Normalizando o anormal? As decisões do STF após um ano de pandemia

Normalizando o anormal? As decisões do STF após um ano de pandemia

Virada jurisprudencial a favor da descentralização permanece carecendo de maior fundamentação pela Corte

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY, JOSÉ ARTHUR DE MACEDO e RENATA NAOMI TRANJAN

 

Há cerca de um ano, escrevemos o artigo “As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?”. Naquela ocasião, apontamos dois pontos que indicavam possíveis mudanças e continuidades na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). As mudanças podiam ser vistas em relação ao conteúdo das decisões sobre matéria federativa. A continuidade podia ser vista na permanência do modo monocrático de decidir em relação aos outros Poderes.

Atravessado este primeiro e terrível ano pandêmico, retomamos essas questões: o Supremo manteve em 2020 e no início deste 2021 suas decisões a favor da descentralização federativa? Essas decisões foram tomadas ou proferidas monocraticamente?

Primeiro, quanto à mudança de atuação do STF em matéria federativa, se, antes da pandemia a atuação do Supremo tendia explicitamente para uma maior centralização da federação, o início da crise sanitária indicou uma alteração substancial desse cenário.

Como se sabe, no início da pandemia o Supremo afirmou, nas paradigmáticas ADI 6.341 e ADI 6.343,  as competências comum e concorrente da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para o enfrentamento do COVID-19. A ADI 6.343 reconheceu a possibilidade de que Estados e Municípios adotassem medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local enquanto durar o estado de emergência sanitária. Muitas dessas medidas foram questionadas em sede de reclamação, mas foram mantidas em razão deste precedente.

Segundo essa linha de raciocínio, para o STF, respeitadas as competências que lhes são próprias, os entes da federação não só podem, como devem atuar no combate a pandemia.

Nesse sentido, temos também como casos exemplares a ADI 6.362/DF – que debatia a possibilidade de a União realizar requisição administrativa de leitos privados de UTI. E também as ADIs 6.587/DF e 6.586/DF – ambas versando sobre a possibilidade de estados realizarem vacinação compulsória.

Apenas para mencionar um exemplo julgado em plenário e com acórdão publicado, a ADPF 672/DF (Rel. min. Alexandre de Moraes), por exemplo, discutia os atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal no combate ao coronavírus. O STF entendeu que, ao tratar do direito à saúde e assistência pública, a Constituição consagrou a existência de competência administrativa comum dos entes (art. 23, II e IX, CRFB/88), bem como previu competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CRFB/88), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, CRFB/88). Ademais, previu a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CRFB/88, e art. 7º, Lei 8.080/1990), inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, Lei 8.080/1990).

Portanto, apesar do Poder Executivo federal ter papel central no planejamento e coordenação das ações governamentais, não pode ele afastar unilateralmente as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus territórios.

Em outras palavras, nestas decisões, o STF percebeu a omissão inconstitucional do Executivo e coibiu o federalismo bolsonarista, que pretende praticar uma descentralização irresponsável (política e juridicamente). O que não fica claro é se a junção desses fatores será, por si só, capaz de alterar e justificar o entendimento do Supremo em matéria federativa a longo prazo.

Além disso, em um ano, ficou mais nítida a imagem que apenas se antevia no horizonte de abril de 2020: o presidente da república é, atualmente, o principal ator a tensionar a federação, e, em muitas situações, procrastinou as medidas de enfrentamento ao COVID-19, tais como o uso de máscaras, a compra de vacinas e a tomada de medidas baseada em evidências científicas.

Apesar de haver uma jurisprudência evidente autorizando a atuação dos entes da federação, o presidente da república decidiu, ao seu modo, questionar a interpretação – absolutamente correta, ao nosso ver – da Corte a respeito dos deveres que a Constituição impõe aos entes da federação.

Em 18 de março de 2021, o presidente da república ajuizou a ADI 6764 para suspender decretos estaduais que estabelecem medidas restritivas no combate à pandemia, como o fechamento de atividades não-essenciais e o toque de recolher noturno. O presidente visava obter o entendimento de que medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas.

Como quem diz “quem manda aqui sou eu”, o presidente questionou de uma só vez, no mínimo duas coisas: i) um ano de reiteradas decisões do STF a respeito da matéria; ii) a autoridade dos governadores e prefeitos para impor medidas restritivas. Isto, não é demais lembrar, no ápice da pandemia com milhares de mortos por dia e sem perspectiva de diminuição imediata.

Em 23 de março de 2021, o relator ministro Marco Aurélio indeferiu a inicial e rejeitou a ADI 6764, afirmando que Estados, Municípios e União formam um “condomínio” responsável por tratar de temas relativos à saúde e que ao presidente da República “cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros”, no combate à pandemia. E ainda indicou haver erro grosseiro ante a falta de representação adequada do presidente da república pelo Advogado-Geral da União. A decisão gerou controvérsia sobre se tal representação seria ou não exigida. Afinal, há decisão antiga do STF reconhecendo a possibilidade de atuação direta e sem a representação apontada como necessária[1]. Contra a decisão do ministro Marco Aurélio, foram opostos embargos de declaração, os quais ainda não foram julgados pelo Supremo. A discussão sobre esse aspecto processual permanece, portanto.

Quanto às permanências das formas de atuação da Corte anteriores à crise, estas não só continuaram como, injustificadamente, parecem ter se assentado. Isso já era verificado tanto na forma como o STF vinha decidindo, como sobre o conteúdo do que ele vinha decidindo. A primeira é constatada na recorrente concessão de cautelares monocráticas em ADI e a segunda na recém aprovada alteração do rito de edição e análise das Medidas Provisórias (MPs).

Aliás, em relação às MPs, é importante ressaltar: ao conceder e referendar a liminar na ADPF 663, em julgamento de dezembro de 2020, o Supremo permitiu a alteração, por ato conjunto das mesas da Câmara e Senado, do rito constitucional de edição e aprovação as Medidas Provisórias. Ou seja, autorizou que ato conjunto do Poder Legislativo modifique regra constitucional expressa. A violação da Constituição pelo Poder Legislativo agora recebe o carimbo constitucional do Supremo, apesar do seu dever de zelar pelo devido processo legislativo e pela integridade da Constituição.

Ainda no tocante às permanências, convém destacar que a ampliação do uso do Plenário Virtual para todo e qualquer processo ou decisão poderia ter abrandado a corriqueira concessão de cautelares monocráticas em ADI. Apesar disso, ao longo de 2020 e 2021, a prática persevera. Veja-se o caso da ADI 6.625, de relatoria do ministro Lewandowski, cuja cautelar foi concedida em janeiro de 2021, para compreender que, “ao lado da União, cabe aos Estados, Distrito Federal e Municípios assegurar aos seus administrados os direitos fundamentais à vida e à saúde contemplados nos arts. 5°, 6° e 196 do texto constitucional”. A cautelar foi referendada em plenário por maioria dois meses depois, em março de 2021. Cite-se, ainda: a ADI 6357, ministro-relator Alexandre de Moraes, cuja cautelar foi concedida em março de 2020 e referendada em plenário em maio de 2020; a ADI 6484, ministro-relator Barroso, cuja cautelar foi concedida em julho de 2020 e foi julgada procedente em plenário em outubro do mesmo ano; por fim, a ADI 6495, ministro-relator Lewandowski, cuja cautelar foi deferida em agosto de 2020 e foi julgada procedente em plenário em novembro de 2020.

Diante disso tudo, se depreende que o diagnóstico feito no início da pandemia permanece dolorosamente atual. Mas, com acréscimos. Muito embora existam mudanças positivas no conteúdo da atuação do STF em matéria de federalismo, essa virada jurisprudencial a favor da descentralização permanece carecendo de uma maior fundamentação pela Corte. Será essa uma atuação tão somente circunstancial, fruto da emergência sanitária (a pandemia), e da atuação contrafática e anticientífica do presidente da república? Para além disso, vemos uma permanência no modo de atuação e resposta do STF, mesmo diante de novos desafios que lhe são apresentados pelo cenário de pandemia.

Neste ano de 2021 já somamos mais de 300 mil mortes, boa parte delas evitáveis. Abril de 2021 parece um déjà vu de 2020, apesar de termos mais informações e de haver vacinação. Não sabemos se ou quando voltaremos às nossas rotinas. O que parece estar normalizado são os enfrentamentos às autoridades federativas capitaneados pelo presidente da república e a atuação monocrática da Corte, ainda que, em muitos casos, em defesa das competências dos entes da federação. Esperamos, contudo, que este não seja o novo (a)normal.

 

[1] ADI 127 MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento: 20/11/1989.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/normalizando-o-anormal-as-decisoes-do-stf-apos-um-ano-de-pandemia-20042021

O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

O indigenismo de exceção: o Planalto e suas novas normativas

A Constituição já consolidou o repúdio contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas

Por LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO, MIGUEL GUALANO DE GODOY e CAROLINA SANTANA

Em 5 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro prestou informações ao Supremo Tribunal Federal (STF), por intermédio da Advocacia-Geral da União (AGU), na ADI 6.622, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Partido dos Trabalhadores (PT). A ADI 6.622, questiona o art. 13 da Lei 14.021/2020, que permite a permanência de missões religiosas em comunidades indígenas.

A notícia foi veiculada, inclusive, pelo JOTA. No entanto, cabe ressaltar aqui, tanto para a notícia quanto para o caso, que não se trata de qualquer comunidade indígena que se está a falar, mas, sim, de indígenas que vivem em isolamento, os quais são considerados os mais vulneráveis do ponto de vista sócio-epidemiológico.[1]

Os povos indígenas isolados não são povos que vivem na ignorância, ou sem saber da existência de mundos outros que os seus, mas sim que, conscientemente, optaram por essa forma de vida. Em seu isolamento está a vontade manifesta de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam.

Isso significa dizer que esses indígenas não desejam viver em contato constante com sociedades que não as deles e, muito menos, decidir se desejam abrirem-se “ou não ao recebimento de religiosos”.

A restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987.[2] O caput do artigo 13, da Lei 14.021/2020, portanto, está em harmonia com a atual Política Brasileira de Localização e Proteção de Povos Indígenas Isolados.

Isso porque a política indigenista adotada pelo Estado brasileiro, desde 1987 frise-se, possui como diretriz primordial o não contato com esses povos ou segmentos de povos, como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física.

Por outro lado, o parágrafo primeiro do artigo 13 da Lei 14.021/2020 contraria todo o arcabouço teórico e prático desta política, elaborada e aperfeiçoada ao longo de 33 anos.

Como mencionado anteriormente, o histórico dos contatos ocorridos antes de 1987 revela que contatá-los, como estratégia de proteção, é mais prejudicial do que não contatá-los e garantir a proteção do seu território.

Do ponto de vista epidemiológico, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente, de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas.

