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Virando o jogo no STF: plenário virtual, destaque e caso da revisão da vida toda

Virando o jogo no STF: plenário virtual, destaque e caso da revisão da vida toda

Medida do ministro Nunes Marques fere a colegialidade e coloca o STF como refém de sua estratégia individual

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

Às 23h30 da último dia 8, faltando apenas 30 minutos para o julgamento virtual se encerrar, o ministro Nunes Marques pediu destaque do julgamento do caso previdenciário de revisão da vida toda (RE 1.276.977).

Ocorre, no entanto, que o julgamento virtual já tinha colhido o voto de todos os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo havido maioria formada de 6 a 5 em 25/02/2022, a favor da revisão da vida toda. A maioria tinha sido formada com voto do então relator, ministro Marco Aurélio Mello, que se aposentou no curso do processo e foi substituído pelo novel ministro André Mendonça, ex-AGU e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. Assim, a decisão do ministro Nunes Marques aos 45 minutos do segundo tempo, que também já tinha votado e estava vencido, zerou o julgamento e levou o caso para o plenário físico. Mas, com o julgamento zerado, o voto do então ministro relator Marco Aurélio Mello ficará desprezado. E valerá para o julgamento em plenário físico o voto do novo ministro — André Mendonça.

O pedido de destaque do plenário virtual zera o julgamento e leva o caso para apreciação do plenário físico, conforme previsão do regimento interno do STF (art. 21-B, § 3º). É um bom instrumento, já que os julgamentos virtuais no plenário virtual do STF têm acontecido aos montes, com colegialidade meramente formal, pouca ou nenhuma deliberação, com uso opaco do plenário virtual e resultados decididos quase sempre por ampla maioria acompanhando o voto do relator[1].

Assim, o destaque surge como instrumento possível de utilização por qualquer ministro que queira conferir ao caso maior atenção e tempo para julgamento. Como o destaque retira o caso do plenário virtual e zera o julgamento, inevitavelmente todos os ministros deverão se debruçar novamente sobre o caso. Faz com que ele leve mais tempo para ser julgado, pois uma vez destacado do plenário virtual dependerá de inclusão em calendário de julgamento pelo presidente do STF.

Faz com que o caso receba mais atenção porque as partes ou entidades envolvidas poderão ter novas rodadas de convencimento com os ministros, por meio de petições, pareceres, memoriais e audiências. O destaque é, assim, um instrumento à disposição dos ministros para fomentar colegialidade, deliberação, atenção mais detida a um certo caso. Rubens Glezer e Ana Laura Barbosa mostraram como não se pode culpar o destaque pelo mau uso que dele fez o ministro Nunes Marques.

No entanto, no STF, toda regra parece poder ser driblada, todo instrumento de fomento à colegialidade parece poder ser usado como arma individual por um ministro para emparedar o plenário, toda individualidade parece poder se sobrepor ao colegiado.

O que o ministro Nunes Marques fez ao destacar o caso não foi se valer de um uso possível de um instrumento à sua disposição. Foi, ao contrário disso, driblar o sentido da norma regimental que permite o destaque de casos para colocar abaixo um julgamento colegiado em que todos os 11 ministros já haviam votado. Foi colocar o plenário do STF como refém de sua estratégia individual para poder criar a chance de reversão do julgamento. Foi fazer o seu entendimento individual, até aquele momento vencido, se sobrepor ao colegiado.

E tudo isso sem nenhuma justificativa. Uma decisão que afeta milhões de pessoas, todo o Poder Judiciário e suas instâncias inferiores, sem nenhum argumento. Nenhuma razão pública que justificasse sua decisão de destaque, sua postura individual (e individualista).

Infelizmente, esse tipo de decisão e de postura não são novidade no STF. Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhano Ribeiro já mapearam esse tipo de manipulação e mostraram que há algum tempo já pulamos de etapa: não vivemos mais o tempo da “supremocracia” (mostrada por Oscar Vilhena Vieira), e sim o tempo da “ministrocracia”.

Ministros do STF sabem disso. São constrangidos muitas vezes por isso. Já tentaram tomar medidas que mitigassem os poderes individuais de cada um e privilegiassem o colegiado. Uma reforma regimental foi tentada ao longo da pandemia, mas não avançou em quase nada.

O problema dessa cultura da “ministrocracia” é que ela vai se enraizando. E quando vem, sem nenhuma desfaçatez como ocorreu no destaque do caso da revisão da vida toda, passa uma mensagem dos ministros e do STF muito ruim: a de que decisões inesperadas sempre são possíveis, e sem que nenhuma justificativa tenha que ser dada para isso. E, assim, o STF vai deixando de atuar como uma corte cujas decisões têm efeitos políticos para se caracterizar por uma corte que se vale de decisões judiciais para tomar decisões políticas.

É preciso ressaltar: o destaque em si não é ruim. Pode e deve existir como instrumento à disposição dos ministros nos julgamentos do plenário virtual. Mas não deveria ser usado para mitigar o que ele deveria fomentar: colegialidade e deliberação.

O plenário poderá vir a enfrentar essa controvérsia em questão de ordem. Ou mesmo no julgamento presencial do caso. E a postura e decisão do ministro André Mendonça também dirão muito sobre como ele encara esse estado de coisas do tribunal que agora compõe.

Enquanto isso, os aposentados seguem esperando as voltas, reviravoltas e aparentes dribles do STF nas normas que deveriam lhe reger.

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[1] Vide: GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo (Ed. Arraes, 2021). Vide ainda os diagnósticos que vêm sendo feitos por Miguel Godoy e Eduardo Borges sobre o Plenário Virtual: Coronavírus e a ampliação do Plenário Virtual do STFPlenário virtual ampliado: o que temos e vemos até agora?O plenário virtual no STF: individualismo, vazão e outras tendênciasGestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?Dados e impressões sobre o plenário virtual do STF na pandemia.

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MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFPR, com período de estudos e pesquisas na Harvard Law School e Universidade de Buenos Aires (UBA). Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: “STF e Processo Constitucional: entre a ministrocracia e o Plenário mudo” (Ed. Arraes, 2021); “Fundamentos de Direito Constitucional” (Ed. Juspodivm, 2021); “Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais” (Ed. Fórum, 2017); “Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica” (Ed. Juruá, 2017); “Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella” (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de ministro do STF. Advogado

 

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/virando-o-jogo-no-stf-plenario-virtual-destaque-revisao-da-vida-toda-21032022

Dados e impressões sobre o plenário virtual do STF na pandemia

Dados e impressões sobre o plenário virtual do STF na pandemia

Se o plenário virtual veio para ficar, relatório do Supremo demonstra preocupação com seus modos de julgar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

O Supremo Tribunal Federal (STF), neste último mês de fevereiro, lançou a pesquisa “O plenário virtual na pandemia da Covid-19”. Uma iniciativa importante da Secretaria Geral da Presidência e da Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, que, em particular, já vinha promovendo uma série de encontros para debater justamente o plenário virtual do STF. Uma secretaria, aliás, que tem de se destacado pelos inúmeros trabalhos de qualidade técnica e institucional produzidos.

O relatório, para além do histórico das mudanças regimentais que culminaram na gradual expansão do ambiente eletrônico para todos os processos de competência do STF e dados referentes à sua utilização desde 2008 até 2021, apresenta dados referentes à sua utilização em dois períodos específicos: o primeiro, pré-pandemia, de 19/06/2019 a 19/03/2020, e o segundo, posterior ao início da pandemia, de 20/03/2020 a 31/12/2020.

Esses marcos temporais, porém, não foram escolhidos em função da Covid-19, mas sim da entrada em vigor de duas emendas regimentais que ampliaram o plenário virtual: a ER nº 52, de 14/06/2019, que permitiu o julgamento de medidas cautelares em ações de controle concentrado de constitucionalidade, referendo de medidas cautelares e tutelas provisórias e demais classes processuais cujo objeto da controvérsia já tenha entendimento pacífico no STF, e a ER nº 53, de 18/03/2020, coincidente, portanto, com o início da pandemia, que abriu o plenário virtual para o julgamento de todo e qualquer processo.

E é justamente por seu recorte temporal que o relatório é importante para a compreensão do impacto do plenário virtual sobre a dinâmica decisória do STF, permitindo a comparação entre seu uso antes e depois da completa expansão.

Daí a relevância dos dados sobre as decisões colegiadas por ambiente decisório (fls. 37 e 38), as classes processuais julgadas (fls. 41 e 42), o perfil decisório das decisões (fls. 46, 47, 48, 50 e 51), à sustentação oral (fl. 52) e ao pedido de destaque do ambiente virtual para o presencial (fl. 52).

