As decisões do STF durante e após a pandemia: nada será como antes?
Esperamos que esse período de pandemia promova um avanço, em forma e conteúdo, e não que o novo normal seja um retorno ao passado
Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e JOSÉ ARTHUR CASTILLO DE MACEDO
A Pandemia da Covid-19 gerou crise sem precedentes na história recente. Autoridades públicas são chamadas a dar respostas às crises sanitária, econômica e política. No entanto, atitudes do presidente da República têm promovido atritos entre os Poderes, e entre a União, governadores e prefeitos, colocando a separação dos Poderes e a federação sob tensionamento constante. Por sua vez, o Supremo tem atuado para tentar mediar parte desses conflitos, ou até mesmo para decidi-los alocando poder de um ente para outro, segundo a sua interpretação da Constituição.
Será que, diante da situação excepcional de três crises simultâneas, haverá uma mudança significativa na forma e no conteúdo das decisões do Supremo? Será que nada será como antes ou o “novo normal” reproduzirá práticas muitas vezes criticadas?
Abaixo apontamos para dois pontos que indicam possíveis mudanças e continuidades. As mudanças podem ser vistas em relação ao conteúdo das decisões de matéria federativa. A continuidade pode ser vista nas decisões monocráticas em relação aos outros Poderes.
Antes da crise, era possível constatar que, em matéria federativa, a jurisprudência da Corte produzia a centralização da Federação, a despeito da retórica encontrada em vários acórdãos do STF. Diversos estudos quantitativos demonstram como a Corte costuma(va) decidir a favor da União de modo a alargar as suas competências, em detrimento dos outros entes, principalmente dos estados.
Porém, a partir do julgamento da ADI 4.060 parece que o STF afirmou que deveria mudar o rumo da sua jurisprudência. O caso discutia os limites do exercício da competência concorrente por parte dos estados, especificamente para estabelecer o número mínimo e máximo de alunos em sala de aula, de modo a atender à peculiaridade da região.
A Corte entendeu, por unanimidade, que a lei de Santa Catarina que estabelecia o limite de alunos em sala de aula era constitucional. Além disso, afirmou que era a hora de iniciar a revisão de sua jurisprudência centralizadora, até então dominante. Foi reconhecido, também, que caberia ao STF dar maior protagonismo aos Estados e Municípios dentro dos limites previstos nas normas constitucionais.
Contudo, o que se pode constatar até aqui é que julgamentos posteriores do STF oscilaram entre a tradicional postura centralizadora em favor da União e uma nova postura descentralizadora, em algumas matérias (notadamente meio ambiente e saúde), em favor dos Municípios e Estados. Nessa seara, têm se destacado os votos do ministro Edson Fachin, que tem apresentado e enriquecido o debate com argumentos interessantes, ainda que passíveis de discussão, a respeito do federalismo brasileiro[1].
Apesar disso, diante da pandemia, diversas medidas adotadas por Estados e Municípios foram questionadas no STF. E, para surpresa de alguns diante da possibilidade de uma mudança de entendimento, o ministro Marco Aurélio deferiu medida cautelar na ADI 6.341, que questionava a possibilidade dos entes federativos de adotarem medidas mais restritivas que as prescritas pela União.
Trata-se de mudança jurisprudencial relevante. E, novamente, para surpresa de muitos, a liminar foi confirmada por unanimidade pelo plenário da Corte.
A partir dessa decisão na ADI 6.341, várias decisões foram e têm sido tomadas, sobretudo em sede de Reclamação, para suspender decisões que não respeitam o entendimento de que os Estados e Municípios podem tomar medidas mais restritivas do que as da União, desde que amparadas em evidências científicas e em recomendações da OMS. Dentre elas, destacam-se restrições ao transporte fluvial no Amazonas, restrições à celebração de cultos no Mato Grosso ou a abertura completa do comércio e de serviços considerados não essenciais em Londrina no Paraná.
Nesse mesmo sentido, ainda no último dia 06 de maio, o STF deferiu, por maioria, medida cautelar na ADI 6.343 para suspender parcialmente a eficácia de dispositivos das medidas provisórias 926 e 927, possibilitando, assim, que Estados e Municípios também adotem medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local enquanto durar o estado de emergência sanitária.
Por outro lado, o Supremo monocrático de antes da crise parece continuar a ser o mesmo Supremo monocrático também agora, durante a crise.
