Julgamento com perspectiva de gênero: a ADI 6138 e o STF

Trecho da Lei Maria da Penha alvo de questionamento protege as mulheres mais vulnerabilizadas pela violência

Por Estefânia Barboza, André Demetrio e Clara Maria Roman Borges

ADI 6.138/DF, ajuizada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), entrou na pauta de julgamentos do STF, com previsão de ir ao plenário no próximo dia 16 de março. A ação busca declarar inconstitucional o artigo 12-C, incisos II, III, e parágrafo primeiro, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Tais dispositivos permitem à autoridade policial afastar o agressor quando comprovada a existência de risco iminente ou atual à integridade ou à vida da vítima. Nesse ponto, é obrigatória a comunicação ao juiz no prazo máximo de 24 horas, para mantimento ou revogação da medida aplicada.

A AMB sustenta que a atribuição de poder à autoridade policial para afastar o agressor, conforme dito anteriormente, institucionaliza o Estado policial, desrespeita a separação dos Poderes (art. 2º da CF), mitiga o devido processo legal (art. 5o, incisos XV e LIV da CF), vulnerabiliza o direito à inviolabilidade de domicílio (art. 5o, inciso XI da CF), e desrespeita a reserva de jurisdição (art. 2º da CF). Portanto, a AMB entende que este dispositivo é incompatível com o texto constitucional e deve ser declarado inconstitucional pela Suprema Corte.

Nesse contexto, informações não faltam para retratar a gravidade que é ser mulher no Brasil. Conforme dados do Atlas da Violência, 3.737 mulheres foram assassinadas em 2019, e segundo a Nota Técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um crescimento de 22,2% nos feminicídios entre 2019 e 2020. Além disso, verifica-se que no período pandêmico, existiu uma diminuição no número de medidas protetivas e de urgência, principalmente no Acre (-31,2%), no Rio de Janeiro (-28,7%) e no Pará (-8,2%).

Diante desse cenário, é sabido que o Estado brasileiro assumiu compromissos internacionais para a promoção da igualdade de gênero e para a criação de mecanismos que coíbam a violência doméstica e familiar contra mulheres. Citam-se, como exemplos, a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), das Leis 13.104/2015 e 14.188/2021, que estabeleceram as qualificadoras do homicídio e da lesão corporal, quando praticados em razão da condição do sexo feminino, e a tipificação da violência psicológica contra a mulher, bem como a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Voltamos então, ao problema inicial, que basicamente envolve o conflito entre a reserva de jurisdição e a integridade física, vida e dignidade da mulher. Veja-se, que, conforme a leitura minuciosa do dispositivo legal, trata-se de medida de exceção, estabelecendo-se requisitos para sua prática: i) comprovação de risco iminente ou atual à mulher; ii) decretada por autoridade policial somente quando o município não for sede de comarca; e iii) obrigatoriamente informar a autoridade judicial para decidir sobre as medidas instauradas no prazo máximo de 24 horas.

Pois bem, considerando os dados do CNJ, observa-se que as comarcas estão localizadas em apenas 48,5% dos municípios brasileiros, e que 90,3% da população reside nesses municípios-sedes da Justiça estadual. Por outro lado, verifica-se que esses números não são homogêneos, e demonstram a discrepância entre estados, por exemplo, Tocantins (71,7%), Paraíba (77,4%), Piauí (77,6%), Rio Grande do Norte (81,5%) e Roraima (82,4%). Consequentemente, esses elementos ilustram que considerável parte da população desses estados não conta com estruturas físicas do Judiciário, o que certamente dificulta o acesso à Justiça.

Tal diagnóstico nos permite trazer algumas indagações para o debate público: será que todos os municípios possuem uma estrutura razoável que possibilite à autoridade policial submeter de imediato a um juiz o pedido de medida protetiva de afastamento do lar para dar prosseguimento ao atendimento da mulher vítima de violência doméstica e familiar? Quantas vítimas residem em municípios com difícil acesso? Fato é, que considerando as realidades do Brasil, nem todo município brasileiro deve dispor de uma rede de atendimento para auxiliar essas demandas.

Essa discussão também denota a importância em observação do “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021”, fundamentado pelas Resoluções do 254 e 255, do CNJ. Esse documento busca responder de maneira equânime à aplicabilidade de direitos fundamentais, e é efeito de uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Barbosa de Souza e outros versus Brasil.

O protocolo é estruturado em três eixos: i) na primeira parte apresenta os conceitos fundamentais para se promover uma perspectiva de gênero; ii) na segunda fase, descreve procedimentos metodológicos para incluir uma lente de gênero no direito, e por fim, iii) identifica como o gênero permeia questões específicas na prática da justiça, como por exemplo, na Justiça estadual.

Sob o olhar desse protocolo, os poderes públicos devem adotar procedimentos que incidem perspectivas de gênero sob um olhar interseccional, tanto na produção, como na aplicação do direito. No caso em concreto, observa-se que o direito à vida e à integridade física e psíquica da mulher devem prevalecer sobre as supostas mitigações e violações levantadas na ADI.

