. E, novamente, para surpresa de muitos, a liminar foi confirmada por unanimidade pelo plenário da Corte.

A partir dessa decisão na ADI 6.341, várias decisões foram e têm sido tomadas, sobretudo em sede de Reclamação, para suspender decisões que não respeitam o entendimento de que os Estados e Municípios podem tomar medidas mais restritivas do que as da União, desde que amparadas em evidências científicas e em recomendações da OMS. Dentre elas, destacam-se restrições ao transporte fluvial no Amazonas, restrições à celebração de cultos no Mato Grosso ou a abertura completa do comércio e de serviços considerados não essenciais em Londrina no Paraná.

Nesse mesmo sentido, ainda no último dia 06 de maio, o STF deferiu, por maioria, medida cautelar na ADI 6.343 para suspender parcialmente a eficácia de dispositivos das medidas provisórias 926 e 927, possibilitando, assim, que Estados e Municípios também adotem medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local enquanto durar o estado de emergência sanitária.

Por outro lado, o Supremo monocrático de antes da crise parece continuar a ser o mesmo Supremo monocrático também agora, durante a crise.

Sobre esse aspecto foi significativa a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357, que permitiu uma atuação ampla do Estado sem as exigências e formalidades da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Diretrizes Orçamentárias. Se o mérito da decisão é menos controverso, sua forma segue duvidosa. Decisão cautelar monocrática em ADI é algo que não encontra amparo na Constituição (que não concedeu nenhum poder individual aos ministros do STF), na Lei 9.868/99 (que determina que cautelar em ADI seja sempre colegiada, podendo ser monocrática apenas no período do recesso), no CPC ou no Regimento Interno do STF.

Ademais, a decisão poderia ter sido colegiada, pois dias antes o Supremo havia decidido ampliar o uso do Plenário Virtual para todo e qualquer processo ou decisão do STF.

Se o conteúdo da decisão não parece errado, sua forma originária, monocrática, sim o era. E esse erro formal leva o STF diretamente para a gestão do dia a dia da crise financeira e orçamentária do País. Não à toa, quando a decisão monocrática foi referendada pelo Plenário do STF houve debate se deveria haver ou não a fixação de tese que gerasse segurança para os gestores que atuaram com base na decisão monocrática. Além disso, isenta o Presidente de presidir o País e liderar o combate à crise, especialmente no que lhe diz respeito – gestão financeira e orçamentária, com impactos gerais para os outros entes da Federação.

Outro exemplo é a decisão cautelar monocrática na ADPF 663, relatada pelo Min. Alexandre de Moraes, proposta pelo Presidente da República, sobre alteração do rito de edição e análise das Medidas Provisórias. As principais mudanças foram (i) a dispensa de análise das MPs por Comissão Mista, podendo ser analisada direto no Plenário das Casas Legislativas e (ii) a diminuição do prazo de análise das MPs, conforme o sistema de deliberação remoto da Câmara e do Senado.

A Câmara e o Senado rapidamente publicaram o Ato Conjunto nº 01/2020, com a alteração da tramitação das medidas provisórias. Isso fez com que as MPs possam então ser analisadas diretamente no Plenário das Casas e com diminuição de prazo de validade de 120 para 14 dias. Os efeitos dessas medidas ainda estão em análise, mas, como apontam Dimitri Dimoulis e Taís Penteado, não parecem nada promissores.

Contudo, esses aspectos do rito – a apreciação da MP por Comissão mista e o prazo – são temas constitucionais. Não estão ao dispor nem do STF, da Câmara e do Senado por simples ato conjunto; só podem ser alterados por Emenda à Constituição. Por sua vez, o ato conjunto das Casas Legislativas só poderia alterar o que não é disciplinado pela Constituição. Ao legitimar um ato conjunto das Casas Legislativas que altere matéria constitucional, o Supremo viola a Constituição.

Esses exemplos ilustram como parece existir uma permanência no modo de atuação e resposta do STF mesmo diante dos novos desafios que lhe são apresentados pelo cenário de pandemia que vivemos.

O que se pode ver com todos esses exemplos – de mudanças e permanências – é que o Supremo tem sido chamado a contribuir com respostas céleres e substantivas. Os temas e os casos aqui abordados mostram uma atuação do Supremo com lampejos de mudança. Sua forma de atuação, todavia, parece ter mudado muito pouco. E esse modo de atuação não apenas tem sido sentido, como tem gerado ruído na relação com os outros Poderes e entes da Federação.

Por outro lado, seu avanço no tema do federalismo parece ser bem-vindo. Mas ainda está pendente de uma justificação mais densa que explique sua virada jurisprudencial que concentra(va) competências na União, além de outros temas que precisão ser revistos, tais como o nebuloso critério da preponderância dos interesses e ainda enfrentar proposições que vêm sendo feitas sobre como lidar com leis multitemáticas e que trazem consigo aparente conflito de competências, como as que há tempos vêm defendendo, por exemplo, os ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski, com formas mais arrojadas e critérios mais rigorosos sobre a repartição de competências.

Esperamos que esse período de pandemia promova um avanço, em forma e conteúdo, e não que o novo normal seja um retorno ao passado.

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[1] RE 194.704, RE 730.721, Votos-vista na ADI 3.165 e ADI 3.356, são alguns exemplos entre outros existentes.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
JOSÉ ARTHUR DE CASTILLO MACEDO – professor de Direito do IFPR, campus Colombo (PR), doutor em direito pela UFPR, pesquisador do Centro de Estudos da Constituição (CeCons) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, advogado integrante da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/as-decisoes-do-stf-durante-e-apos-a-pandemia-nada-sera-como-antes-18052020

Coronavírus e a ampliação do Plenário Virtual do STF

Coronavírus e a ampliação do Plenário Virtual do STF

Decisão reforça tendência do Tribunal em privilegiar a atuação individual e individualista dos ministros?

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

 

Impulsionado pela pandemia do coronovírus, o Supremo Tribunal Federal modificou, novamente, seu regimento interno para ampliar as hipóteses de julgamento pelo Plenário Virtual. A partir de agora, “a critério do relator, “todos os processos de competência do tribunal poderão ser julgados em ambiente eletrônico (conforme nova redação do art. 21-B).

Essa ampliação, todavia, não foi unânime. Ficou vencido o ministro Marco Aurélio Mello, que tem insistido nos déficits deliberativos que o modo de uso do Plenário Virtual causa aos julgamentos do Supremo.

O tema não é novo, mas vem se renovando. Há menos de um ano, em julho de 2019, também com a resistência do ministro Marco Aurélio, o STF já havia dado um passo largo rumo à expansão do Plenário Virtual. Nessa oportunidade, acresceu ao regimento o art. 21-B, autorizando o julgamento virtual de (i) medidas cautelares no controle concentrado, (ii) de medidas cautelares e tutelas provisórias; e (iii) de mérito das demais classes processuais, quando houver “jurisprudência dominante no âmbito do STF”.

Desta vez, em sessão administrativa excepcionalmente transmitida pela TV Justiça, o STF foi mais longe: reescreveu o dispositivo para liberar o Plenário Virtual para julgar todo e qualquer processo sob sua alçada, havendo ou não jurisprudência pacificada.

Além disso, o STF decidiu realizar sessões presenciais de quinze em quinze dias e concentrar no ambiente virtual a sustentação oral das partes. E, por fim, com a publicação da Resolução 672 nesta sexta-feira, regulamentou o uso de videoconferência nas sessões de julgamento presencial do Plenário e das Turmas.

As novidades já repercutem, seja sobre o exercício da ampla defesa e do contraditório das partes, seja sobre a qualidade da deliberação entre os ministros.

Tão logo aprovada a emenda regimental, ainda em plenário, os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes indicaram que processos até então inclusos na pauta para julgamento presencial desde o mês de dezembro de 2019 seriam de pronto submetidos ao Plenário Virtual.