Sobre esse aspecto foi significativa a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes na ADI 6.357, que permitiu uma atuação ampla do Estado sem as exigências e formalidades da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Diretrizes Orçamentárias. Se o mérito da decisão é menos controverso, sua forma segue duvidosa. Decisão cautelar monocrática em ADI é algo que não encontra amparo na Constituição (que não concedeu nenhum poder individual aos ministros do STF), na Lei 9.868/99 (que determina que cautelar em ADI seja sempre colegiada, podendo ser monocrática apenas no período do recesso), no CPC ou no Regimento Interno do STF.
Ademais, a decisão poderia ter sido colegiada, pois dias antes o Supremo havia decidido ampliar o uso do Plenário Virtual para todo e qualquer processo ou decisão do STF.
Se o conteúdo da decisão não parece errado, sua forma originária, monocrática, sim o era. E esse erro formal leva o STF diretamente para a gestão do dia a dia da crise financeira e orçamentária do País. Não à toa, quando a decisão monocrática foi referendada pelo Plenário do STF houve debate se deveria haver ou não a fixação de tese que gerasse segurança para os gestores que atuaram com base na decisão monocrática. Além disso, isenta o Presidente de presidir o País e liderar o combate à crise, especialmente no que lhe diz respeito – gestão financeira e orçamentária, com impactos gerais para os outros entes da Federação.
Outro exemplo é a decisão cautelar monocrática na ADPF 663, relatada pelo Min. Alexandre de Moraes, proposta pelo Presidente da República, sobre alteração do rito de edição e análise das Medidas Provisórias. As principais mudanças foram (i) a dispensa de análise das MPs por Comissão Mista, podendo ser analisada direto no Plenário das Casas Legislativas e (ii) a diminuição do prazo de análise das MPs, conforme o sistema de deliberação remoto da Câmara e do Senado.
A Câmara e o Senado rapidamente publicaram o Ato Conjunto nº 01/2020, com a alteração da tramitação das medidas provisórias. Isso fez com que as MPs possam então ser analisadas diretamente no Plenário das Casas e com diminuição de prazo de validade de 120 para 14 dias. Os efeitos dessas medidas ainda estão em análise, mas, como apontam Dimitri Dimoulis e Taís Penteado, não parecem nada promissores.
Contudo, esses aspectos do rito – a apreciação da MP por Comissão mista e o prazo – são temas constitucionais. Não estão ao dispor nem do STF, da Câmara e do Senado por simples ato conjunto; só podem ser alterados por Emenda à Constituição. Por sua vez, o ato conjunto das Casas Legislativas só poderia alterar o que não é disciplinado pela Constituição. Ao legitimar um ato conjunto das Casas Legislativas que altere matéria constitucional, o Supremo viola a Constituição.
Esses exemplos ilustram como parece existir uma permanência no modo de atuação e resposta do STF mesmo diante dos novos desafios que lhe são apresentados pelo cenário de pandemia que vivemos.
O que se pode ver com todos esses exemplos – de mudanças e permanências – é que o Supremo tem sido chamado a contribuir com respostas céleres e substantivas. Os temas e os casos aqui abordados mostram uma atuação do Supremo com lampejos de mudança. Sua forma de atuação, todavia, parece ter mudado muito pouco. E esse modo de atuação não apenas tem sido sentido, como tem gerado ruído na relação com os outros Poderes e entes da Federação.
Por outro lado, seu avanço no tema do federalismo parece ser bem-vindo. Mas ainda está pendente de uma justificação mais densa que explique sua virada jurisprudencial que concentra(va) competências na União, além de outros temas que precisão ser revistos, tais como o nebuloso critério da preponderância dos interesses e ainda enfrentar proposições que vêm sendo feitas sobre como lidar com leis multitemáticas e que trazem consigo aparente conflito de competências, como as que há tempos vêm defendendo, por exemplo, os ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski, com formas mais arrojadas e critérios mais rigorosos sobre a repartição de competências.
Esperamos que esse período de pandemia promova um avanço, em forma e conteúdo, e não que o novo normal seja um retorno ao passado.
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[1] RE 194.704, RE 730.721, Votos-vista na ADI 3.165 e ADI 3.356, são alguns exemplos entre outros existentes.
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
JOSÉ ARTHUR DE CASTILLO MACEDO – professor de Direito do IFPR, campus Colombo (PR), doutor em direito pela UFPR, pesquisador do Centro de Estudos da Constituição (CeCons) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, advogado integrante da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/as-decisoes-do-stf-durante-e-apos-a-pandemia-nada-sera-como-antes-18052020