Conceito constitucional de democracia em risco

A diferença não deve(ria) nos tornar inimigos

Por ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA e CLÁUDIA BEECK

A Constituição Brasileira determina que o Estado se consolida como Estado Democrático, tendo por fundamento o pluralismo político. O atual presidente elegeu-se a partir de um discurso que equivale o conceito de democracia unicamente à realização dos interesses da maioria eventual vencedora do pleito eleitoral, que coloca os adversários políticos como inimigos.

Esta contradição tem implicado fortes tensões, agora especialmente nas manifestações públicas e protestos, a ponto de que mesmo aqueles que defendem a intervenção militar, o façam sob o suposto manto da defesa da Constituição e da democracia.

É certo que o Texto Constitucional é aberto e fluído e que a característica da textura das normas constitucionais permite uma ampla margem de interpretação e disputa em relação ao sentido destas normas.

Todavia, fora deste espaço de disputa, existem propriamente leituras e interpretações que são absolutamente inapropriadas e mesmo inaceitáveis do ponto de vista constitucional. Existe na Constituição uma reserva de justiça diante da qual confrontando-se a interpretação proposta, esta poderá ser invalidada e considerada inconstitucional[1].

A noção do que seja a democracia pode ser inserida nessa colocação. Existem diversas concepções de democracia que podem ser compatíveis com a Constituição de 1988, mas existem sentidos com os quais ela é absolutamente incompatível.

A Constituição não aceita um entendimento a respeito da democracia que esvazie o valor da diferença e do dissenso e, nessa linha, os atos que intentam a validação desta espécie de conceito fraco de democracia, violam e atacam a Constituição.

O texto da Constituição de 1988 consagra já no artigo primeiro, como princípio fundamental para a constituição de um Estado Democrático de Direito, o pluralismo político. Nisso reside a ideia de que a legitimidade do poder reside na soberania popular, mas também aliada a uma conjugação relevante entre a noção clássica de democracia participativa (que reside na participação a partir do voto), a noção de democracia deliberativa (que implica um processo qualitativo de participação, especialmente em relação as condições do debate) e, ainda, uma noção de democracia pluralista (receptiva em relação a diversidade e ao dissenso).

A inserção de um elemento qualitativo no conceito de democracia, tal qual engendrado pela Constituição, interessa, pois, além do elemento de legitimação da aquisição e do exercício do poder, soma-se o elemento relacionado ao reconhecimento de valores que garantem que a democracia não se tornará unicamente um regime de sujeição das minorias.

Tomando esse sentido, portanto, a Constituição assegura a democracia exatamente pela dimensão de manutenção do pluralismo e da diferença. A democracia é sempre um processo, não de sedimentação de identidades pré-constituídas, mas da própria constituição dessas identidades.

A interpretação judicial da Constituição, no período pós-88, também tem se inclinado no sentido de compreender a democracia tendo por fundamento o pluralismo político e a diversidade, e foi utilizando esse fundamento que o STF votou, por exemplo, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, proibiu as doações de pessoas jurídicas para partidos políticos, autorizou as normas que estipulavam sistemas de reserva de vagas com base em critérios étnicos raciais e entendeu constitucional lei que assegura o transporte interestadual gratuito para pessoas com deficiência. Até o momento, a leitura que o STF faz do conceito constitucional de democracia implica a convocação do Estado e da sociedade para que promovam uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Pesquisas no âmbito da ciência política demonstram que a partir de 1988 há um crescente apoio da opinião pública em relação à democracia e um crescente entendimento do conceito pela população, tanto em relação a noção de liberdade política, como em relação ao componente de fiscalização das instituições.[2]

É certo que a partir de 2014 até 2017 notou-se um recuo da taxa de apoio a democracia, especialmente entre os menos instruídos e mais pobres. Todavia, as pesquisas mais recentes, a partir de 2018, que contemplam já a interferência do fenômeno das fakenews, seguem confirmando que o valor da democracia persiste na opinião pública, como a melhor forma de governo. O descontentamento em relação à democracia, segundo as pesquisas, advém não exatamente da rejeição ao modelo, mas propriamente da incapacidade de sua efetivação de maneira eficaz.

Portanto, a noção de democracia compartilhada a partir da Constituição de 1988, a interpretação dada ao conceito pela doutrina de direito constitucional, pela jurisprudência pátria e pela sociedade civil, é uma noção que supera a mera nota da vontade da maioria apresentada espaçadamente nas urnas. Se trata de uma noção materializada, que implica no reconhecimento do pluralismo, da multiculturalidade, da diferença como parte importante do próprio processo de aprendizado democrático.

Bolsonaro manifesta uma concepção de democracia exclusivamente embasada na aplicação da regra da maioria. Na sua perspectiva, a democracia seria aliada à uma concepção de igualdade exclusivamente formal, que impediria, por exemplo, a adoção de políticas estatais específicas para grupos minoritários.[3] Consolidando sua posição, não é incomum que o presidente se refira pejorativamente às minorias, agredindo-as e ridicularizando-as.[4]

É certo que existe um fenômeno mundial de ascensão de regimes autoritários. Como afirma Scheppele, a democracia liberal na atualidade é uma marca danificada.[5] O ineditismo da situação não está exatamente no fato de uma força autoritária qualquer intentar ascender e dominar o poder, subordinando a Constituição. Tradicionalmente o constitucionalismo convive com os ataques e golpes.