Apesar de o direito à vida, à autodeterminação e à saúde dessas populações estar garantido na Constituição de 1988, também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 18, item 3) garante que a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença e a liberdade de professar sua religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

E nada de antidemocrático há nisso. A democracia pressupõe o tratamento desigual aos desiguais. E aqui, incluem-se os indígenas e, sobretudo, os indígenas isolados.

Diante da vulnerabilidade sócio-epidemiológica de tais populações indígenas isoladas é dever do Estado – que o tem feito há mais de 30 anos – garantir tanto a liberdade religiosa quanto a autonomia pautada pela diversidade prevista em nossa Constituição Federal.

A autonomia neste caso é a autonomia de permanecer em isolamento, ainda que os missionários religiosos estejam bem de saúde. A liberdade religiosa dos missionários pode ser exercida em todo o território nacional e não há nada de antidemocrático em compatibilizá-la com pequenas regiões onde esses grupos minoritários e vulneráveis resistem para manter seus próprios modos de vida, conforme lhes garante o artigo 231 da Constituição.

Aliás, não deixa de ser curioso que tal liberação tenha se dado justamente em um governo que cada vez se mostra mais alinhado a valores de certas religiões e ainda de alguns grupos específicos e determinados.

Por fim, cabe especial crítica à afirmação da AGU de que a autora – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – não possui legitimidade para representar os povos indígenas. Ora, a APIB é a organização que representa nacionalmente os povos indígenas. Trata-se, aliás, da única entidade nacional de representação dos indígenas brasileiros.

De acordo com o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes  organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)[3]; (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia  Brasileira (COIAB)[4]; (iii) Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL)[5]; (iv)  Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE)[6];  (v) Conselho do Povo  Terena[7]; (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani[8]; e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa[9].

Ela está presente em mais de nove unidades da federação brasileira, satisfazendo o requisito assentado pela jurisprudência sobre o caráter nacional da entidade.

Além disso, o artigo 232 da CF/1988 já botou fim a essa discussão, pois garantiu aos indígenas legitimidade para defender em juízo seus direitos e interesses.

O próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal já reconheceu a legitimidade ativa da APIB para provocação do controle concentrado de constitucionalidade quando julgou a admissão da ADPF 709, proposta pela APIB para que o governo federal adote medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas.

A prática de deslegitimar os indígenas não é nova. Seja por meio de artifícios processuais como esses de que Jair Bolsonaro e sua AGU lançam mão na ADI 6.622, seja por meio de suas novas normativas como o art. 13, parágrafo único, da lei 14.021/2020.

Esse indigenismo de exceção que o Planalto e suas normas querem estabelecer, porém, merece não apenas especial atenção – sanitária, jurídica e social –, mas também o reforço do repúdio que há mais de 30 anos a Constituição já consolidou contra essa visão integracionista e colonizadora dos povos indígenas.

 

[1] RODRIGUES, D. A. Proteção e Assistência à Saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato no Brasil. OTCA: São Paulo, 2014. p. 80.

[2] Portaria nº 1900 e nº  1901, ambas de 06 de julho de 1987 e Portaria nº 1047 de 29 de agosto de 1988.

[3] Composta por povos presentes nos estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo.

[4] Abrange povos dos estados do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Maranhão, do Mato Grosso, do Pará, de Rondônia, de Roraima e do Tocantins.

[5] Representa povos localizados nos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

[6] Organização que abrange povos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.

[7] Organização tradicional de Mato Grosso do Sul.

[8] Localizada no estado do Mato Grosso do Sul.

[9] Abrange povos dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Espírito Santo, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.

LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO – Advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris. Realizou estágio pós-doutoral na Brandon University, Canadá, com foco em conflitos territoriais indígenas. Integra o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Tortura da Organização Mundial de Combate à Tortura (OMCT).
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
CAROLINA SANTANA – Advogada. Indigenista. Doutoranda em Direito na UnB. Pesquisadora Visitante do ICS da Universidade de Lisboa. Assessora Jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato e Membro do Indigenous Peoples Rights International no Brasil.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-indigenismo-de-excecao-o-planalto-e-suas-novas-normativas-20022021

Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

Os limites da jurisdição do Facebook Oversight Board

De Marbury v Madison para Facebook v Trump

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOÃO VICTOR ARCHEGAS

 

Ao acordarem na manhã do dia 9 de novembro de 2016, diversos funcionários do Facebook foram surpreendidos pela notícia de que Donald Trump havia sido eleito presidente durante a madrugada. Observadores chegaram a relatar uma comoção generalizada no escritório da empresa em Menlo Park, Califórnia. Alguns empregados choravam e eram consolados pelos seus pares. No mesmo dia, Mark Zuckerberg convocou uma reunião de emergência para traçar os próximos passos da empresa na era Trump [1].

Durante uma entrevista dois dias depois, o CEO do Facebook disse que a acusação de que a rede social influenciou o resultado das eleições era, na sua percepção, uma “ideia maluca”.

Para ele, a prova cabal de que sua empresa não poderia ser responsabilizada pela ascensão de Trump era o fato de que as “fake news” representavam apenas uma ínfima parcela do conteúdo hospedado pela plataforma.

Ele apenas esqueceu de mencionar que é justamente essa pequena fatia do conteúdo que mais promove engajamento entre os usuários, polarizando o debate e contribuindo para a radicalização na Internet. Reconhecendo o erro, Zuckerberg se desculpou alguns meses depois.

De certa maneira, a presidência de Trump obrigou o Facebook a encarar e assumir suas responsabilidades na arena pública. Aceitar a existência do problema é sempre o primeiro passo para solucioná-lo. Nesse caso, a solução envolveu a criação de um órgão independente capaz de revisar as decisões de moderação de conteúdo na rede social.

O CEO, que até então tinha a última palavra sobre os limites da liberdade de expressão na plataforma, decidiu delegar seus poderes ao Oversight Board, um comitê de supervisão independente, criado especialmente para receber apelações de usuários insatisfeitos com as decisões da empresa.

No dia 6 de janeiro de 2021, durante a penúltima semana da administração Trump, a relação entre o quadragésimo quinto presidente dos EUA e seu megafone digital teve um final inesperado (embora não surpreendente).

Após instigar uma insurreição armada contra o Congresso – que estava, naquela ocasião, reunido para certificar a vitória de Joe Biden no colégio eleitoral –, Trump foi banido de diversas plataformas, incluindo Facebook, Twitter e YouTube.

Após a suspensão repercutir mundo afora, Zuckerberg decidiu acionar o Oversight Board e solicitar uma revisão da decisão. No dia 21 de janeiro o comitê aceitou o caso. A próxima etapa será a formação de um painel de cinco julgadores que terão até 90 dias para tomar uma decisão.

O caso Facebook v Trump (ou, oficialmente, 2021-001-FB-FBR) levanta uma importante discussão sobre os limites da jurisdição do comitê, o que poderá ter impactos diretos no processo de construção de sua legitimidade institucional.

Segundo seu estatuto, o Oversight Board pode revisar apenas casos envolvendo conteúdos que tenham sido removidos por violar as políticas do Facebook. O estatuto menciona que “no futuro” o comitê poderá expandir sua jurisdição para revisar, por exemplo, a remoção de perfis, páginas, grupos e até mesmo anúncios, mas não chega a dar uma data ou estipular uma condição para tal expansão.

Ou seja, ao menos em tese, a decisão de remover a conta de Trump do Facebook (e não um conteúdo específico) estaria fora da competência do comitê. Apesar disso, o Facebook se valeu da prerrogativa de sugerir casos diretamente ao Oversight Board para contornar essa barreira estatutária.

Por um lado, impedir que o comitê se pronunciasse sobre o caso seria um péssimo sinal para o futuro da instituição – afinal, ela foi criada justamente para revisar as decisões mais importantes tomadas pela empresa.

Banir Trump é, certamente, a mais importante até agora. Por outro lado, convidar o comitê a expandir sua jurisdição logo no início de suas operações envolve uma série de complexidades. Vale lembrar que o Oversight Board ainda não publicou nenhuma decisão e sequer teve todos os seus membros nomeados.

Esse certamente será um ponto de inflexão na ainda curta história do comitê. Instituições julgadoras, a exemplo de cortes constitucionais, precisam se ater aos desdobramentos de suas decisões. Trocar os pés pelas mãos, principalmente quando a instituição ainda não angariou uma “reserva de boa vontade”, pode ser fatal [2].

E é justamente aqui que o cálculo estratégico passa a ser importante. Apenas referendar a decisão do Facebook pode passar um sinal de fraqueza institucional. Para alívio do comitê, além de decidir o caso, o painel também poderá recomendar atualizações ou modificações às regras de moderação de conteúdo da rede social. Assim, é possível que o comitê, ao mesmo tempo, referende o banimento de Trump e reforçe a sua presença institucional ao iniciar um diálogo com a empresa.

De outra sorte, reverter a decisão do Facebook também pode ser um risco. Ainda que o comitê esteja reafirmando sua independência, pode ser uma decisão delicada demais e difícil de ser implementada, atraindo críticas incisivas por parte da opinião pública e desgastando a imagem do Oversight Board [3].

É importante ressaltar que a empresa assumiu um compromisso segundo o qual as decisões do comitê vinculariam o Facebook e seriam irrecorríveis. Nada obstante, uma decisão altamente impopular nesse estágio inicial pode fazer com que a empresa deixe de sugerir novos casos ao comitê no futuro, restringindo significativamente o escopo da sua jurisdição. Afinal, vale lembrar que esse caso só está sub judice porque o Facebook assim quis.

O Facebook Oversight Board está, portanto, diante de uma encruzilhada. Há mais de 200 anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos se deparou com um caminho bifurcado semelhante.

O caso Marbury v Madison, julgado em 1803, trouxe à tona justamente a discussão sobre o fundamento de legitimidade da Corte para realizar o controle judicial de constitucionalidade das leis que conflitam com a constituição. Tal como no caso Facebook v Trump, a Corte tinha duas opções.

Afirmar seu poder de invalidar as leis – algo que naquela época era muito discutível, já que a constituição norte-americana não previu expressamente essa competência para a Suprema Corte – ou ser deferente e declinar da revisão judicial que se reclamava às suas portas.

A Suprema Corte optou pelo primeiro caminho. O então presidente da Suprema Corte, John Marshall, desenvolveu um raciocínio tão lógico quanto bem fundamentado. Para ele, a nulidade da lei inconstitucional é uma decorrência lógica da supremacia da constituição sobre as demais leis.

Dessa forma, sendo a constituição a norma maior em um dado ordenamento jurídico, compete a todo juiz ou tribunal realizar a interpretação da constituição e da lei e, assim, negar aplicação a qualquer legislação que afronte a constituição.

Foi com base nesses argumentos que o caso Marbury v Madison assentou nos Estados Unidos o controle judicial de constitucionalidade, conferindo aos juízes e às cortes o poder de invalidar leis e atos normativos dos demais Poderes.