E assim aconteceu, por exemplo, com a ADPF 528 e com a ADI 5.441. Ocorre, no entanto, que essas ações já haviam sido incluídas para julgamento no Plenário Virtual, mas, após requerimento justificado das partes, foram transferidas para julgamento em sessão presencial. Porém, assim que o Supremo ampliou o Plenário Virtual para todos os processos, a ADPF 528 e a ADI 5.441 voltaram a ser inseridas no Plenário Virtual, mas sem que qualquer justificativa fosse dada para tal decisão. A decisão de reinclusão dessas ações no Plenário Virtual sem qualquer fundamento viola a obrigatoriedade de fundamentação das decisões, conforme exigem a Constituição e o Código de Processo Civil. A ampliação da alçada do Plenário Virtual não traz consigo a dispensa geral de justificar toda e qualquer transferência do plenário físico.

Sem facultar a prévia manifestação dos interessados, matérias constitucionais que saíram do Plenário Virtual e foram realocadas para decisão em sessão presencial foram, todavia, inseridas na pauta virtual já para o mês de abril. E sem qualquer justificativa para isso.

A Presidência do Supremo justificou a mudança pela “necessidade de adequação de todas as instituições, inclusive do Supremo Tribunal Federal, ao momento crítico por que passa todo o mundo. A redução das sessões presenciais como medida de enfrentamento à pandemia do covid-19 foi endossada praticamente à unanimidade dos ministros.

Entretanto, chamado pelo Conselho Federal da OAB a esclarecer e registrar na redação da emenda a natureza excepcional e transitória da redução dos julgamentos presenciais e da concentração da sustentação oral no ambiente eletrônico, a Corte silenciou-se. Nada na nova redação regimental indica a transitoriedade dessas mudanças.

Em uma espécie de obter dictum, o ministro Luís Roberto Barroso e a ministra Rosa Weber afirmaram que, superada a pandemia, não haveria obstáculo à rediscussão do retorno à frequência semanal das sessões presenciais. Entretanto, o histórico do STF está longe de sugerir que mais essa ampliação substancial do plenário virtual em detrimento do plenário físico  será temporária.

Como apontado em recente discussão no podcast do JOTA (Sem Precedentes), o STF já estudava expandir os limites do Plenário Virtual antes da pandemia do covid-19 exigir a adoção de medidas que, ao mesmo tempo em que mantivessem as pessoas em segurança, viabilizassem o funcionamento das instituições.

Não se trata aqui de colocar em xeque a gravidade da situação, que enseja, sim, a minimização da exposição de ministros, servidores e advogados. A discussão é sobre o ajuste fino entre esse fim e os meios concretamente adotados.

A ampliação do Plenário Virtual e o seu modo de uso impactam na deliberação entre os Ministros e no exercício da ampla defesa e do contraditório.

A decisão na ADPF 528 ou na ADI 5.441, tomada com base no funcionamento alargado do Plenário Virtual, e sem qualquer fundamentação, parece não apenas evidenciar o tribunal de solistas que o STF é, mas que também faz força para ser.

A pandemia do coronavírus parece ter sido apenas o álibi que faltava para o STF expandir de vez o Plenário Virtual, mas sem considerar modos de utilizá-lo que sejam mais adequados do que as operações binárias que têm caracterizado essas decisões. E que em nada se parecem com o julgamento deliberativo e colegiado que deveria prevalecer no Supremo, ainda que em ambiente virtual.

A ampliação do Plenário Virtual para “todos os processos de competência do tribunal” reforça a tendência do Tribunal em insistir em mecanismos decisórios e decisões que, em nome da rapidez, privilegiam a atuação individual e individualista dos ministros. Mais do que isso, representa a aposta do STF em apresentar o Plenário Virtual como a única solução possível de seus gargalos, ignorando diversas alternativas possíveis, a exemplo de um uso mais engajado e deliberativo da ferramenta, ou mesmo uma reformulação das competências do STF diante do conhecido “risco de estrangulamento da máquina judiciária”, como já afirmava o ministro Sepúlveda Pertence no longínquo ano de 1993.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/coronavirus-e-a-ampliacao-do-plenario-virtual-do-stf-27032020

A delação de Sérgio Cabral e o STF

A delação de Sérgio Cabral e o STF

Supremo deve voltar a analisar atribuição da polícia para celebrar acordos de colaboração premiada

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MAURICIO STEGEMANN DIETER

 

1 – A delação premiada de Sérgio Cabral

No dia 06 de fevereiro, o ministro Luiz Edson Fachin homologou a delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral – negociada diretamente com a Polícia Federal, e ainda sob sigilo. Segundo a imprensa, Cabral teria se comprometido a devolver 380 milhões recebidos como propina, além de incriminar deputados, conselheiros de Tribunal de Contas e ministros do STJ, entre outros agentes públicos relevantes.

Mas, se as revelações de Cabral são realmente tão devastadoras, o que explica o desinteresse do Ministério Público em negociar essa delação?

Com um longo tempo de prisão pela frente e cada vez menos patrimônio, Sérgio Cabral provavelmente estaria disposto a dizer o que as autoridades queriam ouvir. Além disso, Cabral é apontado como o líder de organização criminosa. Um acordo de delação feito por um líder já capturado pode resultar num processo com nenhuma ou pouca evidência adicional em relação aos delitos e às pessoas que promete entregar; afinal, Cabral seria o topo dessa cadeia.

Os dois elementos podem despertar ceticismo junto às autoridades que negociariam a delação. Aqui, porém, há uma diferença relevante entre os incentivos da polícia federal e os do MP.

Para a polícia, o ônus envolvido em uma delação “fraca” é bem menor: ao celebrar o acordo, a Polícia já anuncia sua atuação como grande conquista, mas deixa para o Ministério Público a pressão de processar outros réus sem as melhores evidências e provas.

Se realmente for esse o caso, é grande o risco de repetição dos problemas da delação premiada de Antônio Palocci, que, até agora, tem sido incapaz de dar substância às suas graves denúncias, o que, por sua vez, tem provocado mal-estar no Ministério Público e ruídos na relação institucional com a Polícia Federal.

Não é de se estranhar, portanto, que a delação mal tenha sido homologada e já esteja sendo contestada pelo Procurador-Geral da República. Não será fácil, contudo, reverter a decisão do ministro Fachin.

Entre tantos aspectos que merecem atenção, gostaríamos de chamar a atenção para um aspecto jurídico controverso, sobre o qual o STF já se debruçou e que, provavelmente, terá de encarar novamente: a atribuição da polícia para celebrar acordos de colaboração premiada.

2 – O conflito entre MP e Polícia

A possibilidade de a polícia celebrar acordos de delação premiada foi incluída na chamada “Lei das Organizações Criminosas”. Esse ponto foi impugnado pela Procuradoria Geral da República na ADI 5.508, que entende que apenas ao Ministério Público caberia negociar tais acordos. Em junho de 2018 o Supremo decidiu pela constitucionalidade da lei.

A decisão do STF, contudo, distancia-se da lógica acusatória do sistema penal brasileiro.

A questão não se limita ao campo político da disputa de poder, e diz respeito à extensão de competência constitucional. O Ministério Público é o titular da ação penal pública e, formalmente, está obrigado a propô-la uma vez presentes seus pressupostos. Nesse cenário, qualquer mitigação dessa regra de indisponibilidade pode se dirigir apenas ao MP. Vale dizer, se é dever dos membros do MP oferecer denúncia quando presentes suas condições, qualquer relativização dessa determinação deve passar exclusivamente pelas partes envolvidas – Ministério Público e defesa – não se estendendo a outros agentes, como a polícia judiciária, limitada que está à fase investigativa.