Como noticiado, a ampliação do plenário virtual encontrou forte resistência entre advogados, que chegaram até mesmo a pedir a revogação da ER nº 53/20 em carta aberta ao então presidente do STF, ministro Dias Toffoli. A academia vem se debruçando sobre o plenário virtual, analisando seu uso sob as mais diversas perspectivas, como da fundamentação das decisões e da mitigação do poder de agenda do presidente.

Então, considerando tanto o seu impacto na dinâmica decisória do STF quanto a sua repercussão entre os pesquisadores e operadores do direito, o relatório nos é apresentado como uma “espécie de prestação de contas a respeito da governança do Tribunal” (fl. 16).

Mas é, em igual medida, apresentado também como um convite para que, “a partir da publicação do estudo, outras contribuições sejam apresentadas por pesquisadores” (fl. 16). Trata-se, portanto, de um convite, um “ponto de partida para fomentar reflexões futuras” (fl. 20).

Pois aceitamos o convite e apresentamos nossas primeiras impressões.

Deparamo-nos com uma ausência que já havíamos apontado em nossa primeira análise sobre o funcionamento do plenário virtual após a ER nº 53/20: os processos que, antes do início da sessão virtual, foram destacados para o plenário físico, sem qualquer justificativa e sem que se possa controlar esses destaques, pois eles simplesmente desaparecem da pauta do plenário virtual.

Este dado certamente agregaria à prestação de contas, sobretudo em um tribunal que profere 98,4% de suas decisões no ambiente eletrônico (fl. 33), na medida em que permite o controle das razões pelas quais determinados processos, mas não outros, foram levados a julgamento presencialmente – ou, remotamente, por videoconferência – com os ministros deliberando in loco e com as partes aptas a formular questões de ordem ou de fato.

Ainda em relação às ausências por nós constatadas, embora o relatório apresente os números de pedidos de destaque e decisões tomadas por unanimidade ou por maioria, não traz os dados dos pedidos de vista e do quórum das correntes vencedoras e vencidas.

A nosso ver, ambos os dados seriam relevantes para corroborar, ou para infirmar, a tese sustentada pelo relatório de que o plenário virtual é “um espaço de densificação argumentativa, em que são apresentados contrapontos de outros ministros aos argumentos do relator, principalmente no período posterior ao início da pandemia” (fl. 46).

E “espaço de densificação argumentativa” é como o relatório caracteriza o plenário virtual a despeito de ele principiar a exposição dos dados alertando que “não se destina a analisar a satisfatoriedade do Plenário virtual enquanto mecanismo deliberativo” (fl. 20).

O argumento de densificação argumentativa é apresentado após os dados revelarem um incremento no número de decisões em que houve divergência. Em sua parametrização, o relatório toma como divergente o voto cujo dispositivo é distinto do voto do relator (fl. 19), desconsiderando que os votos podem divergir na fundamentação, mas não em seu resultado.

Ou seja, a nosso ver, o incremento de votos divergentes autoriza somente a conclusão de que há contraposição de teses, mas não necessariamente a densificação argumentativa. Argumentos somente são densificados, isto é, apurados e afinados, por meio da deliberação – o que não acontece no plenário virtual até aqui.

Adiante na análise do que está no relatório, é curioso que o aumento na proporção de julgamentos virtuais não tenha ensejado o aumento na proporção de decisões colegiadas. A despeito de, entre 2016 e 2021, os julgamentos virtuais terem saltado de 34,9% para 98,4% (fl. 30), a proporção de decisões colegiadas manteve-se praticamente estável, variando de 10% em 2019 a 18% em 2020 (fl. 30). Em 2021, ficou em 15%. Esses dados então parecem contrariar o que foi dito pelo ministro Dias Toffoli, em seu último discurso na presidência do STF: “Graças aos julgamentos virtuais, conseguimos avançar sobre a longa pauta de julgamentos colegiados”.

Por fim, é o próprio relatório que confirma a utilização do plenário virtual como verdadeiro mecanismo de vazão do acervo: “processos prontos para o julgamento e que aguardavam calendarização do plenário físico migraram para o ambiente virtual de votação” (fl. 38). Daí, por exemplo, terem sido julgadas 490 ADIs e 93 ADPFs após o início da pandemia quando, antes do início, foram, respectivamente, 274 e 27 (fl. 41).

Vazão de processos, julgar muito, não significa necessariamente julgar bem.

Tampouco significa julgar bem a ocorrência de julgamentos “por inércia”, em que o voto do relator é acompanhado automaticamente pelos demais ministros, sem acréscimo na fundamentação. Identificar se, ao lado do volume exorbitante dos processos, a proliferação de decisões “acompanho o relator” impacta em igual medida a prestação jurisdicional no ambiente eletrônico é pesquisa que também merece ser realizada.

Por falar em julgar muito, uma investigação que aguarda ser realizada é saber se a queda na qualidade argumentativa no plenário virtual resulta, em igual medida, de “votos secos” – ministros que acompanham, por inércia, o voto do relator.

Se o plenário virtual veio para ficar, o diagnóstico feito pelo próprio STF por meio de sua Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação demonstra uma preocupação do tribunal consigo próprio, seus meios e modos de julgar. E o faz com celeridade e qualidade. Não se furta ao debate ao discutir o relatório com diversos especialistas e colocá-lo para escrutínio público. Exemplo de prática institucional engajada com aprimoramento.

Esperamos que os apontamentos críticos que fizemos deem continuidade ao debate e ao aperfeiçoamento do plenário virtual do STF. Afinal, se nós todos já somos outros depois da pandemia, também e tanto mais o STF depois dela e de seu plenário virtual ampliado.

 

EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-assessor de presidente nacional da OAB. Advogado
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFPR, com período de estudos e pesquisas na Harvard Law School e Universidade de Buenos Aires (UBA). Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: “STF e Processo Constitucional: entre a ministrocracia e o Plenário mudo” (Ed. Arraes, 2021); “Fundamentos de Direito Constitucional” (Ed. Juspodivm, 2021); “Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais” (Ed. Fórum, 2017); “Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica” (Ed. Juruá, 2017); “Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella” (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de ministro do STF. Advogado

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/plenario-virtual-stf-pandemia-dados-impressoes-10032022

O STF, a ADPF 709 e a sala de situação

O STF, a ADPF 709 e a sala de situação – um diálogo ilusório

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CAROLINA SANTANA e LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA

ADPF 709 tem se tornado significativa por pelo menos 5 razões: por quem propôs; pelo que ela pede; pelas decisões iniciais, tanto do ministro relator, quanto do Plenário do STF; pela Sala de Situação; e pelo que tem se tornado.

Neste breve artigo, resumimos alguns pontos de uma pesquisa mais ampla sobre a ADPF 709 e a Sala de Situação[1]. Dentre os pontos indicados acima, enfocamos especialmente a Sala de Situação – espaço que parece tão inovador, quanto promissor. Só parece. Vejamos.

Por quem propôs:

A ADPF 709 foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma entidade que reúne diversos grupos, coletivos, povos e comunidades indígenas de todo o País. Seu principal advogado na ADPF 709 é um indígena terena, Luiz Eloy Terena.

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, há tempos vem defendendo reler, no art. 103, IX, CRFB/88, o sentido de “entidade de classe de âmbito de nacional”, para incorporar, além das categorias profissionais e grupos econômicos, entidades que atuem na defesa de grupos vulneráveis ou minoritários. Com a propositura da ADPF 709, Barroso reiterou esse entendimento, e foi além.

Apesar de a APIB não ser constituída formalmente como associação, não possuir um CNPJ, aceitou sua atuação como entidade de classe de âmbito nacional tendo em vista sua plural e ampla composição, bem assim o direito dos indígenas de exercerem a representação judicial e direta de seus interesses (art. 232, CRFB/88). Um avanço, portanto, em termos de reconhecimento da legitimidade ativa e da visibilidade e voz dos povos indígenas por eles mesmos. A decisão do ministro relator foi, inclusive, referendada pelo Plenário do STF.

O que ela pede

Busca evitar e reparar atos comissivos e omissivos do Poder Público, especialmente do Governo Federal, que têm exposto comunidades indígenas, inclusive de indígenas isolados, à pandemia da Covid-19. Povos indígenas são minoria sistematicamente negada e invisibilizada pela nossa história e instituições. Mas especialmente negada, silenciada e invisibilizada pelo presidente Bolsonaro e seu governo.

Ademais, indígenas têm vulnerabilidades socioepidemiológicas, e têm sofrido mais na pandemia[2]. Merecem maior atenção do estado. No entanto, tem ocorrido justamente o contrário. Ações e omissões sistemáticas têm levado à morte um sem número de indígenas. O povo Juma, por exemplo, perdeu seu último homem na pandemia.