Mas é importante lembrar que Marshall, ao assim proceder, também se livrou de uma questão politicamente espinhosa. O presidente à época, Thomas Jefferson, havia instruído seu secretário de estado, James Madison, a não entregar à William Marbury o certificado de investidura no cargo de juiz da paz.

O certificado, por sua vez, foi um ato do presidente John Adams, derrotado nas urnas por Jefferson. Ou seja, se a Suprema Corte decidisse em favor de Marbury isso significaria impor uma derrota política ao atual presidente, potencialmente desgastando a imagem da instituição.

E que luzes o caso Marbury joga, então, sobre a encruzilhada do Oversight Board?

Por um lado, o caso demonstra a importância de se agir com cautela quando a decisão envolve uma possível expansão dos poderes da instituição. Em Marbury, Marshall habilmente construiu sua argumentação para reconhecer o poder de controle de constitucionalidade da Suprema Corte e, concomitantemente, evitar um conflito político com Thomas Jefferson.

Da mesma forma, o Oversight Board deverá ponderar a expansão de sua jurisdição neste estágio inicial de sua vida institucional vis-à-vis a alta voltagem política do caso Facebook v Trump.

Por outro lado, o exercício de uma competência que parece lógica, até mesmo natural, pode também ser instrumentalizada para a expansão dos próprios poderes do comitê. Afinal, se o caso Marbury assentou o controle judicial de leis, foi a partir dele que também se pavimentou o caminho para a afirmação da ideia de supremacia judicial.

Podemos, evidentemente, discordar desse caminho e compreensão tomados a partir do controle judicial de constitucionalidade. Mas, para o que importa ao caso Facebook v Trump, o reconhecimento em sua origem de um poder, de uma competência, criou também a ideia de que a última palavra sobre a interpretação da constituição ficaria nas mãos da Suprema Corte. Esperamos que o mesmo não aconteça com o Facebook e seu Oversight Board.

[1] Para uma descrição dos eventos daquele dia na sede do Facebook, ver Steven Levy, Facebook: The Inside Story, Penguin Business, pp. 333-67 (2020).

[2] James Gibson et alOn the Legitimacy of National High Courts, 92 The American Political Science Review 343 (1998).

[3] 93% dos especialistas em tecnologia ouvidos pelo Technology 202 do The Washington Post, por exemplo, concordam com a decisão de banir Trump de plataformas digitais.

 

JOÃO VICTOR ARCHEGAS – Mestre em Direito por Harvard e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-limites-da-jurisdicao-do-facebook-oversight-board-02022021

O STF na corda bamba da E/exceção?

O STF na corda bamba da E/exceção?

O que as respostas do STF à crise do coronavírus promovem?

Por VERA KARAM DE CHUEIRI e MIGUAL GUALANO DE GODOY 

1 – O Brasil, a crise e a pandemia

No cenário de crise dupla, política e sanitária, o Presidente tem governado com base em decretos e medidas provisórias. O nosso sistema de freios e contrapesos permite ao Supremo Tribunal Federal (STF) revisar esses atos. Mas, se algumas decisões do STF (ou atuações de seus ministros), parecem ser positivas em suas intenções e méritos, por outro lado, parecem ser negativas em termos formais e procedimentais.

Essa contradição entre decisões formalmente negativas, e meritoriamente positivas cria excepcionalidades e coloca o STF em uma espécie de movimento pendular entre a normalidade e a exceção. Esse artigo pretende explorar essa contradição e enfatizar os perigos de um Supremo pendular para a democracia constitucional, especialmente neste período de pandemia.

2 – As respostas do STF à crise: o que elas promovem?

Duas recentes atuações do STF frente à pandemia que evidenciam nossa hipótese de que as excepcionalidades estão no limite entre a normalidade e a exceção – entre a regra e o que está além dela.

2.1 – o caso da LRF, LDO e a ADI 6.357

A primeira decisão é a que afastou exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A medida cautelar monocrática do ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357[1], de 29/03/2020 (um domingo), permitiu uma atuação ampla do Estado sem as exigências e formalidades da LRF e LDO.

Ainda que razoável no mérito, a decisão é controversa na forma e no que informa. Primeiro, porque é uma decisão cautelar monocrática em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), algo que não encontra amparo na Constituição, que, nesse ponto, não concedeu nenhum poder individual aos ministros do STF. Tampouco na Lei 9.868/99, que determina que cautelar em ADI seja sempre colegiada, podendo ser monocrática apenas no período do recesso. Também não encontra amparo no Código de Processo Civil (CPC), nem no Regimento Interno do STF.

A decisão poderia ter sido colegiada. Mesmo num domingo. Afinal, dias antes o STF havia ampliado o uso do plenário virtual pelos ministros. E ampliado para todo e qualquer processo ou decisão do STF. Ora, se o STF pode, agora, julgar tudo pelo plenário virtual, então por que não julgar também uma medida cautelar urgente como essa num período de pandemia? A urgência pode quebrar a regra do rito que impõe uma deliberação colegiada e que pode ser realizada remotamente?

Se a decisão não parece errada no conteúdo, ela erra na forma. E por meio desse erro formal, levou o STF diretamente para a gestão do dia a dia da crise financeira e orçamentária do País, substituindo o Poder Executivo. De quebra, isenta o Presidente de gerir o combate à crise, especialmente no que diz respeito à gestão financeira e orçamentária, com impactos gerais para os outros entes da Federação. É fato que o Presidente da República tem governado muito mal a crise e vem extrapolando as suas competências constitucionais. Mas isso não autoriza o Poder Judiciário, especialmente o STF, a fazer o mesmo. Ou autoriza?

2.2 – O PL das relações privadas e o STF legislador

Uma outra resposta significativa à pandemia foi a iniciativa do ex-Presidente do Supremo – ministro Dias Toffoli- para a elaboração de um projeto de lei que definisse um regime jurídico emergencial para o direito privado durante a pandemia.

A iniciativa do ex-Presidente do STF contou com a coordenação do ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Carlos Ferreira e, ainda, com a colaboração de diversos juristas. Entre outras medidas, o PL prevê a suspensão dos prazos de prescrição, usucapião e aplicação do CDC.

O projeto de lei foi então protocolado no Senado pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), no dia 30/03/2020 – PL 1.179/2020[2], que deu origem à Lei 14.010/2020 de 10/06/2020.

Parece uma resposta legislativa tão importante (em razão da urgência e emergência) quanto corriqueira (em razão da necessidade de tomar decisões políticas). Todavia, a aparência de normalidade traz em si algo que sequer deveria ser excepcional: magistrados atuando como legisladores.

O PL era necessário? Sem dúvida. Oportuno? Claro que sim. Deveria ter sido de iniciativa, coordenação e elaboração de magistrados, que podem ter de vir a julgar a constitucionalidade da lei pretendida (e depois aprovada)? Evidentemente que não. Afinal, ministros são magistrados. Não são legisladores. Tampouco são consultores legislativos (formais ou informais).

Se ministros e juízes querem dar suas contribuições e sugestões, devem fazê-lo dentro dos quadrantes e possibilidades que o cargo judicial lhes permite. Podem, por exemplo, fornecer informações sobre entendimentos prevalecentes na jurisprudência, ou com dados sobre as decisões mais comuns ou casos pendentes de julgamento.

Adiantar soluções através da iniciativa, coordenação e elaboração de projeto de lei, ou dizendo como o Legislativo deve conformar as relações privadas na crise, nos parece afronta à separação de poderes, ainda por boas e honestas intenções.

Esse modo de atuar ainda tem um efeito secundário mais nefasto. A mensagem que o ex-Presidente do STF passa com esse tipo de iniciativa é a de que os problemas do País passam, antes de tudo, por conversas, bons papos, com quem responde pelo Poder Judiciário brasileiro. Uma discussão prévia, consultiva, sobre medidas adequadas, sobre a constitucionalidade dessas medidas.

Essa é uma forma perniciosa de se estabelecer diálogo com os outros Poderes. Desinstitucionaliza o Supremo, politiza indevidamente a Presidência do Tribunal e expressa um personalismo individual, voluntário e voluntarista.

Acaba também isentando os legisladores do seu ônus de legislar adequadamente, e faz do STF um consultor legislativo informal e ad hoc.

De forma semelhante à LRF, ninguém vai discordar da relevância e urgência da Lei 14.010/2020, que veio em boa hora. Mas, por isso mesmo, caberia aqui um projeto de lei, eventualmente uma medida provisória, sem juízes atuando como legisladores.

Há quem interprete tais atitudes como circunstâncias normais do cotidiano institucional, agravadas pelas demandas emergenciais e urgentes. Sabemos que a temperatura da política é alta e só tende a aumentar na crise sobreposta como a que está em curso no Brasil. Mas é nesses tempos que limites constitucionais garantem a institucionalidade se impõem ainda mais. Não é possível dizer que os representantes dos poderes máximos da República apenas fazem política como sói acontecer na realidade dura e crua da vida institucional.  A realpolitk tem (e deve ter) diques constitucionais de contenção de maneira que naturalizar o excesso e o excepcional significa ultrapassar a linha da regra para o caos; da exceção para a Exceção.

3 – O STF entre a exceção e a Exceção?

Vivemos tempos estranhos, diz sempre o ministro Marco Aurélio. Sem dúvida, mais do que estranhos. Mas, qual o limite dessa estranheza? Com que nível de excepcionalidade ela se relaciona? A de uma excepcionalidade com “e” minúsculo ou ao Estado de Exceção com dois “Es” maiúsculos? A exceção diz respeito às excepcionalidades, singularidades, surgidas em momentos de crise. E a Exceção é o que está ou vai além disso, rompendo os diques constitucionais de contenção, ou simplesmente mantendo-os, mas não mais respeitando-os.

Diante disso, as duas atuações do STF apontadas no item 2 podem ser uma amostragem de qual excepcionalidade?

O STF tem um papel fundamental, desde que não normalize ou naturalize em suas práticas a exceção, nem produza ou aceite a Exceção.

A exceção (em minúsculo) – é a que se lê no mérito da decisão monocrática da ADI 6.357 sobre a aplicação da LRF e LDO. Isto é, a permissão ao Executivo para gastar sem prévia exigência de custeio, a fim de custear o combate à pandemia entre outras medidas.

Sua forma monocrática, em sede de ADI, todavia, não é apenas excepcional, uma decisão atípica em razão das circunstâncias e da pandemia. Antes, é mais um exemplo de uma atuação que se tornou permanente no STF. E que com a pandemia parece também se normalizar. É, assim, uma decisão que parece entrar na categoria de Exceção (com E maiúsculo), pois não encontra amparo na Constituição ou em qualquer norma infraconstitucional (Lei 9.868/99, CPC ou RISTF), mas existe e se aplica apesar delas. Vale dizer, a Constituição vige, as leis também, mas não se aplicam. E a decisão se impõe, rompendo forma e arrastando conteúdo (ainda que, nesse caso, o mérito seja louvável).