O que diferencia o fenômeno comentado no momento é, em verdade, uma espécie de dissimulação. Os novos agressores da Constituição concorrem em eleições, discursam em prol da Constituição e se utilizam da própria estrutura constitucional para comprometer a Constituição. Isso faz com que seja muito difícil tanto para os analistas internacionais, como para os próprios órgãos de controle interno identificarem os danos e evitá-los em tempo.[6]

O risco diante dessas situações não é propriamente um golpe que expressamente derrube e aniquile a Constituição. O risco se caracteriza pela aniquilação do sentido da Constituição, pois alterando a forma de compreender a Constituição, ela pode deixar de ser o que é.

Uma Constituição precisa ser compreendida pela sua leitura sistemática, pela irradiação de seus princípios, fundamentos e direitos em relação a compreensão do todo constitucional. Mesmo medidas administrativas, de programação de gastos e de gestão de pastas ministeriais, por exemplo, precisam levar em consideração esse amplo contexto constitucional, sob pena de feri-lo e violá-lo.

Para análise do caso brasileiro é necessária a consideração de que o atual presidente da República manifesta publicamente um conceito de democracia restrito, que não correspondente ao conceito constitucional compartilhado e esse é o conceito replicado por seus apoiadores.

Não há por eles uma declarada negação da democracia , pelo contrário, declaram aceitar a democracia e declaram inclusive protegê-la. Todavia, é muitas vezes incompatível com a Constituição o conceito de democracia que pretendem aceitar e proteger.

Sendo assim, a análise do risco que isto pode impor ao constitucionalismo brasileiro, depende, principalmente, de se denunciar essa ideia de democracia restrita. É preciso que esteja sólida a compreensão de que o conceito constitucional de democracia não aceita uma interpretação que nega o pluralismo político e a diversidade, bem como pretende elevar o Executivo a uma suposta superioridade decorrente do pleito eleitoral.

O Judiciário e o Legislativo, além de todas as instituições de controle e também a sociedade civil, precisam estar atentos para impedir, pela desaprovação, pela sustação de efeitos, pela declaração de inconstitucionalidade, pela denúncia e pelo protesto, os atos que coloquem em prática uma concepção de democracia que afronte o desenho constitucional afirmado no pós-88.


[1] Aqui utiliza-se a expressão no sentido cunhado por Vieira. Para mais ver: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça. Lua Nova [online], 1997, n. 42, 79. ISSN 0102-6445. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451997000300003>.

[2] Moisés, José Álvaro. Os significados da democracia segundo os brasileiros, Opinião Pública, vol.16, n. 2, Nov., 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext& pid=S0104-62762010000200001>.

[3] Para comprovação: “Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso”. Vamos acabar com o coitadismo de nordestino, de gay, de negro e de mulher, diz Bolsonaro. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/vamos-acabar-com-coitadismo-de-nordestino-de-gay-de-negro-e-de-mulher-diz-bolsonaro.shtml>. Bolsonaro critica superpoderes a minorias e ataca movimentos sociais. Veja, 29/10/2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-critica-superpoderes-a-minorias-e-ataca-movimentos-sociais/>. Bolsonaro em 25 frases polêmicas. Terra, 28/10/2018. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-em-25-frasespolemicas,42807775f ee5ce8d514c2e0b803b7969u8szhqse.html>.

[4] Ansa. Brasil não pode ser país do mundo gay. Istoé. 24/05/2019. Disponível em: <https://istoe.com.br/brasil-nao-pode-ser-pais-do-mundo-gay-diz-bolsonaro/ >. Bolsonaro: prefiro filho morto em acidente a um homossexual. Terra. 08/06/2011. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexual, cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.

[5] Scheppele, Kim Lane. Worst practices and the transnational legal order (or how to build a constitutional “democratorship” in plain sight). Disponível em: <https://www.law.utoronto.ca/utflfilecount/documents/events/wrightscheppele2016.pdf?fbclid=IwAR0BdfpftNawJzPHx8GenpNBiw4DImF6UV9f_eU57CA3Gs1Q6PEQSJnDa9g>.

[6] Landau, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis Law Review, vol. 47, 2013. Disponível em: <https://lawreview.law.ucdavis.edu/issues/47/1/Articles/47-1Landau.pdf. >

ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ BARBOZA – Mestre e doutora pela PUCPR. Professora de Direito Constitucional da graduação e pós-graduação da UFPR e da Uninter. Pesquisadora do CCOns – Centro de Estudos da Constituição. Co-diretora do ICON-S Brasil. Vice-presidente da Associação ítalo-brasileira de professores de direito administrativo e constitucional.
CLÁUDIA BEECK – Doutoranda em Direito do Estado pela UFPR, Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição- CCONS, idealizadora do canal cesta básica constitucional: https://www.youtube.com/channel /UCrj WgMrf2mcLeZXsg6AIZaA.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conceito-constitucional-de-democracia-em-risco-07062020