Diálogos institucionais ou mordaça legislativa? Riscos do silenciamento do STF

 

Diálogos institucionais ou mordaça legislativa? Riscos do silenciamento do STF

Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza, Glauco Salomão Leite e Luiz Guilherme Arcaro Conci

 

 

Como é de amplo conhecimento, alguns parlamentares pretendem apresentar proposta de emenda à Constituição (PEC) que daria ao Congresso o poder de sustar decisões não unânimes do STF. Para tanto, seriam necessários três quintos dos membros da Câmara e do Senado em dois turnos de votação. De início, constata-se um curioso paradoxo: sob o argumento de ausência de unanimidade da decisão do Tribunal, busca-se cassá-la por uma decisão parlamentar igualmente sem unanimidade. Para além desse aspecto quantitativo, o que parece motivar a iniciativa parlamentar, apelidada de “PEC do Equilíbrio entre os Poderes”, é o combate ao ativismo judicial, categoria tão utilizada e pouco esclarecida.

A tentativa de sujeitar decisões do STF à apreciação das instâncias políticas não é nova, podendo ser encontrado algo semelhante na experiência autoritária do governo Vargas sob a Carta de 1937. Esta previa que, se o presidente da República considerasse lei declarada inconstitucional como necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderia submetê-la novamente ao exame do Parlamento. Caso o Poder Legislativo confirmasse a validade da lei por dois terços de votos em cada uma das casas, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal.[1] Com a dissolução do Congresso por ordem de Vargas, o governo pôde unilateralmente anular decisões do STF, o que era feito via decretos-lei, atos com força de lei que, de excepcional utilização, segundo a Constituição, acabaram por se tornar a via usual de regulação normativa daquele período, tendo em vista a ausência de funcionamento do Congresso. A tendência de o excepcional se tornar usual tem raízes em nossa história constitucional.

Já sob a vigência da CF/88, e em um contexto em que alguns segmentos políticos questionavam a hipertrofia do STF, foi apresentada a PEC nº 33 que buscava alterar o quórum para as declarações de inconstitucionalidade (de maioria absoluta para quatro quintos dos membros do STF), condicionava o efeito vinculante de súmulas à aprovação pelo Poder Legislativo e submetia ao Congresso a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas constitucionais. Objetivava-se, com isso, devolver ao Parlamento o poder de decidir sobre temas socialmente relevantes, o que, na visão dos idealizadores da PEC, haviam se deslocados indevidamente para a Suprema Corte, estimulando, dessa maneira, uma espécie de diálogo institucional entre os poderes.

Ao menos quanto à forma, observam-se as semelhanças com a atual proposta que circula nos bastidores da política a pretexto de arrefecer práticas juristocráticas do STF e restaurar o equilíbrio entre os poderes. Entretanto, certos aspectos merecem uma atenção particular, sobretudo quanto à substância e ao contexto em que tal proposta aparece, levando-se em conta os valores que permeiam o constitucionalismo democrático contemporâneo. De fato, o paradigma da Democracia Constitucional projeta no plano dos desenhos constitucionais a delicada combinação entre instituições representativas e majoritárias, responsáveis por decisões políticas de largo alcance, e respeito aos direitos fundamentais, enquanto trunfos contra essas mesmas maiorias, cabendo à jurisdição constitucional o desempenho de um papel contramajoritário. Assim, o Parlamento deixa de ser o único espaço público de mediação de conflitos sociais, ao passo que Cortes Supremas e Tribunas Constitucionais converteram-se em uma nova arena deliberativa nas democracias. O contramajoritarismo serve, portanto, ao fomento de relações institucionais mais equilibradas, evitando que a política atropele o(s) direito(s).

Sob esse ângulo, a PEC em comento não estimula, ao contrário do que se afirma, um mais adequado equilíbrio entre os poderes, muito menos a prática de diálogos institucionais entre juízes e legisladores. Quando compreendidos adequadamente no âmbito do Estado Democrático de Direito, esses diálogos pressupõem a atuação livre e independente das instituições envolvidas e sem pretensões hegemônicas. Ao permitir cassações de acórdãos não unânimes do Tribunal, o que se instaura não é um diálogo, senão um monólogo legislativo, convertendo o Congresso em permanente instância revisora do STF, isto é, em um Tribunal Congressual. Como resultado, tem-se o silenciamento da jurisdição constitucional, o que agride as noções mais elementares que estão na base da Democracia Constitucional e de seus elementos estruturantes, como o sistema de freios e contrapesos e a proteção de direitos fundamentais, especialmente de minorias e grupos vulneráveis.

Por outro lado, a engenharia constitucional pensada pelo constituinte fortaleceu o pluralismo político, não só ao defini-lo como princípio fundamental, mas ao estabelecer um sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados que favorece a presença e existência de partidos minoritários, conferindo-lhes, inclusive, a legitimidade para propor ações abstratas para controle de constitucionalidade no STF, tendo sido os principais atores na judicialização de questões políticas. Esta foi uma decisão de nosso Constituinte de valorizar a participação das minorias nas diferentes esferas de poder e como forma explícita de contenção das decisões majoritárias. Prever a possibilidade de controle majoritário do órgão contramajoritário seria subverter o núcleo e identidade da Constituição.

Pode-se afirmar, ainda, que o desenho constitucional e nossa casa de máquinas pensada pelo Constituinte já previa o protagonismo do STF, especialmente para um sistema de checks and balances que mantinha um presidencialismo com vasta concentração de poderes próprios de nossa história autoritária. Pensar em fragilizar as competências do STF sem rever as competências dos demais poderes vai justamente desequilibrar as relações entre os poderes, já que inviabiliza o papel do STF de guardião da Constituição.

Além disso, não existe uma relação de causalidade entre o empobrecimento institucional do STF e a melhoria do Poder Legislativo. Na verdade, a criação de mecanismos que dificultem o controle de constitucionalidade das leis pode servir justamente para diminuir a accountability do Poder Legislativo, sabendo que suas decisões dificilmente serão revistas pelo STF ou, diante da elevada probabilidade de decisão não unânime da Corte, esta poderá ser suspensa justamente pela instância parlamentar fiscalizada. Em outros termos, o poder fiscalizado pretende reconfigurar, senão inviabilizar, a atuação da instituição fiscalizadora. Seria o mesmo que autorizar o Presidente da República a editar decreto permitindo-lhe sustar os atos do Congresso que sustassem os atos presidenciais. O que se vislumbra, com isso, é que haverá um maior estímulo à tomada de decisões parlamentares sem observância das limitações constitucionais.  Logo, é falacioso supor que o Poder Legislativo irá superar seus problemas funcionais ou que haverá um fortalecimento da democracia, desde que se debilite o STF.  Instituições representativas são o espaço por excelência da vocalização das maiorias eventuais. A menos que se reduza a concepção de povo à ideia de um povo-número ou de povo-eleitor, próprio de uma democracia meramente majoritária e eleitoral, a Democracia Constitucional demanda uma versão pluralista de povo e estrutura instituições independentes voltadas à proteção daqueles grupos não compreendidos nas maiorias e que são igualmente titulares de direitos fundamentais e direitos à proteção estatal. Esse é próprio ethos da jurisdição constitucional.

Além do mais, os grupos que hoje endossam essa reforma constitucional parecem não perceber a importância da jurisdição constitucional para a própria estabilidade política e para que pudessem se tornar as maiorias atuais ou apostam justamente na instabilidade e na crise institucional de nossa democracia. É justamente em razão da preservação das regras do jogo democrático, outra das principais tarefas incumbidas à jurisdição constitucional, que se torna possível a alternância de poder sem rupturas ou perseguições arbitrárias, isto é, as maiorias de hoje foram minorias no passado e poderão ser minorias no futuro. Mesmo assim, merecerão proteção a seus direitos e garantias, não podendo ser atropeladas pela maioria de plantão. Com um Tribunal fragilizado e subordinado à vontade da maioria, as minorias de amanhã terão dificuldades em conter os excessos dos grupos que estiverem no poder.

E com base em qual parâmetro se pretende reverter decisões do STF? A resposta apresentada é o nebuloso conceito de ativismo judicial. Diante da elasticidade e ambiguidade que essa categoria pode assumir no jogo político, logo se percebe que ela será empregada retoricamente todas as vezes em que um grupo político se sentir contrariado pela decisão do Tribunal. Ativismo judicial, portanto, estará nos olhos de quem vê: se a decisão contrariar meus interesses, será ativismo judicial; se for a meu favor, a decisão estará correta.

Convém destacar que, mesmo nas hipóteses em que uma Corte adota postura mais expansiva em seu poder decisório, isto não impede a rediscussão da controvérsia constitucional na esfera legislativa. Não existe obstáculo ao Parlamento para novo enfrentamento do tema. Ativismo judicial, portanto, não é incompatível com diálogos institucionais[2]. Aliás, sob certas circunstâncias, pode ser necessário precisamente para afastar óbices políticos nos canais representativos, abrindo-lhes o espaço para novas deliberações.  Existe, contudo, uma gritante diferença entre reagir a uma interpretação formulada pela Corte diante de tema de elevada complexidade ou que envolva um desacordo razoável na sociedade – impondo-se, por óbvio, o ônus deliberativo-argumentativo ao próprio Parlamento – e cassar as decisões não-unânimes sob o fluido e manipulável argumento de ativismo judicial, culminando no gradual esvaziamento da jurisdição constitucional.

Importa, ainda, observar esse movimento parlamentar em um cenário mais amplo em que se tem verificado nos últimos anos uma série de ataques ao STF, numa evidente tentativa de desqualificá-lo e deslegitimá-lo perante a opinião pública. Nesse novo cenário marcado por um processo de erosão das democracias constitucionais pelo mundo afora, ao serem vistas como um possível obstáculo à execução de uma agenda autocrática e iliberal, Cortes Constitucionais têm sido alvo preferencial de medidas arbitrárias. Não é à toa que o Brasil se encontra em 4º lugar na lista dos países em processo de autocratização, sendo superado apenas pela Turquia, Hungria e Polônia[3]. Não se trata de um colapso total dos Tribunais, como costuma ocorrer em típicos regimes autoritários, mas de mudanças pontuais e sutis que fazem com que sua independência orgânico-funcional seja fragilizada até serem, finalmente, capturados por grupos políticos. Isso não apenas tem enfraquecido a função contramajoritária dos Tribunais Constitucionais, diminuindo, consequentemente, a proteção de direitos fundamentais, como, em alguns casos, tem-se remodelado o seu papel no jogo de poder: no lugar da função contramajoritária, aos Tribunais Constitucionais é atribuída a relevante função política de chancelar medidas política arbitrárias, agregando-lhes o falso verniz da constitucionalidade.  

O risco é não perceber o estilo próprio das agressões. A onda de intimidação contra o STF deve ser analisada sob a perspectiva de um modus operandi que se utiliza de ferramentas muitas vezes previstas na própria ordem constitucional, mas que são desvirtuadas para alcançar uma finalidade ilegítima e antidemocrática. Em suma, não se pretende devolver, na linha de um constitucionalismo popular, ao Parlamento a possibilidade de deliberar sobre temas importantes — prerrogativa que jamais esteve sob ameaça —, e sim de introduzir um populismo constitucional refratário ao pluralismo, à proteção de minorias e ao sistema de freios e contrapesos.

 

[1] Art. 96, parágrafo único, CF/1937.

[2] É o que temos defendido em: LEITE, Glauco Salomão. Juristocracia e Constitucionalismo Democrático: do ativismo judicial ao diálogo constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

[3] V-Dem Institute: “Democracy Report 2021. Autocratization Turns Viral”. Disponível em: https://www.v-dem.net/media/filer_public/74/8c/748c68ad-f224-4cd7-87f9-8794add5c60f/dr_2021_updated.pdf

 

Originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-20/opiniao-dialogos-institucionais-ou-mordaca-legislativa

Neste 8 de março, por que celebrar o constitucionalismo feminista?

 

Neste 8 de março, por que celebrar o constitucionalismo feminista?

Direito reproduz desigualdades de gênero, mas pode também ser um instrumento a favor da emancipação

Por Christine Peter, Estefânia Barboza, Marina Bonatto e Melina Fachin

 

O universo feminino é plural, complexo e diverso. O constitucionalismo feminista não pretende reduzir todas as desigualdades e multiplicidades numa única lente, mas, independente destes recortes diversos, há um consenso de que a carga para as mulheres é mais pesada.

As mulheres vivem os reflexos da sociedade patriarcal que habitamos. O direito é um espelho desta sociedade e, portanto, reproduz estereótipos e desigualdades de gênero. Mas o mesmo direito que oprime pode também ser um instrumento a favor da emancipação. Por isso, o constitucionalismo feminista aposta nas potentes ferramentas do constitucionalismo para o resgate de sua proposta (ou melhor dizer promessa?) de igualdade.

E as razões deste reconhecimento são justamente as justificativas que nos levam a ter que celebrar o constitucionalismo feminista neste dia de luta das mulheres, buscando repensar o direito a partir de uma perspectiva de gênero, quer seja no momento de sua elaboração, questionando a participação das mulheres no Legislativo e o impacto que as leis causam sobre as mulheres, quer seja compensando a desproporcionalidade de leis injustas no momento de sua interpretação e aplicação pelos tribunais.

Se concorda com a assertiva acima, talvez nem precisasse ler o presente texto até o final, mas convidamos à leitura para que possamos compartilhar um pouco das pautas que movem o constitucionalismo feminista. O presente texto se dirige, especialmente, para aqueles (isso, no masculino!) que ainda têm dúvidas sobre as desigualdades de gênero que vivemos. Deste modo, cabe destacar algumas razões, em rol não exauriente, do porquê precisamos celebrar o constitucionalismo feminista neste dia 8 de março.

A divisão sexual do trabalho é uma das fontes de violência contra as mulheres porque demonstra as relações de dominação em razão de gênero. Com base nela, há funções tidas como tipicamente femininas, remuneradas ou não, especialmente relacionadas aos afazeres domésticos (por vezes sequer percebidos socialmente como trabalho) e às atribuições voltadas ao cuidado, especialmente com crianças e idosos. Esta ótica inferioriza a mulher, pois, com base nela, cabe a mulher sempre ser em relação ao outro, numa posição de servir, devendo à família e filhos ou aos outros.

Desafio inicial é reconhecer isto como trabalho: cozinhar, educar, cuidar, limpar – trabalhos não pagos e invisíveis, extremamente extenuantes, travestidos de mera atividade de cuidado e de afeto que fomos convencidas se tratar de uma incumbência natural da mulher.