A atuação de ministros e juízes como legisladores parece seguir o mesmo caminho de Exceção. Ao atuar com iniciativa de proposição legislativa, o presidente do Supremo larga a toga e assume a caneta de legislador. Magistrados atuando como legisladores, ou consultores legislativos, violam a separação de Poderes. No mínimo, inauguram diálogo institucional pernicioso. Aqui também a Constituição vige, mas não se aplica e a atuação em nome do STF acontece apesar do que dispõe a Constituição.

Nossa crítica e argumento aqui apresentados são, em sua urgência, tanto uma espécie de alerta, quanto o acionar de um alarme. No limiar entre o caos e a normalidade, a E/exceção e a regra, não é possível dizer que as instituições estão funcionando normalmente. Justamente elas, que deveriam ser a garantia de freio e contrapeso diante da irracionalidade ou monstruosidade de quem, atualmente, governa este país.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
VERA KARAM DE CHUEIRI – Professora de Direito Constitucional dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFPR. Coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) – PPGD/UFPR. Diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-pandemia-coronavirus-03122020

O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O STF e o erro da decisão de desconto obrigatório dos dias de greve

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

No último dia 27 de outubro completaram-se 4 anos da decisão do STF que determinou o desconto nos vencimentos dos servidores públicos dos dias não trabalhados em virtude do exercício do direito de greve (RE 693.456, Tema 531 da Repercussão Geral, Rel. Min. Dias Toffoli).

Este breve artigo tem por objetivo retomar o tema e oferecer um outro aporte, de teoria dos direitos fundamentais, pois a discussão do ponto de vista das normas trabalhistas parece estar bem posta no acórdão, e ainda mais bem posta nos votos vencidos. Este texto tem, assim, a finalidade de oferecer uma fundamentação complementar ainda não enfrentada, que coloca em xeque a decisão tomada pelo STF e possibilita, desse modo, a rediscussão do tema e da própria decisão até aqui prevalecente.

1. O caso

O RE teve origem na impetração de um mandado de segurança por parte de servidores do Estado do Rio de Janeiro que tentaram impedir o desconto dos seus vencimentos pelos dias parados em razão de movimento grevista. A sentença de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos e denegou a segurança, autorizando os descontos pelos dias parados em razão da greve.

O TJ-RJ reformou a sentença e reconheceu a ilegalidade no desconto dos vencimentos, já que a paralização ocorreu para o exercício de um direito constitucional – o direito de greve, que também se aplica aos servidores públicos.

Contra essa decisão do TJ-RJ foi interposto o RE 693.456, que ficou sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, e cuja repercussão geral foi reconhecida (Tema 531).

2. A decisão do STF

Levado a julgamento em Plenário, o RE 693.456 foi paradigmático em forma e mérito.

Seu julgamento foi relevante sob o aspecto formal, porque, iniciado o julgamento em 02/09/2015, o Supremo decidiu em questão de ordem que, uma vez reconhecida a repercussão geral do recurso, não cabe pedido de desistência. Importante recordar que nesse momento do julgamento ainda não havia entrado em vigor o novo Código de Processo Civil, que resolveu essa questão em seu art. 998, parágrafo único, ao dispor que “a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos”.

Definida a questão formal, o Min. Luís Roberto Barroso pediu vista.

O julgamento de mérito somente foi retomado e concluído em 27/10/2016.

No mérito, o STF decidiu que o exercício do direito de greve por servidor público corresponde à suspensão do trabalho. Assim, mesmo a greve não sendo abusiva, a regra deve ser o desconto dos dias não trabalhados. O desconto só não pode ser realizado se a greve tiver sido provocada (i) por atraso no pagamento, ou (ii) por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da relação funcional com o Poder Público como, por exemplo, a realização de condutas recrimináveis pela Administração Pública, ou quando houver negociação para a compensação dos dias parados ou parcelamento dos descontos.

O STF fixou então a seguinte tese de: A administração pública deve proceder aos descontos dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público.

A decisão foi tomada por maioria de votos, nos termos do voto do Ministro Relator Dias Toffoli, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

3. O problema da decisão tomada

O raciocínio subjacente ao RE e à decisão do STF é o de que se a greve é paralisação, não há trabalho. Se não há trabalho, não há pagamento devido, salvo se a greve for decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas esse raciocínio se fundamenta em uma contradição que, numa tacada só, reconhece o direito de greve, mas ao mesmo tempo o viola ao permitir o desconto dos vencimentos pelos dias parados.

3.1 A greve como direito fundamental

Mas greve não é qualquer paralisação. É paralisação por demandas trabalhistas, pretensão de defesa de direitos dos trabalhadores, ajuste do contrato de trabalho firmado por interesses contrapostos (prestação de trabalho X remuneração necessária de ajustes). É, pois, uma paralisação qualificada. E tanto é assim que recebe nomenclatura especial e especial local de previsão e proteção: a greve como direito fundamental previsto no art. 9º e art. 37, VII, da Constituição da República.

A greve como direito fundamental tem como suporte fático uma série de medidas. A principal delas é, sem dúvida, a paralisação do trabalho.

O âmbito de proteção do direito fundamental à greve abarca, assim, justamente a possibilidade de se parar o trabalho. E que essa possibilidade de paralisação do trabalho não seja impedida ou afetada por uma intervenção sem amparo na Constituição. Vale dizer, a paralisação só poderia ser mitigada se houvesse fundamentação constitucional para tanto. Mas não há.

Assim, a premissa é a possibilidade de realização da greve (suporte fático composto por um âmbito de proteção que abarca, elementar e principalmente, a paralisação do trabalho), a possibilidade de parar e não ser retaliado por isso (intervenção não fundamentada constitucionalmente). Isso significa poder parar e não ter, a priori, os vencimentos descontados. Salvo se a greve for considerada abusiva, ilegal.

3.2 O erro da decisão do STF

O que o STF fez foi inverter a premissa que fundamenta o exercício do direito fundamental de greve dos servidores públicos: se greve é paralisação, e paralisação é não trabalho, então não se justifica, a priori, o pagamento dos vencimentos.

O problema desse argumento é que ele desloca o fundamento da abusividade e ilicitude da greve como premissa da paralisação. Quer dizer, para o STF, o direito à greve implica obrigatoriamente a suspensão do pagamento dos vencimentos, salvo se decorrente de conduta ilícita do Poder Público.

Mas nessa compreensão do Supremo, então o que fundamenta o direito de greve não é mais um suporte fático com um amplo âmbito de proteção (que abarcaria a paralisação do trabalho como vimos acima), já que a paralisação deve implicar necessariamente o desconto dos dias parados. Ou seja, parar o trabalho não estaria mais no âmbito de proteção do direito de greve, já que parar o trabalho é ser descontado.

Mais do que isso, ser descontado é uma intervenção contra a qual o direito de greve justamente se contrapõe e que não encontra autorização na Constituição. Só é greve porque é paralisação sem desconto. Ou seja, ao se descontar os vencimentos, não apenas se mitiga o principal suporte fático do direito de greve através da diminuição do seu âmbito de proteção (parar o trabalho), como ainda se permite uma intervenção (desconto dos vencimentos) sem fundamento constitucional que a autorize.

A decisão do STF e a tese fixada pelo Supremo não encontram amparo na Constituição porque fulminam o próprio conteúdo essencial do direto fundamental de greve.

Se o STF exclui do âmbito de proteção do direito fundamental o principal modo de atuação para sua efetivação, ele não está apenas esvaziando esse direito fundamental, ele está violando esse direito pela afronta ao que ele principalmente busca estabelecer: um ato que dá concretude ao direito. E o principal ato que dá concretude à greve é parar o trabalho.

Se se cria uma intervenção que impede o principal ato que é parar de trabalhar, então se está a violar o principal âmbito de proteção do direito fundamental. Há, assim, evidente violação do conteúdo essencial do direito fundamental à greve.

O que o STF fez não foi esvaziar o direito de greve, foi efetivamente violar o que constitui o direito de greve em si.

Esvaziamento seria a exclusão do âmbito de proteção de algum modo de exercício do direito, e com fundamentação na Constituição para isso. Mas não a exclusão do principal modo de exercício do direito, e sem fundamentação na Constituição para tanto.

O desconto dos vencimentos dos servidores públicos em razão do exercício do direito fundamental de greve retira dos trabalhadores públicos seu meio de subsistência, impõe um auto sacrifício para que que a parte mais fraca de uma relação contratual possa se valer do principal meio de visibilidade e oitiva e ainda aniquila o próprio direito fundamental à greve.

4. Conclusão: um STF do século XXI, mas uma decisão do século passado

O STF do século XXI, do Plenário Virtual e dos números fantásticos, fez os trabalhadores públicos voltarem ao século passado, onde qualquer reivindicação trabalhista é tratada a priori como indevida e, assim, passível de punição prévia. Nesse caso, infelizmente o Supremo deixou de guardar a Constituição, de proteger um direito fundamental, se valendo de um argumento que não encontra fundamento nem na Constituição, nem na teoria dos direitos fundamentais e muito menos na dinâmica e prática do Direito do Trabalho dos últimos 100 anos.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-erro-decisao-desconto-obrigatorio-dias-greve-13112020

Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Dados mostram que colegialidade e deliberação, por ora, não passam de uma promessa no Supremo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

 

Em seu último discurso na Presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli destacou que, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, o STF continuou sendo o tribunal constitucional de maior produtividade no mundo: “graças aos julgamentos virtuais, conseguimos avançar sobre a longa pauta de julgamentos colegiados”. O total de processos na pauta do Plenário foi reduzido em 70%, caindo de 1.200 para 369, e o acervo do Tribunal ficou em torno em 28.361 processos, o menor dos últimos 24 anos. Esses números foram melhor explicados e explorados nrelatório da gestão Dias Toffoli.

Ali, constam com detalhes o número de processos registrados na presidência (74.090) e distribuídos aos ministros (75.254), de decisões monocráticas (169.608) e colegiadas (31.677), de sessões presenciais (143) e virtuais (75) do Plenário e das Turmas (283), entre outros que em muito podem interessar a quem trabalha com a dinâmica interna do STF.

Não foram só os julgamentos virtuais que tornaram possível o ganho de produtividade de que tanto se orgulha o ministro Dias Toffoli. Ao lado da expansão do Plenário Virtual, sobre a qual escrevemos eoutras ocasiões, contribuiu ao avanço sobre o acervo a ampliação da competência da presidência do STF no juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e dos agravos em recurso extraordinário.

A estruturação e consolidação do Núcleo de Análise de Recursos, a exemplo do que já existia com o Núcleo de Análise e Recursos Repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, permitiu maior filtragem dos recursos inadmissíveis e a consequente distribuição apenas dos recursos que versassem sobre questões constitucionalmente relevantes. Um filtro de chegada ao STF e uma verdadeira barreira de contenção de chegada aos gabinetes dos ministros do Supremo.

O resultado foi uma queda de 60% na distribuição de processos recursais aos ministros.