Polícia não é parte, e, portanto, não pode negociar o início ou o fim de um processo que sempre lhe será estranho, sob pena de invasão de competência.

Não é por outro motivo que institutos semelhantes, como a transação penal, a suspensão condicional do processo ou o acordo de não persecução penal, apenas podem ser manejados pelo Ministério Público e, inclusive, à revelia das vítimas, sequer cogitando-se a participação da autoridade policial.

À polícia cabe a importante missão de investigar para, ao final, permitir (ou não) que Ministério Público, sobre evidências concretas, apresente uma narrativa incriminatória estruturada sobre a certeza da materialidade do tipo de injusto e indícios convincentes de autoria, acompanhada de todos os elementos que permitam a devida contextualização do fato típico. Qualquer atuação da polícia com impacto na acusação futura deve, assim, se dar em favor ou em conjunto com o Ministério Público, mas nunca de forma paralela.

Se um investiga e outro acusa, então o acordo para redução de pena aplicada ou executada em troca da incriminação de terceiros pode até aproveitar as informações coletadas em inquérito, mas a delação será sempre conduzida pelo Ministério Público, submetendo-se a posterior controle judicial no ato de homologação, decisão complexa que exige, entre outros elementos, rigoroso exame de legalidade.

Nesse sentido, o STF errou.

3 – A decisão do STF

O julgamento do Supremo foi marcado por divergências. O ministro relator Marco Aurélio Mello foi seguido pela maioria – Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Para eles, a polícia pode sim celebrar o acordo de delação premiada e estabelecer benefícios, mesmo sem anuência do MP.

O ministro Dias Toffoli aderiu à tese de que a polícia pode negociar acordos, mesmo sem concordância do MP, mas negou-lhe a possibilidade de fixar os benefícios, limitando-se a sugeri-los.

Os ministros Luiz Fux e Rosa Weber adotaram uma posição mais próxima do princípio acusatório: se por um lado facultaram à polícia a iniciativa para costurar delações, por outro subordinaram a concretização do acordo à anuência do Ministério Público.

O ministro Luiz Edson Fachin, em posição solitária, foi o único a votar pela total impossibilidade de a polícia produzir delatores.

Em síntese, o consenso majoritário do Supremo Tribunal Federal, liderado pelo voto do relator, ministro Marco Aurélio, é o de que polícia também pode celebrar de acordos de delação em função da natureza jurídica do instituto. Tratando-se de mero meio de obtenção de prova – já que a prova está condicionada ao contraditório, ausente no momento de negociação da delação – não há problema em incluir essa ferramenta no arsenal policial para aprofundar a investigação de crimes e facilitar a identificação de suspeitos, especialmente em relação a supostas organizações criminosas. Assim, a polícia pode celebrar acordos e combinar punições com o indiciado, desde que a delação seja devidamente homologada pelo magistrado competente – que com as recentes alterações do Código de Processo Penal passa a ser o juiz de garantias – após ouvido o Ministério Público, que segue responsável pelo controle externo da atividade policial.

Além de abrir perigoso precedente sobre o alcance e mitigação da atribuição do Ministério Público, a decisão do STF pode criar maus incentivos: coloca em tensão direta duas instituições que deveriam trabalhar em sintonia na investigação. Não à toa, motivada pelo entendimento da Corte, a polícia passou a celebrar delações que antes eram rejeitados pelo Ministério Público.

O acordo entre a polícia e o ex-governador Sérgio Cabral, por sua notoriedade, apenas aprofunda a controvérsia jurídica e a disputa institucional entre polícia e MP.

4 – Outras controvérsias que a delação de Sérgio Cabral pode trazer

As notícias da delação de Sérgio Cabral também trazem à reflexão outras questões, que tangenciam o problema da identidade da autoridade pública responsável por sua negociação.

Primeiro, como a polícia pôde celebrar acordo com o ex-governador depois de sua condenação? Pela lei, ao delegado cabe manifestar-se sobre a delação nos autos do inquérito, a essa altura já incorporado definitivamente ao processo.

Segundo, como é possível oferecer acordo para alguém que foi reiteradamente apontado como líder da organização criminosa investigada pela Força Tarefa? A Lei 12.850/2013 tem por finalidade motivar os escalões inferiores a incriminarem seus superiores, e não premiar o oportunismo dos que estão no topo da pirâmide.

A depender das respostas a essas duas perguntas, o acordo poderia, eventualmente, ser invalidado. O risco existe, ainda que nos últimos anos o Poder Judiciário brasileiro tenha demonstrado complacência com delações juridicamente problemáticas, admitindo inclusive a revisão de declarações de delatores demonstradas falsas no curso do processo.

Não é a toa que, no final de dezembro do ano passado, o ministro Gilmar Mendes cogitou a possibilidade de revisão do entendimento do STF sobre a possibilidade da polícia celebrar acordos de colaboração premiada. É um sintoma de que é preciso maior rigor no controle do instituto da colaboração premiada, e é provável que o STF seja em breve desafiado a rever sua posição colegiada sobre o tema.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
MAURICIO STEGEMANN DIETER – Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-delacao-de-sergio-cabral-e-o-stf-19022020

O coronavírus e seu projeto de lei com urgência constitucional

O coronavírus e seu projeto de lei com urgência constitucional

O recibo de uma disfuncionalidade criada pelos Três Poderes

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

Não importa quão relevante e urgente seja o caso, nem mesmo que se trate de uma epidemia como a do coronavírus. Hoje é mais conveniente ao Presidente da República enviar um projeto de lei com urgência constitucional do que editar Medida Provisória para resolver o problema.

Gustavo Bambini e Michel Kurdoglian Lutaif mostraram bem o contrassenso que é um projeto de lei ordinário tramitar mais rapidamente do que uma medida provisória. Basta conferir ao PL urgência constitucional. É a inversão completa das ferramentas legais previstas pela Constituição para lidar com temas que exigem respostas rápidas dos Poderes Executivo e Legislativo.

Essa parece ser uma disfuncionalidade resultante de decisões equivocadas não apenas do Executivo e do Legislativo, mas de todos os três Poderes. Cada um a seu modo se valendo de um consequencialismo irrefletido, como já apontou Fernando Leal.

Executivo, Legislativo e Judiciário não apenas falharam, mas falharam propositalmente – cada um com seu motivo próprio. E, assim, violaram as regras da Constituição.

Os Presidentes da República criaram a cultura de legislar por meio de edições excessivas de medidas provisórias.

O Congresso abriu mão de sua prerrogativa de fazer o controle rígido da relevância e urgência dessas superabundantes medidas provisórias editadas pelos Presidentes.

E o STF, que podia ter balizado o excesso do Executivo e o pouco caso do Legislativo, simplesmente deu carta branca ao Presidente e ainda liberou o Legislativo de seu encargo de controle ao destravar sua pauta.

Para entendermos como chegamos até aqui, onde um projeto de lei ordinária com urgência constitucional vale mais do que editar uma medida provisória, precisamos relembrar como foi a decisão do STF que consolidou esse processo legislativo disfuncional.

Em junho de 2017 o STF decidiu que o trancamento da pauta da Câmara dos Deputados em razão da não apreciação de medida provisória no prazo constitucional de 45 dias alcança apenas os projetos de lei passíveis de serem tratados por medida provisória. Esse entendimento foi fixado no encerramento do julgamento do Mandado de Segurança 27.931, de relatoria do ministro Celso de Mello.

O art. 62, §6º da Constituição dispõe que se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.

Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que deu interpretação conforme ao texto do art. 62, §6º da Constituição, ficam excluídos do bloqueio as propostas de emenda à Constituição e os projetos de lei complementar, de decreto legislativo, de resolução e, até mesmo, tratando-se de projetos de lei ordinária, aqueles que veiculem temas pré-excluídos do âmbito de incidência das medidas provisórias (art. 62, §1º, I, II e IV, CRFB).

