Diálogos institucionais ou mordaça legislativa? Riscos do silenciamento do STF

Por Estefânia Maria de Queiroz Barboza, Glauco Salomão Leite e Luiz Guilherme Arcaro Conci

 

 

Como é de amplo conhecimento, alguns parlamentares pretendem apresentar proposta de emenda à Constituição (PEC) que daria ao Congresso o poder de sustar decisões não unânimes do STF. Para tanto, seriam necessários três quintos dos membros da Câmara e do Senado em dois turnos de votação. De início, constata-se um curioso paradoxo: sob o argumento de ausência de unanimidade da decisão do Tribunal, busca-se cassá-la por uma decisão parlamentar igualmente sem unanimidade. Para além desse aspecto quantitativo, o que parece motivar a iniciativa parlamentar, apelidada de “PEC do Equilíbrio entre os Poderes”, é o combate ao ativismo judicial, categoria tão utilizada e pouco esclarecida.

A tentativa de sujeitar decisões do STF à apreciação das instâncias políticas não é nova, podendo ser encontrado algo semelhante na experiência autoritária do governo Vargas sob a Carta de 1937. Esta previa que, se o presidente da República considerasse lei declarada inconstitucional como necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderia submetê-la novamente ao exame do Parlamento. Caso o Poder Legislativo confirmasse a validade da lei por dois terços de votos em cada uma das casas, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal.[1] Com a dissolução do Congresso por ordem de Vargas, o governo pôde unilateralmente anular decisões do STF, o que era feito via decretos-lei, atos com força de lei que, de excepcional utilização, segundo a Constituição, acabaram por se tornar a via usual de regulação normativa daquele período, tendo em vista a ausência de funcionamento do Congresso. A tendência de o excepcional se tornar usual tem raízes em nossa história constitucional.

Já sob a vigência da CF/88, e em um contexto em que alguns segmentos políticos questionavam a hipertrofia do STF, foi apresentada a PEC nº 33 que buscava alterar o quórum para as declarações de inconstitucionalidade (de maioria absoluta para quatro quintos dos membros do STF), condicionava o efeito vinculante de súmulas à aprovação pelo Poder Legislativo e submetia ao Congresso a decisão sobre a inconstitucionalidade de emendas constitucionais. Objetivava-se, com isso, devolver ao Parlamento o poder de decidir sobre temas socialmente relevantes, o que, na visão dos idealizadores da PEC, haviam se deslocados indevidamente para a Suprema Corte, estimulando, dessa maneira, uma espécie de diálogo institucional entre os poderes.

Ao menos quanto à forma, observam-se as semelhanças com a atual proposta que circula nos bastidores da política a pretexto de arrefecer práticas juristocráticas do STF e restaurar o equilíbrio entre os poderes. Entretanto, certos aspectos merecem uma atenção particular, sobretudo quanto à substância e ao contexto em que tal proposta aparece, levando-se em conta os valores que permeiam o constitucionalismo democrático contemporâneo. De fato, o paradigma da Democracia Constitucional projeta no plano dos desenhos constitucionais a delicada combinação entre instituições representativas e majoritárias, responsáveis por decisões políticas de largo alcance, e respeito aos direitos fundamentais, enquanto trunfos contra essas mesmas maiorias, cabendo à jurisdição constitucional o desempenho de um papel contramajoritário. Assim, o Parlamento deixa de ser o único espaço público de mediação de conflitos sociais, ao passo que Cortes Supremas e Tribunas Constitucionais converteram-se em uma nova arena deliberativa nas democracias. O contramajoritarismo serve, portanto, ao fomento de relações institucionais mais equilibradas, evitando que a política atropele o(s) direito(s).