Decisões iniciais do relator e do STF

As decisões do ministro Luís Roberto Barroso e do Plenário do STF foram relevantes e promissoras. Reconheceram a legitimidade ativa, deram visibilidade e voz às demandas urgentes e emergentes dos povos indígenas durante a pandemia. A decisão monocrática do ministro Barroso, determinando uma série de medidas ao Governo Federal e aos diversos órgãos que deveriam estar envolvidos e dedicados à proteção dos direitos indígenas (plano de contingência, instalação da sala de situação etc.), foi necessária e bem-vinda. O endosso maciço do Plenário também. Barroso, aliás, elencou esta decisão como uma das 15 decisões históricas do Tribunal.

Mas seu significado positivo parece ter ficado por aí, em seu começo e em sua intenção. O que deveria produzir de resultados concretos, parece não vir. Ou vir a conta-gotas. O tempo que passa, as medidas que não se tomam, são o tempo do extermínio continuado dos povos indígenas e as ações e omissões que dão cabo deles. O povo Juma está condenado ao desaparecimento. O cacique Aritana morreu. Há muitas e muitos outros. Todos os nomes deveriam constar aqui. Todos.

Instalada com base nos pedidos “a” e “b” da petição inicial, a Sala de Situação tem o objetivo de garantir “a imprescindibilidade de diálogo intercultural, em toda questão que envolva os direitos de povos indígenas”. Mas não é nova, nem foi criada pelo STF. Está prevista na Portaria Conjunta 4094/18, que a APIB acionou o Poder Judiciário para fazer cumprir.

Pela Portaria, a Sala de Situação deve ser composta por membros indicados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena/Ministério da Saúde e membros indicados pela Funai, e pode ser integrada também por colaboradores convidados, com a anuência conjunta de ambos os órgãos (art. 12, § 2º). Trata-se de instância de caráter técnico com vistas a “subsidiar a tomada de decisões dos gestores e a ação das equipes locais diante do estabelecimento de situações de contato, surtos ou epidemias envolvendo os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” (art. 12 caput).

Instalada em 17 de julho de 2020, a primeira reunião da Sala de Situação contou com mais de 60 participantes. Representando o governo federal: generais, brigadeiros e coronéis do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), representantes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), o Ministério da Defesa (MD), representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai). Representando a APIB, quatro indígenas, entre eles um dos advogados da ADPF[3].

Como apoio técnico, três indigenistas[4] e dois médicos sanitaristas[5], além do Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU). A primeira reunião foi conduzida pelo Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Augusto Heleno. O GSI segue conduzindo as reuniões há mais de dez meses. Embora haja previsão na Portaria 4094/18 para participação de colaboradores convidados, pressupõe-se que sejam especialistas no assunto.

O protagonismo das forças militares na Sala dificultou, desde o início, qualquer possibilidade de diálogo e adoção de critérios técnicos, a ponto de o ministro relator ter precisado nomear observadores para as reuniões a fim de arrefecer os debates e permitir análises mais técnicas. O teor da Portaria 4094/18, protetiva da saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato, perdeu-se diante da configuração que a Sala tomou.

Nisso também consiste a vulnerabilidade política[6] a que estão sujeitos os povos isolados – não apenas a sua não participação na política tradicional, como no desconhecimento e desuso das normativas protetivas de seus direitos, especialmente no Poder Judiciário.

Os indígenas indicados pela APIB para representarem a Articulação nas reuniões da Sala de Situação não veem o espaço como um local de diálogo intercultural. Eriverto Marubo afirma que o fato de a instância estar sendo coordenada por militares demonstra que não há interesse de seguir os procedimentos usuais de diálogo, como em outros governos.

Para ele, que vê nessa escolha de representantes uma postura de intimidação, com pessoas ali colocadas para convalidar as ações governamentais já decididas previamente. Para Marubo, o espaço aberto pela ADPF 709 está sendo utilizado pelo governo para chancelar os seus interesses[7].

Para Angela Kaxuyana, um diálogo intercultural pressupõe o entendimento das culturas e a consideração de especificidades e da diversidade. Segundo ela, pela forma como foi instituído o diálogo, o entendimento do Estado sobre o tema é sempre tido como primordial[8].

O STF nada fez para garantir que, nessa instância de diálogo, os povos indígenas fossem ouvidos, que não fossem tratados como uma população uniforme, e que tivessem suas experiências consideradas. Não basta que se reconheçam as narrativas indígenas, mas também seus narradores.[9] Isso significa atenção aos seus costumes de fala, seus tempos e, inclusive, compreensão com a desconfiança que depositam em nós. Mas, isso não tem sido visto na Sala de Situação, mesmo sob às vistas do STF.

Para ser genuína, a abertura judicial ao diálogo depende de quem discute, de qual posição, sobre o que se discute. Um diálogo no qual os agentes são majoritariamente estatais, militares, sem apreço ou abertura aos indígenas e suas particularidades (desde a inclusão digital para a Sala de Situação até os seus reclamos mais básicos pelo cuidado, ao menos respeito, de suas vidas) ignora os sujeitos mais fundamentais de todo o processo: os próprios povos indígenas.

O arranjo da Sala de Situação se manteve, desde o início, apartado de quem mais deveria fazer uso desse espaço. Mesmo sob a supervisão de um ministro do STF. É, assim, um espaço em princípio destinado ao diálogo, mas avesso a ele em forma e substância. Mesmo após as primeiras reuniões mal sucedidas, nenhuma medida foi adotada. Enquanto essas distorções permanecerem, a Sala de Situação seguirá funcionando apenas como promessa. Nesse futuro do pretérito da Sala de Situação, as e os indígenas seguem morrendo no presente e no futuro.

O que a ADPF 709 tem se tornado

O espaço e tempo jurídicos de uma burocracia que não anda, de um diálogo que não escuta, de uma decisão que, cumprida a conta gotas e sempre com respostas insuficientes às determinações, ao fim e ao cabo não se cumpre. A ADPF 709 tem se tornado o espaço e o tempo para que o Governo Federal diga que está fazendo algo, que está se esforçando.

Entre trocas de ofícios, apresentações de inúmeras versões de uma política pública de atenção e cuidado que não sai do papel, os indígenas morrem. Terras indígenas são invadidas. A floresta é derrubada e contaminada. A Sala de Situação tornou-se palco de ofensas por parte do Governo, de perseguições a quem ali, atuando nas instituições governamentais, busca apresentar algo de concreto para os direitos dos indígenas.

As sugestões de pessoas e entidades convidadas pelo ministro relator parecem surtir pouco efeito. A metodologia proposta pelo CNJ e algumas de suas sugestões, por exemplo, em que pese inovadoras e promissoras, não parecem ter sido levadas em conta.

As contribuições que outras pessoas e entidades buscam oferecer também parecem esbarrar no tamanho imenso que a ADPF 709 passou a ter e, se não estão perdidas, podem se tornar perecidas pelo decurso do tempo. Por exemplo, um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores do Centro de Estudos da Constituição da Faculdade de Direito da UFPR, se apresentou como amicus curiae, mas não teve seu pedido de ingresso ainda nem sequer apreciado.

Conclusões

A ADPF 709 começou promissora. Provocou o exercício da jurisdição constitucional do STF para proteção de direitos fundamentais de indígenas do nosso país. Recebeu acolhida no Supremo, com releitura ampliada da legitimidade ativa, decisão monocrática e referendo do Plenário. E só. Daí para frente, converteu-se num processo imenso, burocrático, lento, ineficaz. Apesar do trabalho do Supremo, do ministro Barroso e de sua equipe, dos convidados e participantes da ADPF 709, pouco de concreto ou efetivo sai dali.

Não basta boa intenção, proatividade, desejo de diálogo. Especialmente com quem, tendo poder de gestão e decisório, usa todo o espaço, tempo e burocracia, para manter tudo como está: com os indígenas vulneráveis, morrendo, com invasão das terras indígenas, derrubada e contaminação das florestas.

A ADPF começou bem, mas foi sendo engolida por um diálogo que nunca existiu[10] porque uma das partes – o Governo – não quer dialogar. Não quer ter de fazer algo, sob as barbas do Supremo. Mudar essa condução não só é possível, mas necessário e urgente. O Supremo pode mais e pode melhor.

[1] Vide o artigo científico recentemente publicado no Dossiê “Pandemias, Direito e Judicialização”, da Revista Direito e Praxis (UERJ), organizado pela Prof. Deisy Ventura (USP) e Octavio Ferraz (King’s College): STF, povos indígenas e Sala de Situação: diálogo ilusório. Revista Direito e Praxis, Vol. 12, N. 3, pg. 2174-2205. Autores: Miguel Gualano de Godoy, Carolina Ribeiro Santana e Lucas Cravo. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/61730/39037

[2] DE ALMEIDA MATOS, BEATRIZ; PEREIRA, BRUNO; RIBEIRO SANTANA, CAROLINA; AMORIM, FABRÍCIO; DO VAL SANTOS, LEONARDO LENIN COVEZZI; CRAVO DE OLIVEIRA, LUCAS. Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. MUNDO AMAZONICO, v. 12, p. 106-138, 2021.