Essa interpretação já vinha sendo adotada pelo Congresso Nacional desde 2009, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, definiu em questão de ordem que o trancamento da pauta estabelecido pela Constituição no art. 62, §6º se aplicaria apenas aos projetos de lei ordinária. Abriu-se, assim, caminho para que a Câmara pudesse voltar a tratar de outros temas que não aqueles versados nas medidas provisória editadas pelo Presidente da República.

Contra esse ato, um grupo de parlamentares impetrou mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal e argumentou que a Constituição estabeleceu expressamente o sobrestamento de todas as deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando a medida provisória.

Em dezembro de 2009 o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Mandado de Segurança 27.931. O ministro relator Celso de Mello, à época, indeferiu a segurança requerida sob o argumento de que a interpretação dada pelo então presidente da Câmara dos Deputados estabelecia um reequilíbrio na relação entre os Poderes, especialmente diante da “crescente apropriação institucional do poder de legislar por parte dos sucessivos presidentes da República”.

Um pedido de vista da ministra Cármen Lúcia interrompeu o julgamento em 2009, reiniciado em março de 2015. Em seu voto-vista, a ministra Cármen acompanhou o Relator. O julgamento foi então suspenso pelo pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso.

Retomado o julgamento em junho de 2017, o ministro Barroso proferiu voto-vista em que também acompanhou o Relator. Segundo o ministro Barroso, “subordinar quase integralmente a agenda de deliberação do Poder Legislativo às medidas provisórias editadas pelo presidente da República vulneraria o núcleo essencial da separação de Poderes e importaria na paralisação do funcionamento do Congresso Nacional”.

Os ministros Alexandre de Morais, Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Gilmar Mendes acompanharam o Min. Relator Celso de Mello. Estava impedido para o julgamento o ministro Dias Toffoli e ausente da sessão o ministro Ricardo Lewandowski.

Restou vencido no julgamento o ministro Marco Aurélio Mello, único a divergir, para quem o texto da Constituição não concedeu espaço para manobras, sendo expresso em suspender todas as deliberações da Casa em que estiver tramitando a medida provisória.

O julgamento do MS 27.931 pretendeu encerrar a controvérsia sobre o disposto no art. 62, §6º da Constituição e na definição da pauta e andamento das deliberações e votações das Casas Legislativas do Congresso Nacional.

Com essa decisão, o STF parecia ter posto uma pá de cal sobre o assunto e pacificado a controvérsia sobre a edição excessiva de medidas provisórias e a captura da pauta do Parlamento. Esse entendimento consta, inclusive, na PEC 91/2019, já aprovada e aguardando promulgação.

Mas o tema não se esgotou aí e nem os problemas se resolveram. Ao contrário, o STF apenas criou incentivos para que tudo ficasse como sempre foi. Ninguém cumpre a Constituição: o Executivo faz pouco caso com os requisitos para edição de MPs; o Legislativo não faz o controle estrito desses requisito e contorna o bloqueio de sua agenda; e o STF deixa de defender uma de suas principais funções – a de garantir as condições de exercício da democracia através do respeito rígido das regras do processo legislativo previsto na Constituição.

O resultado não foi a solução da controvérsia, mas apenas a criação de um novo problema: um processo legislativo disfuncional e a inversão dos usos e cabimentos das espécies normativas previstas pela Constituição.

O erro da decisão do STF parece ter sido abandonar como premissa as regras constitucionais sobre processo legislativo para se debruçar sobre o problema da captura da pauta do Legislativo. Ou seja, o STF partiu do problema para pensar a norma, quando deveria ter partido da norma para resolver o problema.

Agora o caso do coronavírus, a repatriação de brasileiros isolados na China, a necessidade de prever e estruturar quarentena para essas pessoas, apenas traz à luz os efeitos concretos de um processo legislativo que se tornou disfuncional.

Nessa disfunção evidente, convém ainda perguntar: se o Presidente da República resolveu tratar do coronavírus e das providências necessárias para lidar com ele através de um projeto de lei ordinária com urgência constitucional, não estaria também o PL bloqueado pela pauta já sobrestada?

Essa disfuncionalidade (ou contrassenso, para retomar o artigo de Gustavo Bambini e Michel Lutaif) não decorre do caso do coronavírus, das circunstâncias do nosso país, nem da Constituição de 1988. Essa disfuncionalidade decorre das decisões equivocadas dos três Poderes quando se afastaram das regras da Constituição.

Ninguém quis seguir a Constituição. Nem ser freio ou contrapeso aos excessos gritados por todos. O caso do coronavírus e as medidas necessárias para lidarmos com ele dependem agora desse novo processo legislativo inventado, contra a Constituição, pela práxis dos três Poderes.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-coronavirus-e-seu-projeto-de-lei-com-urgencia-constitucional-07022020

Solução ou confusão? A decisão de Toffoli sobre a lei do juiz das garantias

Solução ou confusão? A decisão de Toffoli sobre a lei do juiz das garantias

Decisão pode se constituir em paternalismo irresponsável em relação ao Executivo e ao Legislativo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

Em decisão liminar, o ministro Dias Toffoli suspendeu por 180 dias a instituição do juiz das garantias. Fez mais: suspendeu a previsão da lei que impedia de proferir sentença qualquer juiz que tivesse conhecimento de prova considerada inadmissível. Vedou, ainda, a incidência da lei sobre investigações e ações de competência originária dos tribunais, em ações de competência do júri, nos casos de violência doméstica e familiar e nos casos criminais de competência da Justiça Eleitoral.

A decisão buscou trazer segurança, previsibilidade e correção. Mas, tomada em liminar precária e no recesso, de maneira tão ampla e com impactos imediatos, convém perguntar: a decisão de Toffoli é efetivamente uma solução, ou causa mais confusão?

Suspender os efeitos de parte da lei, estabelecendo novo período de vacatio legis já é controverso. Mas, diante de inúmeros problemas práticos para a implementação da lei, é plausível o argumento de necessidade de adaptação administrativa dos tribunais. A suspensão, assim, em princípio, pode até ser considerada proporcional. No entanto, uma decisão contida e cautelosa, ciente de sua natureza monocrática, liminar e no recesso, poderia parar apenas na suspensão da lei.

As demais controvérsias e problemas da lei até poderiam ser expostas na decisão como obiter dicta, mas poderiam ser deixadas para o referendo da decisão liminar pelo plenário ou para o julgamento de mérito. Até lá, seria salutar deixar que esses problemas fossem enfrentados, por exemplo, pelo grupo de trabalho do CNJ, pelas demais entidades, e sobretudo através de um diálogo entre os Poderes, com possibilidade até mesmo de eventual correção a tempo pelo Executivo ou Legislativo.

Mas não, a decisão do ministro Toffoli foi ambiciosa e ampla, definindo uma série de outras vedações, para além da suspensão. Todas elas controversas.

Chamo a atenção para uma delas: a não aplicação da lei às investigações e ações de competência originária dos tribunais.

A não aplicação da lei aos tribunais sob o argumento de que o julgamento colegiado é, por si só, garantia de independência e imparcialidade parece ser equivocada. É difícil sustentar que uma lei que busca estruturar um sistema acusatório não se aplicaria aos tribunais, por possuírem lei específica de regência do processo penal em seu âmbito de competência (a Lei 8.038/90). A estrutura do processo penal acusatório é uma só. Deve valer, como regra, para todo o processo penal, a todos e a todo grau de jurisdição.

A nova lei que institui o juiz das garantias não derroga a lei específica (Lei 8.038/90), mas deve incidir de modo a adaptar o procedimento da lei específica para que também ele se estruture como acusatório. Exceções aos tribunais ou deveriam ser previstas pela própria lei (o que poderia, por si só, gerar controvérsias jurídicas), ou não podem ser inferidas. Nesse caso, a nova lei geral não revoga a lei específica (Lei 8.038/90), mas com ela convive e a ela se sobrepõe nas novas disposições que estruturam o sistema acusatório e que exigem adaptação da lei específica. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro rege e resolve esse problema.

