Como o Supremo expandiu seus poderes no caso do amianto?
Construindo supremacia: STF, a mutação constitucional e a abstrativização do controle difuso-concreto
Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e BERNARDO GONÇALVES FERNANDES
1 – O caso do Amianto e as ADIs 3.406 e 3.470
Em novembro de 2017 o STF decidiu que é proibida, em todo o Brasil, a utilização de qualquer forma de amianto. No julgamento, o Supremo declarou constitucionais as leis estaduais que proibiam o amianto (ADIs 3.406 e 3.470) e, para tanto, declarou incidentalmente inconstitucional dispositivo da lei federal que até então autorizava a utilização do amianto crisotilla (asbesto branco).
Segundo o Supremo, houve inconstitucionalidade superveniente da lei federal (antes entendida como constitucional) que autorizava a utilização do amianto crisotilla e, assim, as leis estaduais proibitivas estavam em consonância com a proteção dos direitos fundamentais e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil[1].
Nesse julgamento do caso do Amianto, o STF decidiu ainda que, apesar de não ser objeto das ADIs, a declaração incidental de inconstitucionalidade da lei federal deveria ter eficácia vinculante e efeito e contra todos (erga omnes), e sem a necessidade de atuação do Senado (art. 52, X, CRFB/88).
Assim, o STF abraçou expressamente a mutação constitucional do art. 52, X, CRFB/88, para que o Senado apenas dê publicidade à decisão do Supremo, bem como teria adotado a tese da abstrativização do controle difuso (também chamada por alguns de objetivação do controle concreto)[2]. Vale dizer, a partir da decisão do caso do Amianto, o STF passou a entender, de forma expressa, que a declaração incidental de inconstitucionalidade tem efeitos vinculantes e contra todos (erga omnes), independentemente do disposto no art. 52, X (competência privativa do Senado para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF) ou do art. 103-A (edição de súmula vinculante), ambos da Constituição de 1988.
Os ministros do Supremo debateram longamente essa virada de entendimento e a equiparação do controle concreto e incidental ao controle abstrato e principal.
Esse percurso, que revela muito sobre o funcionamento do Supremo, passa por três momentos determinantes.
I – O RE 197.917 e caso do Município Miraestrela
Em 2004, em um recurso extraordinário, o Supremo declarou inconstitucional uma lei do Município Miraestrela (SP) que previa mais vereadores do que o número permitido pela Constituição. Caso o STF declarasse a lei inconstitucional com os efeitos retroativos tradicionais do controle concreto, todos os atos legislativos seriam nulos, gastos já feitos seriam ilegais, e uma longa lista de problemas apareceriam. Além disso, como tirar vereadores no meio da legislatura em um sistema de eleição proporcional? Diante disso, o STF modulou os efeitos da sua decisão no caso concreto, aplicando-a apenas à próxima legislatura. Deu efeitos pró-futuro a uma decisão que teria efeitos tipicamente retroativos, desenvolvendo assim, efeitos típicos do controle abstrato pela via principal no controle concreto pela via incidental.
II – O HC 82.959 e a vedação de progressão dos crimes hediondos e a Reclamação 4.335
Em 2006, em um HC, o STF julgou inconstitucional a previsão da Lei de Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime para esses crimes[3]. A decisão foi dada em um caso concreto (HC). Seu efeito era, portanto, válido apenas para a parte. A extensão desse efeito dependeria de atuação do Senado Federal, nos termos do art. 52, X, conforme noticiado à época pelo próprio STF.
Logo depois, a Defensoria Pública da União no Estado do Acre pleiteou a progressão de regime de 10 condenados por crimes hediondos. O juiz da execução penal negou a progressão, argumentando que a decisão do STF só teria efeito geral após o Senado Federal suspender a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos.