É inegável que a redução do acervo processual via ampliação do Plenário Virtual e filtragem realizada pela presidência possuem um aspecto positivo: criar o ambiente para uma jurisdição concentrada dedicada principalmente aos temas constitucionais. E não aos temas e, também, à gestão do acervo processual. O ministro Dias Toffoli, durante sua presidência, efetivamente tomou medidas importantes para a desobstrução da pauta do Tribunal.

Acerta, portanto, o relatório quando afirma que estas medidas contribuem à vocação constitucional do STF, pois “o Tribunal pode se dedicar às questões de maior relevância e complexidade e às matérias com repercussão geral”. Contudo, há dois aspectos negativos.

Em primeiro lugar, esse “avanço” na prestação de jurisdição é, efetivamente, em sua maior parte, para denegar jurisdição. É, assim, a celebração de produção massiva de decisões que apenas decidem não decidir. E celebrar não decidir, ou exaltar alto número de decisões que nada fazem, é comemorar o que sequer deveria estar lá. É enaltecer uma prestação jurisdicional que foca a produção do que sequer deveria estar lá e que a toma como grande produto, quando, em realidade, outras ações, recursos e temas deveriam ocupar a gestão do Tribunal e a prestação jurisdicional pelos ministros.

Afinal, cabe lembrar, a função precípua do STF é de guarda da Constituição e, assim, decidir sobre temas constitucionais.

Segundo o citado relatório do STF, em 2018 o STF recebeu 101.497 processos. Desse total, 66.652 eram agravos em recurso extraordinário – mais da metade, portanto. Mas foi negado seguimento ou provimento a 99,4% de todos os ARE’S, mantendo-se o acórdão recorrido.

Os dados relativos aos recursos – quantidade em tramitação, participação no acervo e taxa de sucesso – revelam como os filtros processuais têm sido insuficientes ou até mesmo obsoletos. Exaltar, pois, esses números é celebrar o que tem dado errado. E esse diagnóstico nem de longe é estranho a integrantes do STF.

Em segundo lugar, o “avanço” na prestação jurisdicional perpassou pela ampliação da atuação individual e individualista dos ministros.

Ao lado da competência da Presidência na filtragem de agravos em recurso extraordinário, a forma como vem sendo utilizado o Plenário Virtual foi fator que em muito contribuiu à manutenção do STF como uma corte de solistas.

Quando analisamos os processos de controle concentrado levados a julgamento em ambiente eletrônico nos meses dabril e de maio e junho, adiantamos que o PV estava sendo empregado para dar vazão a ações até então “represadas” pela escassez da pauta presencial. Das 209 que foram para o PV, 158 já tinham constado em pauta do plenário físico.

Essa impressão é corroborada quando consideradas as listas virtuais.

Segundo dados disponibilizados no próprio site do STF, em 2019, o volume médio semanal de feitos em lista era de 88 no Plenário e 151 na Segunda Turma. Em 2020, ao menos nas 30 primeiras semanas, essa média saltou para 145 no Pleno e 152 na Segunda Turma. Na pauta do PV de 14/08 a 21/08, aguardavam julgamento 437 processos no Pleno e 378 na Segunda Turma. E desde então, o volume no Pleno vem caindo: 352; 271; 284; 74; 85; 49; 147.

Atribui-se o inchaço em agosto/setembro à troca de gestão na Presidência. A título de comparação, em setembro de 2018, ao término da gestão da ministra Cármen Lúcia, mais do que o dobro da média de processos estava na pauta do Pleno (194).

Esses dados mostram que boa parte dos processos que estavam liberados para pauta do plenário físico (ou seja, dependiam apenas de decisão do presidente do STF para entrarem no calendário de julgamento) foram julgados no Plenário Virtual ampliado, por meio de listas virtuais. Daí o ministro Dias Toffoli comemorar que o menor número histórico de processos na pauta do Plenário.

Houve mesmo, então, uma aceleração (celeridade) de julgamentos via Plenário Virtual. Mas isso não significa necessariamente deliberação e coerência. E a colegialidade tem sido meramente formal.

Como mostramos na análise sobre o uso do Plenário Virtual, na pauta do PV, prevalece o voto do relator, há poucos destaques e vistas. E se somarmos agora as listas virtuais, então vemos que a colegialidade é mesmo meramente formal. Mais do que isso, fica evidente que a deliberação (seja no PV mérito, seja no PV listas virtuais) é praticamente inexistente. E que a celeridade impede mesmo qualquer colegialidade deliberativa em razão do alto volume de processos nas listas virtuais.

Por mais que o ministro Dias Toffoli, ao longo de sua gestão, tenha por diversas vezes afirmado que o Tribunal decide cada vez mais de forma colegiada, os dados são teimosos em revelar que a colegialidade e a deliberação, tão necessárias quanto exigidas pela Constituição, por ora, não passam de uma promessa no Supremo de hoje.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-gestao-toffoli-numeros-comemorar-21102020

O plenário virtual no STF: individualismo, vazão e outras tendências

O plenário virtual no STF: individualismo, vazão e outras tendências

O que os números revelam sobre o plenário virtual do Supremo?

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ARAÚJO

 

1 – Começou o segundo semestre forense do Supremo

O segundo semestre do STF começou com a expectativa de utilização ainda mais ampla do Plenário Virtual (PV). Em recente webinar promovido pelo Instituto de Garantias Penais, o Presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, destacou que a Corte está cada vez mais próxima de tornar-se um “Supremo 100% digital” [1].

Neste mesmo espaço, já mostramos que, ao ampliar o PV para “todos os processos de competência do tribunal”, o Supremo insiste em mecanismos decisórios e decisões que, em nome da rapidez, privilegiam uma atuação individual e individualista dos ministros.

Também apontamos, a partir do levantamento de todos os processos julgados no Plenário Virtual de abril, que, como era de se esperar, o PV parece mesmo ter dado lugar ao “Tribunal de solistas”, com processos incluídos em pauta por decisão de um só ministro e decididos pelo voto do relator por ampla maioria. O modo de julgamento muda (agora com o PV ampliado, ele se torna mais célere e com alto número de processos julgados). Mas, as decisões e performance decisórias parecem repetir o mesmo script de um Tribunal apenas formalmente colegiado, mas pouco deliberativo e muito individualizado.

Após os primeiros usos do Plenário Virtual ampliado, a Presidência do STF, após conversas com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados e demais associações representativas da classe, anunciou mudanças no PV a fim de tornar o julgamento ali mais acessível e transparente. Os relatórios e votos passaram a ser disponibilizados durante, e não mais ao final, da sessão. Os memoriais podem ser enviados no correr do julgamento, viabilizando esclarecimentos de fato. E as sustentações orais antecedem o acesso dos ministros ao campo de votação. As modificações e os aprimoramentos foram bem-vindos, pois mitigam alguns dos problemas antes apontados.

Cumpre analisar, neste momento se as mudanças na dinâmica do julgamento no ambiente virtual impactaram positivamente a entrega da prestação jurisdicional pelo Plenário Virtual ampliado.

2 – O Plenário Virtual do STF em maio e junho

Levantamos os dados relativos aos 129 processos de controle concentrado de constitucionalidade incluídos nas pautas do PV de maio e de abril[1]: 08 de 01/05 a 08/05, 09 de 08/05 a 14/05, 09 de 15/05 a 21/05, 21 de 22/05 a 28/05, 06 de 29/05 a 05/06, 35 de 29/05 a 05/06, 09 de 12/06 a 19/06, e 22 de 19/06 a 26/06.

À semelhança do que foi visto e analisado em abril, os números de maio e junho revelam-nos que a dinâmica decisória individualista continua a prevalecer no Plenário Virtual do STF. Revisitemos com mais detalhes os quatros aspectos que evidenciam essa caracterização a que vimos assistindo desde o começo: o uso dos destaques, a quantidade de processos julgados, a predominância do voto do relator e o julgamento por maioria.

2.1 – Destaque

Foram formulados 23 pedidos de destaque para deslocar o julgamento de processos do meio eletrônico para o meio presencial. Nenhum desses requerimentos, como ocorreu com os requerimentos formulados em maio, foram acolhidos.

Também como em maio, manteve-se constante a proporção entre pedidos apreciados e pedidos não apreciados: somente 2/3 dos destaques foram apreciados.

Contudo, enquanto em abril apenas uma única ação foi destacada por ministro para o julgamento no plenário físico, verificou-se um incremento significativo desse número em maio e junho. Foram 13 ações destacadas, das quais 07 pelo ministro Alexandre de Moraes, 05 pelo ministro Ricardo Lewandowski e 01 pelo ministro Luiz Fux.

Esse crescimento sugere que a possibilidade de as partes fazerem sustentações orais antes da votação e poderem levar esclarecimentos aos ministros durante o julgamento possa ter surtido efeito, chamando a atenção dos julgadores para determinadas ações e fatos relevantes.

Contudo, não se pode afirmar que tais mudanças tornaram o julgamento no PV mais público e transparente, já que resultaram justamente na saída desses processos do ambiente virtual para o ambiente físico.

2.2 – Quantidade: a vazão ao acervo processual

O Plenário Virtual ampliado parece continuar sendo utilizado como válvula de escape ao acervo do STF, que hoje conta com 2.032 processos só no controle concentrado abstrato de constitucionalidade – para além das demais classes processuais, que tipicamente respondem por um volume muito maior da carga de trabalho do tribunal.

Das 129 ações levadas a julgamento virtual em maio e junho, 75 já haviam constado em pauta anterior. Das 75, 05 começaram a ser julgadas em sessão presencial, mas, após pedido de vista, foram retomadas e concluídas em sua apreciação em sessão virtual – quais sejam, a ADI n. 3.763, ADI n. 5.852, ADI n. 3.538, ADI n. 3.543 e ADI n. 4.702.

O uso do PV como mecanismo de vazão do Plenário e das Turmas também está sob análise. Afinal, pode ser um escoadouro de volume (no qual mais vale o quanto se julga do que o quê ou como se julga), como alertado por Fábio Braga e Lucas Henrici Marques de Lima ao analisarem decisões da Corte em matéria tributária. Mas também pode ser um uso estratégico ou opaco, como já chamou a atenção Juliana Cesário Alvim.

2.3 – Predominância do voto do ministro relator

Na primeira análise, referente às ações julgadas no PV em abril, chamou atenção a circunstância de que o relator restou vencido em apenas 01 dos 57 julgamentos. Em todos os demais, fosse para julgar procedente ou improcedente o pedido, prevaleceu o voto do ministro relator.

A relatoria também prevaleceu, em larga medida, nos julgamentos virtuais de maio e junho. Nas 90 ações julgadas, em tão somente 03 o relator saiu vencido: ministro Gilmar Mendes na ADI 6.097, que julgava procedente (impugnação de lei estadual que obriga as operadoras de planos de saúde a notificar os usuários sobre descredenciamento de hospitais e clínicas), o ministro Edson Fachin na ADI 4.288, que julgava improcedente (impugnação de lei estadual que reestrutura as Santas Casas e demais hospitais filantrópicos), e ministro Marco Aurélio na ADI 6.053, que a julgava parcialmente procedente (impugnação de previsões do CPC e Estatuto da OAB sobre honorários de sucumbência a advogados públicos).