Daí decorrem efeitos nefastos tanto na esfera pública quanto na esfera privada – e é imprescindível percebermos estes dois campos como interligados. Na arena pública, mesmo tendo ingressado no mercado de trabalho, e em muitos casos sendo mais qualificadas, as mulheres continuam a receber menos pelo mesmo trabalho nas mesmas funções. Outra consequência disto é que as mulheres são a maioria da força de trabalho no mercado informal; o que em momentos econômicos recessivos como a pandemia aguçou ainda mais as desigualdades. Tais desigualdades acabam por impactar também nas estatísticas relacionadas à Previdência Social: mulheres recebem aposentadorias menores e um grande percentual só conseguem se aposentar por idade no RGPS, uma vez que as incumbências de cuidados com os filhos as retiram do mercado de trabalho, impactando em menor tempo de contribuição.

Na arena privada, o ingresso no mercado de trabalho não implicou em distribuição equânime dos afazeres domésticos; as mulheres se dedicam mais aos trabalhos domésticos do que os homens e, por vezes, exercem dupla ou tripla jornada de trabalho, para além da carga mental majorada. Na divisão sexual do trabalho, as múltiplas jornadas ainda pendem sobre os ombros femininos.

A perversidade aqui se acentua pela questão da dependência econômica: a distribuição desigual de tarefas domésticas faz com que as mulheres sejam sobrecarregadas, mas ainda assim permaneçam, em regra, dependentes economicamente de homens.

Esta dependência muitas vezes é em si mesma uma fonte de violência ou ainda justificadora de muitas mulheres se submeterem a relações agressivas. A endemia da violência doméstica é dado significativo da violação dos direitos das mulheres. Nos momentos de precariedade econômica e inabilidade social, a violência de gênero no ambiente doméstico ganha contornos ainda mais dramáticos. A convivência forçada com agressores, por um lado, e a dificuldade de acessar os serviços e muitas vezes demora ou precariedade de reposta oficial, por outro, impulsionam o aumento da violência, em especial, na sua face mais nefasta que é a violência física e sexual.

Por fim, para aqueles que não se convenceram, o argumento definitivo: não somos donas dos nossos próprios corpos. É inconcebível que ainda perpetuemos juridicamente a ausência de autonomia sobre nossos próprios corpos e de decidir sobre maternidade, ou não. O tema da autonomia sobre o corpo precisa de debates racionais no espaço público, para além das disputas religiosas, e que equiparem às mulheres em sua igual liberdade, aos homens.

Isso tudo nos demonstra como a sociedade e o direito, a partir da divisão sexual do trabalho, e da artificial dicotomia público e privado, normalizam e legitimam a perpetuação deste sistema patriarcal.

 

CHRISTINE PETER – Doutora em direito, Estado e Constituição pela UnB (2013), mestra em direito e Estado pela UnB (2001) e graduada em direito pela UnB. Ex-assessora da Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Procurador-Geral da República (PGR). Atualmente é professora associada do mestrado e doutorado em direito das relações internacionais do Centro Universitário de Brasília (UniCeub), líder de pesquisa do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC-UniCeub), pesquisadora do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (ICPD-UniCeub), membro efetivo da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional e assessora do ministro do STF Edson Fachin
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
MARINA BONATTO – Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição da UFPR. Advogada.
MELINA GIRARDI FACHIN – Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH) e do Centro de Estudos da Constituição (CCONS), ambos da UFPR

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/neste-8-de-marco-por-que-celebrar-constitucionalismo-feminista-08032022

Há fundamento constitucional para o banimento do Telegram?

 

Há fundamento constitucional para o banimento do Telegram?

A proibição do Telegram se justifica como um ato extremo para resguardar a integridade do processo eleitoral

Por Estefânia Barboza e Gustavo Buss

 

Os últimos anos forneceram exemplos concretos de como o discurso político ocupou novos espaços na arena digital. De um lado, a internet permitiu às grandes empresas estabelecerem suas plataformas de mídia social. De outro, essas plataformas permitiram aos novos canais independentes operarem com substrato apenas em suas vontades particulares. Dentro de suas “bolhas”, esses grupos encontram território novo e descontrolado de onde podem disseminar informações manipuladas. Daí porque a revolução digital representou uma grave ameaça à democracia constitucional; isto é, ao criar uma arena onde o poder político pode maximizar sua autoridade com pouca ou nenhuma responsabilidade.

À medida que a comunidade internacional tomou conhecimento do problema e de suas implicações, um termo específico ganhou amplo destaque: “fake news” (que se traduz por notícias falsas). No entanto, apesar de seus méritos em destacar a questão da rotulação de mentiras como notícias, a imprecisão do conceito rapidamente revelou um obstáculo. Qualquer oponente que se visse em desacordo com uma determinada história veiculada em noticiários poderia confortavelmente gritar “fake news” para desacreditar de modo inerente tais informações. Assim, “fake news” tornou-se sinônimo de “toda história tem dois lados”.

Uma definição mais apropriada pode ser avançada através do conceito de desinformação. Em primeiro lugar, ele revela melhor os limites do seu objeto, compreendendo qualquer informação falsa, manipulada ou enganosa. Além disso, ele está associado a uma estratégia de propaganda política que se beneficia da arena digital descontrolada para desafiar o Estado de Direito, a democracia e os direitos fundamentais. É de suma importância compreender que a disseminação da desinformação por meio de plataformas digitais não é meramente acidental, mas um ato premeditado. Pela mesma razão, ela também exige uma resposta constitucional concreta.

No Brasil, a ameaça de propagação da desinformação como estratégia de propaganda se intensificou com a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Durante sua campanha, nos dias críticos que antecederam as eleições, grupos de WhatsApp viram um aumento abrupto de mensagens falsas e enganosas promovendo Bolsonaro e denegrindo seus oponentes. Com isso, a Justiça Eleitoral intensificou seus esforços de combate à desinformação. Para as eleições municipais de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assinou acordos de parceria com 48 instituições públicas e privadas, incluindo grandes plataformas de mídia social, para aumentar a moderação de conteúdo e limitar propagandas falsas ou enganosas.

O esforço dos atores judiciais para minar a rede de Bolsonaro não foi recebido de modo passivo. Ao contrário, o presidente tentou responder às restrições impostas pelas grandes plataformas a si e aos seus aliados. Tanto assim que ele editou, em 2021, uma medida provisória que dificultava a remoção de conteúdos que violassem os padrões de comunidade das plataformas digitais, que foi posteriormente anulada pelo Senado. O cenário descrito tornou-se ainda mais agravante à medida que a nova retórica dos ataques passou a visar diretamente a Justiça Eleitoral. Dessa forma, às vésperas de uma nova eleição presidencial em 2022 com Bolsonaro atrás nas pesquisas, o novo inimigo mudou para a própria eleição democrática e sua rede protetiva.

Apesar do esforço significativo das principais plataformas para implementar novas medidas de moderação de conteúdo, a ameaça é flagrante. Ela se intensifica por existirem atores que se recusam a fortalecer o controle sobre conteúdos compartilhados na rede. No contexto brasileiro, o Telegram surgiu como o novo reduto para os apoiadores de Bolsonaro. Além disso, a falta de mecanismos rígidos de governança tornou sua moderação de conteúdo inconsistente e pouco transparente. Nesse contexto, os usuários passaram a se sentir à vontade dentro da plataforma para compartilhar qualquer coisa, sabendo que não podem ser responsabilizados se o Telegram continuar a não cooperar com as autoridades nacionais. Ao mesmo tempo, isso criou um nicho de mercado para a plataforma, que se anuncia como a única mídia social livre de controle, aumentando seu apelo dentro da comunidade extremista da qual não deseja se afastar.

Uma nova controvérsia surgiu recentemente quando Luís Roberto Barroso, na posição de presidente do TSE, ameaçou banir o Telegram do país se ele se recusar a cooperar com as autoridades eleitorais. É uma postura firme da sua parte, mas não se trata de um exemplo isolado. O governo alemão também vem pressionando a plataforma para remover conteúdos extremistas e implementar uma regulação mais rígida de conteúdo, chegando a considerar a proibição do aplicativo de mensagens criptografadas. Portanto, a pergunta é: existem fundamentos constitucionais para o banimento do Telegram?

A resposta deve começar com uma necessária reavaliação da soberania constitucional. Em um mundo pré-digitalizado, o elemento principal para afirmação da autoridade do Estado emanava de suas fronteiras territoriais. Dessa forma, o ato de governar significava exercer o poder de regulação social dentro de tais fronteiras. No entanto, a internet exigiu uma redefinição dessa soberania, conceito que já vinha sendo desafiado pela globalização. A partir de uma perspectiva territorial clássica, é impossível afirmar onde as plataformas digitais começam e onde terminam; elas estão em todos os lugares e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Consequentemente, governar sobre o território digital tornou o poder público imponente, já que o setor privado passou a concentrar o poder em suas mãos, principalmente porque ele se impõe como único codificador das arenas artificiais que cria.

Para as autoridades preocupadas com a obediência constitucional, as demais possibilidades limitam-se a dois eixos de regulação: (i) o de controle sobre as pessoas que utilizam a plataforma; e (ii) o de controle sobre os atores que integram sua estrutura hierárquica de domínio. Dentro do primeiro, apesar dos esforços para criminalizar quaisquer condutas desviantes, a criptografia e a privacidade do Telegram impedem tentativas de identificação dos criminosos sem uma cooperação formal. Assim, a única alternativa viável é a regulação da plataforma em si, visando obrigá-la a cumprir as regras do jogo democrático.

Como ressaltado anteriormente, a soberania na era digital é desafiada pela falta de territorialidade estrita da internet. Ainda que uma empresa internacional geralmente detenha a plataforma, seu domínio digital pode estar abrigado em qualquer lugar do mundo. O Telegram, por exemplo, atua no Brasil sem qualquer representação legal. Nesse contexto, o exercício de governança torna-se um desafio diante da impossibilidade de fiscalização sobre uma arena digital tornada inacessível por seu detentor. Ademais, o controle sobre a plataforma se torna ainda mais inviabilizado quando não há um representante legal da plataforma no país que possa se adequar à legislação local e atender às decisões judiciais porventura proferidas.

Destarte, a proibição do Telegram se justifica como um ato extremo para resguardar a integridade do processo eleitoral. Se a liberdade não pode ser usada como desculpa para violar a lei, ela tampouco pode ser usada para salvaguardar uma plataforma desregulamentada na qual a lei está sendo ativamente violada. Quando o Telegram permite que os apoiadores de extrema-direita do presidente Bolsonaro divulguem desinformação propositalmente, ele se torna um ator eleitoral preeminente e passa a estar sujeito à supervisão dos órgãos de controle eleitorais. Além disso, como sua posição revela uma recusa à cooperação com o poder público, principalmente com a Justiça Eleitoral, torna-se indispensável uma resposta adequada. Caso contrário, uma omissão do TSE poderia colocar em risco a própria integridade constitucional e a continuidade democrática.

A desinformação proferida no Telegram por Bolsonaro e seus apoiadores verbaliza ideais de desobediência civil e desconfiança eleitoral. Se a Constituição exige estabilidade democrática, a resposta à ameaça digital da desinformação deve preceder seu objetivo final de desmantelamento democrático. Aceitar a recusa à cooperação clamada pela plataforma sem que se impeça concretamente a ameaça identificada é um reconhecimento inadmissível da incapacidade judicial de impor a ordem constitucional na arena digital. Portanto, a resposta do TSE revela a única alternativa disponível para a reafirmação da legislação eleitoral. Diante da posição intransigente do Telegram, a proibição do aplicativo durante o processo eleitoral revela-se não apenas justificada, mas sobretudo necessária.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/fundamento-banimento-telegram-27022022

Julgamento com perspectiva de gênero: a ADI 6138 e o STF

 

Julgamento com perspectiva de gênero: a ADI 6138 e o STF

Trecho da Lei Maria da Penha alvo de questionamento protege as mulheres mais vulnerabilizadas pela violência

Por Estefânia Barboza, André Demetrio e Clara Maria Roman Borges

ADI 6.138/DF, ajuizada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), entrou na pauta de julgamentos do STF, com previsão de ir ao plenário no próximo dia 16 de março. A ação busca declarar inconstitucional o artigo 12-C, incisos II, III, e parágrafo primeiro, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Tais dispositivos permitem à autoridade policial afastar o agressor quando comprovada a existência de risco iminente ou atual à integridade ou à vida da vítima. Nesse ponto, é obrigatória a comunicação ao juiz no prazo máximo de 24 horas, para mantimento ou revogação da medida aplicada.

A AMB sustenta que a atribuição de poder à autoridade policial para afastar o agressor, conforme dito anteriormente, institucionaliza o Estado policial, desrespeita a separação dos Poderes (art. 2º da CF), mitiga o devido processo legal (art. 5o, incisos XV e LIV da CF), vulnerabiliza o direito à inviolabilidade de domicílio (art. 5o, inciso XI da CF), e desrespeita a reserva de jurisdição (art. 2º da CF). Portanto, a AMB entende que este dispositivo é incompatível com o texto constitucional e deve ser declarado inconstitucional pela Suprema Corte.

Nesse contexto, informações não faltam para retratar a gravidade que é ser mulher no Brasil. Conforme dados do Atlas da Violência, 3.737 mulheres foram assassinadas em 2019, e segundo a Nota Técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um crescimento de 22,2% nos feminicídios entre 2019 e 2020. Além disso, verifica-se que no período pandêmico, existiu uma diminuição no número de medidas protetivas e de urgência, principalmente no Acre (-31,2%), no Rio de Janeiro (-28,7%) e no Pará (-8,2%).

Diante desse cenário, é sabido que o Estado brasileiro assumiu compromissos internacionais para a promoção da igualdade de gênero e para a criação de mecanismos que coíbam a violência doméstica e familiar contra mulheres. Citam-se, como exemplos, a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), das Leis 13.104/2015 e 14.188/2021, que estabeleceram as qualificadoras do homicídio e da lesão corporal, quando praticados em razão da condição do sexo feminino, e a tipificação da violência psicológica contra a mulher, bem como a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Voltamos então, ao problema inicial, que basicamente envolve o conflito entre a reserva de jurisdição e a integridade física, vida e dignidade da mulher. Veja-se, que, conforme a leitura minuciosa do dispositivo legal, trata-se de medida de exceção, estabelecendo-se requisitos para sua prática: i) comprovação de risco iminente ou atual à mulher; ii) decretada por autoridade policial somente quando o município não for sede de comarca; e iii) obrigatoriamente informar a autoridade judicial para decidir sobre as medidas instauradas no prazo máximo de 24 horas.

Pois bem, considerando os dados do CNJ, observa-se que as comarcas estão localizadas em apenas 48,5% dos municípios brasileiros, e que 90,3% da população reside nesses municípios-sedes da Justiça estadual. Por outro lado, verifica-se que esses números não são homogêneos, e demonstram a discrepância entre estados, por exemplo, Tocantins (71,7%), Paraíba (77,4%), Piauí (77,6%), Rio Grande do Norte (81,5%) e Roraima (82,4%). Consequentemente, esses elementos ilustram que considerável parte da população desses estados não conta com estruturas físicas do Judiciário, o que certamente dificulta o acesso à Justiça.