Em resposta, ainda em 2006, Defensoria propôs a Reclamação 4.335, pedindo ao Supremo que alterasse a decisão do juiz para preservar sua autoridade e competência. O caso foi julgado pelo Plenário do STF apenas em 2014, após anos de debates. No julgamento, apesar da procedência da reclamação, o Supremo não endossou a tese de mutação do art. 52, X.[4]
III – O caso do Amianto e as ADIs 3.406 e 3.470
O ponto final desse longo percurso é o já mencionado caso do Amianto, que fez aniversário neste mês de novembro de 2019. Essa foi a primeira vez em que o STF passou a explicitamente acolher a tese da mutação do art. 52, X e, assim, a abstrativização do controle difuso (objetivação do controle concreto).[5]
3 – Críticas à mutação do art. 52, X e à abstrativização do controle difus
Todavia, esse entendimento não é pacífico e nem isento de críticas. É, mais uma vez, tarefa da doutrina exercer o constrangimento epistemológico.
3.1- O argumento de mutação constitucional do art. 52, X viola a possibilidade semântica do texto da Constituição. A mutação do art. 52, X rompe completamente o sentido da norma ao esvaziar a competência do Senado e desequilibra a relação entre os poderes, dando primazia desmedida ao STF. É certo que a norma não se confunde com seu texto. No entanto, existe um limite semântico que deve ser respeitado sob pena de se permitir arbitrariedades judiciais através de uma interpretação que desborda do texto. Essa compreensão ainda tem como resultado o reforço de um único modo de controle de constitucionalidade pelo STF (a abstrativização do controle difuso e concreto e a objetivação do RE). Se o texto do art. 52, X é obsoleto ou mau usado pelo Senado, não seria mais adequado reformá-lo por PEC?
3.2- A abstrativização do controle difuso reforça o controle concentrado no STF e a ideia de que ele detém a última palavra sobre o significado da Constituição. Sob o argumento de instrumentalidade das formas, economia processual e celeridade, se enfraquece o controle difuso e o controle concreto e todo o seu percurso de depuração de fatos e argumentos. Ela esvazia a importância dos casos concretos, os fatos, as circunstâncias; a correção dos Tribunais (TJs e TRFs); a uniformização promovida pelo STJ e, finalmente, o controle constitucional exercido pelo STF depois de um processo de depuração de fatos, circunstâncias e argumentos nas outras instâncias. Perdemos a riqueza de termos um modelo misto de controle (difuso e concentrado / concreto e abstrato).
Talvez valha aqui retomar a importância de uma postura minimalista, de decidir um caso de cada vez, sem apelar a grandes e amplos fundamentos. Num caso como o da progressão de regime ou do Amianto, seria possível defender uma decisão minimalista, que por ser dada pela Suprema Corte já possui efeito persuasivo ao indicar os fundamentos e a direção que o Supremo toma sobre a questão, mas que ainda deixa em aberto possíveis outros argumentos, outras formas de atuação e correção possíveis, sem que com isso tenha-se a necessidade de rasgar o texto constitucional.
3.3- No caso do Amianto, o Supremo poderia ter declarado incidentalmente a inconstitucionalidade da previsão da Lei Federal que autorizava o amianto, dando efeitos erga omnes e vinculantes à sua decisão, mas sem afirmar a tese da mutação constitucional. A decisão de dar efeitos erga omnes e vinculantes foi adequada, pois foi tomada em sede de controle abstrato, em ADI que questionava lei estadual proibitiva do amianto. Aqui sim é possível defender que se confira à essa decisão incidental efeitos erga omnes e vinculantes. Afinal, na ADI a causa de pedir é aberta. Ou seja, o STF pode adotar, para decidir, fundamentos diferentes daqueles indicados pelos requerentes. Não há, razões, portanto, para ir além da concessão de efeitos erga omnes e vinculantes a essas ADIs na declaração incidental de inconstitucionalidade.
4 – Rota de saída
O que se vê é que existe, portanto, uma rota de saída para ampliação do alcance das decisões do tribunal quando necessário, mas sem que se afirme para isso a mutação do art. 52, X ou uma abstrativização do controle difuso.
No caso do Amianto, seria possível defender a compatibilidade e riqueza do controle judicial misto (difuso e concentrado) com a seguinte proposição: em processos abstratos (objetivos), a declaração incidental de inconstitucionalidade de norma que não foi objeto do pedido terá efeitos erga omnes e vinculantes, sem que isso altere a prática do STF nas declarações incidentais de inconstitucionalidade no âmbito do controle concreto em processos subjetivos.