Sob esse ângulo, a PEC em comento não estimula, ao contrário do que se afirma, um mais adequado equilíbrio entre os poderes, muito menos a prática de diálogos institucionais entre juízes e legisladores. Quando compreendidos adequadamente no âmbito do Estado Democrático de Direito, esses diálogos pressupõem a atuação livre e independente das instituições envolvidas e sem pretensões hegemônicas. Ao permitir cassações de acórdãos não unânimes do Tribunal, o que se instaura não é um diálogo, senão um monólogo legislativo, convertendo o Congresso em permanente instância revisora do STF, isto é, em um Tribunal Congressual. Como resultado, tem-se o silenciamento da jurisdição constitucional, o que agride as noções mais elementares que estão na base da Democracia Constitucional e de seus elementos estruturantes, como o sistema de freios e contrapesos e a proteção de direitos fundamentais, especialmente de minorias e grupos vulneráveis.

Por outro lado, a engenharia constitucional pensada pelo constituinte fortaleceu o pluralismo político, não só ao defini-lo como princípio fundamental, mas ao estabelecer um sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados que favorece a presença e existência de partidos minoritários, conferindo-lhes, inclusive, a legitimidade para propor ações abstratas para controle de constitucionalidade no STF, tendo sido os principais atores na judicialização de questões políticas. Esta foi uma decisão de nosso Constituinte de valorizar a participação das minorias nas diferentes esferas de poder e como forma explícita de contenção das decisões majoritárias. Prever a possibilidade de controle majoritário do órgão contramajoritário seria subverter o núcleo e identidade da Constituição.

Pode-se afirmar, ainda, que o desenho constitucional e nossa casa de máquinas pensada pelo Constituinte já previa o protagonismo do STF, especialmente para um sistema de checks and balances que mantinha um presidencialismo com vasta concentração de poderes próprios de nossa história autoritária. Pensar em fragilizar as competências do STF sem rever as competências dos demais poderes vai justamente desequilibrar as relações entre os poderes, já que inviabiliza o papel do STF de guardião da Constituição.

Além disso, não existe uma relação de causalidade entre o empobrecimento institucional do STF e a melhoria do Poder Legislativo. Na verdade, a criação de mecanismos que dificultem o controle de constitucionalidade das leis pode servir justamente para diminuir a accountability do Poder Legislativo, sabendo que suas decisões dificilmente serão revistas pelo STF ou, diante da elevada probabilidade de decisão não unânime da Corte, esta poderá ser suspensa justamente pela instância parlamentar fiscalizada. Em outros termos, o poder fiscalizado pretende reconfigurar, senão inviabilizar, a atuação da instituição fiscalizadora. Seria o mesmo que autorizar o Presidente da República a editar decreto permitindo-lhe sustar os atos do Congresso que sustassem os atos presidenciais. O que se vislumbra, com isso, é que haverá um maior estímulo à tomada de decisões parlamentares sem observância das limitações constitucionais.  Logo, é falacioso supor que o Poder Legislativo irá superar seus problemas funcionais ou que haverá um fortalecimento da democracia, desde que se debilite o STF.  Instituições representativas são o espaço por excelência da vocalização das maiorias eventuais. A menos que se reduza a concepção de povo à ideia de um povo-número ou de povo-eleitor, próprio de uma democracia meramente majoritária e eleitoral, a Democracia Constitucional demanda uma versão pluralista de povo e estrutura instituições independentes voltadas à proteção daqueles grupos não compreendidos nas maiorias e que são igualmente titulares de direitos fundamentais e direitos à proteção estatal. Esse é próprio ethos da jurisdição constitucional.

Além do mais, os grupos que hoje endossam essa reforma constitucional parecem não perceber a importância da jurisdição constitucional para a própria estabilidade política e para que pudessem se tornar as maiorias atuais ou apostam justamente na instabilidade e na crise institucional de nossa democracia. É justamente em razão da preservação das regras do jogo democrático, outra das principais tarefas incumbidas à jurisdição constitucional, que se torna possível a alternância de poder sem rupturas ou perseguições arbitrárias, isto é, as maiorias de hoje foram minorias no passado e poderão ser minorias no futuro. Mesmo assim, merecerão proteção a seus direitos e garantias, não podendo ser atropeladas pela maioria de plantão. Com um Tribunal fragilizado e subordinado à vontade da maioria, as minorias de amanhã terão dificuldades em conter os excessos dos grupos que estiverem no poder.