Tal diagnóstico nos permite trazer algumas indagações para o debate público: será que todos os municípios possuem uma estrutura razoável que possibilite à autoridade policial submeter de imediato a um juiz o pedido de medida protetiva de afastamento do lar para dar prosseguimento ao atendimento da mulher vítima de violência doméstica e familiar? Quantas vítimas residem em municípios com difícil acesso? Fato é, que considerando as realidades do Brasil, nem todo município brasileiro deve dispor de uma rede de atendimento para auxiliar essas demandas.

Essa discussão também denota a importância em observação do “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021”, fundamentado pelas Resoluções do 254 e 255, do CNJ. Esse documento busca responder de maneira equânime à aplicabilidade de direitos fundamentais, e é efeito de uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Barbosa de Souza e outros versus Brasil.

O protocolo é estruturado em três eixos: i) na primeira parte apresenta os conceitos fundamentais para se promover uma perspectiva de gênero; ii) na segunda fase, descreve procedimentos metodológicos para incluir uma lente de gênero no direito, e por fim, iii) identifica como o gênero permeia questões específicas na prática da justiça, como por exemplo, na Justiça estadual.

Sob o olhar desse protocolo, os poderes públicos devem adotar procedimentos que incidem perspectivas de gênero sob um olhar interseccional, tanto na produção, como na aplicação do direito. No caso em concreto, observa-se que o direito à vida e à integridade física e psíquica da mulher devem prevalecer sobre as supostas mitigações e violações levantadas na ADI.

Relembremos que, conforme leitura dos incisos II e II do artigo 12-C, tal medida excepcional somente é permitida quando o município não for sede de comarca, isto é, atingindo exclusivamente vítimas residentes em lugares longínquos, onde o Estado não se faz presente e os direitos fundamentais, principalmente das mulheres não brancas e pobres, costumam ser negligenciados.

Na mesma linha, o texto legal especifica que a medida de afastamento do lar decretada por autoridade policial deverá ser submetida ao crivo do juiz em 24 horas, para que seja verificado o seu cabimento e a necessidade de sua manutenção. Nesse caso, observa-se uma semelhança com a situação de flagrância de um crime, em que a autoridade policial tem o dever de agir e prontamente prender o agente para fazer cessar a prática delitiva e para preservar as provas que estão em seu poder, podendo inclusive adentrar o domicílio sem autorização do dono ou ordem judicial. Por outro lado, de acordo com o art. 310, do Código de Processo Penal, igualmente tem a obrigação de submeter no prazo de 24 horas o auto de prisão em flagrante ao juiz, que realizará uma audiência de custódia para decidir se relaxa a prisão por ilegalidade, decreta a prisão preventiva ou concede liberdade provisória.

Pode-se argumentar que a prisão em flagrante está expressamente autorizada no art. 5º, LXI, da CF, enquanto o afastamento do lar em casos de violência contra mulher não ganha literalidade no texto constitucional e por esse motivo tais institutos devem ser compreendidos de formas diversas. Entretanto, o direito à vida e à integridade física, que servem de fundamento para autorizar o imediato afastamento do agressor do lar, quando ele representa risco atual ou iminente à integridade da vítima, encontram-se expressamente  assegurados no texto constitucional. Inclusive esses direitos servem de fundamento para autorizar a legítima defesa, ou seja, para afastar a ilicitude da conduta da pessoa que se utiliza moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente a direito seu ou de outrem, conforme prevê o art. 25, do Código Penal.

Ressalte-se que o afastamento do lar decretado pela autoridade policial não tem natureza de medida cautelar, que visa a garantir o resultado do processo ou impedir que o agressor continue a praticar violência contra a vítima durante a instrução criminal, mas tem por objetivo fazer cessar o risco imediato de novas agressões, as quais podem naturalmente terminar na tragédia do feminicídio. Ademais, esse ato administrativo colocará o agressor à disposição do juiz para que decida fundamentadamente sobre a decretação ou não de uma medida protetiva de afastamento do lar, assim como argumenta Aury Lopes Jr. ao discorrer sobre a prisão em flagrante. Portanto, entende-se que o art. 12-C, da Lei Maria da Penha, não mitiga as garantias da reserva de jurisdição e do devido processo legal, uma vez que a medida de afastamento do lar será realizado de forma emergencial pela autoridade policial, mas em seguida será decidida pelo juiz e submetida ao contraditório, como ocorre nos casos de prisão em flagrante.

Além disso, é preciso ter claro que o art. 150, § 3º, II, do Código Penal, define que não haverá crime quando a qualquer hora do dia ou da noite se adentra o domicílio de alguém para impedir uma prática delituosa iminente ou que já se encontra em andamento. Isso significa que a autoridade policial, ao afastar do lar o agressor, não violará ou vulnerabilizará o domicílio, porque só executará essa drástica medida nos casos em que houver risco atual ou iminente à vida ou à integridade da vítima, isto é, quando houver risco atual ou iminente de um crime contra a mulher com quem o agente coabita, tal como autoriza a própria legislação penal.

Por fim, considerando a realidade de nosso país, a discrepância entre municípios, a obrigatoriedade constitucional de se proteger o direito à dignidade, à vida, à integridade da mulher, e que o dispositivo em discussão é extremamente limitador sobre quais casos é possível sua aplicabilidade, entendemos que é chegada a hora de julgar com perspectiva de gênero, e declarar constitucional o artigo 12-C, incisos II e III da Lei Maria da Penha, principalmente porque se destina a proteger as mulheres mais vulnerabilizadas pela violência na sociedade brasileira, aquelas que são pobres, não brancas e sobrevivem abandonadas pelo poder público nos municípios recônditos do Brasil.

A norma impugnada vai justamente de acordo com a obrigação constitucional (art. 226,  § 8º) do Estado brasileiro de coibir a violência no âmbito das relações de família e contra a mulher, buscam assegurar pilares fundamentais do Estado brasileiro, a igualdade, a liberdade, a dignidade e a integridade física e moral das mulheres.

Não há qualquer justificativa para que, em eventual ponderação entre direitos fundamentais ou entre estes e garantias fundamentais, possa se imaginar que a garantia da reserva de jurisdição ou que a inviolabilidade do domicílio possam se sobrepor à proteção da pessoa humana. Ao contrário, a reserva de jurisdição e a inviolabilidade do domicílio só existem porque são garantias à pessoa humana contra o abuso do Estado, não cabendo outra interpretação que possa subverter seu sentido.

 

ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
ANDRÉ DEMETRIO – Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Graduando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/julgamento-com-perspectiva-de-genero-adi-6138-stf-19022022?amp

Constitucionalismo Multinível: do global à megacidade

Constitucionalismo Multinível: do global à megacidade

Por Estefânia Barboza, Gustavo Buss e Lucas Henrique Muniz da Conceição

 

Historicamente, o período posterior às duas Guerras Mundiais representou um importante momento para o constitucionalismo, direcionado à transcendência das fronteiras nacionais que limitavam o desenho de Estado então prevalente. Em função dos resultados devastadores provocados pelo conflito generalizado de nações soberanas, foi necessária uma abertura a novos fóruns supranacionais de discussão. Nesse contexto, a globalização caminhou ao lado da densificação, em nível constitucional, dessa estrutura internacional cuja baliza principal era a de proteção aos direitos humanos inalienáveis e inerentes a todas as pessoas, independentemente de sua posição geográfica.

Se o problema colocado naquele momento histórico parecia centrado em considerações a respeito do equacionamento entre a soberania dos Estados unitários e a autoridade dos organismos internacionais emergentes, hoje o constitucionalismo se vê tomado por uma nova reflexão, de ordem interna. Em uma análise recente, as Nações Unidas apontam um relevantíssimo prospecto acerca do crescimento das megacidades (consideradas aquelas cidades com população superior a 10 milhões de habitantes).[1] O número de megacidades, que era de 10 em 1990, deve alcançar 43 em 2030. Ademais, o número de pessoas vivendo nesses espaços urbanos deve subir de 153 milhões, em 1990, para 752 milhões em 2030.

No entanto, não é apenas o crescimento populacional que conclama maior atenção do constitucionalismo. Em particular, é preciso reconhecer que essas grandes cidades abrigam a maior parte da população refugiada e da população deslocada dentro de cada jurisdição nacional. A questão da pobreza também se acentuou, na medida em que deixou de ser um problema atrelado às comunidades rurais, passando a emergir como uma das questões centrais na discussão acerca da urbanização.

O constitucionalismo sempre se colocou como interlocutor primário na organização do território, da população e da política, mas sempre mantendo rígida a unidade construída em torno do conceito de soberania nacional. O modelo federativo, que é adotado no Brasil, parece ser tensionado pela realidade emergente nas megacidades, que reclamam maior autonomia constitucional para enfrentamento dos inúmeros desafios que se colocam em âmbito local e cuja tutela pelo governo federal acaba sendo deficitária.

Em verdade, as megacidades revelam uma propensão à defesa de posições políticas mais progressistas que, muitas vezes, acabam se colocando contrárias aos interesses do governo central. Como há uma natural infusão de pessoas provenientes das mais distintas realidades, os espaços urbanos em grandes cidades podem favorecer posições de tolerância baseadas em um histórico de convívio plural. Entretanto, se essas cidades não ostentarem alguma margem de autonomia diferenciada, poderão perder a capacidade de gestão efetiva de suas populações.

Dessa forma, o presente artigo propõe uma reflexão sobre o significado do federalismo constitucional a partir da experiência proporcionada pelas megacidades, que emergem enquanto verdadeiros espaços de ressignificação constitucional da importância urbana. É preciso repensar o status ocupado pelas cidades na ordem constitucional, já que são formalmente integrantes do pacto federativo, ainda que usualmente esquecidas nas considerações e arranjos políticos. A partir da discussão proposta por Ran Hirschl,[2] se mostra relevante a densificação dos argumentos basilares para o reposicionamento do governo urbano municipal no desenho constitucional federativo.

 

O nacionalismo neoconservador

Como ponto de partida, é pertinente apontar a posição relevante ocupada pelo pensamento neoconservador na construção de um ideal de nação soberana que dialoga diretamente com as pretensões globalistas, de um lado, e pluralistas, de outro. Isso porque, da mesma forma como se construiu uma retórica de luta contra os fóruns internacionais, vistos como elemento de ameaça à autonomia nacional, o reconhecimento de maior autonomia constitucional às administrações municipais esbarra em semelhante oposição. Repensar o pacto federativo perpassa, assim, pela desconstrução do ideal de nação unitária em que se assenta o nacionalismo hoje conclamado pelas novas lideranças neoconservadoras.

Conforme enfatiza Hirschl, diversos países estão experienciando um número crescente de ataques contra atores que defendem valores cosmopolitas, supostamente contrários à verdadeira identidade, cultura e valores do país.[3] As novas lideranças neoconservadoras vocalizam uma retórica de “nós primeiro”, que privilegia o particularismo sobre o universalismo. Ainda pior, a prevalência do particularismo nacionalista se revela contrária à tutela dos direitos humanos, pois qualquer pretensão de proteção igualitária e homogênea de direitos acaba obstada por lideranças nacionais que lhe são contrárias.

Durante a presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, foi possível observar seu empenho na desconstrução de tratados internacionais e, inclusive, na retirada do país de alguns organismos internacionais importantes. No Brasil e inspirado por esse mesmo ideal, Jair Bolsonaro afirmou, em 18 de agosto de 2018, quando era candidato, que retiraria o Brasil da ONU se eleito, sob o argumento de que a instituição não teria serventia e seria uma reunião de comunistas.[4] Ainda que não tenham se concretizado parte das ameaças, o discurso contrário aos organismos internacionais é perigoso, justamente porque retira a aparência de legitimidade de órgãos protetivos que seriam capazes de emitir decisões contrárias àquelas do presidente.

Hirschl e Shachar denominam esse novo movimento global de neossecessionismo, pois articulado como um novo movimento separatista, de fuga dos fóruns internacionais.[5] O exemplo ilustrativo é o do Brexit no Reino Unido, onde se observa uma tendência de reconstrução constitucional do nacionalismo, em detrimento da abertura histórica à globalização. O território, dessa forma, permanece como elemento central no jogo político contemporâneo, como expressão de poder que inflama o discurso neoconservador erigido em torno do nacionalismo patriótico. Em paralelo a esse movimento, há também o uso do direito internacional por regimes autoritários como explicado por Ginsburg, criando inclusive ordens internacionais paralelas de modo a efetivar seus projetos autoritários.[6]

Pipa Norris e Ronald Inglehart enfatizam que a retórica empregada pelos novos governos autoritários está assentada na divisão estanque entre uma comunidade nacional que compartilha valores e atitudes específicas, em oposição ao movimento de globalização usualmente atrelado a ideais progressistas.[7] De início, é fácil perceber que as novas lideranças autoritárias se colocam absolutamente contrárias a qualquer abertura internacional que possa significar um controle sobre suas condutas. Para tanto, se valem de uma retórica que aponta a comunidade internacional como alheia os valores específicos que informam a cultura nacional.

Esse movimento, porém, não é restrito no âmbito internacional. Em geral, o autoritarismo está associado a discursos que restringem a autonomia de outras instâncias de controle interno estabelecidas no texto constitucional. Se o presidente fala em nome do povo, sua guinada antidemocrática se revela justamente em uma retórica de deslegitimação das outras instituições fundamentais à democracia, como o legislativo, o judiciário, agências reguladoras, órgãos de fiscalização, universidades públicas, para citar algumas das mais importantes.

A discussão sobre autonomia municipal, nesse contexto, está umbilicalmente atrelada à dinâmica de poder tipicamente associada ao autoritarismo centralizador. Isso porque, para o líder nacional, é mais interessante que todas as instâncias atuem fortemente balizadas pelos seus ideais e, de preferência, sob o seu controle. Assim, da mesma forma como a comunidade internacional pode representar uma ameaça, uma administração municipal que se oponha ao governo federal e implemente políticas públicas dissonantes pode atentar à unidade nacional reclamada.

A pandemia de Covid-19 trouxe um exemplo ilustrativo, pois as duas megacidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, logo tiveram de se desvencilhar da ideologia predominante no governo federal, para implementar políticas eficazes de combate à pandemia. Dependentes da economia e do turismo, as duas cidades logo demonstraram a necessidade de medidas enérgicas e técnicas para enfrentamento da doença e contenção do seu avanço.