Essa proposta encontra, inclusive, semelhança com a prática da inconstitucionalidade por arrastamento. Na inconstitucionalidade por arrastamento também se declara a inconstitucionalidade de norma que não fora objeto do pedido, mas mesmo assim, por coerência, uniformidade e celeridade, as normas dependentes e decorrentes da que fora declarada inconstitucional o são também, por arrastamento.
Além disso, o Supremo já admite situações em que a atuação do Senado se mostra desnecessária, sem que para isso tenha de apelar à mutação do art. 52, X, ou abstrativizar o controle difuso e concreto[6].
Por fim vale ressaltar que não nos parece possível dissociar a norma de uma hipótese de aplicação e, portanto, de um caso. Ao mesmo tempo, todo caso concreto, com suas profundas particularidades, poderá transformar ou ressignificar uma intepretação feita em abstrato. Essa mesma reflexão vale para se repensar criticamente a hipertrofia do controle concentrado e abstrato e a abstrativização do controle difuso e concreto feito pelo STF.
Mais vale apostar na riqueza do modelo judicial misto (difuso e concentrado) que na sua uniformização e absolutização através da abstrativização (e objetivização), que, até aqui, pouco tem acrescentado para o aperfeiçoamento de uma crítica pública das decisões mediante uma jurisdição constitucional mais democrática.
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[1] Convenções 139 e 162 da OIT e Convenção de Basiléia.
[2] Não ignoramos aqui a exigência de rigor na classificação e nomenclatura do modelo de controle judicial de constitucionalidade das leis no Brasil. Ou seja, a adoção de um sistema judicial misto, composto pelo controle difuso, feito por juízes e tribunais, e pelo controle concentrado, feito pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, quanto ao sistema (ou órgão), o controle judicial é difuso (juízes e tribunais) ou concentrado (STF). Quanto ao tipo, o controle é abstrato (analisa a lei de modo objetivo, em tese, em relação à Constituição) ou concreto (analisa se a lei no caso concreto ofende a Constituição). Quanto à posição na sequência processual (ou forma), o controle judicial pode ser incidental ou principal. Assumimos neste artigo a abstrativização do controle difuso tal qual manifestada pelos próprios ministros do STF em seus votos, ao compreenderem que a declaração incidental de inconstitucionalidade pode ter efeitos gerais (erga omnes) e vinculantes, independentemente do art. 52, X (competência privativa do Senado para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF) ou do art. 103-A (edição de súmula vinculante), estabelecendo uma expressa e assumida equivalência entre o controle concreto e incidental e o controle abstrato e principal.
[3] Lei 8.072/90, art. 2º, §1º.
[4] 4 dos 6 Ministros que deram provimento à RC 4335 decidiram com base na SV nº 26 de 2009 e não com base na decisão do HC 82.959 de 2006 (que teria efeito inter partes).
[5]Apesar de alguns defenderem que no caso haveria apenas o uso da teoria da transcendência dos motivos determinantes, visto que o STF em agosto de 2019, na ADI 3937, já tinha tomado decisão equivalente em relação à Lei do Estado de SP.
[6] Vide: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 11ªed. Salvador: Juspodivm, 2019. O STF admite desnecessidade de atuação do Senado em: a) RE contra decisão de ADI Estadual por ofensa à norma de reprodução obrigatória da Constituição, conferindo efeito erga omnes; b) RE que reinterpreta e modifica uma decisão antes proferida em ADI possui efeitos erga omnes por ser substitutivo (sucedâneo) de ADI. Em ambos os casos o STF confere efeitos gerais em controle concreto, mas sem precisar apelar à mutação (autoritária e deslegitima) do art. 52, X, e nem esvaziar a importância do controle difuso e concreto. Aqui, portanto, defendemos a tese de uma terceira exceção, sem que nosso modelo constitucional e desenho institucional seja desvirtuado por quem não teria legitimidade para tal.
BERNARDO GONÇALVES FERNANDES – Professor Associado de Teoria da Constituição e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto da PUC-Minas. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/como-o-supremo-expandiu-seus-poderes-no-caso-do-amianto-21112019