A Constituição têxtil
Respostas dos poderes instituídos mostram que maleabilidade do tecido constitucional foi abusada
Por MELINA GIRARDI FACHIN e RODRIGO LUÍS KANAYAMA
A Constituição é um tecido normativo, econômico, político e social complexo. Para que fibras e fios cumpram a sua vocação há necessidade de que a trama constitucional se adapte à dinâmica social e histórica. Assim, a Constituição estabelece um sistema normativo de emenda para, ao mesmo tempo que permanecer, mudar.
Pouco depois de seu 30º aniversário, a Constituição brasileira superou uma centena de emendas, taxa consideravelmente alta que merece ser pensada. Nosso tecido constitucional, por um abuso das mudanças, tornou a Constituição de 1988 uma colcha de retalhos, parafraseando Eros Grau [1].
Mas, mesmo diante dos desafios, a textura constitucional, ainda que esgarçada, mantém seus fios e fibras urdidos. É um tecido flexível, que suporta intempéries – e assim deve ser, para isto foi feita. É furta-cor, de diversas tonalidades. É permeável a novas realidades, ao desenvolvimento da sociedade.
Temos instruções gerais de preservação do nosso tecido constitucional. Rigidez e formalidade, restringindo o poder de emendar, para proteger as cláusulas pétreas consagradas na Constituição contra o efeito perigoso das maiorias oportunistas.
Todavia, em sua etiqueta não existem informações precisas de lavagem e conservação. Não se recomenda torcer, repuxar com força, ou esquecê-la sob a sombra de mudanças constitucionais contingentes.
Repuxando-a, vem o risco à flexibilidade. E esgarça-se o tecido constitucional. Se, diante da elevada taxa de mudanças formais na Constituição e da complexidade da nossa conjuntura política, a costura já mostrava sinais, em tempos excepcionais como estes da pandemia, ficamos com a sensação de que não haverá pano suficiente para agasalhar nossas inquietações.
A premissa da qual sempre devemos partir é a de que medidas que visem à diminuição do impacto do vírus estejam, sempre, em consonância com o Estado de Direito, com a Constituição, para evitar que a crise – que se espera temporária, ainda que não se saiba por quanto tempo – não se perpetue como exceção permanente – esse é o temor de Heloísa Fernandes Câmara e Egon Bockmann Moreira, em artigo publicado no JOTA.[2]
A pandemia é hiperpotencializadora das complexidades constitucionais antes já vividas, e o vírus torna a trama mais esfarrapada. Embora pareça que estamos encarando, no Brasil, uma situação de aparente normalidade institucional, o tecido constitucional foi remendado, esticado e remodelado, mas ainda parece incólume, sem buracos, sem rasgos. Se olharmos de perto, todavia, veremos seu esgarçamento e chegaremos à conclusão de que, de tanto repuxar, é roto. Esperamos que seus rasgos possam ser costurados novamente.
Quando o presidente da República testa, diariamente, os limites constitucionais, está a esticar por demais o pano da Constituição. Provocar rasgos – alguns pequenos, outros enormes – no tecido, estendendo até o ponto em que é possível que venha, rápida e instantaneamente, a total destruição do material têxtil.
Toda manhã, ao sair do Palácio da Alvorada, o presidente ofende a liberdade de imprensa e, paulatinamente, sobe o tom até o “cale a boca”. Defende, regularmente, o golpe de 1964 e desfila com seus apoiadores defensores do AI-5. Ele estica o tecido constitucional ao limite de surgirem fendas com rompimento de fios e fibras constitucionais.
Simetricamente, os demais poderes são atraídos na dinâmica de elastecimento e também, ocasionalmente, corroboram com o esfarrapar nosso tecido. A exceção perpetuada nos excessos e abusos executivos contamina o funcionamento do Judiciário e do Legislativo em comportamentos que, ao invés de coser, esgarçam ainda mais nosso tecido constitucional.
No ano do 20º aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Supremo Tribunal Federal a suspendeu parcialmente (“deu interpretação conforme”) – inovando com modalidade sem precedentes constitucionais de (algo como) inconstitucionalidade conjuntural. [3]
O Congresso Nacional acompanha passivo, salvo pelas notas de repúdio e pelos tuítes oficiais. Poucos parecem estar preocupados com a incolumidade da Constituição têxtil, cada dia mais puída, esfarrapada e abandonada ao léu. Não há mais o alfaiate, aquele que cirze a nossa Constituição.
Não se pode dizer pelo acima exposto que tudo funciona bem. A qualidade (ou ausência dela) das respostas exaradas pelos poderes instituídos neste contexto nos leva a pensar que a maleabilidade do tecido constitucional foi abusada e que os rasgos já não serão de remendo tão fácil – se é que ainda é possível tal costura; ainda mais tendo em vista o pano nobre que faz a matéria constitucional.
Será um longo e árduo trabalho para suturar nossa Constituição têxtil, se isto ainda for possível. Não a reconstruiremos tão depressa, mas será nosso papel reparar as rasgaduras com retalhos que nem sempre serão da mesma cor, do mesmo tamanho ou da mesma textura. Afinal, após tantas torções e puxões, pouco poderá ser feito para restituí-la ao estado que sonhamos.
[1] Entrevista do Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal no Estado de S. Paulo, em 23 de setembro de 2018, disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,emendas-transformam-constituicao-numa-colcha-de-retalhos-diz-eros-grau,70002514715>.
[2] CÂMARA, Heloísa Fernandes. MOREIRA, Egon Bockmann. Entre exceções, estado de exceção e normalidade. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-excecoes-estado-de-excecao-e-normalidade-26042020>.
[3] STF. ADI 6351 MC, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 26/03/2020, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-076 DIVULG 27/03/2020 PUBLIC 30/03/2020.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-textil-18052020