De outro lado, Jair Bolsonaro editou em 20 de março de 2020 a Medida Provisória de nº 926, que previa a concentração de competências na figura do presidente para determinar o alcance das medidas restritivas que cada município começava a implementar. O STF, no julgamento da ADI nº 6.341, deu nova interpretação à passagem da MP nº 926, para reafirmar a competência concorrente dos entes federados em matéria de saúde pública, preservando as atribuições de cada esfera de governo.[8]

Depois da decisão proferida pelo STF, que apenas ressalvou a competência concorrente dos entes federados para enfrentamento de questões de saúde pública, algo evidente no texto constitucional, o próprio presidente passou a argumentar que lhe fora retirada a competência para enfrentamento da pandemia.[9] Seu discurso, que sempre havia sido contrário às medidas de isolamento social e de vacinação impostas pelos governos estaduais e municipais, passou a reforçar a autonomia administrativa de outras esferas de governança como um ponto positivo.

A lógica de embate contra o globalismo tipicamente associada a contextos de autoritarismo nacionalista também pode ser identificada na disputa travada contra as administrações municipais. O discurso do corrompimento dos administradores e da desconexão com os valores nacionais mais importantes é empregado também contra as megacidades, vistas como espaços de volatilidade política, propensos à eclosão de mobilizações que desafiam a autoridade central.[10] O nacionalismo unitário, de forte inspiração neoconservadora, se converte, também, em um mecanismo de oposição à emergência de megacidades autônomas.

 

O constitucionalismo e as megacidades

É preciso reconhecer, ao lado da pressão exercida por lideranças nacionalistas na contenção de outras esferas administrativas, o papel do constitucionalismo nesse processo. De modo geral, a questão espacial ocupa uma posição de destaque dentro da casa de máquinas da Constituição. Para Hirschl e Shachar, a devoção ao que denominam de estatismo espacial se converte em um problema para efetivação de direitos básicos universais.[11] Isso porque construções como a de territorialidade e de soberania nacional passaram a ser empregadas como subterfúgio para a defesa de interesses privados contrários ao avanço de políticas públicas internacionais universais para enfrentamento dos novos e emergentes problemas transfronteiriços. As megacidades, da mesma forma, se veem limitadas dentro desse quadro constitucional.

O conceito de constitucionalismo costuma ser empregado para descrever uma limitação imposta ao Estado, como um conjunto de obstáculos ou impedimentos que a administração deve observar. Não significa que não se reconheçam dificuldades práticas envolvidas na garantia da eficácia dessas restrições legais frente a avanços autoritários que ameaçam o equilíbrio constitucional. Trata-se, entretanto, de uma perspectiva negativa, com destaque para a função limitadora da Constituição, que impede o exercício absoluto do poder através da estipulação de um regime consistente de direitos fundamentais, assim como pela separação dos poderes, tanto horizontal, como vertical. O direito se revela, nesse quadro, como um elemento indispensável de contenção a balizar a atuação judiciária de controle em respeito ao rule of law.[12]

Essa dimensão negativa do Constitucionalismo enquanto limitação do poder, somente pode ser compreendida com remissão ao específico desenho de Estado que inspira o constitucionalismo liberal. Retomando a clássica definição proposta por Max Weber, o Estado consistiria em uma comunidade humana que reivindica, de forma satisfatória, o monopólio da coação física legítima dentro de um determinado território.[13] É dizer, a relação entre Estado e seus membros parte de uma posição de dominação, revestida de uma pretensão de legitimidade, vez que o exercício da força é indissociável da legitimidade virtual agregada.

A virtualidade da pretensão de legitimidade é um fator central para o constitucionalismo contemporâneo. Em Weber, embora a existência do Estado dependa da sua capacidade de assegurar a obediência de seu povo, a reivindicação de legitimidade de seus atos pode ser meramente formal. Assim, a concepção weberiana se imiscua da distinção entre democracias florescentes e ditaduras opressivas, considerando que em ambos os tipos de regime há a reivindicação de alguma forma de legitimidade.[14]

Quando o Estado é contemplado como uma fonte de poder bruta, que se reveste de uma aparente legitimação, cresce o receio de que esse poder possa ser arbitrariamente empregado em desfavor daquelas pessoas sobre as quais se estende sua circunscrição. Sob essa infusão, é racional que o constitucionalismo seja apresentado e entendido como uma forma de limitação do Estado e proteção de liberdades individuais. Os princípios constitucionais são usualmente interpretados para reforçar sua dimensão negativa, impedindo a ação estatal autoritária e arbitrária através da garantia de direitos substantivos que seriam intransponíveis.

Contudo, para além da perspectiva negativa, o constitucionalismo também estabelece um sistema que distribui entre diversos atores institucionais prerrogativas recíprocas de controle e fiscalização. Dessa forma, há uma dimensão positiva e proativa que é destacada. O equívoco da visão puramente negativa do constitucionalismo residiria no pressuposto de que as pessoas desejam permanecer sozinhas, refutando a intervenção estatal para consagração da sua dignidade própria. Para Waldron, tal característica revela a face antidemocrática do constitucionalismo negativo, favorecendo uma decisão de design constitucional em detrimento da deliberação racional em fóruns democráticos.[15]

Para além do déficit democrático, tal visão empobrece a concepção de Estado insculpida na Constituição. Embora o modelo weberiano seja capaz de compreender de forma coesa as reivindicações de autoridade e legitimidade em nível institucional, ele falha ao não considerar o Estado em seu contexto mais amplo. É preciso introduzir considerações acerca do objetivo precípuo que levam à edificação dessa estrutura institucional de monopólio do poder, qual seja, a realização do bem-estar social para todas as pessoas circunscritas à sua jurisdição.

Parte-se, portanto, de uma consideração estatal diferenciada, vinculada ao seu conceito aristotélico, em que a instituição administrativa se conectava a uma perspectiva ampla, considerando os objetivos centrais de ação coletiva e organização social.[16] Em especial, é importante destacar que essa reflexão sobre o sentido de Estado dentro do constitucionalismo tem repercussão direta sobre aquilo que se compreende como republicanismo e, em especial, sobre o desenho federativo que lhe embasa.

Assim, é possível tensionar as bases próprias ao modelo constitucional liberal, em busca do espaço a ser ocupado pelas megacidades. Segundo Hirschl, a questão acerca da autonomia municipal acaba não encontrando guarida dentro de textos constitucionais, sendo muitas vezes silenciada.[17] De um lado, o governo central é relutante em entregar o poder às cidades, que podem se posicionar como competidoras no controle sobre parcelas populacionais importantes. De outro, o constitucionalismo, preocupado com o Estado e a soberania nacional, acaba se concentrando sobre os mecanismos de centralização de poder típicos da unidade federativa.

Em que pese exista, de fato, pouca densificação do papel dos municípios e, em especial, das megacidades na estrutura federativa brasileira, é imperativo destacar que nossa Constituição traça algumas diretrizes relevantes. Destarte, ela estabelece competências privativas e concorrentes em que o Município deve atuar para proteção dos interesses locais. Também reafirma a centralidade do plano diretor para regulação urbanística, bem como estipula a competência estadual para instituição de regiões metropolitanas, com agrupamento de municípios para organização e execução de políticas públicas coordenadas.

Nesse contexto, é possível reconhecer alguma importância para os municípios dentro do desenho constitucional brasileiro. Não há, porém, ressalvas acerca da autonomia para as megacidades, ao contrário de exemplos próximos, como em Buenos Aires e na Cidade do México. Permanece existindo uma tendência acentuada de centralização no nosso modelo federativo, com destaque principal, inclusive em nível normativo constitucional, para o governo federal. No entanto, cada vez mais é possível observar a emergência dos grandes aglomerados urbanos como redutos de visões políticas mais inclusivas e progressistas, particularmente destoantes de um contexto de emergência autoritária observado no âmbito mundial.

 

Cidades-santuário

Para compreensão da dinâmica de características dos espaços urbanos municipais, em particular das megacidades, é relevante retomar o desenvolvimento do direito urbanístico brasileiro. Edésio Fernandes explica que o Brasil passou por um processo de urbanização rápida, combinando processos de exclusão social e segregação espacial com o crescimento dos centros urbanos brasileiros.[18] Destarte, a urbanização brasileira se vincula intimamente com o aumento dos índices de pobreza, gerando custos sociais e ambientais relevantes para o país e a sociedade.

Tais características de segregação e urbanização se devem a diversos fatores que interagem ao longo do tempo. A exemplo, as dinâmicas formais e informais do mercado de terras, a centralização político-institucional, o autoritarismo político-social, a burocratização e a corrupção endêmica denotam algumas das facetas que contribuíram para o alastramento da pobreza no país. Para compreensão e formulação de respostas adequadas ao problema, segundo Fernandes, seria necessária uma perspectiva transdisciplinar, considerando a aglutinação dos conceitos de cidade e cidadania.[19] Nessa toada, a democratização das formas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades se tornam pontos cruciais, até para compreensão dos movimentos políticos emergentes em contextos de forte urbanização.

Em seu artigo 182, a Constituição brasileira institui o plano diretor como o instrumento básico da política urbana, tornando-o obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes. A urbanização imposta no contexto constitucional exige da administração local a adoção de políticas de ordenamento territorial das cidades, seu processo de criação e renovação, assim como o estabelecimento de espaços de uso comum e espaços destinados à prestação de serviços públicos. Permanece, contudo, existindo diversas complexidades vinculadas ao aumento populacional urbano, que tensionam o papel das megacidades na consagração de direitos sociais básicos. É preciso, sob esse enfoque, repensar o design constitucional a partir de uma concepção de Estado pautada na promoção do bem-estar comum.

A consideração do constitucionalismo sob o ponto de vista dos direitos humanos, considerando uma perspectiva multinível para as atribuições do Estado no cenário global, implica a reformulação do papel das megacidades na proteção de cidadãos, o que ilumina a sua nova importância no paradigma constitucional. Dada a necessidade de repensar a teoria democrática e o constitucionalismo liberal a partir dessa nova concepção de Estado, enfatizar o papel constitucional das megacidades pode se tornar uma nova forma de promover valores fundamentais e promover maior igualdade entre os entes federativos e suas respectivas obrigações constitucionais.

Muitas cidades têm investimento acentuado em políticas de promoção aos direitos humanos, com particular ênfase em instrumentos de convívio plural. Até por isso, são vistas como verdadeiras cidades-santuário. Hirschl enfatiza que essa propensão dos governos municipais decorre, em grande parte, da necessidade de enfrentamento próximo das questões migratórias.[20] O influxo de diferentes pessoas, provenientes dos mais diversos contextos, todas em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles, torna o perfil demográfico das megacidades particularmente plural. Por conseguinte, a construção de políticas públicas nesses contextos acaba revelando uma maior abertura ao pluralismo e enfatizando um perfil progressista e humanitário.

É possível, até mesmo, destacar uma articulação internacional de megacidades que ganha relevância nos últimos anos. Isso porque muitas das questões colocadas como importantes marcos para as futuras gerações, como aquelas decorrentes das mudanças climáticas e da desigualdade social, já se revelam extremamente aflitivas em grandes aglomerações urbanas. Enquanto vários governos nacionais desejam suavizar o tom e frear a intensidade das políticas públicas de combate que são buscadas, são justamente os administradores municipais os mais interessados no avanço da agenda. O exemplo ilustrativo vem da Conferência do Clima da ONU (COP26), pois em 10 de novembro de 2021 diversos países firmaram um acordo para incentivar a venda de carros não poluentes até 2040, consolidando uma frota de veículos limpos, que não foi assinada pelo Brasil ou pelos Estados Unidos, mas que conta com as cidades de São Paulo e Nova York na lista de signatários.[21]

Portanto, resta possível identificar que a governança municipal possui uma inclinação natural à solução de problemas concretos e locais, que dialogam diretamente com os anseios da sua população. Até por isso, as megacidades, de perfil demográfico plural, precisam endossar políticas públicas que efetivamente tutelem essa diversidade e promovam a inclusão. Questões relacionadas à pobreza, à poluição e à imigração são todas muito sensíveis à administração municipal e, dessa forma, se convertem em políticas públicas naturalmente destoantes daquelas sustentadas por um governo federal pouco preocupado com a complexidade inerente aos grandes agrupamentos urbanos e mais preocupado com discursos políticos demagógicos.

 

Uma pessoa, um voto?

Se as cidades têm uma importância destacada em nível internacional, na proteção de direitos básicos humanitários, é necessário enfrentar a questão relacionada à falta de poder político dessas grandes comunidades. De acordo com o artigo 14 da Constituição brasileira, “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. De fato, a igualdade do valor do voto é um dos elementos indispensáveis para a salvaguarda do valor democrático inscrito no projeto constitucional liberal. Isso significa que todas as pessoas, independentemente de suas qualidades individuais, participam do processo eleitoral em condições de igualdade. Ely destaca que o princípio que assegura a cada pessoa um voto é uma marca do republicanismo, informando aquilo que, em diversas constituições, se concebe como democracia.[22] Daí porque afirmar que a igualdade política é um imperativo mínimo dentro da estrutura constitucional.

No entanto, Hirschl destaca que o agrupamento de pessoas em grandes centros urbanos pode impor um desafio adicional ao modelo democrático sustentado na igualdade de votos, a exemplo do estado de São Paulo, onde o voto de um cidadão tem um décimo do peso do voto de um cidadão dos estados de Roraima, Acre ou Amapá.[23] Em que pese a Constituição brasileira tentar manter uma distribuição de assentos políticos condizentes com a distribuição populacional do país, são impostos níveis mínimos e máximos, bem como uma distribuição equitativa para o Senado Federal, que acabam tornando desiguais os pesos de votos depositados conforme a circunscrição geográfica.

O resultado concreto desse sistema de distribuição do peso político para o sistema eleitoral constitucional acaba desembocando em uma sub-representação das megacidades, e a consequente super-representação de áreas de baixa densidade populacional. A possibilidade de quebra discricionária da igualdade política é uma ameaça latente e que, há muito tempo, é enfatizada nos Estados Unidos. Conforme descreve Vickrey, a ameaça de gerrymandering se concretiza em face de sistemas distritais justamente porque, a despeito da existência de supostas regras de zoneamento, haverá sempre uma margem de discricionariedade na definição das fronteiras distritais que possibilita a tentativa de deturpação do peso dos votos.[24]

Tais exemplos são importantes, pois permitem evidenciar como, na maior parte das vezes, as tentativas de alteração do peso proporcional do voto tendem a desfavorecer as megacidades e grandes centros urbanos, em favor de comunidades rurais pouco povoadas. Há, assim, uma colisão entre visões políticas distintas, usualmente opondo os ideais progressistas urbanos à tradição rural conservadora. Até por isso, qualquer tentativa de alteração da igualdade política se revela particularmente sensível ao valor democrático que deveria inspirar o constitucionalismo.