[3] Angela Kaxuyana, Eriverto Marubo, Sonia Guajajara e Dr. Luiz Henrique Eloy Amado Terena.

[4] Carolina Santana, Fabrício Amorim e Leonardo Lenin.

[5] Douglas Rodrigues e Erik Jennings.

[6] Huertas, B (2015). Corredor Territorial de Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contacto Inicial Pano, Arawak y otros. FENAMAD.

[7] Entrevista concedida, em 18 de maio de 2021, a Carolina R. Santana.

[8] Entrevista concedida, em 20 de maio de 2021, a Carolina R. Santana.

[9] “Não basta que reconheçam nossas narrativas, é preciso que reconheçam nossas narradoras”, disse Célia Xakriabá no discurso final da Primeira Marcha das Mulheres Indígenas.

[10] Exemplo categórico da inexistência do diálogo foi a decisão monocrática do ministro relator emitida no dia 24 de maio de 2021, sobre o pedido de Tutela Provisória Incidental, em razão da escalada de ataques armados ao povo Yanomami e Munduruku, no âmbito da ADPF 709. O ministro informou que estava em curso o Plano 7 Terras Indígenas, correndo em sigilo de justiça, sendo que a primeira operação estava planejada para o final de abril. Há semanas – talvez meses – a principal parte autora da ADPF 709 não tinha nem sequer conhecimento de que estava em andamento um plano para cumprir um dos pedidos mais urgentes: a retirada de invasores das terras indígenas. Das 7 terras indígenas elencadas como prioridade, 6 possuem evidência da presença de povos indígenas isolados.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-stf-a-adpf-709-e-a-sala-de-situacao-06102021

A morte de Mateus Noga e o acesso às imagens de videomonitoramento das vias públicas

A morte de Mateus Noga e o acesso às imagens de videomonitoramento das vias públicas

Sem fundamento legal, esconder do público a evidência de um possível crime pode caracterizar ato de improbidade

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MAURICIO STEGEMANN DIETER

 

Mateus Noga, um jovem de 22 anos, foi morto com tiros nas costas pela Guarda Municipal de Curitiba durante uma batida para cessar uma confusão em conhecido lugar de festejo no centro da cidade – o Largo da Ordem.

Segundo a Guarda Municipal, após ser recebida com garrafadas, houve os disparos para dissipação da confusão e o jovem foi morto.

Não tem sido incomum a Guarda Municipal fazer abordagens, muitas vezes truculentas, e atuar como se Polícia Militar fosse, ainda que sua função seja a de proteção dos bens, serviços e instalações municipais, conforme art. 144, §8º da Constituição.

A solução do caso, ou ao menos da regularidade da atuação da Guarda Municipal seria de fácil verificação pelo sistema de viodemonitoramento da cidade de Curitiba. Um sistema moderno, chamado de muralha digital.

No entanto, mesmo após diversos pedidos de veículos da imprensa que cobrem o caso, as imagens seguem sendo negadas. A justificativa para a negativa? Uma lei municipal (Lei Ordinária 15.405/2019) que veda a disponibilização de acesso por terceiros dos dados, informações e imagens do sistema de videomonitoramento.

A negativa da Guarda Municipal não se sustenta. A disponibilização de acesso às imagens pode ser regulada para resguardar a imagem e a vida privada das pessoas que transitam pelos espaços públicos. Mas, essas imagens não podem não ser disponibilizadas para verificação da ocorrência de possíveis ilícitos. Assim, deve sim ser possível se obter acesso a essas imagens, desde que se justifique o interesse na disponibilização.

A publicidade é essencial para o controle da atividade policial, especialmente porque o controle judicial se exerce após os fatos, em análise retrospectiva. Sem transparência, portanto, é difícil – ou mesmo impossível – a disciplina legal do policiamento ostensivo exigida pelas democracias.

No caso de Mateus Noga, se busca acesso às imagens para verificação de um fato extremamente grave: a morte de um jovem pela Guarda Municipal, com indícios de ilícito (inúmeras perfurações, pelas costas, de um jovem que não portava qualquer tipo de artefato que pusesse em risco agentes de segurança armados).

Existe aí um interesse da família do jovem morto em saber exatamente como se deu a atuação da Guarda Municipal que resultou na morte com tiros pelas costas de arma de alto calibre. E existe também um interesse público geral em saber como se deu essa atuação da Guarda Municipal e o que de fato ocorreu.

Quando um guarda municipal está no exercício de suas funções, não há dúvida de que as garantias constitucionais de intimidade e vida privada estão parcialmente suspensas.

Suas ações em ambiente público submetem-se aos olhos e ouvidos da sociedade e do Estado, no momento em que ocorrem ou por meio de consulta a registro audiovisual.

Graças ao desenvolvimento tecnológico, o monitoramento permanente, por áudio e vídeo, já é uma realidade para milhares de policiais brasileiros. Trata-se de tendência inexorável, devidamente respaldada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, e prova suficiente de que não há qualquer conflito constitucional nesse sentido.

Assim, não se pode objetar o acesso às imagens de videomonitoramento para a elucidação de fato relevante, grave, ocorrido em via públicas, por agentes públicos de segurança.

Neste caso, prevalece o direito fundamental de acesso à informação (artigo 5º, XIV da CF/88) e o direito de todos a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo vou geral (artigo 5º, XXXIII da CF/88).

Não à toa esse direito fundamental também se encontra previsto em tratados internacionais de Direitos Humanos que vinculam o Estado brasileiro como um todo, inclusive a Prefeitura de Curitiba e sua GM – Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 19).

Como regra, as imagens que registram eventuais ilicitudes praticadas por agentes policiais devem estar à disposição do público em geral. O sigilo, sempre excepcional, deve ser decretado pelo Poder Judiciário, a partir do exame do caso concreto e acompanhado da devida fundamentação, a indicar risco para a investigação, para os investigados, para as testemunhas ou para a vítima.

A proibição de acesso jamais pode ser antecipada de modo genérico por uma lei municipal, ocultando a possibilidade de verificação do ocorrido sem sólida justificativa. Trata-se de violação aos direitos fundamentais de informação e aos princípios básicos da Administração Pública (art. 37, §3º, II, CF/88).

Além disso, o inquérito policial, geralmente, é público. Logo, também devem ser as imagens que o instruem. Não há razão para se negar o pedido de acesso às imagens. A existência de elementos e dados sujeitos à sigilo, como, por exemplo, a presença de imagens ou informações de menores de idade, podem acarretar o sigilo específico de parte do inquérito, da imagem, mas não sobre todo o inquérito e nem sobre as imagens.

Policiais e guardas municipais só podem agir no estrito cumprimento do dever legal e a visibilidade é condição tanto para delimitação do arbítrio como para comprovação de eventual justificação.

Sem fundamento legal, esconder do público a evidência de um possível crime, fora da hipótese de legítima defesa, pode caracterizar ato de improbidade. A depender dos motivos e outros elementos associados à recusa, pode inclusive ser considerado crime.

Diante disso, a divulgação de imagens públicas pode e deve ocorrer. E as autoridades públicas podem ainda, se possível, ter o zelo de, em respeito à privacidade das demais pessoas que aparecem no vídeo, promover a descaracterização, por exemplo, com tarjas ou quadriculados.

O que certamente não se pode é não se dar acesso às imagens públicas sobre a atuação dos guardas municipais e sobre como eles atuaram num local tão conhecido, sobre tantas pessoas, com feridos e um jovem morto pelas costas.


MIGUEL GUALANO DE GODOY
– Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.MAURICIO STEGEMANN DIETER – Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-morte-de-mateus-noga-e-o-acesso-as-imagens-de-videomonitoramento-das-vias-publicas-28092021

Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Crítica pública é um sinal vital da democracia; perseguição a um professor, não!

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós.

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e VERA KARAM DE CHUEIRI

Depois de o procurador-geral da República, Augusto Aras, perseguir o professor Conrado Hübner Mendes por suposta violação à honra e violação ética, agora é a vez de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques se melindrar com as críticas do professor Conrado e também pedir instauração de persecução penal contra ele.

O ministro Nunes Marques entendeu que as críticas que o professor Conrado fez a ele em seu artigo “O STF come o pão que o STF amassou”, publicado em sua coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, são “afirmações falsas e/ou lesivas” à sua honra. E que “em razão das funções que exerce” no STF pode haver crime de calúnia, injúria e difamação.