Em maio e junho, caiu o número de pedidos de vista. Em abril, foram 22 pedidos de vista num universo de 80 processos, o que corresponde a 27,5%. Essa porcentagem caiu de forma significativa nos dois meses seguintes para 16,2%, quando, dos 129 processos submetidos ao PV, em apenas 21 houve pedido de vista.

2.4 – Julgamento por maioria

Não diferente do visto no mês de abril, os julgados de maio e junho equilibraram-se entre unânimes e majoritários. Dos 90 processos, 42 foram decididos por unanimidade do Plenário e os outros 48 foram decididos por maioria.

Dos processos em que houve vencedores e vencidos, apenas 01 ministro compôs a minoria 17 vezes e 02 ministros compuseram a minoria em 11 vezes.

Uma maioria “apertada” de 6×5 aconteceu apenas em 03 ocasiões (ADPF423, ADI 4.612 e ADI 5.939).

Em 14 julgamentos, 04 ministros compuseram a minoria – o que poderia indicar que a visualização das sustentações e a apresentação de esclarecimentos pode contribuir para um julgamento mais dialógico no ambiente virtual. Porém, desses 14 processos, 03 tramitavam apensados à ADI 3.192 e outros 04 estavam apensados à ADI 5.685, o que certamente inflou artificialmente o número de processos decididos por 7×4.

Portanto, até aqui, seguem predominando no PV processos decididos por ampla maioria.

3 – Conclusão

O que vemos e temos do Plenário Virtual ampliado do STF de março até aqui parece repetir as marcas e características do Supremo nos últimos anos: um tribunal de solistas, com pauta virtual e decisões sempre dependentes de ministros individualmente, com julgamentos formalmente colegiados, mas pouco deliberativos, com possível uso opaco e resultados decididos pelo voto do relator por ampla maioria.

Por outro lado, também assistimos nos últimos meses um esforço pelo aprimoramento procedimental do uso do Plenário Virtual, sobremaneira em relação às sustentações orais e apresentação de questões de fato para serem esclarecidas. Essa abertura de espaços formais de interação são bem vindas porque devem mesmo compor e fazer de um julgamento que deve ser colegiado, deliberativo, contar com a efetiva participação dos proponentes e partícipes das ações.

Por fim, chama a atenção o uso do PV ampliado como possível escoadouro de ações. Se ele já tem permitido um julgamento massivo de ações com as disfunções que vimos apontando, o problema parece aumentar enormemente se passarmos a incluir na análise os agravos, embargos e outras classes processuais que têm ficado de lado.

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[1] Não foram incluídos os recursos internos (AgInt e EDcl) e as medidas cautelares.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-plenario-virtual-no-stf-individualismo-vazao-e-outras-tendencias-20082020

(Des)acatando um controle de convencionalidade rigoroso

(Des)acatando um controle de convencionalidade rigoroso

O julgamento da ADPF 496 pelo Supremo Tribunal Federal

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e MELINA GIRARDI FACHIN

 

O controle de convencionalidade é uma forma explícita, normativa e institucionalizada de diálogo entre o constitucionalismo local e o sistema internacional de direitos humanos. É marca indelével dos sistemas multinivelados e porosos que marcam o direito constitucional contemporâneo com a aproximação das fronteiras e o trânsito global cada vez mais intenso.

A concepção que mais se coaduna com o projeto constitucional – a tese da paridade constitucional dos tratados de direitos humanos espelhada no art. 5o, §2o, restou vencida em julgamento pelo STF.

Mas o Tribunal consagrou uma proposta que deu novo e destacado espaço para os tratados de direitos humanos no nosso âmbito local de proteção: a tese da hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, dos tratados de direitos humanos anteriores à Emenda 45.

O reconhecimento jurisprudencial consolidou o que a doutrina nacional já vinha há muito apontando: a necessidade de uma leitura constitucional conforme da hierarquia dessas normas.

Recentemente o STF ganhou oportunidade de revisitar a temática no julgamento da ADPF 496, proposta pelo Conselho Federal da OAB, tendo por objetivo a análise da constitucionalidade – e convencionalidade – do dispositivo contido no art. 331 do Código Penal que prevê o crime de desacato.

O tema não é novo e, no exercício do controle difuso de convencionalidade, diversas decisões judiciais abordaram o tema. Umas das mais destacadas foram proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a convencionalidade do crime de desacato.

Em 2016, no REsp 1.640.084, a 5ª Turma do STJ entendeu que o tipo penal era incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Valeu-se na fundamentação de inúmeros expedientes da Comissão Interamericana para concluir que leis de desacato não podiam permanecer incólumes nos ordenamentos internos face à Convenção.

Todavia, em 2017, decisão tomada no HC 379.269 pela 3ª Seção do STJ – responsável por uniformizar a jurisprudência do Tribunal – derrotou a tese anteriormente fixada.

Este imbróglio que chegou ao STF no contexto da ADPF 496. Infelizmente, com uma leitura restrita do controle de constitucionalidade e dos precedentes internacionais, a maioria formou-se no sentido de que não há inconvencionalidade em si no tipo penal. O posicionamento vencedor parte da noção de que como o próprio sistema interamericano rechaça a liberdade de expressão como direito absoluto, podendo ser limitada.

Em distinguishing à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (nomeadamente o caso Palamara Iribarne vs. Chile), o voto vencedor aponta a ausência de similitude fática entre os julgados da Corte Interamericana, os quais tratavam de manifestação de opinião de jornalistas e escritores seguido de imposição de restrições por conta da crítica, e não a ofensas, proferidas na presença de um servidor público.

Destaca, ainda, a posição da Corte Interamericana sublinha a aderência à análise do caso concreto, de forma que a legislação de desacato não foi reputada violadora da Convenção aprioristicamente.

Todavia, em visão sistemática e integrada do sistema interamericano resta evidente a incompatibilidade do tipo penal.

A Comissão Interamericana definiu, a partir de um conjunto decisório de casos, informes e relatorias[1], que as restrições impressas por leis de desacato não são legítimas. Para a Comissão, as leis de desacato buscam proteger a honra dos funcionários públicos, mas tal proteção é outorgada injustificadamente pois dessa proteção especial não goza qualquer um dos demais integrantes da sociedade.

Em verdade, pelo tipo do desacato inverte-se, segundo a Comissão, a lógica aplicável em uma sociedade democrática, pois os funcionários públicos estão sujeitos a constantes escrutínios da população pela posição que ocupam.

Desse modo, faz parte desse palco discursos críticos, e às vezes inclusive ofensivos, proferidos pela população em relação aqueles que ocupam cargos públicos[2]. Ao fim e ao cabo, funcionários públicos estão (e devem mesmo estar) mais expostos a críticas da população.

Soma-se a deslegitimar as leis de desacato, conforme a Comissão, o fato de tais leis intimidarem toda pessoa que busca dar voz a seus pensamentos em relação à determinada atividade prestada pelo governo.

Diplomas normativos que contenham a tipificação do desacato funcionariam, de acordo com a Comissão, como método de supressão apriorístico de críticas, gerando, em última instância, censura prévia.

É certo que a Corte Interamericana não foi tão expressa no principal precedente sobre o tema, Caso Palamara Iribarne v. Chile em 2005. Para a Corte, no exame dos fatos, a adequação de determinada lei de desacato e dos resultados que produz perante a Convenção são determinados necessariamente ao caso concreto[3].

Afastou-se, assim, o entendimento que se vinha esboçando na Comissão que leis de desacato são ipso fato per se incompatíveis com o sistema regional e proteção dos direitos humanos.

Dessa forma, como teste para a convencionalidade, a Corte estabeleceu que a restrição à liberdade de expressão, dado que esta não é um direito absoluto[4] (e os próprios parágrafos do art. 13 da Convenção deixam claro isso), deve se dar por responsabilidades ulteriores que estejam expressamente fixadas em lei; que procurem proteger a reputação dos demais, segurança nacional, ordem pública e ou a moral pública e devem ser necessárias em uma sociedade democrática[5].

Neste diapasão, o requisito da necessidade, a seu turno, corresponde ao fato de que a restrição deverá buscar satisfazer um interesse público imperativo e, para alcançar esse objetivo, deve-se escolher os meios que restrinjam em menor escala os direitos[6].

Em síntese, nota-se que não há uniformidade no sistema sobre a matéria. Ainda que haja uma coerência entre os resultados obtidos na Comissão e Corte – em ambos as leis de desacato foram extirpadas do sistema.

No caso da APDF 496, todavia, o desacato permaneceu sendo considerado constitucional e convencional. Os fundamentos adotados pela corrente majoritária no STF estabeleceram um diálogo de pouca troca com o sistema interamericano e pouco rigor com os ditames republicanos da nossa Constituição.

Os expedientes da Comissão Interamericana são bastante contundentes ao expressarem a inconvencionalidade do tipo de desacato. E a decisão da Corte Interamericana, ainda que em menor grau, não deixou de repudiar o tipo como proteção especial de determinada categoria de pessoas (servidores públicos).

No Brasil já possuímos tipos penais destinados à punição de quem ofender uma pessoa (injúria, calúnia, difamação) e também meios civis, reparatórios e indenizatórios, de responsabilização. Não há, portanto, desabrigo jurídico de quem possa exorbitar da sua liberdade de expressão e ofender alguém, seja funcionário público ou não.

A decisão majoritária do STF, assim, expressa pouco rigor no diálogo com o sistema interamericano de direitos humanos e ainda mais com a decisão que busca objetar.

Mais do que isso, perdeu a oportunidade de promover o controle de convencionalidade de matriz nacional, expressando a proteção da liberdade de expressão, a possibilidade de sua limitação e a inadmissão de uma categoria de pessoas especialmente protegidas apenas por ocuparem cargo público.

Não fosse isso suficiente, o tipo de desacato viola nossos compromissos mais básicos, a igualdade e o republicanismo. Não há justificativa para se tratar de forma desigual e avantajada um servidor público. Sua honra não é maior do que a de qualquer outra pessoa.

E a eventual proteção que se busca dar à Administração Pública não precisa de tipificação especial para o servidor em si. Sua honra encontra amparo na legislação penal e civil caso seja violada. A Administração Pública possui à sua disposição todos os meios, administrativos e legais, inclusive com presunções positivas a seu favor, para fazer valer sua decisão.

O diálogo, e o controle de convencionalidade como uma de suas vertentes, é um compromisso duradouro com a abertura do direito constitucional. É fundado na força expansiva dos direitos humanos, do princípio da dignidade que justifica a possibilidade de exercício do controle de convencionalidade que deve ser feito com o rigor necessário que, infelizmente, não espelhou a jurisprudência majoritária do STF, inclusive na ADPF 496. Não fosse isso, e já era tanto, ainda resta o controle de constitucionalidade: igualdade e republicanismo continuarão aguardando por redenção nesse aspecto.