A necessidade de redesenho constitucional do papel ocupado pelas megacidades perpassa, invariavelmente, pela discussão acerca da representação política das populações ali residentes. Um exemplo interessante é o da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, que aprovou uma lei para garantia da igualdade de votos, especialmente fundamentada na necessidade de proteção da população negra. Com receio da criação de distritos que diluíssem completamente as comunidades étnico-raciais, foi proposta a adoção de um sistema de distritos majoritários e minoritários pré-delineados. Entretanto, a análise dos resultados eleitorais posteriores à reforma legislativa denota que as áreas urbanas mais densas, que concentram a maior parte da população não branca, permaneceram sub-representadas nos quadros políticos estadual e nacional.[25] Isso porque são desenhados distritos de modo a concentrar a população não branca e minimizar seu valor proporcional.

É imperativo que se reconheça, ao menos, a particular fragilidade do sistema atualmente prevalente, que enuncia um princípio de igualdade política fundado na máxima “uma pessoa, um voto”, mas que entrega à população urbana, principalmente nas megacidades, uma máxima distinta: “uma pessoa (urbana), meio voto”.[26] No Brasil, mesmo sem a adoção do modelo distrital, tal ressalva é importante, dada a quebra proporcional imposta aos grandes centros populacionais.

A redução da importância do voto dado pelos residentes de megacidades e grandes centros urbanos, especialmente diante do significado político que carregam, prejudica a implementação da melhor representatividade política. O desenho constitucional, no que concerne ao pacto federativo e à posição ocupada pelos municípios, deve também estar consciente dos problemas atinentes à igualdade política, que se encontram ameaçados pela quebra de equiparação de votos dados em um ou outro contexto geográfico. Ainda mais aflitiva é essa constatação quando se evidenciam os interesses políticos por trás da inclinação à sub-representação de populações urbanas usualmente plurais.

 

Em busca de autonomia federativa para as cidades

Considerando os efeitos da globalização sobre o conceito de Estado cunhado na Constituição, faz-se necessário também repensar o constitucionalismo a partir de uma premissa global e também local. Isso implica a necessária internalização de que a disputa acerca da interpretação e aplicação dos direitos fundamentais positivados no texto constitucional deve ocorrer em todos os níveis de governança administrativa. Trata-se de uma premissa básica inscrita na Constituição brasileira, que reconhece a abertura hermenêutica e normativa dos princípios e normas que tratam de direitos fundamentais no âmbito internacional.[27] Seguindo a conclusão de que o constitucionalismo e seus princípios derivam diretamente da nossa concepção de Estado, faz-se necessário investigar quais os impactos suportados na tutela de direitos fundamentais constitucionais quando a noção de Estado extrapola os limites regionais e internacionais.

Portanto, considerando o bloco de constitucionalidade brasileiro em toda sua complexidade, é possível argumentar que o paradigma constitucional contemporâneo reconhece a multiplicação de assembleias específicas e parciais, que tratam de temas diferenciados em diversos níveis de jurisdição, todos pautados na defesa de direitos fundamentais. Contudo, é necessário reconhecer que essa diversidade de espaços não se vincula somente com o ambiente internacional e transnacional, uma vez que também está presente internamente ao ordenamento jurídico a partir da separação vertical e horizontal de poder.

O modelo federativo brasileiro já reconhece a pluralidade de ordens normativas, legitimando a existência de diferentes esferas, em diferentes níveis, para o exercício dos poderes delineados na Constituição. A federação brasileira é composta pela união indissolúvel dos estados e municípios, além do Distrito Federal, que compartilham poderes e funções legislativas e executivas. Consciente dos problemas de sobreposição de competências que poderiam emergir, a Constituição também estabelece divisões de competência e temas que serão afetos à concorrência entre os entes federados. De modo geral, a inspiração central desse modelo reside na necessidade de subdivisão administrativa em níveis que permitam a estratificação de interesses, dos mais gerais e universais, aos mais locais e concretos.

A globalização, enquanto fenômeno sociológico, opera de forma exógena à clássica afirmação da soberania nacional, para introduzir questões de cooperação e articulação internacional relevantes em um contexto de forte intercâmbio socioeconômico entre os diferentes países. Por vezes, essa abertura internacional é tensionada, em face da emergência de discursos neoconservadores fortemente marcados pelo nacionalismo e patriotismo. O ponto principal da oposição ao sistema internacional residiria na tutela de direitos humanos e na criação de organismos de fiscalização.

Entretanto, cumpre destacar que, no âmbito nacional, são esses mesmos elementos que qualificam o embate contra a autonomia dos entes federativos. Isso porque muitos municípios passaram a se vincular às obrigações e compromissos estabelecidos em políticas públicas definidas no plano internacional, reforçando a importância das grandes metrópoles na tutela de direitos fundamentais, ao contrário das posições e preferências ideológicas do governo federal.[28]

Trata-se de um dos pontos centrais destacados na obra de Hirschl, quando afirma a necessidade de empoderamento constitucional das megacidades.[29] O crescimento da população urbana em grandes centros, vinculado com o fenômeno da globalização, repercute em um aumento das obrigações das metrópoles para prover recursos, infraestrutura e serviços de forma eficiente. Essas obrigações estão intimamente relacionadas com compromissos globais de proteção ambiental, manutenção da saúde pública e erradicação da pobreza.

O aumento das obrigações e responsabilidades das megacidades, vinculado com o fenômeno da globalização e a crescente urbanização em países do Cone Sul, indica a necessidade de repensar o papel das megacidades na arquitetura constitucional, principalmente no que toca ao princípio federativo.

As megacidades precisam de poder para proteger seus interesses, pois o interesse do Estado soberano tenderá, normalmente, à dominação política e à supressão da autonomia municipal que possa se revelar atentatória aos seus interesses ideológicos. Ademais, conforme pontua Hirschl, é preciso reconhecer que as cidades são uma importante esfera administrativa para a solução de problemas concretos, em uma escala manejável e com maior proximidade e engajamento.[30] Problemas como o da habitação, da imigração e da proteção ambiental demandam construções específicas e locais, que considerem as características específicas da população afetada e que se operacionalizem de modo efetivo.

Portanto, é possível observar que a edificação de uma administração pública eficiente e a concretização das garantias fundamentais colocadas na Constituição reclamam por uma administração municipal forte e autônoma. O pacto federativo, nesse sentido, deve ser repensado, e o próprio design constitucional poderia ser aprimorado. As megacidades e grandes centros urbanos, enquanto verdadeiras cidades-santuário na frente de implementação de direitos humanos e de articulação internacional para manutenção do bem-estar público, deveriam encontrar maior independência constitucional.

Ademais, sob o ponto de vista da representação política, é indispensável o redesenho do sistema eleitoral com atenção para o valor da igualdade constitucional, especialmente na proteção do equilíbrio representativo nos votos depositados em aglomerações urbanas. Para Hirschl, é o momento de valorização das cidades e dos seus residentes para enfrentamento dos desafios impostos contemporaneamente à governança constitucional.[31]

Em momentos de líderes populistas que defendem a voz do povo anti-instituições, em que grupos conservadores anticonstitucionalismo liberal cooptam não só os legislativos nacionais, mas também os espaços criados pelo direito internacional, é extremamente importante o debate do voto igual, já que não há democracia majoritária que não atenda previamente as condições de igualdade. Assim, a autonomia constitucional das megacidades e a garantia do direito igualitário de um homem, um voto, podem ser instrumentais importantes para uma democracia mais igualitária ao mesmo tempo em que podem evitar o avanço do autoritarismo.

 

[1] UNITED NATIONS, D. of E. and S. A. World Urbanization Prospects: The 2018 Revision. New York: United Nations, 2019. p. 55.

[2] HIRSCHL, R. City, state: constitutionalism and the megacity. New York: Oxford University Press, 2020.

[3] Ibid., p. 45.

[4] NETTO, R. Bolsonaro diz que vai tirar Brasil da ONU se for eleito presidente. In: G1. 18 ago. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/08/18/bolsonaro-diz-que-vai-tirar-brasil-da-onu-se-for-eleito-presidente.ghtml

[5] HIRSCHL, R.; SHACHAR, A. Spatial statism. International Journal of Constitutional Law, v. 17, n. 2, p. 387–438, 2019. p. 431.

[6] Ginsburg, T. How Authoritarians Use International Law. Journal of Democracy, vol. 31, no. 4, Oct. 2020, p. 51.

[7] NORRIS, P.; INGLEHART, R. Cultural backlash: Trump, Brexit, and the rise of authoritarian-populism. New York: Cambridge University Press, 2018. p. 444.

[8] POMPEU, A.; CARNEIRO, L. O. STF reafirma competência de estados e municípios para tomar medidas contra Covid-19. In: JOTA INFO. 15 abr. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-reafirma-competencia-de-estados-e-municipios-para-tomar-medidas-contra-covid-19-15042020

[9] VIVAS, F.; FALCÃO, M. STF contesta Bolsonaro e diz em nota que nunca proibiu governo federal de atuar contra pandemia. In: G1. 18 jan. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/18/decisoes-do-stf-nao-proibem-atuacao-do-governo-federal-para-combater-a-pandemia-diz-tribunal.ghtml

[10] HIRSCHL, 2020, p. 19.

[11] HIRSCHL; SHACHAR, 2019, p. 438.

[12] DOWDLE, M. W.; WILKINSON, M. A. On the Limits of Constitutional Liberalism: In Search of Constitutional Reflexivity. In: DOWDLE, M. W.; WILKINSON, M. A. (org.). Constitutionalism beyond Liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 17–37.

[13] WEBER, M. Politics as a Vocation. In: GERTH, H. H.; WRIGHT MILLS, C. (org.). From Max Weber: Essays in Sociology. London: Routledge, 2014. p. 89–140.

[14] BARBER, N. W. The Principles of Constitutionalism. Oxford: Oxford University Press, 2018. p. 2–19.

[15] WALDRON, J. Constitutionalism: A Skeptical View. In: WALDRON, J. (ed.). Political Theory: Essays on Institutions. Cambridge: Harvard University Press, 2016. p. 23–44.

[16] ARISTOTLE. The Politics and the Constitution of Athens. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. JOHNSON, C. N. Aristotle’s Theory of the State. London: Palgrave Macmillan, 1990.

[17] HIRSCHL, 2020, p. 50.

[18] FERNANDES, E. A Nova Ordem Jurídico-Urbanística no Brasil. Revista Magister de Direito imobiliário, Registral, Urbanístico e Ambiental, v. 1, n. 2, p. 5–26, 2005.

[19] Ibid.

[20] HIRSCHL, 2020, p. 226.

[21] FIGUEIREDO, P. Na COP26, cidade de SP assina compromisso para incentivar vendas de carros elétricos até 2040. In: G1. 10 nov. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/11/10/na-cop26-cidade-de-sp-assina-compromisso-para-proibir-vendas-de-carros-nao-eletricos-ate-2040.ghtml

[22] ELY, J. H. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. p. 122.

[23] HIRSCHL, 2020, p. 177.

[24] VICKREY, W. On the Prevention of Gerrymandering. Political Science Quarterly, v. 76, n. 1, p. 105–110, 1961. p. 105.

[25] WAYMER, D.; HEATH, R. L. Black Voter Dilution, American Exceptionalism, and Racial Gerrymandering: The Paradox of the Positive in Political Public Relations. Journal of Black Studies, v. 47, n. 7, p. 635–658, 2016. p. 10.

[26] HIRSCHL, 2020, p. 176.

[27] PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[28] SASSEN, S. Neither global nor national: novel assemblages of territory, authority and rights. Ethics & Global Politics, v. 1, n. 1–2, p. 61–79, 2008.

[29] HIRSCHL, 2020.

[30] Ibid., p. 27.

[31] Ibid., p. 234.

Originalmente publicado em: https://inteligencia.insightnet.com.br/constitucionalismo-multinivel-do-global-a-megacidade/

Democracia em risco: o caso brasileiro

Democracia em risco: o caso brasileiro

Por Estefânia Barboza

 

O número de democracias eleitorais cresceu de 35, nos anos 70 à 110 em 2014 (Fukuyama, 2015), seguindo até este momento a previsão de Fukuyama sobre o Fim da História, no qual o autor afirma que o período da história do pós-guerra termina com a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final e ideal de governo no Mundo. Entretanto, o próprio Fukuyama analisa o processo de recessão democrática que se inicia em 2006, mas que apenas ganha força a partir de 2014. Por outro lado, órgãos de análise dos índices de democracia no Mundo têm alertado para as quedas dos regimes democráticos. O Freedom’s House alerta que em todas as regiões do Mundo a democracia está sob ataque de líderes populistas, com queda nos índices de liberdade de imprensa, liberdade religiosa, independência do Judiciário, liberdade acadêmica e outros direitos de liberdade.

Pelo Democracy Report do V-DEM Institute, o Brasil está entre os 10 países que mais se autocratizaram no Mundo, passando a ser considerado uma democracia meramente eleitoral e com uma deterioração acelerada de direitos e liberdades, estando atrás apenas da Turquia, Hungria e Polônia. Para além disso o V-DEM ressalta que a autocratização normalmente segue um mesmo padrão, atacando num primeiro momento a mídia e a sociedade civil e se utilizando da desinformação para polarizar a sociedade e atacar os opositores políticos, aliado ao ataque às instituições.

Na  semana passada, o IDEA publicou o relatório sobre Democracia nas Américas em que ressalta que apesar dos países no continente terem abraçado a 3ª onda de democracia e terem fortalecido suas instituições neste período, passam agora por um retrocesso democrático que vem se acelerando em pouco tempo. A polarização política, a fragmentação partidária, a crise de representatividade e o descontentamento dos cidadãos com as elites políticas, seriam causas deste processo de autocratização da região, para além de que os atores políticos de hoje seriam bem diferentes daqueles presentes no período da transição democrática.

Ainda, é de se preocupar que por este Relatório do IDEA, o Brasil é o país que enfrenta o maior retrocesso democrático do mundo, com o maior número de atributos que medem o nível de sua democracia em queda. Os ataques às bases da democracia liberal vêm sendo orquestrados pelo governo federal: i) ataques a professores e autonomia universitária; ii) ataques a cientistas e censura a órgãos de pesquisa; iii) ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e Ministros; iv) ataques à integridade do processo eleitoral; v) ataques a opositores políticos com o uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos do Presidente; vi) ataques à imprensa e a jornalistas; vii) presença de militares em cargos no governo federal; e viii) cooptação de órgãos de controle.

Um ponto que chamou a atenção no referido relatório diz respeito aos ataques aos organismos eleitorais que se tornaram mais frequentes na região, como uma prática adotada por líderes populistas da ultradireita, estratégia já utilizada por Trump, que levou, inclusive, à invasão do Capitólio nos Estados Unidos. Tática que é reproduzida no ambiente brasileiro, a partir da divulgação em massa de notícias falsas, com a finalidade da corrosão da credibilidade no processo eleitoral. 