E com base em qual parâmetro se pretende reverter decisões do STF? A resposta apresentada é o nebuloso conceito de ativismo judicial. Diante da elasticidade e ambiguidade que essa categoria pode assumir no jogo político, logo se percebe que ela será empregada retoricamente todas as vezes em que um grupo político se sentir contrariado pela decisão do Tribunal. Ativismo judicial, portanto, estará nos olhos de quem vê: se a decisão contrariar meus interesses, será ativismo judicial; se for a meu favor, a decisão estará correta.

Convém destacar que, mesmo nas hipóteses em que uma Corte adota postura mais expansiva em seu poder decisório, isto não impede a rediscussão da controvérsia constitucional na esfera legislativa. Não existe obstáculo ao Parlamento para novo enfrentamento do tema. Ativismo judicial, portanto, não é incompatível com diálogos institucionais[2]. Aliás, sob certas circunstâncias, pode ser necessário precisamente para afastar óbices políticos nos canais representativos, abrindo-lhes o espaço para novas deliberações.  Existe, contudo, uma gritante diferença entre reagir a uma interpretação formulada pela Corte diante de tema de elevada complexidade ou que envolva um desacordo razoável na sociedade – impondo-se, por óbvio, o ônus deliberativo-argumentativo ao próprio Parlamento – e cassar as decisões não-unânimes sob o fluido e manipulável argumento de ativismo judicial, culminando no gradual esvaziamento da jurisdição constitucional.

Importa, ainda, observar esse movimento parlamentar em um cenário mais amplo em que se tem verificado nos últimos anos uma série de ataques ao STF, numa evidente tentativa de desqualificá-lo e deslegitimá-lo perante a opinião pública. Nesse novo cenário marcado por um processo de erosão das democracias constitucionais pelo mundo afora, ao serem vistas como um possível obstáculo à execução de uma agenda autocrática e iliberal, Cortes Constitucionais têm sido alvo preferencial de medidas arbitrárias. Não é à toa que o Brasil se encontra em 4º lugar na lista dos países em processo de autocratização, sendo superado apenas pela Turquia, Hungria e Polônia[3]. Não se trata de um colapso total dos Tribunais, como costuma ocorrer em típicos regimes autoritários, mas de mudanças pontuais e sutis que fazem com que sua independência orgânico-funcional seja fragilizada até serem, finalmente, capturados por grupos políticos. Isso não apenas tem enfraquecido a função contramajoritária dos Tribunais Constitucionais, diminuindo, consequentemente, a proteção de direitos fundamentais, como, em alguns casos, tem-se remodelado o seu papel no jogo de poder: no lugar da função contramajoritária, aos Tribunais Constitucionais é atribuída a relevante função política de chancelar medidas política arbitrárias, agregando-lhes o falso verniz da constitucionalidade.  

O risco é não perceber o estilo próprio das agressões. A onda de intimidação contra o STF deve ser analisada sob a perspectiva de um modus operandi que se utiliza de ferramentas muitas vezes previstas na própria ordem constitucional, mas que são desvirtuadas para alcançar uma finalidade ilegítima e antidemocrática. Em suma, não se pretende devolver, na linha de um constitucionalismo popular, ao Parlamento a possibilidade de deliberar sobre temas importantes — prerrogativa que jamais esteve sob ameaça —, e sim de introduzir um populismo constitucional refratário ao pluralismo, à proteção de minorias e ao sistema de freios e contrapesos.

 

[1] Art. 96, parágrafo único, CF/1937.

[2] É o que temos defendido em: LEITE, Glauco Salomão. Juristocracia e Constitucionalismo Democrático: do ativismo judicial ao diálogo constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

[3] V-Dem Institute: “Democracy Report 2021. Autocratization Turns Viral”. Disponível em: https://www.v-dem.net/media/filer_public/74/8c/748c68ad-f224-4cd7-87f9-8794add5c60f/dr_2021_updated.pdf

 

Originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-20/opiniao-dialogos-institucionais-ou-mordaca-legislativa