O artigo do professor Conrado foi publicado em abril e criticava de forma contundente a decisão de Nunes Marques que autorizou, sozinho, em medida liminar monocrática, a realização de cultos presenciais durante a pandemia, colocando abaixo normas regionais ou locais que vedavam temporariamente a realização de celebrações religiosas para tentar controlar a pandemia. Na época da decisão do ministro Nunes Marques e da publicação do artigo escrito por Conrado Hübner Mendes, já tínhamos mais de 330 mil mortos. Nunes Marques não viu aí um empecilho. Atualmente já temos mais de meio milhão de vidas perdidas.

Voltando à decisão monocrática do ministro Nunes Marques: ela foi contra o Plenário do STF, pois afrontava o entendimento unânime da Corte, tomado na ADPF 703, que não reconhecia a legitimidade ativa da Associação de Juristas Evangélicos (ANAJURE) para a propositura de ADPF. O ministro Nunes Marques integrou o julgamento da ADPF 703. Mas, mesmo assim, a nova decisão de Nunes Marques suplantou o Plenário, e não só reconheceu a legitimidade da ANAJURE como deferiu o pedido liminar.

A decisão de Nunes Marques foi um típico caso de decisionismo individual, onde a posição pessoal e particular do ministro vale mais do que a decisão do Plenário do STF e se sobrepõe à posição institucional já consolidada do Tribunal. Diego Werneck Arguelhes e Thomaz Pereira, que há muito pesquisam sobre o STF, demostraram como essa decisão foi uma das piores da história do STF, pela falta de plausibilidade do pedido ou perigo na demora. No mérito, apontam o mal uso da jurisprudência do STF, o uso equivocado de decisão da Suprema Corte dos EUA, sem falar no argumento absurdo acerca do direito de reunião religiosa, mesmo em circunstância extremas, como numa guerra.

Não à toa, a decisão de Nunes Marques foi cassada pelo Plenário do STF dias depois.

Essas controvérsias da decisão do ministro Nunes Marques mostram como ela não só foi polêmica, mas foi também considerada errada e reformada por seus pares. O professor Conrado Hübner Mendes chamou atenção justamente para esses problemas da decisão e da postura do ministro Nunes Marques.

Mas, onde vimos debate público robusto, com escrutínio detalhado, normativo, institucional e de perfil de atuação, o ministro Nunes Marques viu ofensas à sua honra, sobretudo pelo cargo de ministro do STF que ocupa.

No entanto, ocupar cargo de ministro do STF deve ser motivo para estar sujeito a esse debate público robusto, a esse escrutínio detalhado. E não para fugir dele. Tampouco o cargo de ministro do STF deve servir para inibir a liberdade de pensamento e manifestação (art. 5º, IV, IX, CF/88), a liberdade de pesquisa, ensino e o pluralismo de ideias de um professor (art. 206, II, III, CF/88) que, sendo cientista, também escreve para o grande público em um dos maiores jornais do país.

O ministro Nunes Marques e sua representação à PGR parecem recair no mesmo equívoco de Augusto Aras. Confundem críticas contundentes com ofensas à sua honra. O cargo público que ocupam sujeitam o PGR, os ministros do STF, a um nível mais intenso de debate e críticas, pois o que fazem ou deixam de fazer interessa a todos nós. É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio STF tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4]. No caso específico, o debate sobre a decisão do ministro Nunes Marques ganha ainda mais importância neste momento de pandemia, onde sua decisão pode ter o efeito de reforçar ou enfraquecer o combate ao covid-19.

Assim, ainda que o ministro Nunes Marques se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão da decisão que tomou, dos efeitos dela decorrentes e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado. As representações do PGR Augusto Aras e do ministro do STF Nunes Marques, se submetidas a um controle de constitucionalidade ou controle de convencionalidade, não resistem, ao contrário, sucumbem à primeira análise, pois suportadas por argumentos outros que não jurídico-constitucionais ou jurídico-convencionais.

A Constituição brasileira de 1988 proíbe a censura (porque protege, garante, prestigia, obriga a observância da liberdade de expressão). A perseguição por agentes estatais a quem vocaliza e lhes dirige publicamente críticas é próprio de ditaduras.

É dado ao intelectual público, professor, pesquisador, analisar criticamente as instituições e seu agentes. Por sua vez, perseguir quem exerce tal mister é enfraquecer a democracia, rebaixar o debate público e socavar os direitos de liberdade. Esse tipo de conduta, uma espécie de ‘sabe com quem você está lidando?’ remete ao passado recente da nossa história política e constitucional, mas não passa ao escrutínio do seu presente e do seu futuro.

Como apontou Daniel Sarmento, não é preciso concordar com as críticas do professor Conrado Hübner Mendes, mas é preciso concordar com o seu direito de fazê-las. Outros ministros do STF também já foram duramente criticados, mas jamais recorreram a persecuções criminais ou civis, em respeito às regras do jogo democrático.

Augusto Aras e Nunes Marques fariam um bem à democracia e à honorabilidade dos cargos que ocupam se revissem suas condutas e retirassem as representações e queixas que apresentaram. Passariam pelo escrutínio do presente da democracia constitucional brasileira e projetariam seu futuro; estariam à altura das funções que exercem e do prestígio que a crítica pública invoca, quanto mais aquelas de um pesquisador e professor de escola.

Experimentamos este terrível paradoxo de que as instituições estão funcionando bem, precisamente porque contra nós, contra todos nós.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/critica-publica-e-um-sinal-vital-da-democracia-perseguicao-a-um-professor-nao-29072021

A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

A atuação do ministro Marco Aurélio Mello no Colegiado do STF

Poderes do relator e decisões monocráticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

O ministro Marco Aurélio Mello foi, sem dúvida, um ministro marcante e importante na história do Supremo Tribunal Federal (STF).

Marcante por seus votos – vencedores, vencidos e que se tornaram vencedores, ou que ficaram mesmo como votos vencidos clivando o Plenário. E marcante ainda por sua postura e comportamento públicos – quase sempre disposto a falar e a dar a sua opinião publicamente.

Um ministro importante porque é um ministro longevo como poucos, e que por isso teve o que muito poucos ministros têm – tempo! Um grande tempo de mandato na Corte[1]. E assim, não só integrou diferentes composições do Supremo, como também participou de praticamente todos os principais casos do STF.

Marco Aurélio Mello no colegiado do STF

O meu ângulo de análise aqui se circunscreve à atuação do ministro Marco Aurélio no colegiado, especificamente sobre poderes do relator e decisões monocráticas. E esse é um ângulo generoso porque não é agudo. Ao contrário, é um ângulo obtuso, bastante aberto. Por isso, eu separei esta breve análise em 3 pontos:

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento;

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos.

3 – As lições que ficam do ministro Marco Aurélio.

Vejamos.

1 – A atuação do ministro Marco Aurélio no Colegiado e sua pré-disposição de sempre ir aberto ao desenvolvimento do julgamento

O ministro Marco Aurélio em diversas oportunidades fez questão de registrar que sempre se dispôs a ir aberto a toda e qualquer rota do caso a partir das sustentações orais e do voto do relator. Afinal, como ele diz “eu não troco figurinhas”, quando outros ministros o procuram para uma decisão consensual – passagem, muito bem contada no livro Os Onze, do Felipe Recondo e Luiz Weber[2].

Essa forma de se colocar e atuar tem um aspecto positivo, relevante e pouco praticado hoje no Supremo: o de estar aberto à deliberação e a um trabalho efetivamente em colegiado; de se deixar ser persuadido pelas sustentações orais, pelo voto indicativo do ministro relator e se engajar numa troca de argumentos a partir desses pontos de partida.

Por outro lado, essa forma de se colocar e atuar também tem um aspecto negativo: se ele “não troca figurinhas”, então quando precisa decidir, ele decide sem avisar ninguém. E decide sozinho. Não tem deliberação e não tem colegiado. O caso da ADPF 402, sobre quem pode ou não ocupar os cargos que estão na linha de substituição do presidente da república (art. 80, CRFB/88) ilustrou bem esse aspecto negativo.

O ministro Teori Zavascki, no auge da Lava jato, era relator de um pedido de medida cautelar feito pela Procuradoria-Geral da República para afastar o então presidente da Câmara dos Deputados – deputado Eduardo Cunha. Mas o ministro Teori não decidiu de plano. Enquanto Teori analisava o pedido e decidia se afastava ou não o dep. Eduardo Cunha da presidência da Câmara, a Rede Sustentabilidade ajuizou a ADPF 402, sob o argumento de que quem ocupa cargo que está na linha de substituição do presidente da república (presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF), não pode ser réu em ação penal, pois se o presidente da república se torna réu por crime comum, ele fica suspenso de suas funções (art. 86, §1°, CRFB/88). Como o deputado Eduardo Cunha havia se tornado réu perante o STF, a Rede pediu o seu afastamento imediato da presidência da Câmara dos Deputados. E a ADPF 402 foi distribuída para o ministro Marco Aurélio.