Estes tipos de ataques foram observados não apenas no Brasil, mas também em El Salvador, México e Perú e buscam justamente criar uma crise de legitimidade inexistente para desacreditar o processo eleitoral e as instituições de controle. Os processos de desinformação e ataque às eleições já vêm sendo objeto de estudo pela Universidade de British Columbia, que apontou que atores estrangeiros podem atacar alguns alicerces da democracia, tais como: i)  oportunidades justas para a participação do cidadão; ii)  deliberação pública livre; e iii) integridade eleitoral. Embora os ataques digitais não consigam impactar na integridade dos processos eleitorais, eles buscam colocar em dúvida sua legitimidade por meio de um processo violento e articulado de produção de fake News. 

No caso do Brasil, é explícito o ataque promovido por Bolsonaro às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Ministros do STF e TSE, especialmente ao atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso e ao Ministro Alexandre de Morais, que exercerá a presidência do Tribunal no período das eleições presidenciais de 2022. Bolsonaro alega que houve fraude às urnas eletrônicas nas eleições de 2018 e que acontecerá novamente em 2022. Entretanto, é de se destacar que as urnas eletrônicas foram estabelecidas no Brasil em 1996 e que desde então, ao contrário do alegado pelo Presidente, justamente evitou fraudes existentes no processo eleitoral brasileiro.

A gravidade do tema impõe acender um alerta vermelho na medida em que um dos princípios essenciais para a estabilidade democrática é, justamente, o princípio da legitimidade das eleições, entretanto, resultados de pesquisas apontam que na América Latina a credibilidade no processo eleitoral e nos organismos eleitorais caiu de 63% da população em 2004 para 45% em 2019. O que serve para colocar o perigo populista dos ataques em um radar máximo de atenção que sirva para assegurar o funcionamento das eleições periódicas e a estabilidade democrática. 

Conforme alerta Scheppele, nenhuma autocracia se instala sem o apoio de grande parte da população. E os líderes populistas se utilizam da crise de credibilidade nas instituições e na má prestação de serviços públicos básicos para avançar sua agenda autoritária.

É preciso pensar nas causas da desconfiança nas instituições e na própria democracia. O latinobarômetro aponta que a satisfação com a democracia na América Latina cai de 45% em 2009 para 25% em 2020. Embora este mal-estar possa ser muito mais com os governos do que com a democracia em si, Fukuyama também aponta que  a ausência de políticas públicas e ineficiência dos Estados para promover direitos sociais básicos de saúde e de educação seria uma das causas de crise da democracia.

Juan Linz (1999, p. 203) também já apontava, em relação ao Brasil, que “a distribuição de renda mais desigual, e os piores níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e sul-americanos” dificultou a tarefa de consolidação da democracia e, em 1992, o apoio à democracia por brasileiros era muito mais baixo do que o apoio de uruguaios, portugueses, espanhóis ou gregos no mesmo período. 

Para além disso é certo que esta conjuntura também facilita os processos recentes de erosão democrática que se diferenciam de golpes abertos à democracia e rupturas constitucionais. A erosão atua justamente por dentro das instituições, cooptando-as para que não possam exercer seu trabalho com a autonomia necessária para a regulação e controle do poder político. Quando um governante autoritário busca não só atacar os outros poderes, mas também fragilizar os órgãos que possuem autonomia para impedir sua atuação inconstitucional e até criminosa, observa-se também a fragilização democrática, como no caso brasileiro.

O Brasil se insere, deste modo, no contexto dos países em retrocesso democrático por meio de um conjunto de ataques aos alicerces do constitucionalismo liberal, num processo que se utiliza da desinformação e baixo apoio da população à democracia.  Por outro lado, Bolsonaro segue as táticas adotadas por outros líderes populistas com ataques à imprensa, às Cortes e ao processo eleitoral, com discurso neoconservador e antagônico à proteção de direitos humanos.

É necessário neste momento que Cortes e Observadores internacionais se aliem à comunidade acadêmica na defesa da democracia e da legitimidade institucional. O caso brasileiro terá impacto não só para a América Latina, mas pode ser um case de sucesso do avanço autoritário ou de sucesso da estabilidade institucional democrática.

É urgente compreender, deste modo, o contexto político mais amplo em que se inserem as táticas de ataques à democracia e de organização da ultradireita mundial e trabalhar os diferentes níveis – internacional, regional e nacional – de proteção da democracia e dos direitos humanos de modo global. Não haverá contenção apenas individual para a onda autoritária que se avizinha e que pode ser duradoura.

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Professora de Direito Constitucional na Universidade Federal do Paraná e no Centro Universitário Internacional, cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Ela é mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Visiting Research Fellow at Osgoode Hall Law School, Canada, 2008-2009.  Professora visitante na Universidade de Toronto (2016), na Universidade de Palermo e Messina, Itália (2019). Co-Presidente da Associação Ítalo-Brasileira de Professores de Direito Administrativo e Constitucional (AIBDAC). Co-Presidente da ICON-S Brasil. Menção Honrosa no Prêmio Capes Tese de 2012 pela tese “Stare Decisisis, Integrity and Legal Security: critical reflections from the approach of common law and civil law systems”. Tem experiência na área do direito, com ênfase no direito público, atuando principalmente nos seguintes temas: constitucional, constitucionalismo abusivo, direito constitucional comparado, direitos fundamentais, direitos humanos, democracia, jurisdição constitucional, judicialização da política, precedentes e common law.

Originalmente publicado em: https://www.ibericonnect.blog/2021/12/democracia-em-risco-o-caso-brasileiro/

O ministro pode até ser ‘terrivelmente evangélico’, o tribunal não!

O ministro pode até ser ‘terrivelmente evangélico’, o tribunal não!

Por Gustavo Buss e Estefânia Maria de Queiroz Barboza

O presidente Jair Bolsonaro sempre deixou muito transparente sua insatisfação com decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que, em sua visão, afrontariam a moralidade cristã majoritariamente compartilhada pela população brasileira. Em sua participação na 27ª Marcha para Jesus, ocorrida no dia 20/6/2019, exprimiu a célebre visão de que o Estado é laico, mas ele é cristão. Ao mesmo tempo, cunhou-se a promessa de indicação de alguém “terrivelmente evangélico” ao Supremo, que acabou não se confirmando na decisão do substituto do ministro Celso de Mello. No entanto, logo após sua primeira indicação ao STF, em outubro de 2020, Bolsonaro fez questão de repisar o compromisso de outrora: Mais que terrivelmente evangélico, se Deus quiser nós teremos lá dentro um pastor”.

Com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio, restou ao presidente a tarefa de confirmar sua promessa. No último dia 13, foi finalmente oficializada a indicação do advogado-geral da União, André Mendonça, para a vaga. Bolsonaro parece ter encontrado seu ministro “terrivelmente evangélico” na figura do advogado, que é também pastor presbiteriano. Tal característica poderia até se atenuar em face do compromisso constitucional a ser assumido, não tivesse o presidente pedido a ele que, uma vez por semana, comece a sessão (no Supremo) com uma oração.

O argumento que aparece subjacente à postura de Bolsonaro é o de que o STF teria uma composição muito destoante daquela encontrada no povo brasileiro. Os ministros seriam em grande medida antirreligiosos, ao menos segundo o raciocínio avançado pelas correntes bolsonaristas, enquanto a nossa população ostentaria fortes raízes cristãs. Entretanto, em análise conduzida em 2019 se constatou o oposto. Sete ministros se declaravam católicos, dois se declaravam judeus e apenas dois não informavam professar uma religião específica.

ADI nº 4439, de relatoria do ministro Roberto Barroso, julgada em setembro de 2017, é igualmente ilustrativa do papel que a religiosidade ocupa dentro da nossa Corte Constitucional. Naquela ocasião, foi enfrentada a questão particularmente sensível acerca da possibilidade de oferta de ensino religioso confessional em escolas públicas. A posição do relator, seguida por uma minoria em plenário, caminhava no sentido da inconstitucionalidade com base na exigência da laicidade, revelando algum indício de antirreligiosidade. No entanto, é relevante destacar que a posição majoritária e vencedora afirmou o contrário. O ministro Alexandre de Moraes, em voto que conduziu a maioria, destacou expressamente que o Estado, embora laico, jamais poderá neutralizar o ensino religioso e nem tampouco censurar a livre manifestação de concepções religiosas em sala de aula. Seguindo tal raciocínio, o ministro Gilmar Mendes destacou até mesmo a influência cristã na formação cultural do Estado brasileiro, que tornaria legítima a presença de símbolos religiosos em espaços públicos.

Essa breve constatação já permite apontar que o Supremo ostenta uma composição fortemente marcada pelo traço da religiosidade judaico-cristã. Nesse contexto, a insistente promessa do presidente parece denotar algo além. Ele parece combater a ideia de que, mesmo religiosos, os ministros possam colocar suas convicções pessoais e crenças de lado para que, no momento do julgamento, se atenham a uma racionalidade estritamente constitucional. Sua fala vai diretamente de encontro àquela proferida pela ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI nº 3510, em 2010, que discutia a constitucionalidade da pesquisa em células-tronco embrionárias. Ela ressaltava, com ancoro em sua posição institucional: “Aqui, a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz, no foro, cultua o Direito”. Um ministro “terrivelmente evangélico” seria, em contraponto, aquele que sobreporia a moralidade religiosa aos ditames da Constituição que está comprometido a proteger.

O Estado brasileiro, assentado na Constituição Federal de 1988, deve ser compreendido como um Estado que, embora não seja antirreligioso, é definitivamente laico. Isso significa dizer que todas as expressões religiosas professadas em sua circunscrição devem ser igualmente protegidas, prezando-se pela diversidade, sem que nenhuma assuma posição privilegiada. De outro lado, essa mesma concepção de laicidade passa a demandar a construção de deliberações consensuais mínimas, que permitam a condução da vida pública sem que quaisquer cosmovisões se imponham às demais.

O Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição, se eleva como instituição necessariamente afeta às limitações da laicidade. Ainda que a população brasileira seja majoritariamente cristã, seu papel não deve ser o de endosso aos conceitos morais específicos do cristianismo. Historicamente, o papel do Supremo tem sido reiteradamente o de proteção às minorias e garantia dos postulados básicos conscritos no texto constitucional, especialmente fundamentado no pluralismo. Destarte, qualquer predisposição individual “terrivelmente religiosa”, quando concebida sob o prisma institucional, deve se converter em uma defesa “terrivelmente constitucional” do primado da liberdade religiosa que assegura igual trato e consideração a todas as manifestações de crença e fé individual, inclusive a de não manifestar ou professar qualquer fé ou religião.

A imposição de uma moralidade unívoca e fundamentalista é incompatível com o quadro constitucional protetivo à diferença. Mesmo que se reconheça nas diferentes religiões expressões culturais importantes, a possibilidade de justificação pública exige que qualquer argumento absolutista seja excluído do embate político. Nesse sentido, a pretensão de que o STF tenha suas sessões iniciadas com uma oração ecoa a limitação da visão do presidente Bolsonaro acerca do que seja o real compromisso do Estado republicano com a tutela isonômica dos seus cidadãos. Sua defesa de uma moralidade religiosa revela uma visão fortemente centrada no absolutismo de determinadas verdades preconcebidas, que ameaçam a existência da diversidade enquanto fenômeno de um constitucionalismo comprometido com o pluralismo.

Não é difícil constatar que os ministros da corte já expressam, cada um, sua própria religiosidade. Assim, a nomeação de um ministro evangélico não deveria ser elemento de acentuada ênfase. A diversidade na composição do STF é salutar e apenas reforça a exigência de construções consensuais. É através da negociação das diferenças que se permitirá alcançar um resultado institucional verdadeiramente democrático e plural, aberto à experiência da diversidade. Se cada indivíduo carrega consigo sua específica visão de mundo, é no diálogo estabelecido entre eles, centrado no compromisso de respeito mútuo, que se afirmará o compromisso constitucional.

Portanto, resta plenamente aceitável que um ministro revele um forte compromisso pessoal com determinada fé, mas nunca se poderá admitir que o tribunal, enquanto instituição, partilhe qualquer preferência a um ou outro credo. Isso porque, embora cada ministro ingresse no processo deliberativo carregando sua própria bagagem, o resultado deliberativo que se pretenda universalmente oponível deve, invariavelmente, racionalizá-las. É inafastável o compromisso mínimo com o consenso, ainda que tal consenso deva ser tomado como precário, já que sempre sujeito à renegociação.

A atividade decisória, em particular, exige que se compatibilizem diferentes cosmovisões a fim de permitir um convívio social que não resulte no favorecimento do cristianismo hegemônico em detrimento de expressões religiosas minoritárias, já que dotadas de igual dignidade constitucional. É justamente por isso que o Supremo não deve nunca iniciar suas atividades com uma oração, ao contrário do requerido pelo presidente ao seu novo ministro “terrivelmente evangélico”, se aprovado pelo Senado Federal. É preciso que se reconheça e que se reforce a missão institucional do STF, que não é a do endosso a qualquer moralidade unívoca, ainda que majoritária, mas a de proteção isonômica a todas as expressões de religiosidade e, até mesmo, de não religiosidade.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/buzz-barboza-ministro-terrivelmente-evangelico

Entre a vida da mulher e a honra do homem

Entre a vida da mulher e a honra do homem

A limitação da plenitude de defesa nos casos de feminicídio

Por MARINA BONATTO, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLARA MARIA ROMAN

 

Em 26 de fevereiro de 2021, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu parcialmente medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 a fim de firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, pois contrária aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), pretende-se com a ADPF que seja dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, II e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e aos arts. 65 e 483, III, §2º do Código de Processo Penal, para afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos.

Os artigos 23 e 25 do Código Penal dizem respeito a figura da legítima defesa, excludente de ilicitude apta a ensejar a absolvição do acusado da prática de um crime. Se reconhecido que o ato fora praticado por meio da utilização moderada dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (art. 25 CP), o acusado deve ser absolvido (art. 483, §2º, CPP), dada a inexistência de crime (art. 23 CP) e a sentença penal proferida faz coisa julgada no cível (art. 65 CPP).

A tese da legítima defesa da honra, por sua vez, como apontado pelo ministro em sua decisão, “não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico pátrio”.

Trata-se de um recurso retórico utilizado no Tribunal do Júri na tentativa de absolver acusados da prática de feminicídio ou violência contra a mulher. Sustenta-se, nesses casos, o absurdo de que a prática teria sido justa e proporcional para reprimir um adultério sofrido pelo acusado, como se a sociedade tivesse autorizado o cidadão a matar nessa situação.

Um dos países que mais mata mulheres no mundo, o Brasil é marcado por uma cultura de violência contra as mulheres. Vivemos em uma sociedade machista em que o assassinato de mulheres é incentivado, tolerado e justificado, sendo as mulheres negras e pobres as principais vítimas, segundo o 14º Anuário do Fórum de Segurança de Pública.