Além disso, o fato de o julgamento ser colegiado não retira o impedimento do magistrado que atuou durante a fase de investigação. O problema não é o julgamento ser feito por juiz singular ou por órgão colegiado, mas ser feito por um magistrado que participou das investigações, que tomou medidas constritivas e formou, inevitavelmente, algum juízo prévio sobre a culpa. Independentemente de esse magistrado ser singular ou compor órgão colegiado. Tendo atuado na fase investigação, de acordo com a nova lei, o magistrado não deve compor o julgamento da ação penal.

Isso não significa que a aplicação do juiz das garantias aos tribunais exigiria ter dois órgãos colegiados, um para a fase de investigação e outro para o processo (instrução e julgamento). Ainda que essa seja uma alternativa concebível, seria possível aplicar a figura do juiz das garantias aos tribunais da forma como eles estão organizados hoje.

O colegiado é um só. Mas o desembargador ou ministro que atuar na investigação apenas não atua no colegiado julgador do processo.

Pense-se, por exemplo, na atuação de um desembargador ou ministro nos procedimentos de investigação em curso e que estão sob sua competência. Aplicando-se a figura do juiz das garantias, o desembargador ou ministro se tornaria o juiz das garantias das investigações em que já atua. Quando a Turma (Câmara ou Plenário) recebesse a denúncia, o desembargador ou ministro então se tornaria impedido de participar como julgador da ação penal.

Deveria haver, assim, redistribuição do processo para outro desembargador ou ministro. Mas o colegiado para receber a denúncia e depois para julgar o processo continuaria sendo o mesmo (Turma, Câmara ou Plenário). Assim, a aplicação do juiz das garantias nos tribunais não apenas parece se mostrar possível, como talvez até mesmo desejável.

Porém, mesmo essa possibilidade não estaria isenta de problemas. No exemplo mencionado, a Turma (Câmara ou Plenário) julgaria o processo com número par de membros (no STF, por exemplo, seriam quatro na Turma e dez no Plenário).

Outra questão poderia ainda ser levantada: eventual recurso contra decisão do ministro relator que atua na investigação e que seja julgado pelo órgão colegiado tornaria impedidos todos os demais magistrados que compõem o órgão colegiado? Nesse caso, o argumento do ministro Toffoli responde bem à pergunta. Os membros de órgão colegiado revisor de atos do relator não se tornariam impedidos, pois a atuação colegiada nesse caso é garantia de imparcialidade na decisão final.

A diferença está na forma de atuação do colegiado. Na hipótese vedada pela decisão do ministro Toffoli, a lei simplesmente não se aplica aos tribunais. Na hipótese aqui aventada, a lei se aplica, excepcionando o impedimento aos magistrados do órgão colegiado apenas quando o órgão colegiado atua como revisor de atos decisórios do relator.

Na boa intenção de corrigir aparentes buracos e erros da lei, a decisão parece abrir espaço para muitos questionamentos, e criar ainda outros problemas. Além disso, pode se constituir em paternalismo irresponsável em relação ao Executivo e ao Legislativo. Estes elaboraram e aprovaram uma lei importante, ampla e estruturante, mas com pouco debate com os potenciais afetados e, consequentemente, cheia de falhas. E transferiram indevidamente ao Poder Judiciário o encargo de corrigir os erros e resolver os problemas por eles causados.

A pretensão de correção ampla, mas sozinha, liminar e no recesso parece inaugurar um novo capítulo de uma atuação individual e individualista, que estabelece quando a lei se aplica, a quem ela se aplica e como ela se aplica. Ao invés de solução, talvez estejamos diante de uma nova confusão que desarruma o já retalhado processo penal brasileiro.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/solucao-ou-confusao-a-decisao-de-toffoli-sobre-a-lei-do-juiz-das-garantias-22012020

Como o Supremo expandiu seus poderes no caso do amianto?

Como o Supremo expandiu seus poderes no caso do amianto?

Construindo supremacia: STF, a mutação constitucional e a abstrativização do controle difuso-concreto

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e BERNARDO GONÇALVES FERNANDES

 

1 – O caso do Amianto e as ADIs 3.406 e 3.470

Em novembro de 2017 o STF decidiu que é proibida, em todo o Brasil, a utilização de qualquer forma de amianto. No julgamento, o Supremo declarou constitucionais as leis estaduais que proibiam o amianto (ADIs 3.406 e 3.470) e, para tanto, declarou incidentalmente inconstitucional dispositivo da lei federal que até então autorizava a utilização do amianto crisotilla (asbesto branco).

Segundo o Supremo, houve inconstitucionalidade superveniente da lei federal (antes entendida como constitucional) que autorizava a utilização do amianto crisotilla e, assim, as leis estaduais proibitivas estavam em consonância com a proteção dos direitos fundamentais e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil[1].

Nesse julgamento do caso do Amianto, o STF decidiu ainda que, apesar de não ser objeto das ADIs, a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei federal deveria ter eficácia vinculante e efeito e contra todos (erga omnes), e sem a necessidade de atuação do Senado (art. 52, X, CRFB/88).

Assim, o STF abraçou expressamente a mutação constitucional do art. 52, X, CRFB/88, para que o Senado apenas dê publicidade à decisão do Supremo, bem como teria adotado a tese da abstrativização do controle difuso (também chamada por alguns de objetivação do controle concreto)[2]. Vale dizer, a partir da decisão do caso do Amianto, o STF passou a entender, de forma expressa, que a declaração incidental de inconstitucionalidade tem efeitos vinculantes e contra todos (erga omnes), independentemente do disposto no art. 52, X (competência privativa do Senado para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF) ou do art. 103-A (edição de súmula vinculante), ambos da Constituição de 1988.

Os ministros do Supremo debateram longamente essa virada de entendimento e a equiparação do controle concreto e incidental ao controle abstrato e principal.

Esse percurso, que revela muito sobre o funcionamento do Supremo, passa por três momentos determinantes.

I – O RE 197.917 e caso do Município Miraestrela

Em 2004, em um recurso extraordinário, o Supremo declarou inconstitucional uma lei do Município Miraestrela (SP) que previa mais vereadores do que o número permitido pela Constituição. Caso o STF declarasse a lei inconstitucional com os efeitos retroativos tradicionais do controle concreto, todos os atos legislativos seriam nulos, gastos já feitos seriam ilegais, e uma longa lista de problemas apareceriam. Além disso, como tirar vereadores no meio da legislatura em um sistema de eleição proporcional? Diante disso, o STF modulou os efeitos da sua decisão no caso concreto, aplicando-a apenas à próxima legislatura. Deu efeitos pró-futuro a uma decisão que teria efeitos tipicamente retroativos, desenvolvendo assim, efeitos típicos do controle abstrato pela via principal no controle concreto pela via incidental.

II – O HC 82.959 e a vedação de progressão dos crimes hediondos e a Reclamação 4.335

Em 2006, em um HC, o STF julgou inconstitucional a previsão da Lei de Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime para esses crimes[3]. A decisão foi dada em um caso concreto (HC). Seu efeito era, portanto, válido apenas para a parte. A extensão desse efeito dependeria de atuação do Senado Federal, nos termos do art. 52, X, conforme noticiado à época pelo próprio STF.

Logo depois, a Defensoria Pública da União no Estado do Acre pleiteou a progressão de regime de 10 condenados por crimes hediondos. O juiz da execução penal negou a progressão, argumentando que a decisão do STF só teria efeito geral após o Senado Federal suspender a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos.