Naqueles idos de 2016, os tempos eram super turbulentos, fosse em razão da Lava Jato, fosse em razão da tensão política e da ameaça de impeachment que caminhava em marcha rápida (e que hoje em dia nem anda). O ministro Marco Aurélio não falou com ninguém, e ninguém foi falar com ele. Mas dava para imaginar que ele poderia dar a liminar sozinho e afastar Cunha. O ministro Teori então, numa decisão concertada com outros ministros, retomou aquele pedido cautelar da PGR e afastou o deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, e levou a liminar para referendo do Plenário logo em seguida.

O resultado, como sabemos, foi 11×0 pelo afastamento de Cunha. Mas, e a ADPF 402 do ministro Marco Aurélio? Ficou para outro momento. Mas voltou à tona, meses depois, com pedido de afastamento do então presidente do Senado – senador Renan Calheiros, que também havia se tornado réu. O ministro Marco Aurélio desta vez fez o que se supôs antes: deu a liminar e determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado[3].

A confusão não foi pequena. Renan Calheiros se recusou a receber a intimação da decisão. No referendo da decisão, o ministro Marco Aurélio ficou vencido e o STF decidiu que quem ocupa cargo da linha de substituição do presidente da república e também está na condição de réu, não pode assumir a presidência da república, mas tampouco está impedido de continuar a exercer a chefia de seu órgão de origem.

O caso da ADPF 402 reflete bem aqui como interagir com os pares, trocar figurinhas, não só não é vedado, nem necessariamente ruim, como pode ser também importante e, às vezes, até mesmo necessário, como bem percebeu o ministro Teori Zavascki. E também como ficou nítido com a solução intermediária encontrada pelo Plenário do STF.

Estar aberto a um trabalho colegiado e ao desenvolvimento deliberativo do julgamento não significa que o único modo de interação entre os ministros se restrinja ao espaço do plenário. Trocar figurinhas pode ser também trocar argumentos, refinar posições, não necessariamente combinar votos. A lição que fica dessa postura e modo de atuar do ministro Marco Aurélio é como o colegiado importa, como o julgamento e suas etapas podem ser mais bem aproveitados pelos ministros. Mas também como é possível e necessário haver maior e melhor interação entre eles.

2 – A sua atuação de acordo com sua ciência e consciência: dois casos significativos

O ministro Marco Aurélio sempre disse julgar de acordo com a ciência e consciência possuídas. Recorreu a essa dupla – ciência e consciência – em inúmeras ocasiões[4] para demonstrar seu rigor no seguimento da ciência do direito e sua coerência com sua consciência. Nunca explicou muito bem que rigor é esse (um rigor normativo? Interpretativo? De qual interpretação? Um rigor fiel ao que já fora decidido antes pelo STF?). E nem tampouco que consciência é essa (é uma consciência de si, e para os outros? Uma consciência sobre suas compreensões sobre o direito e, assim, sobre sua consequente uniformidade decisória?). É difícil dizer. Mas nosso papel é analisar essa atuação do ministro e essa dupla argumentativa – ciência e consciência – sob a melhor luz. Ou seja, sob o melhor modo para se poder entender a atuação do ministro Marco Aurélio – alguém que busca se manter fiel à Constituição (o rigor da ciência) e que não abre mão de uma atuação coerente no exercício de sua função (a retidão de sua consciência).

Mas, se isso mostra rigor e coerência, também não pode contradizer àquela abertura ao julgamento e ao trabalho em colegiado? Até que ponto ciência e consciência são balizas firmes, que até podem alterar-se diante de um julgamento colegiado que mostre a evolução necessária (seja do direito, seja da consciência sobre o direito)? Ou são apenas pilares que firmam uma recalcitrância? A resposta mais imediata que talvez venha à lume é dada pelo próprio ministro Marco Aurélio: “não tenho compromisso com meus erros”, já disse ele várias vezes, no Plenário ou fora dele, para mostrar que está aberto a mudanças. Mas é exatamente aí que pode estar também uma chave de leitura que mostra um lado positivo e um negativo desse tipo de postura.

O rigor com o direito e com sua consciência coerente são bem-vindos. Não há dúvida disso. Por outro lado, as mudanças têm que ser dele, pessoal e individualmente, e não do Tribunal. Se ele não muda, se sua consciência não muda, então o direito também não pode mudar. Nada mais individual e individualista. Sob a roupagem de estar aberto ao colegiado, em realidade ele apenas colegiadamente se abre a si próprio. O compromisso então parece ser mais com ele do que com o colegiado. E o que me faz ter essa impressão é a postura que ele tem de ser recalcitrante e atuar contra o plenário quando ele mesmo já ficou vencido.

Dois casos são significativos: o da liminar monocrática suspendendo a execução da pena após condenação em segunda instância, na ADC 54. E a liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54.

No caso da ADC 54, o ministro Marco Aurélio, às vésperas do recesso judiciário de 2018, suspendeu a execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado, quando a orientação prevalecente até então no plenário era pela possibilidade da execução provisória da pena após condenação em segundo grau. Ele decidiu sozinho, sem consultar ninguém, de acordo com sua ciência e consciência, no último dia antes do recesso e contra decisão e entendimento vigentes do plenário. Não era só um entendimento vencido, ou um desacordo, mas a imposição de uma posição individual. E contra a autoridade do plenário.

A atitude não foi surpreendente. Quatorze anos antes, em 2004, quando as monocráticas não eram comuns e nem ordinárias, o ministro Marco Aurélio fez a mesma coisa: no último dia antes do recesso, deu uma liminar monocrática para permitir o aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54. Quando sua decisão foi levada ao Plenário, recebeu críticas fortes do ministro Joaquim Barbosa, que concordava com o mérito da decisão, mas discordou veementemente da forma monocrática com que decidira, e ainda às vésperas do recesso[5]. Marco Aurélio, com sua ciência e consciência, havia decidido sozinho e esvaziado o órgão que mais prezava – o plenário.

O mesmo aconteceu na ADC 54. Diante de recurso interposto pela PGR no mesmo dia, o então presidente do STF – ministro Dias Toffoli, suspendeu a liminar de Marco Aurélio e agendou o julgamento do caso quando da retomada dos trabalhos no ano seguinte. A posição do ministro Marco Aurélio acabou se tornando vencedora no fim de 2019. Mas sua decisão, baseada em sua ciência e consciência, menos informou o plenário sobre a controvérsia, e mais parece ter sido produto de sua idiossincrasia, já que na prática, conforme observou Diego Werneck Arguelhes, ela praticamente equivaleu a fazer o que o ministro quis e quando quis porque tinha certeza de que a sua postura era a correta.

Esses dois casos são significativos porque mostram como a dupla ciência e consciência pode ser bom guia de retidão e conduta grave. Mas não garante por si só que assim será a decisão ou a postura do ministro. E nem que contribuirá com o plenário.

3- As lições que ficam do ministro Marco Aurélio Mello

O ministro Marco Aurélio, como todo trabalhador cioso de seu ofício, sempre buscou fazer o melhor. E nos deu o seu melhor. Teve tempo, trabalho, experiência e possibilidades para formar e conformar o plenário, para vencer e ficar vencido. Sua postura grave, sempre pública e transparente, sua busca por rigor e coerência são a prova disso. Os possíveis erros, as possíveis falhas, não devem servir aqui para diminuir essa grandeza, mas para mostrarem e reafirmarem um caminho e um local bastante esquecidos ultimamente: o colegiado e o plenário do Supremo Tribunal Federal.

[1] O ministro Marco Aurélio Mello terá sido ministro por 31 anos e 29 dias ao se aposentar quando faz 75 anos em 12/07/2021 (sete dias a mais do que teria se tivesse se aposentado em 05/07/2021, como havia antecipado antes de mudar de decisão). Será, assim, o segundo ministro mais longevo do STF desde a instauração da República. O ministro mais longevo é o min. Celso de Mello, que ficou 31 anos 1 mês e 26 dias. O ministro Marco Aurélio tinha 43 anos quando tomou posse como ministro do STF. Nasceu em 12/07/1946 e tomou posse em 13/06/1990, ocupando a cadeira do ministro Carlos Alberto Madeira.

[2] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277.

[3] O episódio é narrado em detalhes no livro Os Onze e vale ser lido para se ter ideia das nuances do ambiente antes, durante e após a decisão. Vide: RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 234-246.