Quase 15 anos depois da edição da Lei Maria da Penha e 5 anos depois de o feminicídio ter se tornado uma qualificadora do homicídio, os números da violência não param de crescer, tendo, inclusive, acelerado no contexto criado pela pandemia de Covid-19.

Diante desse cenário, uma tese jurídica que culpa a vítima por seu próprio assassinato é, para além de inconstitucional, intolerável também sob o ponto de vista moral.

Apesar de os Códigos Penal e de Processo Penal atuais serem anteriores à Constituição Federal, a instituição do Júri é reconhecida por esta, que assegura, ainda, dentre o rol de direitos e garantias fundamentais, a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos.

A plenitude de defesa, exercida no Tribunal do Júri, permite a utilização de todos os meios de defesa possíveis para o convencimento dos jurados, cabendo argumentos jurídicos e extrajurídicos. No entanto, tal como não o é nenhum direito, essa garantia não é absoluta e deve ser interpretada em conjunto com os demais preceitos constitucionais.

O plenário do júri não é um ringue de vale tudo, embora alguns se comportem como se fosse, não estão autorizados atos de racismo ou de desqualificação de minorias vulneráveis, afinal o Código de Ética e Disciplina da OAB, estabelece no seu art. 2º, V, que é dever do advogado “contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e da lei”.

A utilização e aceitação da tese da legítima defesa da honra nos casos em que o marido ou companheiro mata a mulher que decidiu se relacionar com outro homem é resultado de uma estrutura social discriminatória que subjuga e desvalora as mulheres.

É uma representação retrógrada de uma sociedade em que a honra do homem é mais digna de defesa do que a própria vida da mulher. O argumento de salvaguarda da honra como justificativa da conduta de um homem que mata uma mulher por ser mulher, desqualifica e discrimina todas as mulheres que ousam transgredir o papel da esposa ou da companheira submissa, o que viola preceitos constitucionais e contribui para a naturalização e perpetuação do feminicídio e da violência contra a mulher.

Ademais, são casos como esses que fazem regredir anos de lutas das mulheres por seus direitos, pela igualdade e por suas próprias vidas. Nesse sentido, é inadmissível e incoerente que, após a edição da lei que tornou o feminicídio um crime hediondo, seja afastada a ilicitude da conduta do homem que tirou a vida de uma mulher por ciúme ou vergonha de ter sido substituído.

É papel das e dos advogados e juristas zelar pela Constituição e pelos direitos humanos. O fato de a defesa no Tribunal do Júri ser realizada por um advogado ou defensor público com formação jurídica e conhecimento técnico já demonstra a preocupação de garantir ao acusado e a vítima um julgamento que não seja pautado única e exclusivamente em preconceitos e estereótipos discriminatórios.

O fato de ter o STF decidido em sede de liminar que a tese da legítima defesa da honra é uma ofensa à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação, ao direito à vida e à igualdade não cria um precedente acerca da limitação da plenitude de defesa, mas acerca da inconstitucionalidade da discriminação, do feminicídio e da violência contra a mulher, porque essa é a verdadeira razão de ser da decisão.

O Compromisso do Estado brasileiro assumido quando da ratificação da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, implica em adotar políticas públicas efetivas por todos os órgãos do Estado, incluindo  aí o Poder Judiciário, que deve promover também a Convenção e os artigos da Constituição que colocam como obrigação do Estado a promoção da igualdade de gênero, bem como a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

A decisão cautelar na ADPF 779 representa um constitucionalismo que caminha pari passu à democracia e aos direitos humanos e a um julgamento com perspectiva de gênero e que, ao contrário do que alguns argumentam, não limitou o exercício da advocacia no Tribunal do Júri e nem cerceou a plenitude de defesa, apenas lembrou que a atuação do defensor perante os jurados deve ser ética e priorizar a vida, compromissada com os demais direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

Ainda, é preciso ter clareza que a imposição dessa restrição poderá gerar uma reação dos que atuam no plenário e a adoção de outro argumento para justificar a conduta do homem que mata a mulher “em nome de sua honra”, tal como a inexigibilidade de conduta diversa, ainda pouco explorado nos casos de feminicídio.

Essa tese configura uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade e pode ser alegada quando diante de uma situação fática não seria possível exigir do sujeito a realização de outra conduta, senão aquela descrita no tipo penal e não autorizada pela legislação.

Assim, o advogado poderia arguir que seu cliente abalado pelo ciúme e pelo sentimento de traição matou sua esposa ou companheira, como qualquer homem faria em seu lugar.

Entretanto, não se pode esquecer que esse argumento foi usado pelos criminosos de guerra alemães para eximir-se das atrocidades do holocausto, o que por si só diz muito sobre aqueles que decidirem utilizá-lo desmedidamente para exculpar feminicídios.

Portanto, não é demais repetir que o Supremo Tribunal Federal tem papel contramajoritário e deve ser, sim, ativista para proteção de direitos das mulheres. Não se trata de tema meramente político ao qual caiba ao STF ser deferente às esferas políticas, ao contrário, num país com altos índices de violência contra a mulher por seus próprios companheiros, aceitar a legítima defesa da honra como possível argumento de defesa seria atuar justamente de modo contrário à Constituição e aos Tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Como foi dito, nenhuma garantia ou direito fundamental é absoluta e que não há que se pensar em teorias da pena ou do delito que não sejam compatíveis com a moralidade política alicerçada na Constituição de 1988.

Pensar que o direito penal ou processual penal pode ter uma realidade paralela só utilizando a Constituição para as normas que trazem garantias penais é uma visão que ainda não compreendeu princípios básicos de interpretação constitucional, como da supremacia e da unidade da Constituição.

Não podemos admitir que o conteúdo dos significados da Constituição seja construído a partir de teorias concebidas ainda sob a égide de um sistema machista e patriarcal. A Constituição exige um compromisso com a dignidade da pessoa humana, da não discriminação, da prevalência dos direitos humanos e com os direitos humanos das mulheres de ter liberdade e igualdade nas suas escolhas e proteção contra toda e qualquer forma de violência.

Não basta que o STF não reproduza o machismo é preciso também ser antimachista, é preciso que o compromisso do STF com a promoção da igualdade de gênero tenha de fato reflexo também no sistema penal, onde a violência contra a mulher é mais explícita.

Esperamos que a cautelar do ministro Toffoli seja ratificada pelos demais ministros e promova de fato mudanças nos estereótipos, comportamentos e, principalmente, na atuação do sistema de justiça criminal.

MARINA BONATTO – Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição da UFPR. Advogada.
ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-vida-da-mulher-e-a-honra-do-homem-09032021

A inconstitucionalidade do desrespeito à autonomia para nomeação de reitores

A inconstitucionalidade do desrespeito à autonomia para nomeação de reitores

Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza, Gustavo Buss e Kamila Maria Strapasson

O processo de nomeação de reitores e vice-reitores para as universidades públicas brasileiras se encontra regido pelo artigo 16, inciso I, da Lei Federal nº 5.540/68, que dispõe que os reitores serão nomeados pelo presidente da República entre professores, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo.

Posteriormente, reforçando a previsão contida na legislação federal, foi editado o Decreto Federal nº 1.916, de 23/5/1996, cuja redação dá maior dimensão para o procedimento de consulta à comunidade acadêmica para elaboração da lista tríplice referida no artigo supracitado.

Diante da constatação de que a apresentação da lista tríplice pela instituição universitária é antecedida de um rigoroso processo de consulta comunitária, que contempla em seu colégio eleitoral docentes, servidores técnicos e discentes, desde 2003 restou assentada a prática costumeira de nomeação pelo presidente da República do primeiro nome da lista [1], em respeito à autonomia universitária assegurada constitucionalmente no artigo 207 da Constituição Federal de 1988.

Recentemente, sob o governo Bolsonaro, tal prática restou absolutamente relegada, tendo havido diversas nomeações ao cargo de reitor de postulantes que foram os últimos colocados nas respectivas consultas públicas, com índices percentuais irrisórios, os quais compartilhavam a mesma ideologia do presidente.

Até setembro de 2020, 14 dos 25 reitores indicados pelo presidente Jair Bolsonaro não eram os primeiros colocados da lista tríplice, conforme levantamento da Andifes [2]

Nesse âmbito, um exemplo notório é o da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Naquela ocasião, a chapa nomeada pelo presidente para ocupar os cargos de reitor e vice-reitor obteve apenas 18,33% na consulta interna à comunidade, tendo alcançado a terceira e última posição na lista tríplice [3].

O que se destaca na postura do atual governo, especialmente em sua condução do campo científico e educacional, é o endosso de discursos anti-intelectuais fundamentados em uma política autoritária de controle sobre discursos acadêmicos que se consideram contrários aos seus interesses.

Tal postura de confronto entre a administração federal e as universidades públicas já se revela notória, tendo desde 2019 se observado os primeiros movimentos de ataque às mesmas pelo governo federal, especialmente quando do contingenciamento de 28,46% do orçamento para o setor de educação, que restou distribuído de maneira claramente desigual, onerando principalmente a educação superior [4].

Posteriormente, houve novos embates importantes com a edição da Portaria nº 34/20 pela Capes, implicando em extensivo corte na ferramenta de custeio para programas avaliados em extratos mais baixos, e após publicação de edital pela CNPq para ofertar 25 mil bolsas de pesquisa, excluindo cursos de áreas como educação, direito, economia, ciências sociais e filosofia [5].

Outro exemplo da ingerência na autonomia universitária pelo governo federal foi a edição da Medida Provisória nº 979, de 9 de junho de 2020. A MP previa que, em caso de término de mandato dos atuais dirigentes durante a pandemia da Covid-19, seria designado reitor e vice-reitor pro tempore para universidades federais pelo ministro da Educação, sem um processo de consulta à comunidade. Considerando seu teor, a MP foi devolvida ao Executivo pelo presidente do Congresso tendo em vista a afronta aos artigo 206, inciso VI, e artigo 207 da Constituição. 

Tais condutas reiteradas demonstram a existência de uma agenda específica por parte do governo federal, que busca em slogans de discricionariedade executiva e reformulação técnico-científica do ensino universitário uma ferramenta para perseguição contra grupos e campos específicos do pensamento crítico [6].

Reiterando essa visão, estudo publicado pelo Global Public Policy Institute (GPPi), em setembro de 2020, salienta que as ameaças à liberdade acadêmica no Brasil perpassam, entre outros aspectos, canais de denúncias de reclamações políticas e ideológicas, declarações falsas sobre a comunidade acadêmica e novas normas e interpretações que afetam a governança institucional, aparentando estar em curso nas novas medidas governamentais ameaças mais graves que objetivam aumentar o controle sobre as universidades [7].

As posturas do governo Bolsonaro revelam a cristalização da posição autocrática e atentatória na condução da pauta educacional, que não consegue aceitar a pluralidade e a diferença como constitutivas do espaço universitário. Quando se fala em educação pública superior no Brasil, a autonomia de ensino e gestão, bem como a progressividade e isonomia no trato das diferentes instituições e das diferentes áreas do saber, integram a garantia social básica traçada no texto constitucional.

Cabe salientar que a autonomia administrativa, que envolve a capacidade de organização das universidades e de autogoverno por seus próprios membros, possui uma função instrumental em relação à autonomia didático-científica [8]. Nesse ponto, a designação de reitores e vice-reitores afeta não apenas a autonomia administrativa, mas também, em última instância, a autonomia didático-científica das universidades federais.

Tal contexto atentatório às garantias de democracia e autonomia universitária não passam despercebidos aos diferentes setores políticos brasileiros. Há notícia de que o Partido Verde (PV) propôs a ação direta de inconstitucionalidade, autuada sob nº 6565 e distribuída para a relatoria do ministro Edson Fachin, atacando o artigo 16, inciso I, da Lei Federal nº 5.540/68 e o artigo 1º do Decreto Federal nº 1.916, de 23/5/1996.

Em pedido liminar, a ação busca a suspensão da vigência dos artigos atacados, para suspensão das nomeações nos processos em curso e para que sejam nomeados exclusivamente os candidatos mais votados nas consultas realizadas junto à comunidade acadêmica. No mérito, busca a declaração da inconstitucionalidade dos referidos artigos.

Cumpre enfatizar que não se trata da primeira ocasião em que o STF é instado a se manifestar acerca da possibilidade de nomeação discricionária de reitores e vice-reitores na vigência da Constituição Federal de 1988. A ADI 51, do Rio de Janeiro, atacava a Resolução nº 02/88 do conselho universitário da UFRJ, que dispunha sobre a eleição junto à comunidade acadêmica.

Naquela hipótese, houve decisão unânime do tribunal, nos termos do voto de relatoria do ministro Paulo Brossard, no sentido de que a resolução usurpava a competência do presidente da República, determinando que o vencedor da eleição junto à comunidade acadêmica fosse imediatamente empossado pelo conselho universitário. Enfatizou-se que a garantia de autonomia assegurada no artigo 207 da Constituição não se revela absoluta, e nem afasta as prerrogativas igualmente conferidas ao Poder Executivo na nomeação de cargos públicos federais (artigo 84, inciso II, da Constituição).

Em sentido análogo, o STF apreciou a ADI 578, em que se impugnou o artigo 213, §1º, da Constituição Estadual, que previa que os diretores de escolas públicas estaduais seriam escolhidos mediante eleição direta e uninominal pela comunidade escolar. O voto vencedor, de relatoria do ministro Maurício Coreia, enfatiza que a nomeação para cargos diretivos é discricionária pelo chefe do Poder Executivo, diante do contido no artigo 84 da Constituição Federal, decretando a inconstitucionalidade da previsão contida na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.

Entretanto, há dois importantes votos divergentes na ação indicada, dos ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. Tal dissenso busca ressaltar a previsão de gestão democrática da educação e de autonomia institucional e administrativa, tornando salutar a existência de um processo eleitoral direto da comunidade escolar ou universitária, que não fere a disposição do artigo 84 da Constituição Federal, que claramente condiciona a prerrogativa de nomeação à forma da lei.

Contudo, tais decisões da corte se deram em um contexto político distinto, tendo transitado em julgado, respectivamente, em 1993 e 2001, não devendo prevalecer na atualidade a visão de ampla discricionariedade pelo chefe do Poder Executivo na nomeação de reitores. Isto é, nessa nova conjuntura política de ataque do Poder Executivo à autonomia universitária, é o momento de o STF enfrentar o tema e realizar um overruling em relação aos seus entendimentos anteriormente expostos, revendo eventuais deferências a uma discricionariedade que pode se revelar despótica, para assegurar a estrita observância dos princípios constitucionais que asseguram a gestão democrática e a autonomia universitária, exercendo seu papel de contrapeso ao executivo.