Em resposta, ainda em 2006, Defensoria propôs a Reclamação 4.335, pedindo ao Supremo que alterasse a decisão do juiz para preservar sua autoridade e competência. O caso foi julgado pelo Plenário do STF apenas em 2014, após anos de debates. No julgamento, apesar da procedência da reclamação, o Supremo não endossou a tese de mutação do art. 52, X.[4]

III – O caso do Amianto e as ADIs 3.406 e 3.470

O ponto final desse longo percurso é o já mencionado caso do Amianto, que fez aniversário neste mês de novembro de 2019. Essa foi a primeira vez em que o STF passou a explicitamente acolher a tese da mutação do art. 52, X e, assim, a abstrativização do controle difuso (objetivação do controle concreto).[5]

3 – Críticas à mutação do art. 52, X e à abstrativização do controle difus

Todavia, esse entendimento não é pacífico e nem isento de críticas. É, mais uma vez, tarefa da doutrina exercer o constrangimento epistemológico.

3.1- O argumento de mutação constitucional do art. 52, X viola a possibilidade semântica do texto da Constituição. A mutação do art. 52, X rompe completamente o sentido da norma ao esvaziar a competência do Senado e desequilibra a relação entre os poderes, dando primazia desmedida ao STF. É certo que a norma não se confunde com seu texto. No entanto, existe um limite semântico que deve ser respeitado sob pena de se permitir arbitrariedades judiciais através de uma interpretação que desborda do texto. Essa compreensão ainda tem como resultado o reforço de um único modo de controle de constitucionalidade pelo STF (a abstrativização do controle difuso e concreto e a objetivação do RE). Se o texto do art. 52, X é obsoleto ou mau usado pelo Senado, não seria mais adequado reformá-lo por PEC?

3.2- A abstrativização do controle difuso reforça o controle concentrado no STF e a ideia de que ele detém a última palavra sobre o significado da Constituição. Sob o argumento de instrumentalidade das formas, economia processual e celeridade, se enfraquece o controle difuso e o controle concreto e todo o seu percurso de depuração de fatos e argumentos. Ela esvazia a importância dos casos concretos, os fatos, as circunstâncias; a correção dos Tribunais (TJs e TRFs); a uniformização promovida pelo STJ e, finalmente, o controle constitucional exercido pelo STF depois de um processo de depuração de fatos, circunstâncias e argumentos nas outras instâncias. Perdemos a riqueza de termos um modelo misto de controle (difuso e concentrado / concreto e abstrato).

Talvez valha aqui retomar a importância de uma postura minimalista, de decidir um caso de cada vez, sem apelar a grandes e amplos fundamentos. Num caso como o da progressão de regime ou do Amianto, seria possível defender uma decisão minimalista, que por ser dada pela Suprema Corte já possui efeito persuasivo ao indicar os fundamentos e a direção que o Supremo toma sobre a questão, mas que ainda deixa em aberto possíveis outros argumentos, outras formas de atuação e correção possíveis, sem que com isso tenha-se a necessidade de rasgar o texto constitucional.

3.3- No caso do Amianto, o Supremo poderia ter declarado incidentalmente a inconstitucionalidade da previsão da Lei Federal que autorizava o amianto, dando efeitos erga omnes e vinculantes à sua decisão, mas sem afirmar a tese da mutação constitucional. A decisão de dar efeitos erga omnes e vinculantes foi adequada, pois foi tomada em sede de controle abstrato, em ADI que questionava lei estadual proibitiva do amianto. Aqui sim é possível defender que se confira à essa decisão incidental efeitos erga omnes e vinculantes. Afinal, na ADI a causa de pedir é aberta. Ou seja, o STF pode adotar, para decidir, fundamentos diferentes daqueles indicados pelos requerentes. Não há, razões, portanto, para ir além da concessão de efeitos erga omnes e vinculantes a essas ADIs na declaração incidental de inconstitucionalidade.

4 – Rota de saída

O que se vê é que existe, portanto, uma rota de saída para ampliação do alcance das decisões do tribunal quando necessário, mas sem que se afirme para isso a mutação do art. 52, X ou uma abstrativização do controle difuso.

No caso do Amianto, seria possível defender a compatibilidade e riqueza do controle judicial misto (difuso e concentrado) com a seguinte proposição: em processos abstratos (objetivos), a declaração incidental de inconstitucionalidade de norma que não foi objeto do pedido terá efeitos erga omnes e vinculantes, sem que isso altere a prática do STF nas declarações incidentais de inconstitucionalidade no âmbito do controle concreto em processos subjetivos.

Essa proposta encontra, inclusive, semelhança com a prática da inconstitucionalidade por arrastamento. Na inconstitucionalidade por arrastamento também se declara a inconstitucionalidade de norma que não fora objeto do pedido, mas mesmo assim, por coerência, uniformidade e celeridade, as normas dependentes e decorrentes da que fora declarada inconstitucional o são também, por arrastamento.

Além disso, o Supremo já admite situações em que a atuação do Senado se mostra desnecessária, sem que para isso tenha de apelar à mutação do art. 52, X, ou abstrativizar o controle difuso e concreto[6].

Por fim vale ressaltar que não nos parece possível dissociar a norma de uma hipótese de aplicação e, portanto, de um caso. Ao mesmo tempo, todo caso concreto, com suas profundas particularidades, poderá transformar ou ressignificar uma intepretação feita em abstrato. Essa mesma reflexão vale para se repensar criticamente a hipertrofia do controle concentrado e abstrato e a abstrativização do controle difuso e concreto feito pelo STF.

Mais vale apostar na riqueza do modelo judicial misto (difuso e concentrado) que na sua uniformização e absolutização através da abstrativização (e objetivização), que, até aqui, pouco tem acrescentado para o aperfeiçoamento de uma crítica pública das decisões mediante uma jurisdição constitucional mais democrática.

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[1] Convenções 139 e 162 da OIT e Convenção de Basiléia.

[2] Não ignoramos aqui a exigência de rigor na classificação e nomenclatura do modelo de controle judicial de constitucionalidade das leis no Brasil. Ou seja, a adoção de um sistema judicial misto, composto pelo controle difuso, feito por juízes e tribunais, e pelo controle concentrado, feito pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, quanto ao sistema (ou órgão), o controle judicial é difuso (juízes e tribunais) ou concentrado (STF). Quanto ao tipo, o controle é abstrato (analisa a lei de modo objetivo, em tese, em relação à Constituição) ou concreto (analisa se a lei no caso concreto ofende a Constituição). Quanto à posição na sequência processual (ou forma), o controle judicial pode ser incidental ou principal. Assumimos neste artigo a abstrativização do controle difuso tal qual manifestada pelos próprios ministros do STF em seus votos, ao compreenderem que a declaração incidental de inconstitucionalidade pode ter efeitos gerais (erga omnes) e vinculantes, independentemente do art. 52, X (competência privativa do Senado para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF) ou do art. 103-A (edição de súmula vinculante), estabelecendo uma expressa e assumida equivalência entre o controle concreto e incidental e o controle abstrato e principal.

[3] Lei 8.072/90, art. 2º, §1º.

[4] 4 dos 6 Ministros que deram provimento à RC 4335 decidiram com base na SV nº 26 de 2009 e não com base na decisão do HC 82.959 de 2006 (que teria efeito inter partes).

[5]Apesar de alguns defenderem que no caso haveria apenas o uso da teoria da transcendência dos motivos determinantes, visto que o STF em agosto de 2019, na ADI 3937, já tinha tomado decisão equivalente em relação à Lei do Estado de SP.