[4] Mencione-se, exemplificativamente, seu discurso em 06/11/2008; discurso proferido em 17/06/2010, quando fez vinte anos de judicatura no STF; voto vencido na ADI 3.330/DF sobre o PROUNI, julgada em 03/05/2012; entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 31/05/2012; voto nas ADCs 43 e 44 sobre execução provisória da pena após condenação em segunda instância, julgadas em 23/10/2019. Esses e outros exemplos também constam do livro comemorativo dos 25 anos do ministro Marco Aurélio Mello no STF e editado pelo próprio Tribunal. Vide:

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalComemoracoes/anexo/Ministro_Marco_Aurelio_25_anos_no_STF.pdf

A Ed. Migalhas também editou um livro intitulado “Marco Aurélio Mello: Ciência e Consciência”, nos 25 anos de judicatura constitucional do ministro Marco Aurélio no STF. Vide:

https://www.migalhas.com.br/quentes/222038/marco-aurelio-mello-e-homenageado-por-seus-25-anos-no-stf

O STF editou um livro oficial de homenagem ao Min. Marco Aurélio por seus 31 anos na Corte e colocou no título a dupla ciência e consciência. Vide: Ministro Marco Aurélio. Edição de Homenagem. 31 anos de ciência e consciência constitucionais. Disponível em:

https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalEdicaoHomenagem/anexo/31_anos_min_marcoaurelio.pdf

[5] RECONDO, Felipe; WEBER, Luiz. Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pg. 52/277. pg. 209-215.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/a-atuacao-do-ministro-marco-aurelio-mello-no-colegiado-do-stf-19072021

A MP da Eletrobras, os jabutis e a conta de luz

A MP da Eletrobras, os jabutis e a conta de luz

Não haverá política energética eficiente se o Congresso e o presidente insistirem nesse modo de governar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e FELIPE FRANK

A Câmara dos Deputados aprovou no dia 21 de junho a medida provisória 1031/2021, que permite a capitalização da Eletrobrás e, assim, dá andamento ao processo de desestatização da empresa, capitaneado por Jair Bolsonaro. O texto da MP já havia sido aprovado pelo Senado dias antes e a aprovação da Câmara agora é definitiva. O texto foi para a sanção do presidente da república.

Na prática, a capitalização permitida pela MP da Eletrobrás traz novos sócios, seus recursos e, assim, dilui o controle do estado sobre a empresa, tornando a União apenas sócia da companhia, e não mais sua controladora. Daí os jornais tratarem da MP 1031 como a medida provisória de privatização da Eletrobrás.

O tema não é novo. Vem desde o governo Michel Temer. Até aqui, não tinha conseguido ir adiante. No entanto, com a aprovação final na Câmara, o processo de desestatização parece ter finalmente decolado.

O processo de edição da MP 1031 parece apresentar dois problemas, um formal e um material, sobre uma previsão específica de seu texto.

O problema formal diz respeito aos jabutis inseridos na medida provisória da Eletrobrás. Jabutis são inserções de previsões diversas do objeto da medida provisória. Daí serem também chamados de contrabandos legislativos – o legislador insere na MP uma matéria nada ou pouco relacionada ao tema da medida provisória. No caso da MP da Eletrobrás, os jabutis tratam da previsão de contratação obrigatória de termelétricas movidas a gás natural em várias regiões do país, o que exigiria a criação de extensões dos gasodutos existentes para alimentar essas termelétricas nessas regiões. Essa previsão e essa obrigatoriedade foram uma novidade imposta por parlamentares no texto da MP, visando agradar à base eleitoral. O problema é que esse jabuti não fazia parte e, apesar de tratar do tema energia e Eletrobrás, altera significativamente o planejamento energético e também os custos envolvidos para todo o processo de desestatização da MP 1031.

No entanto, desde 2015 o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que os jabutis e contrabandos legislativos nas medidas provisórias são inconstitucionais (ADI 5127, julgada em 15/10/2015, Red. p/ acórdão Min. Edson Fachin). Ou seja, não é possível inserir previsão diversa do tema e objeto originários da medida provisória.

No caso dos jabutis da Eletrobrás, a relação de pertinência entre o objeto da MP 1031 (capitalização da Eletrobrás) e a compulsoriedade de contratação de inúmeras termelétricas a gás em regiões diversas do país é apenas aparente porque envolve o tema energia elétrica. Em realidade, a obrigatoriedade de contratação de termelétricas a gás e toda a operação de extensão dos gasodutos necessária para o cumprimento dessa obrigação tratam de outro assunto – geração e distribuição de energia. Ela não está vinculada, portanto, ao tema e objeto originário da MP da Eletrobrás.

O problema material da MP é exatamente essa previsão de obrigatoriedade de contratação sem que tenha havido qualquer discussão sobre esse modelo, necessidade, viabilidade, custo, eficiência e oportunidade. É, assim, uma previsão de baixa publicidade, transparência, com alto custo de implementação, mas sem estudos ou números sólidos, confiáveis, que fundamentem a correção desse tipo de decisão política e legislativa. Ou seja, é uma previsão sem qualquer compromisso com uma atuação estatal preditiva, contabilizada, eficiente. Não há avaliação de impacto legislativo, profunda e detalhada, nem tampouco estudos que demonstrem com dados e contas confiáveis os valores e impactos econômicos dessa medida. Nem mesmo a redação do texto é boa e tampouco segue boa técnica legislativa. É, assim, uma previsão que viola a Constituição, o devido processo legislativo, a publicidade, transparência e eficiência, que deveria reger a atuação do Congresso e do presidente da república.

O problema desses contrabandos legislativos é exatamente o que tem marcado este governo: populismo, falta de planejamento e uma negociação de toma lá e dá cá no Congresso que manda a conta para todos nós. No caso da pandemia do covid-19, já são mais de 500 mil vidas perdidas. No caso da MP da Eletrobrás, são bilhões que poderão vir ser cobrados de todos nós.

Tratamos aqui de um dos jabutis. Mas, há outros, sobre pequenas centrais hidrelétricas, térmicas, energias renováveis e outros interesses políticos regionais, expressados no texto da MP 1031/21. Outra questão diz respeito à ausência de estudo e de planejamento em relação à forma da desestatização e às adaptações regulatórias que o setor deveria ter em razão dela. Esse problema foi enfrentado nas privatizações russas ao longo das últimas décadas, que, ao invés de trazerem competitividade e desenvolvimento do setor privatizado, geraram graves problemas de corrupção e de concentração de mercado, inviabilizando de um modo geral a concorrência.

O simples fato de termos tantos temas sobre energia, mas diversos em objeto e objetivo daqueles previstos na proposta que originou a MP da Eletrobrás, mostram o grande problema de se tomar uma decisão legislativa e de política pública energética dessa forma e com esse conteúdo. É com pesar que temos de reconhecer que perdemos uma grande chance de reestruturar nossa economia e dar um passo de bom desenvolvimento para o setor elétrico no Brasil, encaminhando uma desestatização que carece de neutralidade e de credibilidade e, ainda, cria grave empecilho a reformas econômicas estruturais mais profundas.

Não existe democracia sem transparência e discussão adequada sobre os temas que nos afetam. Da mesma forma, não existe desenvolvimento sem planejamento e regulação responsável. Não haverá política energética eficiente se o Congresso e o presidente insistirem nesse modo de governar. Como não existe almoço grátis, quem paga a conta dessa política de desestatização pouco responsável somos nós. E a conta parece ser de bilhões. Deverá vir nos próximos meses, na sua e na nossa conta de luz, sem perspectiva segura de melhora nos serviços ou no desenvolvimento do setor.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
FELIPE FRANK – mestre e doutor pela UFPR. Atualmente cursa LL.M. na Harvard University.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

Evangelização de povos indígenas isolados: até quando?

Evangelização de povos indígenas isolados: até quando?

Missões religiosas, como quer o governo Bolsonaro, aviltam direito de escolha

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, CAROLINA SANTANA e LUIZ ELOY AMADO

 

 

Para o Supremo Tribunal Federal, a atividade de alcançar o outro, mediante persuasão, é inerente à atividade religiosa, não sendo ilícita, por si só, a comparação, a hierarquização e até mesmo a animosidade entre crenças. Essa afirmação é plenamente cabível quando todos compartilham do mesmo horizonte normativo, para usar uma expressão do filósofo alemão Jürgen Habermas. Mas ela se aplica aos povos indígenas isolados?

O debate volta agora ao STF com um novo desafio na ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 6622. Nela, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) questiona dispositivo da lei 14.021/2020 que permite a permanência de missões religiosas em territórios de povos indígenas isolados.

Talvez muita gente não saiba, mas no Brasil existem inúmeros povos indígenas que, conscientemente, escolheram viver em isolamento. Esses coletivos não vivem na ignorância, ou sem saber da nossa existência, mas sim optaram pela forma de vida que levam. Na opção e ação de seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam e de viver segundo seus usos e costumes.

Especialistas que trabalham há décadas com esses grupos já demonstraram que, devido aos seus costumes e tradições, eles estão sujeitos a uma vulnerabilidade socioepidemiológica muito maior que a nossa. Se protegermos seus territórios e garantirmos que sigam com suas estratégias milenares de controles de epidemias, permanecerão saudáveis. Porém, se a proteção falha, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações ficam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas —​pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e acesso à imunização ativa por vacinas.