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[1] Cite-se, dentre muitos: CIDH. Antecedentes e Interpretação da Declaração de Princípios. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=132&lID=4>, com acesso em 21 de novembro de 2017. Informe sobre la Compatibilidad entre las Leyes de Desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. 1994. Caso Horacio Verbitsky v. Argentina. Relatório n.º 22/94, Caso 11.012. 20 de setembro de 1994. Criminalização de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, 2015. Marco Jurídico Interamericano sobre el Derecho a la Libertad de Expresión. 2010. Zonas Silenciadas: Regiones de alta peligrosidad para ejercer la libertad de expresión. 2013. Una Agenda Hemisférica para la Defensa de la Libertad de Expresión.

[2] “El tipo de debate político a que dá lugar el derecho a la libertad de expresión generará inevitablemente ciertos discursos críticos o incluso ofensivos para quienes ocupan cargos públicos o están íntimamente vinculados a la formulación de la política pública.  De ello se desprende que una ley que ataque el discurso que se considera crítico de la administración pública en la persona del individuo objeto de esa expresión afecta a la esencia misma y al contenido de la libertad de expresión” (CIDH. Informe sobre la Compatibilidad entre las Leyes de Desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. 1994).

[3] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 80

[4] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 79

[5] Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 22/11/2005. Série C, nº 135. par. 178

[6] “El Tribunal ha señalado que la “necesidad” y, por ende, la legalidad de las restricciones a la libertad de expresión fundadas en el artículo 13.2 de la Convención Americana, dependerá de que estén orientadas a satisfacer un interés público imperativo. Entre varias opciones para alcanzar ese objetivo, debe escogerse aquélla que restrinja en menor escala el derecho protegido. Dado este estándar, no es suficiente que se demuestre, por ejemplo, que la ley cumple un propósito útil u oportuno; para que sean compatibles con la Convención las restricciones deben justificarse según objetivos colectivos que, por su importancia, preponderen claramente sobre la necesidad social del pleno goce del derecho que el artículo 13 de la Convención garantiza y no limiten más de lo estrictamente necesario el derecho proclamado en dicho artículo. Es decir, la restricción debe ser proporcional al interés que la justifica y ajustarse estrechamente al logro de ese legítimo objetivo, interfiriendo en la menor medida posible en el efectivo ejercicio del derecho a la libertad de pensamiento y de expresión”. (Corte IDH. Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas. 2005. par. 85).

 

MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desacatando-um-controle-de-convencionalidade-rigoroso-01072020

Direito ao protesto

Direito ao protesto

Ele deve ser encarado não como moléstia à sociedade e seu funcionamento, mas como meio legítimo de manifestação

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

1. Por que o direito ao protesto importa?

Contra a Constituição de 1988, temos assistido a erosão da democracia, o descumprimento das promessas e dos direitos constitucionais. Cada vez mais pessoas têm ido às ruas para se manifestar contra esses retrocessos.

Mas como lidar com os protestos e os conflitos de direitos que eles suscitam?

Se o Direito e a nossa Constituição pretendem se fundar sob o princípio democrático e honrar as promessas constitucionais, devem então assegurar proteção àqueles que hoje saem às ruas, colocando seus corpos e saúde em risco.

Daí a afirmação de Roberto Gargarella de que o direito ao protesto aparece, assim, como o “primeiro direito” – o direito de exigir a recuperação dos demais direitos[1]. Os protestos, a ocupação de praças, parques, marchas em ruas e avenidas, são formas de se chamar a atenção sobre a gravidade do problema político, democrático, social e sanitário que vivemos[2].

Protestos são uma forma privilegiada de expressão. Apesar das manifestações públicas causarem quase sempre algum tipo de moléstia (sujeira nas ruas pela distribuição de panfletos, lentidão ao trânsito de veículos, etc.) elas devem ser toleradas em honra à liberdade de expressão. Os incômodos que eventualmente possam causar devem ser contornados pelas autoridades públicas que devem, por exemplo, organizar o trânsito, manter as ruas limpas.

Nesse sentido, também é certo que os delitos que algumas vezes se cometem nesses atos de protesto (como a eventual quebra de patrimônio público, por exemplo) devem ser reprovados. Os excessos devem ser contidos, os delitos combatidos. Mas eles não podem impedir a continuação das expressões públicas de cidadania. As manifestações podem e devem seguir.

Quando tantas e tantos se unem em um movimento comum contra o autoritarismo do Estado e a falta de concretização de diversos direitos fundamentais, os protestos exprimem uma desesperada necessidade de tornar visíveis situações extremas que, aparentemente, e de outro modo, não têm alcançado visibilidade pública ou sensibilizado governantes.

O fato de que um dado grupo tem outras possibilidades de se expressar (por meio de notas públicas ou petições online, por exemplo) é irrelevante para se avaliar juridicamente os movimentos de protesto e a tomada do espaço público que promovem.

Quem alega que a existência de manifestações diversas dos protestos (por meio de notas públicas ou petições online) tornaria os protestos ilegítimos, ignora as dificuldades (formais e materiais) que a maioria dos grupos que realizam protestos tem para se expressar.

Os métodos convencionais de petição podem, e em geral são, inacessíveis a muitos grupos de cidadãos. Aqueles que não controlam a televisão ou o rádio; os que não têm capacidade econômica para expressar suas ideias pelos jornais ou fazer circular panfletos podem ter um acesso muito limitado ao poder público. E ainda que em algum momento se consiga mobilizar esses meios e modos, os protestos podem se somar como mais uma forma substantiva para se chamar atenção e intervir no debate público.

Quem desconsidera a importância dos protestos sob o argumento de existência de outras formas de manifestação ignora essas dificuldades formais e materiais e ainda parece não respeitar o dissenso. Uma comunidade que assim age deixa de assegurar aos seus cidadão os direitos básicos de se exercer a crítica pública de um modo apropriado e qualificado. Por isso é preocupante que autoridades governamentais, sobretudo policiais, queiram sempre evitar ou por fim às manifestações.

2. Protesto e conflito entre direitos

Quando protestos ocupam praças, parques, ruas e avenidas é comum se falar de conflito entre direitos: de um lado o direito de os protestantes se manifestarem. De outro lado o direito dos cidadãos de circularem livremente pela cidade.

Diante disso, há quem defenda que o alcance dos direitos constitucionais se estabelece à luz de certos interesses coletivos como “o bem comum”; o “bem-estar geral”; o “interesse nacional”. Há ainda aqueles que costumam dizer que “não existem direitos ilimitados”, ou “o direito de cada um termina onde começa o do outro”.

No entanto, afirmações como essas têm muito pouco conteúdo informativo, e menos ainda prescritivo.

Postas dessa forma tão geral, não dizem nada. Não explicam o porquê de movimentos de protestos serem ilegítimos, equivocados no que demandam, ou estarem errados em sua forma. Além disso, diante dessas expressões, os direitos parecem não possuir uma força moral e normativa intrínseca e, assim, parecem sempre dependentes de valores externos a eles, como se seu fundamento e normatividade não fossem suficientes para o seu exercício.

Expressões como “nenhum direito é ilimitado”, ou “o direito de cada um termina onde começa o do outro”, “bem comum” ou “bem-estar geral”, nada dizem sobre como enfrentar o conflito de direitos no caso concreto. Reconhecer que “nenhum direito é ilimitado” ou que “se deve honrar o bem comum” significa pôr fim a uma manifestação? Ou significa que se deve preservar o conteúdo da denúncia feita sob forma de protesto? Onde exatamente estaria a conciliação entre os dois direitos?

Autoridades podem explorar a ambiguidade desses termos para impor decisões arbitrárias e simplesmente encerrar os protestos sem ter que dar maiores justificativas sobre qual direito deve prevalecer.

Além disso, a disputa pela definição do conteúdo dessas expressões tampouco oferece respostas. Ainda que houvesse um consenso sobre o sentido e o conteúdo de noções como “bem comum”, tal postura negaria a possibilidade razoável de estabelecer mudanças nas convicções e nos costumes tradicionais da comunidade.

Além de utilizar argumentos como os que foram vistos acima, muitas vezes as autoridades fundamentam as restrições aos protestos e aos direitos dos manifestantes em nome dos direitos dos demais. A partir de ideia de choque entre direitos, muitas vezes afirma-se que o direito dos manifestantes não pode se sobrepor ou impedir o exercício dos direitos dos demais.

Dessa forma, haveria que se limitar o direito ao protesto de alguns porque é necessário proteger, ao mesmo tempo, o direito de terceiros a transitar livremente, a caminhar por ruas limpas etc.

Entretanto, esse tipo de afirmação, a exemplo do que se alega quando se diz que “nenhum direito é absoluto”, é apenas o início de um raciocínio que deve ser detalhadamente desenvolvido. É preciso, pois, justificar porque se irá dar prioridade de um direito sobre outro.

Quando há uma situação de colisão entre direitos, é certo que um bem jurídico (tutelado pelo direito) será preterido em favor de outro no caso concreto. E, assim, é preciso justificar a prioridade de um direito sobre o outro, a defesa de um bem jurídico em detrimento do outro.

Diante do conflito concreto entre direitos, é preciso defender a preservação e sobreposição dos direitos ligados e mais próximos ao núcleo democrático da Constituição.

Ou seja, se há dezenas de direitos em jogo, como comumente acontece em situações de protestos, deve-se fazer o máximo esforço para preservar os direitos mais intimamente ligados ao núcleo duro da Constituição. E esse núcleo duro deve ser compreendido, em última análise, como as regras básicas do jogo democrático.

Nesse núcleo duro, direitos como os vinculados à liberdade de expressão ocupam então um lugar central. O próprio Supremo Tribunal Federal já tem entendimento consolidado de que a liberdade de expressão ocupa um lugar privilegiado no ordenamento jurídico[3] (nacional e internacional).

Nesse sentido, os direitos ligados ao núcleo democrático da Constituição e também concebidos como “trunfos”, na expressão de Dworkin, são pensados não como uma categoria dependente de outra (como o bem comum, por exemplo), mas como normas invioláveis e oponíveis contra qualquer sujeito, grupo e contra o próprio Estado.

3. Rota de saída: proteger, e não mitigar, o direito ao protesto

Diante das promessas da nossa Constituição de 1988 e dos reclamos que temos visto nos últimos dias, contra o autoritarismo e pela democracia, o direito ao protesto deve ser encarado não como moléstia à sociedade e seu funcionamento, mas como meio legítimo de manifestação.

Se a democracia é o melhor meio para se resolver as questões fundamentais do nosso Estado e da nossa comunidade sem desonrar o compromisso inicial com o igual respeito e consideração por cada cidadão, então os protestos são não apenas meios legítimos, mas também privilegiados para se lembrar da exigência democrática e dos direitos que têm sido relegados nos dias atuais.