[6] Vide: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 11ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. O STF admite desnecessidade de atuação do Senado em: a) RE contra decisão de ADI Estadual por ofensa à norma de reprodução obrigatória da Constituição, conferindo efeito erga omnesb) RE que reinterpreta e modifica uma decisão antes proferida em ADI possui efeitos erga omnes por ser substitutivo (sucedâneo) de ADI. Em ambos os casos o STF confere efeitos gerais em controle concreto, mas sem precisar apelar à mutação (autoritária e deslegitima) do art. 52, X, e nem esvaziar a importância do controle difuso e concreto. Aqui, portanto, defendemos a tese de uma terceira exceção, sem que nosso modelo constitucional e desenho institucional seja desvirtuado por quem não teria legitimidade para tal.

 

BERNARDO GONÇALVES FERNANDES – Professor Associado de Teoria da Constituição e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto da PUC-Minas. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/como-o-supremo-expandiu-seus-poderes-no-caso-do-amianto-21112019

A decisão de Toffoli não é política, é ilegal mesmo

A decisão de Toffoli não é política, é ilegal mesmo

Caso Flávio Bolsonaro: decisão do presidente do STF ignora a ressalva de que suspensão não atinge investigações em curso

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CONRADO HÜBNER MENDES e ESTEFÂNIA QUEIROZ BARBOZA

 

Em decisão monocrática, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, atendeu pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro e determinou a suspensão de todos os processos criminais e investigações em curso que se fundamentem em documentos e dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN) com o Ministério Público ou as polícias.

A decisão foi tomada no RE 1.055.941, que tem repercussão geral reconhecida (Tema 990 da Repercussão Geral), após pedido em petição da defesa do senador Flávio Bolsonaro. Como o senador é investigado por corrupção pelo Ministério Público do Rio de Janeiro com base em dados do COAF, ele alegou que tal investigação era abusiva por se valer de dados obtidos sem autorização judicial.

A questão não é idêntica, mas é semelhante àquela debatida no referido Recurso Extraordinário, no qual se avalia a legalidade de investigação feita com base em dados fornecidos pela Receita Federal.

Assim, a decisão do ministro Toffoli beneficiou não apenas o senador Flávio Bolsonaro, que teve a investigação contra si suspensa, mas também outros tantos réus e investigados com base em dados compartilhados pela Receita Federal, COAF e BACEN.

O ministro Toffoli fundamentou sua decisão de suspensão com base no art. 1.035, §5º do CPC, que autoriza o relator a suspender os processos em curso nas instâncias inferiores diante do reconhecimento de repercussão geral em recurso extraordinário.

No entanto, com base no poder geral de cautela, o ministro Toffoli estendeu a suspensão também às investigações policiais ou do Ministério Público em andamento. Mais do que isso, diante da suspensão dos processos e investigações, Toffoli também determinou a suspensão da contagem do prazo prescricional dos supostos crimes processados ou investigados.

Convém questionar: qual é o alcance da suspensão dos processos nas instâncias inferiores prevista no art. 1.035, §5º, no CPC? Aplica-se aos processos criminais em curso? Aplica-se também às investigações? Como fica a contagem do prazo prescricional dos supostos crimes apurados em processos e investigações?

No dia 7 de junho de 2017, o Plenário do STF decidiu sobre o alcance da suspensão dos processos em curso nas instâncias inferiores diante do reconhecimento de repercussão geral em recurso extraordinário. A questão foi debatida na Questão de Ordem no RE 966.177, de relatoria do ministro Luiz Fux, sob a sistemática da repercussão geral (Tema 924).

O STF decidiu que a previsão do art. 1.035, §5º do CPC consiste em faculdade, não obrigatoriedade, do ministro relator para suspender os processos em curso.

Nessa ocasião o STF também decidiu pela plena aplicabilidade da suspensão aos processos criminais. Ou seja, reconhecida a repercussão geral de um recurso extraordinário sobre matéria criminal, pode o ministro relator suspender os processos criminais em curso que tratem daquele tema.

O STF também decidiu que uma vez suspensos os processos criminais, também fica suspensa a contagem do prazo prescricional.

No entanto, nesse mesmo julgamento, o STF foi expresso e categórico ao dispor que a decisão de suspensão não se aplica a investigações em curso.

Essa ressalva constou, inclusive, na ementa do acórdão e no informativo oficial do STF1, que dispuseram de forma destacada que “em nenhuma hipótese, o sobrestamento de processos penais determinado com fundamento no art. 1.035, § 5º, do CPC abrangerá inquéritos policiais ou procedimentos investigatórios conduzidos pelo Ministério Público”.

A recente decisão do ministro Toffoli menciona esse julgado e, inclusive, invoca-o como fundamento para a suspensão dos processos e investigações em curso que se fundamentem em dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN). No entanto, sua decisão ignora a ressalva de que a suspensão não atinge investigações em curso.

A decisão se fundamenta “forte no poder geral de cautela“. Mas não explica por que tamanho poder geral de cautela se aplica e por que afastaria o que já decidiu o STF: a suspensão não pode atingir investigações em andamento. Nem faz algum juízo sobre o impacto que essa decisão de suspensão terá sobre outras investigações em curso no País.

Ao final, a decisão do ministro Toffoli ressalta que a suspensão dos processos e investigações também implica a suspensão da contagem do prazo prescricional, tal qual já fora decidido pelo Plenário do STF no RE 966.177 (Tema 924).

No entanto, a suspensão da prescrição também não é entendimento pacífico e encontra críticas contundentes ao fato de o STF ter criado, por meio de decisão judicial, mais uma hipótese de suspensão da prescrição sem previsão legal. E convém lembrar que prescrição é elemento de direito material, e não de direito processual. Exige lei específica e em sentido estrito. Daí a controvérsia sobre a decisão do STF de que a suspensão de processos criminais em razão de repercussão geral também implica suspensão da prescrição.

De todo modo, ainda que se deixasse de lado esse debate fundamental, a decisão de Toffoli encontra óbice em decisão anterior do Plenário que não o autorizaria a suspender investigações em curso.

Isso significa que a decisão do ministro Toffoli não encontra previsão legal, pois a suspensão de que fala o CPC2 é de processos. E o que Flávio Bolsonaro enfrenta, por ora, é investigação.

Mais do que isso, a decisão do ministro Toffoli viola decisão do Plenário do STF, que foi expresso e específico ao decidir que a suspensão de processos criminais não atinge investigações, sejam elas conduzidas pela polícia ou pelo Ministério Público3.

Além disso, a decisão do ministro Toffoli se coloca diante de outra decisão do Plenário do STF4, na qual foi firmada a tese de que são lícitos os dados obtidos pela Receita Federal junto às instituições financeiras sem prévia autorização judicial.

Por óbvio, a integridade e coerência interpretativas deveriam ser também consideradas para a decisão tomada pelo ministro Toffoli, pois assim como a situação de Flávio Bolsonaro se assemelha à repercussão geral invocada, a decisão do Plenário do STF também endossa possibilidade de compartilhamento.

Nessa circunstância, analistas têm noticiado que a decisão de Toffoli teria sido política, como se fosse aceitável uma decisão que subverta as regras da Constituição e as do processo civil e penal (devido processo legal).

Classificá-la como política é um eufemismo que esconde erro de análise. A decisão não foi política, foi apenas ilegal.

É sempre possível que o Supremo e seus ministros manejem a agenda do Tribunal, pautas, vistas, decisões no recesso etc., desde que dentro das regras legais e regimentais. Fazem escolhas discricionárias, às vezes orientadas por critérios de política institucional. São escolhas autorizadas juridicamente. Ainda assim, estão sujeitas ao ônus de fundamentação e ao escrutínio públicos.

A decisão do ministro Toffoli não encontra amparo legal. Classificá-la como “decisão política” não elimina seu caráter ilegal. Ela encontra limites na Constituição, nas regras do processo constitucional e na exigência de respeito ao próprio STF que já decidiu a amplitude da decisão de suspensão.