Por essas razões, a restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987. No entanto, no ano passado, o governo Bolsonaro editou a lei 14.021, que permite a permanência de missões religiosas em terras indígenas de isolados.

O que todos os presidentes da República entenderam, e Bolsonaro parece não compreender, é que, ao optarem pelo isolamento, esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se vão “abrir-se ou não ao recebimento de religiosos”, como defendeu o governo perante o STF.

A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional, e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos de indígenas isolados, minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da nossa Constituição.

Esse indigenismo que o Planalto e suas normas querem estabelecer merece não apenas atenção sanitária, jurídica e social, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

Originalmente publicado em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/06/evangelizacao-de-povos-indigenas-isolados-ate-quando.shtml

O PGR Augusto Aras: a representação absurda e a queixa inepta

O PGR Augusto Aras: a representação absurda e a queixa inepta

Em Brasília, a PGR tramita procedimentos como quem troca vasos de lugar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

Depois da representação por suposta violação ética, o procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, apresentou queixa-crime contra o professor Conrado Hübner Mendes (USP).

Os fatos são os mesmos: as críticas que o professor Conrado fez em sua coluna semanal,  na Folha de S. Paulo e em sua conta no Twitter, a Augusto Aras, por sua atuação como PGR. Ou melhor, pela sua falta de atuação, por sua conivência com as seguidas violações que o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e sua administração cometem contra a Constituição e o país. Não custa lembrar, já são mais de 440 mil mortes, boa parte delas, como estimam cientistas, evitáveis. E mortes evitáveis têm responsabilidades atribuíveis.

Conrado pontuou diversas ações e omissões do PGR Augusto Aras. E se chegamos até aqui, com mais de 440 mil vidas perdidas, com uma atuação parca da PGR, é porque há muito mesmo o que se discutir. Seus colegas no Amazonas fizeram mais e melhor do que o PGR em Brasília. No Amazonas, o general Eduardo Pazuello responde por improbidade administrativa. Em Brasília, a PGR tramita procedimentos como quem troca vasos de lugar. Mexe aqui, ali, para manter tudo em ordem. Ou sob às ordens.

Se a representação já era uma peça absurda, ao buscar punir quem defende suas ideias na Universidade, templo da ciência e destas mesmas ideias, a queixa-crime é uma peça despropositada, pela ausência do crime cuja existência acusa.

Não houve crime porque não se violou a honra daquele que, sendo membro do Ministério Público Federal, ocupante do cargo de PGR, sujeita-se à crítica pública e transparente sobre os atos que pratica, ou deixa de praticar, no exercício deste mesmo cargo. O relevante múnus público sujeita o PGR a um nível mais intenso de escrutínio público de sua atuação, pois o que faz ou deixa de fazer interessa a todos nós, inclusive à sua instituição (o MPU em geral e o MPF em particular). É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4].

Logo, ainda que Aras se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão do que faz, do que não faz, e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado Hübner Mendes. Se uma pessoa exerce um dos cargos mais relevantes do País – o de PGR, sua atuação está sujeita a um debate público intenso, profundo, crítico, e que pode sim lhe imputar qualificações negativas que, fundamentalmente, demonstrem os erros e déficits de sua atuação.

Trocando em miúdos, se a liberdade de expressão já nos garante a todos a possibilidade de exprimirmos nossas ideias e críticas, tanto mais quando ela é dirigida ao debate público e ao escrutínio de um agente público como o Procurador-Geral da República, aquele que deveria proteger a ordem jurídica e o regime democrático. Mas tem sido o primeiro a se levantar contra um professor e pesquisador.

Que pesado é o giz do professor Conrado para sobrecarregar um PGR que não sente o fardo de mais de 440 mil mortes em torno de si e nem busca ver quem, como e porque debilita as instituições e a democracia do país.

Se a representação perante a USP é absurda, a queixa é manifestamente inepta. Não há ilícito, apenas o que se parece desconhecer: o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado..

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

Quando o STF acerta: a audiência pública sobre letalidade policial no RJ (ADPF 635)

Quando o STF acerta: a audiência pública sobre letalidade policial no RJ (ADPF 635)

Audiência pública deu visibilidade a quem geralmente fica ofuscado por lágrimas e estatísticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

O Supremo Tribunal Federal (STF) terminou na última segunda-feira (19/04) sua 32ª Audiência Pública. O tema dessa audiência foi a redução da letalidade policial no Estado do RJ, discutida e pedida no âmbito da ADPF 635, de relatoria do ministro Edson Fachin.

A audiência pública da ADPF 635 foi importante, e também impactante.

Importante pela forma como a audiência foi convocada e estruturada. A decisão de convocação previu oitivas na cidade do Rio Janeiro, o que acabou não acontecendo em razão da pandemia. A decisão também  estabeleceu, quando de sua convocação, dez questões-chave como pontos de partida, envolvendo, desde logo, o próprio ministro e deixando nítidas as suas preocupações e os seus questionamentos. Quanto à estruturação da audiência pública, ela previu a participação direta dos afetados, de pessoas e grupos das comunidades atingidas pelas operações policiais com alto índice de letalidade. A audiência previu ainda espaço e tempo para debates, diálogos. Criar essa possibilidade, com espaço e tempo, é permitir que a audiência seja mais do que uma instância meramente informativa, e seja, também, uma instância deliberativa.

A audiência pública foi impactante porque deu voz aos que não têm voz. Deu visibilidade a quem geralmente fica ofuscado por lágrimas e estatísticas. Nesse sentido, um dos destaques do movimento de vítimas é a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, ligada à Baixada Fluminense. Mas não só. Participaram também outros movimentos e coletivos: Coletivo Papo Reto, Movimento Parem de nos Matar, Redes da Maré, Mães da Baixada Fluminense, Comunidades e movimentos contra a violência, entre outros.

O destaque é relevante porque os depoimentos, as narrativas, mostram a vida (e morte) concreta dos nossos concidadãos contados por eles próprios.

Um detalhe não menos importante: alguns desses participantes, como, por exemplo, o Coletivo Papo Reto, o movimento Mães de Manguinhos, o Coletivo Fala Akari, quase não puderam integrar a ADPF 635. Eles requereram sua participação como amici curiae na ADPF, mas tiveram seu pedido negado. Como se sabe, o STF desde 2018 mudou seu entendimento e não admite recurso contra decisão que indefere pedido de participação como amicus curiaeEsse entendimento é errado, normativamente e institucionalmente. Mas é o entendimento ainda prevalecente. Diante da negativa, pediram reconsideração da decisão de indeferimento, apontando como e porquê deveriam ser ouvidos. E o ministro Fachin, sensível aos apelos, não só reconsiderou sua decisão anterior, como ainda reconheceu a necessidade da oitiva direta como contribuição válida e relevante, pois são esses coletivos, movimentos, que têm experiências, conhecimentos, vivências, sobre os temas da ADPF 635. Afinal, eles são sujeitos dos fatos – convém lembrar: violência e letalidade policial.

A audiência pública não foi unilateral ou unidirecional. Também foram ouvidos os integrantes das forças de segurança do Estado, que puderam relatar e as dificuldades que enfrentam nesse modo de agir e operar do Estado.
Essa inclusão de pessoas, movimentos, coletivos, entidades, forças policiais – uma participação efetiva e em sentido amplo, e não de modo seletivo – é um passo extremamente importante para chamar os afetados pelas operações a participarem do processo decisório.

Uma ausência, todavia, foi sentida: a dos demais ministros do STF. Exceto o ministro Gilmar Mendes, que participou da abertura da audiência pública e dos trabalhos iniciais, nenhum outro ministro esteve na audiência. E existem formas variadas de participação possível: estar presente é, sem dúvidas, a principal. Mas, interagir previamente com o ministro relator ou elaborar questões complementares são exemplos de como é possível um ministro se engajar na audiência pública convocada por um par.

De todo modo, o que se vê é que a audiência pública da ADPF 635 dá sequência a outras iniciativas e decisões do ministro Luiz Edson Fachin de fazer desse instrumento um espaço de abertura e democratização da jurisdição constitucional. Nesta audiência específica da ADPF 635, além disso, também um lócus de participação dos afetados e ainda um espaço de diálogo, discussão e deliberação. Uma audiência que, convocada por um ministro, deve afetar todo o Tribunal. Afinal, os depoimentos, as narrativas, os estudos, estão agora registrados e documentados. Integram a ADPF 635, impõem um ônus decisório aos ministros, compõem a história do próprio Supremo.

Uma audiência que faz história pela forma, pelo conteúdo e pelas vozes e visibilidades que finalmente tomaram parte no processo decisório do STF e no STF. Uma decisão de um ministro, mas o acerto de todo o Tribunal. Até aqui. Esperamos que adiante também.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

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