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Quando o STF acerta: a audiência pública sobre letalidade policial no RJ (ADPF 635)

Quando o STF acerta: a audiência pública sobre letalidade policial no RJ (ADPF 635)

Audiência pública deu visibilidade a quem geralmente fica ofuscado por lágrimas e estatísticas

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

O Supremo Tribunal Federal (STF) terminou na última segunda-feira (19/04) sua 32ª Audiência Pública. O tema dessa audiência foi a redução da letalidade policial no Estado do RJ, discutida e pedida no âmbito da ADPF 635, de relatoria do ministro Edson Fachin.

A audiência pública da ADPF 635 foi importante, e também impactante.

Importante pela forma como a audiência foi convocada e estruturada. A decisão de convocação previu oitivas na cidade do Rio Janeiro, o que acabou não acontecendo em razão da pandemia. A decisão também  estabeleceu, quando de sua convocação, dez questões-chave como pontos de partida, envolvendo, desde logo, o próprio ministro e deixando nítidas as suas preocupações e os seus questionamentos. Quanto à estruturação da audiência pública, ela previu a participação direta dos afetados, de pessoas e grupos das comunidades atingidas pelas operações policiais com alto índice de letalidade. A audiência previu ainda espaço e tempo para debates, diálogos. Criar essa possibilidade, com espaço e tempo, é permitir que a audiência seja mais do que uma instância meramente informativa, e seja, também, uma instância deliberativa.

A audiência pública foi impactante porque deu voz aos que não têm voz. Deu visibilidade a quem geralmente fica ofuscado por lágrimas e estatísticas. Nesse sentido, um dos destaques do movimento de vítimas é a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, ligada à Baixada Fluminense. Mas não só. Participaram também outros movimentos e coletivos: Coletivo Papo Reto, Movimento Parem de nos Matar, Redes da Maré, Mães da Baixada Fluminense, Comunidades e movimentos contra a violência, entre outros.

O destaque é relevante porque os depoimentos, as narrativas, mostram a vida (e morte) concreta dos nossos concidadãos contados por eles próprios.

Um detalhe não menos importante: alguns desses participantes, como, por exemplo, o Coletivo Papo Reto, o movimento Mães de Manguinhos, o Coletivo Fala Akari, quase não puderam integrar a ADPF 635. Eles requereram sua participação como amici curiae na ADPF, mas tiveram seu pedido negado. Como se sabe, o STF desde 2018 mudou seu entendimento e não admite recurso contra decisão que indefere pedido de participação como amicus curiaeEsse entendimento é errado, normativamente e institucionalmente. Mas é o entendimento ainda prevalecente. Diante da negativa, pediram reconsideração da decisão de indeferimento, apontando como e porquê deveriam ser ouvidos. E o ministro Fachin, sensível aos apelos, não só reconsiderou sua decisão anterior, como ainda reconheceu a necessidade da oitiva direta como contribuição válida e relevante, pois são esses coletivos, movimentos, que têm experiências, conhecimentos, vivências, sobre os temas da ADPF 635. Afinal, eles são sujeitos dos fatos – convém lembrar: violência e letalidade policial.

A audiência pública não foi unilateral ou unidirecional. Também foram ouvidos os integrantes das forças de segurança do Estado, que puderam relatar e as dificuldades que enfrentam nesse modo de agir e operar do Estado.
Essa inclusão de pessoas, movimentos, coletivos, entidades, forças policiais – uma participação efetiva e em sentido amplo, e não de modo seletivo – é um passo extremamente importante para chamar os afetados pelas operações a participarem do processo decisório.

Uma ausência, todavia, foi sentida: a dos demais ministros do STF. Exceto o ministro Gilmar Mendes, que participou da abertura da audiência pública e dos trabalhos iniciais, nenhum outro ministro esteve na audiência. E existem formas variadas de participação possível: estar presente é, sem dúvidas, a principal. Mas, interagir previamente com o ministro relator ou elaborar questões complementares são exemplos de como é possível um ministro se engajar na audiência pública convocada por um par.

De todo modo, o que se vê é que a audiência pública da ADPF 635 dá sequência a outras iniciativas e decisões do ministro Luiz Edson Fachin de fazer desse instrumento um espaço de abertura e democratização da jurisdição constitucional. Nesta audiência específica da ADPF 635, além disso, também um lócus de participação dos afetados e ainda um espaço de diálogo, discussão e deliberação. Uma audiência que, convocada por um ministro, deve afetar todo o Tribunal. Afinal, os depoimentos, as narrativas, os estudos, estão agora registrados e documentados. Integram a ADPF 635, impõem um ônus decisório aos ministros, compõem a história do próprio Supremo.

Uma audiência que faz história pela forma, pelo conteúdo e pelas vozes e visibilidades que finalmente tomaram parte no processo decisório do STF e no STF. Uma decisão de um ministro, mas o acerto de todo o Tribunal. Até aqui. Esperamos que adiante também.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021

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