Relembremos que, conforme leitura dos incisos II e II do artigo 12-C, tal medida excepcional somente é permitida quando o município não for sede de comarca, isto é, atingindo exclusivamente vítimas residentes em lugares longínquos, onde o Estado não se faz presente e os direitos fundamentais, principalmente das mulheres não brancas e pobres, costumam ser negligenciados.

Na mesma linha, o texto legal especifica que a medida de afastamento do lar decretada por autoridade policial deverá ser submetida ao crivo do juiz em 24 horas, para que seja verificado o seu cabimento e a necessidade de sua manutenção. Nesse caso, observa-se uma semelhança com a situação de flagrância de um crime, em que a autoridade policial tem o dever de agir e prontamente prender o agente para fazer cessar a prática delitiva e para preservar as provas que estão em seu poder, podendo inclusive adentrar o domicílio sem autorização do dono ou ordem judicial. Por outro lado, de acordo com o art. 310, do Código de Processo Penal, igualmente tem a obrigação de submeter no prazo de 24 horas o auto de prisão em flagrante ao juiz, que realizará uma audiência de custódia para decidir se relaxa a prisão por ilegalidade, decreta a prisão preventiva ou concede liberdade provisória.

Pode-se argumentar que a prisão em flagrante está expressamente autorizada no art. 5º, LXI, da CF, enquanto o afastamento do lar em casos de violência contra mulher não ganha literalidade no texto constitucional e por esse motivo tais institutos devem ser compreendidos de formas diversas. Entretanto, o direito à vida e à integridade física, que servem de fundamento para autorizar o imediato afastamento do agressor do lar, quando ele representa risco atual ou iminente à integridade da vítima, encontram-se expressamente  assegurados no texto constitucional. Inclusive esses direitos servem de fundamento para autorizar a legítima defesa, ou seja, para afastar a ilicitude da conduta da pessoa que se utiliza moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente a direito seu ou de outrem, conforme prevê o art. 25, do Código Penal.

Ressalte-se que o afastamento do lar decretado pela autoridade policial não tem natureza de medida cautelar, que visa a garantir o resultado do processo ou impedir que o agressor continue a praticar violência contra a vítima durante a instrução criminal, mas tem por objetivo fazer cessar o risco imediato de novas agressões, as quais podem naturalmente terminar na tragédia do feminicídio. Ademais, esse ato administrativo colocará o agressor à disposição do juiz para que decida fundamentadamente sobre a decretação ou não de uma medida protetiva de afastamento do lar, assim como argumenta Aury Lopes Jr. ao discorrer sobre a prisão em flagrante. Portanto, entende-se que o art. 12-C, da Lei Maria da Penha, não mitiga as garantias da reserva de jurisdição e do devido processo legal, uma vez que a medida de afastamento do lar será realizado de forma emergencial pela autoridade policial, mas em seguida será decidida pelo juiz e submetida ao contraditório, como ocorre nos casos de prisão em flagrante.

Além disso, é preciso ter claro que o art. 150, § 3º, II, do Código Penal, define que não haverá crime quando a qualquer hora do dia ou da noite se adentra o domicílio de alguém para impedir uma prática delituosa iminente ou que já se encontra em andamento. Isso significa que a autoridade policial, ao afastar do lar o agressor, não violará ou vulnerabilizará o domicílio, porque só executará essa drástica medida nos casos em que houver risco atual ou iminente à vida ou à integridade da vítima, isto é, quando houver risco atual ou iminente de um crime contra a mulher com quem o agente coabita, tal como autoriza a própria legislação penal.

Por fim, considerando a realidade de nosso país, a discrepância entre municípios, a obrigatoriedade constitucional de se proteger o direito à dignidade, à vida, à integridade da mulher, e que o dispositivo em discussão é extremamente limitador sobre quais casos é possível sua aplicabilidade, entendemos que é chegada a hora de julgar com perspectiva de gênero, e declarar constitucional o artigo 12-C, incisos II e III da Lei Maria da Penha, principalmente porque se destina a proteger as mulheres mais vulnerabilizadas pela violência na sociedade brasileira, aquelas que são pobres, não brancas e sobrevivem abandonadas pelo poder público nos municípios recônditos do Brasil.

A norma impugnada vai justamente de acordo com a obrigação constitucional (art. 226,  § 8º) do Estado brasileiro de coibir a violência no âmbito das relações de família e contra a mulher, buscam assegurar pilares fundamentais do Estado brasileiro, a igualdade, a liberdade, a dignidade e a integridade física e moral das mulheres.

Não há qualquer justificativa para que, em eventual ponderação entre direitos fundamentais ou entre estes e garantias fundamentais, possa se imaginar que a garantia da reserva de jurisdição ou que a inviolabilidade do domicílio possam se sobrepor à proteção da pessoa humana. Ao contrário, a reserva de jurisdição e a inviolabilidade do domicílio só existem porque são garantias à pessoa humana contra o abuso do Estado, não cabendo outra interpretação que possa subverter seu sentido.

 

ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
ANDRÉ DEMETRIO – Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Graduando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina
CLARA MARIA ROMAN BORGES – Mestre e doutora pela UFPR. Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max-Planck Institute für europäische Rechtsgeschichte.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/julgamento-com-perspectiva-de-genero-adi-6138-stf-19022022?amp