É preciso proteger, e não mitigar ou impedir, o direito ao protesto. Especialmente quando ele traz em si o reclamo por democracia e igualdade.

[1] GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta – el primer derecho. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005. p. 19.

[2] Vale ressaltar que são as ruas, os parques e as praças os lugares especialmente privilegiados para a expressão pública da cidadania. Os casos “Hague X Cio”, 307 US 496 (1939) e “Schneider X State”308 US 147 (1939) julgados pela Suprema Corte norte-americana se tornaram paradigmáticos ao reconhecerem as ruas, praças e parques como espaços destinados ao uso público para que as pessoas possam nesses lugares sempre se reunir, discutir e protestar sobre questões públicas.

STF. Plenário. ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, julgado em 30/04/2009.  STF. 1ª Turma. Rcl 22328/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/3/2018. O Min. Roberto Barroso cita 5 motivos principais pelos quais a liberdade de expressão ocupa um lugar privilegiado tanto no ordenamento jurídico interno como nos documentos internacionais. São eles: i) a liberdade de expressão desempenha uma função essencial para a democracia, ao assegurar um livre fluxo de informações e a formação de um debate público robusto e irrestrito, condições essenciais para a tomada de decisões da coletividade e para o autogoverno democrático; ii) a proteção da liberdade de expressão está relacionada com a própria dignidade humana, ao permitir que indivíduos possam exprimir de forma desinibida suas ideias, preferências e visões de mundo, bem como terem acesso às dos demais indivíduos, fatores essenciais ao desenvolvimento da personalidade, à autonomia e à realização existencial; iii) este direito está diretamente ligado à busca da verdade. Isso porque as ideias só possam ser consideradas ruins ou incorretas após o confronto com outras ideias; iv) a liberdade de expressão possui uma função instrumental indispensável ao gozo de outros direitos fundamentais, como o de participar do debate público, o de reunir-se, de associar-se, e o de exercer direitos políticos, dentre outros; v) a liberdade de expressão é garantia essencial para a preservação da cultura e da história da sociedade, por se tratar de condição para a criação e o avanço do conhecimento e para a formação e preservação do patrimônio cultural de uma nação. Vide ainda a decisão no âmbito da Rcl. 32.041/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/direito-ao-protesto-08062020

Plenário virtual ampliado: o que temos e vemos até agora?

Plenário virtual ampliado: o que temos e vemos até agora?

Análise de quatro aspectos que chamam a atenção para a dinâmica decisória do Supremo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO ESPÍNOLA ARAÚJO

 

1 – O Plenário Virtual e sua expansão

A expansão do Plenário Virtual no Supremo Tribunal Federal, impulsionado com a pandemia do coronavírus, vem recebendo atenção dos estudiosos e interessados do direito constitucional por três razões principais.

Primeiro, porque diz respeito ao exercício da entrega da jurisdição, que deve ser sempre realizada de forma pública e fundamentada.

Segundo, porque cuida do exercício da jurisdição constitucional, que, além de exigir publicidade e fundamentação, também reclama maior ônus argumentativo em razão da separação dos poderes e, consequentemente e da presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos.

Terceiro, porque o modo como o plenário virtual vem sendo utilizado tem carregado consigo o que Juliana Cesario Alvim chamou de opacidade, na qual não conseguimos distinguir o que é obstáculo ou estratégia.

Em junho do ano passado, quando acrescido ao Regimento Interno do STF o art. 21-B, foi chamada a atenção para a necessidade de o PV ser aperfeiçoado para permitir a deliberação entre os ministros, e não só a votação de casos, ações e recursos. Do contrário, a possibilidade de julgar em ambiente eletrônico a constitucionalidade de leis, decretos e atos normativos federais e estaduais servirá apenas para reforçar o tribunal de solistas que tem caracterizado o STF.

Em março deste ano, com a alteração do art. 21-B do Regimento Interno do STF pela emenda n. 53/2020, o Supremo passou a poder julgar em ambiente eletrônico, “a critério do relator, “todos os processos de competência do tribunal”. Essa ampliação do Plenário Virtual, por mais inevitável e bem vinda que seja, continua a exigir que o STF faça bom uso dessa ferramenta, não só para julgar com celeridade alta quantidade de processos, mas que permita também um incremento deliberativo do PV.

2 – O Plenário Virtual no mês de abril: levantamento

Fizemos um levantamento do uso do Plenário Virtual no mês de abril, quando o Supremo julgou ou começou a julgar 80 processos de controle concentrado de constitucionalidade ao longo de cinco sessões do PV:

04 processos de 27/03 a 02/04;

29 processos de 03/04 a 14/04;

23 processos de 10/04 a 17/04,

13 processos de 17/04 a 24/04;

E, por fim, 11 processos de 24/04 a 30/04.

Da análise dos julgamentos do PV realizados nesse período, dados interessantes puderam ser extraídos em relação (i) aos tipos de ações, (ii) à concessão de liminar, (iii) à presença de amicus curiae, (iv) à inclusão em pauta anterior, (v) ao destaque do feito para julgamento físico, (vi) à votação dos Ministros e (vii) ao resultado do julgamento.

Da análise desses dados, destacamos quatro aspectos que chamam a atenção para a dinâmica decisória do Supremo: destaques, poder de agenda mitigado (mas ainda personalista), predominância do voto do relator e julgamentos por maioria.

Destaques

Primeiro, vale ressaltar não um dado, mas registrar a ausência de um: da forma como o Plenário Virtual está hoje implementado, não é possível fazer o levantamento de quais processos estavam submetidos ao PV, mas foram destacados para o Plenário físico antes do início da sessão de julgamento. Ou seja, se o processo está no PV, mas é destacado para o Plenário físico, ele simplesmente desaparece da pauta do PV. Trata-se de dado relevante, porque permite controlar as razões pelas quais destaques são feitos em um caso, mas não em outro. Daí a importância de se poder rastrear os processos que saíram do PV para o Plenário físico.

Do ponto de vista lógico do desenho do PV, é compreensível que pareça não fazer muito sentido que os processos destacados continuem a aparecer de alguma forma na relação do PV. Mas essa lógica é apenas aparente. Isso porque a retirada do processo do PV para o Plenário físico sem nenhuma indicação de registro ocasiona uma perda evidente em termos de accountability do exercício, pelos ministros, da faculdade de destacar processos para julgamento físico.

Diante dessa “falha” (que só poderia mesmo ser detectada pelo uso da ferramenta), parece desejável e possível formular uma solução que permita à sociedade saber quais processos os ministros entenderam como merecedores de julgamento presencial no Plenário físico.

Ainda em relação aos destaques, os dados mostram que, uma vez iniciado o julgamento no PV, as chances de um processo ser destacado são ínfimas: todos os pedidos de destaque feitos por advogados ou foram indeferidos (26 pedidos indeferidos) ou sequer foram apreciados (11 pedidos sem apreciação), resultando na direta conclusão do julgamento no ambiente virtual. A não apreciação dos pedidos de destaque em praticamente 2/3 dos casos chama atenção. Se a Resolução permite que se requeira a retirada do PV, certamente não é previsão pro forma e nem supérflua. Assim como o pedido deve ser justificado e fundamentado pela parte/proponente, também é de se exigir uma resposta do julgador para o não atendimento do pedido feito.

Ressalta-se que apenas um processo foi destacado pelo ministro Luiz Fux do PV para o Plenário físico após o começo do julgamento (a ADI 5.441).

Poder de agenda mitigado (mas ainda personalista)

O segundo aspecto é o de que a inclusão imediata no PV de processos que o Supremo decidira apreciar no Plenário físico não ocorreu em casos isolados, mas sim em larga escala, confirmando assim o que já havia sido apontado quando analisada a emenda n. 53. Dos 80 processos incluídos no PV em abril, 63 já haviam sido incluídos anteriormente em pauta do Plenário físico.

Desses 63, 04 processos começaram a ser julgados no Plenário físico antes da mudança regimental, mas foram suspensos por pedido de vista. Para a apresentação do voto vista e a retomada do julgamento, estes processos já foram incluídos e acabaram sendo julgados no Plenário virtual (ADI 2.914, ADPF 369, ADI 3.961 e ADC 48).

A inclusão dos processos no PV é decisão que cabe ao ministro relator, iniciando o julgamento, ou ao Ministro vistor, retomando o julgamento após pedido de vista. Assim, há a atenuação do, há muito questionado, poder de agenda da Presidência do STF, mas não a construção da, há muito necessária, agenda do Tribunal. Assim, o PV mitiga o poder de agenda do Presidente, mas ainda evidencia o problema da pauta continuar sendo uma decisão personalista.

Predominância do voto do ministro relator

O terceiro aspecto que merece destaque é a prevalência do voto do ministro relator. Como dito, foram incluídos no PV 80 processos, com 57 julgados. Em praticamente todos, prevaleceu o voto do ministro relator, fosse para julgar procedente (33 processos), improcedente (21 processos), prejudicada (01 processo) ou inadmissível (01 processo). A relatoria foi vencida em apenas 01 processo, na ADI 5.179, em que a Ministra Carmén Lúcia restou vencida ao lado de outros 04 Ministros, prevalecendo o voto do ministro Luiz Fux pela parcial procedência da referida ADI.

Julgamentos por maioria

O quarto e último aspecto diz respeito ao binômio maioria e minoria. Dos 57 processos julgados, 26 foram por unanimidade e 31 por maioria. Dos 31 processos decididos com divergência, em 13 houve apenas um único ministro vencido e, em 10, apenas 02 ministros vencidos. São muito poucos os casos de minorias robustas. Placares de 6×5 ou de 7×4 ocorreram apenas 04 vezes (ADI’s 3.961, 5.179, 4.553 e 6.066). No mais das vezes, as decisões são tomadas por ampla maioria.

3 – Rota de saída: maio e um novo horizonte?

Esses quatro aspectos dos dados levantados sobre os julgamentos realizados no PV no mês de abril, que dizem respeito às 05 primeiras sessões sob a vigência da nova redação do art. 21-B do regimento interno, apontam que, como esperado, o PV parece vir a reforçar a tendência de um tribunal de solistas (e com um uso opaco): processos incluídos em pauta por decisão de um só ministro, decididos pelo voto do relator por ampla maioria.

A mudança regimental e o uso do PV está sob escrutínio. Algumas adaptações, muito bem-vindas, já foram feitas. Desde maio, os ministros já podem disponibilizar relatórios e votos durante a sessão e os advogados podem encaminhar, também ao longo da sessão, memoriais esclarecendo eventual divergência. Cumpre, agora, verificar se tais mudanças irão mesmo impactar a dinâmica individualista do Plenário Virtual que já se apresentou ao longo destas 05 primeiras sessões sob o novo art. 21-B.

A ver.

 

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/plenario-virtual-ampliado-o-que-temos-e-vemos-ate-agora-22052020