Assim, alçada a discussão à esfera da autonomia universitária, é imperativo o reconhecimento de que o STF já teve oportunidade de, em contextos diferentes, mas que dialogam por bases comuns, assegurar sua imposição.  Nesse ponto, ao analisar as normativas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, o STF, a partir do método indutivo, deverá considerar os precedentes já estabelecidos recentemente, os quais vêm reafirmando a importância do princípio da liberdade de expressão e da autonomia universitária. Por oportuno, serão ressaltados três casos recentes julgados pela corte e cujo escrutínio deve auxiliar na compreensão da análise ora colocada.

Em primeiro lugar, de forma mais geral, evidenciando as bases do direito à educação, a ADPF 457, julgada em 27/4/2020, que discutia a proibição de divulgação de material com informação de ideologia de gênero em escolas municipais, ressalta no voto de seu relator, Alexandre de Moraes, a necessidade de respeito aos princípios da liberdade de aprender e ensinar, ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como à liberdade de expressão.

Já a ADPF 548, julgada em 15/5/2020, reafirma o princípio constitucional da autonomia universitária ao, por unanimidade,  declarar nulas decisões que proibiram atos com temática eleitoral nas universidades em 2018 e declarar inconstitucional a interpretação dos artigos 24 e 37 da Lei 9.504/1997 para justificar atos judiciais ou administrativos que admitam o ingresso de agentes públicos em universidades, entre outros.

O voto da ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, tratando do princípio constitucional da autonomia universitária, trouxe ênfase a necessidade da garantia do pluralismo de ideias e ao direito às liberdades de expressão do pensamento, salientando que: “Os atos questionados cercearam o princípio da autonomia universitária porque se dirigiram contra comportamentos e dados constantes de equipamentos havidos naquele ambiente e em manifestações próprias das atividades-fim a que se propõem as universidades”. Ainda: “A autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais”.

Por sua vez, de forma mais específica, a ADI 3.792, que trata sobre a obrigação de a UERN prestar serviço de assistência judiciária, durante os finais de semana aos necessitados presos em flagrante delito, destaca que o princípio da autonomia universitária impede a indevida ingerência no âmago próprio das funções da universidade, assegurando à universidade a possibilidade de dispor sobre sua estrutura e funcionamento administrativo.

Tais casos denotam que, em um cenário de modificação das condições políticas do país, com uma postura de intervenção do executivo na autonomia universitária e desrespeito à escolha da comunidade acadêmica, a interpretação literal dos dispositivos normativos não pode mais ser admitida à luz da Constituição e de seus princípios. São justamente por trás de pequenos atos, ditos excepcionais, tensionando as garantias e limites legitimamente colocados, que residem as bases para a desconstrução democrática em contextos de constitucionalismo abusivo [9].

Nesse contexto, incumbe aos poderes constituídos, em especial ao judiciário, que fará a análise em controle concentrado de constitucionalidade, que se coloquem como guardiões da Constituição, a qual assegura a autonomia universitária enquanto princípio substantivo e fundante do Estado democrático instaurado a partir de 1988. A resposta a ser dada pelo STF em relação aos dispositivos normativos deverá demonstrar a importância do constitucionalismo liberal enquanto projeto ativo e militante na proteção das garantias constitucionais em seu aspecto material e substantivo. 

[1] MENDES, Conrado Hübner. et al. Academic Freedom in Brazil: A Case Study on Recent Developments. Global Public Policy Institute (GPPi), setembro de 2020, p. 15.

[2] Lupion, Bruno. Relatório aponta sério risco à liberdade acadêmica no Brasil. DW. Data 20.09.2020. Disponível em: https://p.dw.com/p/3ikCY>. Acesso em: 24/09/2020.

[3] Ufersa. Consulta para lista tríplice à reitoria da ufersa. 18/09/2020. Disponível em: <https://assecom.ufersa.edu.br/2020/05/21/consulta-para-lista-triplice-a-reitoria-da-ufersa/>. Acesso em 24/09/2020.

[4] OLIVEIRA, Ribamar. Corte em universidade chega a 52% da verba. Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/coluna/corte-em-universidade-chega-a-52-da-verba.ghtml>. Acesso em: 10/06/2020.

[5] SALDAÑA, Paulo. Governo Bolsonaro exclui humanas de edital de bolsas de iniciação científica. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/governo-bolsonaro-exclui-humanas-de-edital-de-bolsas-de-iniciacao-cientifica.shtml>. Acesso em: 10/06/2020.

[6] Nesse sentido, é relevante o estudo realizado quanto aos marcos da autocracia evidentes no governo do Presidente Jair Bolsonaro: BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; INOMATA, Adriana. Constitucionalismo Abusivo e o Ataque ao Judiciário na Democracia Brasileira. In: CONCI, L. G. A.; DIAS, R. (org). Crise das democracias liberais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019.

[7]MENDES, Conrado Hübner. et al.  Academic Freedom in Brazil: A Case Study on Recent Developments. Global Public Policy Institute (GPPi), setembro de 2020, p. 4.

[8] MOTTA, Fabrício Macedo. Autonomia universitária e seus reflexos na escolha dos dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 116, pp. 277-307, jan./jun. 2018, p. 289.

[9] BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; FILHO, Ilton Norberto Robl, Constitucionalismo Abusivo, Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 12, n. 39, p. 79–97, 2019, p. 85.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-out-04/opiniao-desrespeito-autonomia-nomeacao-reitores

Conceito constitucional de democracia em risco

Conceito constitucional de democracia em risco

A diferença não deve(ria) nos tornar inimigos

Por ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLÁUDIA BEECK

A Constituição Brasileira determina que o Estado se consolida como Estado Democrático, tendo por fundamento o pluralismo político. O atual presidente elegeu-se a partir de um discurso que equivale o conceito de democracia unicamente à realização dos interesses da maioria eventual vencedora do pleito eleitoral, que coloca os adversários políticos como inimigos.

Esta contradição tem implicado fortes tensões, agora especialmente nas manifestações públicas e protestos, a ponto de que mesmo aqueles que defendem a intervenção militar, o façam sob o suposto manto da defesa da Constituição e da democracia.

É certo que o Texto Constitucional é aberto e fluído e que a característica da textura das normas constitucionais permite uma ampla margem de interpretação e disputa em relação ao sentido destas normas.

Todavia, fora deste espaço de disputa, existem propriamente leituras e interpretações que são absolutamente inapropriadas e mesmo inaceitáveis do ponto de vista constitucional. Existe na Constituição uma reserva de justiça diante da qual confrontando-se a interpretação proposta, esta poderá ser invalidada e considerada inconstitucional[1].

A noção do que seja a democracia pode ser inserida nessa colocação. Existem diversas concepções de democracia que podem ser compatíveis com a Constituição de 1988, mas existem sentidos com os quais ela é absolutamente incompatível.

A Constituição não aceita um entendimento a respeito da democracia que esvazie o valor da diferença e do dissenso e, nessa linha, os atos que intentam a validação desta espécie de conceito fraco de democracia, violam e atacam a Constituição.

O texto da Constituição de 1988 consagra já no artigo primeiro, como princípio fundamental para a constituição de um Estado Democrático de Direito, o pluralismo político. Nisso reside a ideia de que a legitimidade do poder reside na soberania popular, mas também aliada a uma conjugação relevante entre a noção clássica de democracia participativa (que reside na participação a partir do voto), a noção de democracia deliberativa (que implica um processo qualitativo de participação, especialmente em relação as condições do debate) e, ainda, uma noção de democracia pluralista (receptiva em relação a diversidade e ao dissenso).

A inserção de um elemento qualitativo no conceito de democracia, tal qual engendrado pela Constituição, interessa, pois, além do elemento de legitimação da aquisição e do exercício do poder, soma-se o elemento relacionado ao reconhecimento de valores que garantem que a democracia não se tornará unicamente um regime de sujeição das minorias.

Tomando esse sentido, portanto, a Constituição assegura a democracia exatamente pela dimensão de manutenção do pluralismo e da diferença. A democracia é sempre um processo, não de sedimentação de identidades pré-constituídas, mas da própria constituição dessas identidades.

A interpretação judicial da Constituição, no período pós-88, também tem se inclinado no sentido de compreender a democracia tendo por fundamento o pluralismo político e a diversidade, e foi utilizando esse fundamento que o STF votou, por exemplo, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, proibiu as doações de pessoas jurídicas para partidos políticos, autorizou as normas que estipulavam sistemas de reserva de vagas com base em critérios étnicos raciais e entendeu constitucional lei que assegura o transporte interestadual gratuito para pessoas com deficiência. Até o momento, a leitura que o STF faz do conceito constitucional de democracia implica a convocação do Estado e da sociedade para que promovam uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Pesquisas no âmbito da ciência política demonstram que a partir de 1988 há um crescente apoio da opinião pública em relação à democracia e um crescente entendimento do conceito pela população, tanto em relação a noção de liberdade política, como em relação ao componente de fiscalização das instituições.[2]

É certo que a partir de 2014 até 2017 notou-se um recuo da taxa de apoio a democracia, especialmente entre os menos instruídos e mais pobres. Todavia, as pesquisas mais recentes, a partir de 2018, que contemplam já a interferência do fenômeno das fakenews, seguem confirmando que o valor da democracia persiste na opinião pública, como a melhor forma de governo. O descontentamento em relação à democracia, segundo as pesquisas, advém não exatamente da rejeição ao modelo, mas propriamente da incapacidade de sua efetivação de maneira eficaz.

Portanto, a noção de democracia compartilhada a partir da Constituição de 1988, a interpretação dada ao conceito pela doutrina de direito constitucional, pela jurisprudência pátria e pela sociedade civil, é uma noção que supera a mera nota da vontade da maioria apresentada espaçadamente nas urnas. Se trata de uma noção materializada, que implica no reconhecimento do pluralismo, da multiculturalidade, da diferença como parte importante do próprio processo de aprendizado democrático.

Bolsonaro manifesta uma concepção de democracia exclusivamente embasada na aplicação da regra da maioria. Na sua perspectiva, a democracia seria aliada à uma concepção de igualdade exclusivamente formal, que impediria, por exemplo, a adoção de políticas estatais específicas para grupos minoritários.[3] Consolidando sua posição, não é incomum que o presidente se refira pejorativamente às minorias, agredindo-as e ridicularizando-as.[4]

É certo que existe um fenômeno mundial de ascensão de regimes autoritários. Como afirma Scheppele, a democracia liberal na atualidade é uma marca danificada.[5] O ineditismo da situação não está exatamente no fato de uma força autoritária qualquer intentar ascender e dominar o poder, subordinando a Constituição. Tradicionalmente o constitucionalismo convive com os ataques e golpes.

O que diferencia o fenômeno comentado no momento é, em verdade, uma espécie de dissimulação. Os novos agressores da Constituição concorrem em eleições, discursam em prol da Constituição e se utilizam da própria estrutura constitucional para comprometer a Constituição. Isso faz com que seja muito difícil tanto para os analistas internacionais, como para os próprios órgãos de controle interno identificarem os danos e evitá-los em tempo.[6]

O risco diante dessas situações não é propriamente um golpe que expressamente derrube e aniquile a Constituição. O risco se caracteriza pela aniquilação do sentido da Constituição, pois alterando a forma de compreender a Constituição, ela pode deixar de ser o que é.

Uma Constituição precisa ser compreendida pela sua leitura sistemática, pela irradiação de seus princípios, fundamentos e direitos em relação a compreensão do todo constitucional. Mesmo medidas administrativas, de programação de gastos e de gestão de pastas ministeriais, por exemplo, precisam levar em consideração esse amplo contexto constitucional, sob pena de feri-lo e violá-lo.

Para análise do caso brasileiro é necessária a consideração de que o atual presidente da República manifesta publicamente um conceito de democracia restrito, que não correspondente ao conceito constitucional compartilhado e esse é o conceito replicado por seus apoiadores.

Não há por eles uma declarada negação da democracia , pelo contrário, declaram aceitar a democracia e declaram inclusive protegê-la. Todavia, é muitas vezes incompatível com a Constituição o conceito de democracia que pretendem aceitar e proteger.

Sendo assim, a análise do risco que isto pode impor ao constitucionalismo brasileiro, depende, principalmente, de se denunciar essa ideia de democracia restrita. É preciso que esteja sólida a compreensão de que o conceito constitucional de democracia não aceita uma interpretação que nega o pluralismo político e a diversidade, bem como pretende elevar o Executivo a uma suposta superioridade decorrente do pleito eleitoral.

O Judiciário e o Legislativo, além de todas as instituições de controle e também a sociedade civil, precisam estar atentos para impedir, pela desaprovação, pela sustação de efeitos, pela declaração de inconstitucionalidade, pela denúncia e pelo protesto, os atos que coloquem em prática uma concepção de democracia que afronte o desenho constitucional afirmado no pós-88.


[1] Aqui utiliza-se a expressão no sentido cunhado por Vieira. Para mais ver: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça. Lua Nova [online], 1997, n. 42, 79. ISSN 0102-6445. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451997000300003>.

[2] Moisés, José Álvaro. Os significados da democracia segundo os brasileiros, Opinião Pública, vol.16, n. 2, Nov., 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext& pid=S0104-62762010000200001>.

[3] Para comprovação: “Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso”. Vamos acabar com o coitadismo de nordestino, de gay, de negro e de mulher, diz Bolsonaro. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/vamos-acabar-com-coitadismo-de-nordestino-de-gay-de-negro-e-de-mulher-diz-bolsonaro.shtml>. Bolsonaro critica superpoderes a minorias e ataca movimentos sociais. Veja, 29/10/2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-critica-superpoderes-a-minorias-e-ataca-movimentos-sociais/>. Bolsonaro em 25 frases polêmicas. Terra, 28/10/2018. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-em-25-frasespolemicas,42807775f ee5ce8d514c2e0b803b7969u8szhqse.html>.

[4] Ansa. Brasil não pode ser país do mundo gay. Istoé. 24/05/2019. Disponível em: <https://istoe.com.br/brasil-nao-pode-ser-pais-do-mundo-gay-diz-bolsonaro/ >. Bolsonaro: prefiro filho morto em acidente a um homossexual. Terra. 08/06/2011. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexual, cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.

[5] Scheppele, Kim Lane. Worst practices and the transnational legal order (or how to build a constitutional “democratorship” in plain sight). Disponível em: <https://www.law.utoronto.ca/utflfilecount/documents/events/wrightscheppele2016.pdf?fbclid=IwAR0BdfpftNawJzPHx8GenpNBiw4DImF6UV9f_eU57CA3Gs1Q6PEQSJnDa9g>.

[6] Landau, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis Law Review, vol. 47, 2013. Disponível em: <https://lawreview.law.ucdavis.edu/issues/47/1/Articles/47-1Landau.pdf. >

ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLÁUDIA BEECK – Doutoranda em Direito do Estado pela UFPR, Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição- CCONS, idealizadora do canal cesta básica constitucional: https://www.youtube.com/channel /UCrj WgMrf2mcLeZXsg6AIZaA.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conceito-constitucional-de-democracia-em-risco-07062020