É preciso recordar que o Poder Judiciário, e o STF em especial, deve buscar coerência decisória, respeitando não só a ratio de precedentes, mas também os princípios que lhes fundamentaram. Essa racionalidade decisória é uma forma de construir e justificar a legitimidade do Judiciário, já que ela não se dá nas urnas, e sim na prática judicial.5

___

2 art. 1.035, §5º, do CPC.

3 RE 966.177 – Tema 924.

4 RE 601.314 (Tema 225).

5 DWORKIN, Ronald.O império do Direito, 2ª ed, Martins Fontes, 2007, p. 477.

 

CONRADO HÜBNER MENDES – Professor da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo. Mestre e Doutor em Ciência Política pela USP. Colunista da Revista Época. Autor dos livros: Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford, 2013); Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação (Saraiva, 2011); Controle de Constitucionalidade e Democracia (Elsevier, 2007).
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-decisao-de-toffoli-nao-e-politica-e-ilegal-mesmo-31072019

Plenário Virtual no Supremo: reforço de um tribunal de solistas

Plenário Virtual no Supremo: reforço de um tribunal de solistas

Ampliação do Plenário Virtual aprofunda atuação individual e individualista de ministros. Outros desenhos, no entanto, são possíveis

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e CONRADO HÜBNER MENDES

 

Os ministros do Supremo Tribunal Federal aprovaram, em sessão administrativa recente, uma importante reforma do Regimento Interno do Supremo. A nova emenda ao Regimento Interno acrescentou o art. 21-B, que amplia o número de processos que podem ser julgados pelo Plenário Virtual da Corte.

A redação exata do art. 21-B ainda deverá ser estabelecida por resolução a ser editada pelo presidente do STF. De todo modo, ficou decidido que passa a ser possível a utilização do Plenário Virtual para a análise de medidas cautelares em ações do controle concentrado (ADI, ADC e ADPF, por exemplo), referendo de medidas cautelares e de tutelas provisórias e, ainda, para as demais classes processuais cuja matéria objeto de controvérsia já tenha entendimento solidificado do STF.

Criado em 2007, o Plenário Virtual permite que os ministros decidam em uma plataforma eletrônica sobre a existência ou não de repercussão geral de controvérsia discutida em recurso extraordinário (arts. 323, 324, RISTF). Além disso, também permite o julgamento de mérito dos recursos extraordinários com repercussão geral nas hipóteses de reafirmação de jurisprudência consolidada do Supremo (art. 323-A, RISTF).

Em junho de 2016, a utilização do Plenário Virtual foi ampliada para possibilitar também o julgamento de agravo interno (art. 317, §5º, RISTF) e de embargos de declaração (art. 337, §3º, RISTF). Essa ampliação encontrou resistência e fortes críticas do ministro Marco Aurélio, que renunciou à presidência da Comissão de Regimento Interno do Supremo.

Agora, em junho de 2019, o STF volta a emendar seu Regimento Interno para novamente ampliar o uso do Plenário Virtual e acrescentar o art. 21-B. Significa que, na prática, decisões liminares ou de mérito sobre leis, decretos, atos normativos federais e estaduais, além de resoluções de agências reguladoras, por exemplo, poderão ser tomadas diretamente no Plenário Virtual. O novo acréscimo encontrou, novamente, críticas do ministro Marco Aurélio, o único a votar contra a proposta.

Para o ministro Marco Aurélio, essa ampliação de julgamentos virtuais impede o necessário debate entre os ministros.

Se, por um lado, os meios eletrônicos e plataformas virtuais são uma realidade inarredável com a qual devemos lidar, por outro lado, devemos utilizá-las em favor de uma prestação jurisdicional não apenas célere, mas também colegiada e deliberativa. A preocupação do ministro Marco Aurélio é pertinente.

O Plenário Virtual tem a vantagem de tornar mais simples e rápidas as votações sobre existência ou não de repercussão geral, afirmação de jurisprudência, provimento ou desprovimento de agravos internos e embargos de declaração.

No entanto, ele possibilita somente isso: votações.

Votação não equivale à deliberação. Votar é decidir. Deliberar é trocar razões, testar e desafiar argumentos, para então se tomar uma decisão e votar.

Meios eletrônicos e plataformas virtuais até podem propiciar a deliberação. E seria desejável que o fizessem. Se a ferramenta, no entanto, oferece apenas possibilidades binárias de votação (“sim” ou “não”; “provimento” ou “desprovimento”; etc.) ou a mera oportunidade de inserção de arquivo com as razões de um voto, deixa-se de lado uma potencialidade que poderia aprimorar o desempenho colegiado e deliberativo dos ministros e do Tribunal.

Nesse formato simples, o ministro adentra ao Plenário Virtual para verificar os processos que precisam de decisão e então vota. Sozinho, individualmente, sem trocar argumentos com seus pares. A tarefa judicante dos ministros no Plenário Virtual torna-se essencialmente solista.i Nesse cenário, o Plenário Virtual tende a aprofundar a individualidade e o individualismo dos ministros e dificultar a já escassa deliberação no STF.

É possível pensar criativamente o aprimoramento do Plenário Virtual, ainda mais diante da significativa ampliação recém aprovada.

As formas e desenhos possíveis são inúmeros: criação de espaço para apresentação de questões ou contra-argumentos; de janela específica que reúna e liste argumentos consensuais ou majoritários e separe argumentos singulares ou que sejam minoritários; criação de enquetes provisórias para facilitar a definição do que é consensual, majoritário ou minoritário, e um longo etc.

As possibilidades de aperfeiçoamento de um espaço virtual que favoreça a colegialidade e a deliberação não devem ser subestimadas. E os ministros são os atores mais aptos a propor ou escolher formas variadas de interação.

A ampliação do Plenário Virtual noticiada, no entanto, não parece ir ao encontro desse caminho mais versátil e rico, que potencializa a troca de razões e persuasão. Ao contrário, a ampliação do Plenário Virtual mantém uma lógica binária de votação.

O Plenário Virtual tem a potencialidade de ser uma extensão do Plenário físico e aprimorar a prestação jurisdicional do STF. Poderia entregar mais do que a desejada celeridade; poderia reduzir em vez de aprofundar o solismo que lhe tem caracterizado nos últimos anos.

Meios eletrônicos, plataformas virtuais, utilização ampliada do Plenário Virtual, podem ser bons meios e mecanismos. Não podemos, no entanto, nos esquecer do elemento importante que possui o alerta do ministro Marco Aurélio – a necessidade de colegialidade.

Nesse sentido, a notícia de ampliação do Plenário Virtual não soa bem. Ela parece aprofundar uma atuação individual e individualista – com alto número de ações, recursos, medidas e procedimentos a serem submetidos ao Plenário Virtual, mas apenas para votação. Nesse modo virtual de votar, a deliberação não existe.

Isso não significa que outros desenhos e usos do Plenário Virtual não possam ser pensados. O STF possui qualificado setor de tecnologia da informação, a pesquisa acadêmica possui vasta produção relativa à deliberação e colegialidade e os ministros do STF possuem experiência cotidiana com o Plenário Virtual e suas votações.

A transformação de um tribunal de solistas num tribunal mais colegiado e deliberativo pode até ser compatível com o uso do Plenário Virtual. Não o será, contudo, pela manutenção de sua lógica binária de funcionamento.

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iCf. Hübner Mendes, Conrado. “O projeto de uma corte deliberativa”. In: Adriana Vojvodic; Henrique Motta Pinto; Rodrigo Pagani. (Org.). Jurisdição Constitucional no Brasil. Malheiros, 2012.

 

CONRADO HÜBNER MENDES – Professor da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo. Mestre e Doutor em Ciência Política pela USP. Colunista da Revista Época. Autor dos livros: Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford, 2013); Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação (Saraiva, 2011); Controle de Constitucionalidade e Democracia (Elsevier, 2007).
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/plenario-virtual-no-supremo-reforco-de-um-tribunal-de-solistas-26062019