Entre exceções, estado de exceção e normalidade
O perigo da permanência do provisório
Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e EGON BOCKMANN MOREIRA
A atual crise mundial tem trazido radicais desafios para o direito público, que podem ser assim sintetizados: o direito normal, aquele que aplicamos no nosso cotidiano, consegue debelar as demandas excepcionais decorrentes da pandemia? Em caso negativo, quais seriam os métodos de solução dos problemas? Eles já existem?
A formulação de tais problemas nos obriga a avaliar a maneira como o direito, em especial o público, lida com a excepcionalidade.
A relação entre direito e exceção não é nova, tendo surgido justamente no processo de consolidação do Estado de Direito. Antes da existência de um sistema jurídico impessoal e previsível, quaisquer demandas eram resolvidas pelo soberano através da razão de estado. Quando quisesse, se desejasse e da forma que melhor lhe aprouvesse. Logo, na ausência de regras predefinidas, a exceção não se põe.
Dito de outra forma, é somente quando há norma jurídica predefinida e estável que passa a haver a exceção. Sem o direito público, não há exceções a ele. O constitucionalismo tem como grande desafio pensar os termos em que situações de absoluta gravidade podem ser resolvidas. Cenários os quais, no limite, colocassem em risco a própria constituição.
Tomemos o exemplo da tradição francesa do estado de sítio. Aqui, a lógica é a de que é fundamental o estabelecimento a priori de hipóteses, condições e direitos que poderiam ser suspensos. Tais casos e soluções seriam taxativos. O raciocínio é o de que, em situações graves, não se consegue ter clareza para debater em profundidade e esse fato poderia levar a riscos de abusos contra o próprio direito.
Os mecanismos excepcionais seriam espécie de contrafogo jurídico: queima-se, de forma controlada, a área em rota de um incêndio incontrolável para evitar que ele continue sua trajetória destrutiva.
A premissa central nessa técnica de mecanismos excepcionais é a demarcação entre um momento normal e um excepcional. Há uma linha, às vezes tênue, mas preconcebida. O que é muito importante para definir, inclusive, o término da exceção, quando a situação retornaria aos termos e normas ex ante.
O constitucionalismo disporia de instrumentos provisórios, de suspensão de normalidade e instalação de soluções que se auto-extinguiriam quando do final da anormalidade. Encerrado o cenário factual que impõe a medida de exceção, teriam fim a causa e o nexo causal autorizador de sua aplicação. Apagado o incêndio, não há lugar para o contrafogo. Esse é o modelo ideal.
Entretanto, a história mostra a tendência de que mecanismos excepcionais permaneçam durante largo período, inclusive incorporando-se aos instrumentos ditos normais. Coloca-se fim ao fogo com gasolina. Exemplo mais eloquente e radical foram as permissões pós 11 de setembro ao uso de técnicas de tortura, flexibilização de direitos fundamentais e utilização de Guantánamo como prisão. Muito embora refutados, tal ordem de mecanismos e suas variações persistem em grande número de países ocidentais.
A permanência do excepcional, seja na forma de mecanismos jurídicos excepcionais, seja em ameaças fluidas e permanentes, tem levado ao que alguns autores chamam de “estado de exceção permanente”.
Nestes casos, os riscos seriam tão difusos quanto reais e contínuos, como pandemias, crises econômicas de grave proporção e grupos criminais transnacionais. Constatação que torna praticamente impossível separar a normalidade da exceção, pois esta sobrevive virtualmente em todos os momentos, em ciclos de retroalimentação e multiplicação. O ordenamento jurídico estaria permeado entre o direito normal e o excepcional, a exceção a conviver ordinariamente com a regra.
Pois bem, o que a atual pandemia nos tem demonstrado de forma categórica é a inaplicação dos mecanismos excepcionais. Exemplo são os debates no direito brasileiro: ao mesmo tempo em que há consenso da necessidade de medidas específicas na esfera do direito constitucional e administrativo, não há qualquer menção séria ao uso do estado de defesa ou do estado de sítio (mesmo porque estes mecanismos não fornecem nenhum instrumento útil para a atual situação).
A emergência sanitária demanda respostas distintas daquelas próprias a crises políticas e jurídicas, de forma que mesmo os instrumentos excepcionais são incapazes de fornecer diretrizes úteis (além do risco de uso para supressão das liberdades).
Não é adequado falar-se – e espera-se que assim se persista – de exceção ao direito público. A pandemia vem sendo debelada por meio de instrumentos jurídicos. Bons ou maus, novos ou velhos, patéticos ou nobres, certos ou errados, tanto faz – ainda assim, afirmam respeitar o Estado de Direito. Têm por base as normas postas e o respeito à permanência da constituição.
O exemplo da lei 13.979/2020 é significativo. Ela tem vigência temporária enquanto durar a pandemia e estabelece medidas como o isolamento. Parametriza as ações executivas a evidências científicas e boas práticas protetivas internacionais.
Entretanto, tampouco fornece quadro mais amplo de mecanismos jurídicos aptos a lidar com a situação (o que se complica, pois não há expectativa temporal do término da anormalidade). Caso se confirme a necessidade de isolamento parcial até que haja vacina, podemos estar falando de anos.
A situação é delicada e estamos tateando à procura de soluções no ambiente constitucional. Mas, como num antigo provérbio, “é muito difícil achar um gato preto num quatro escuro – especialmente quando não há nenhum gato.” Se não houver sensatez, podemos ser conduzidos a terras de ninguém, em que se conjugam ausência de instrumentos jurídicos com a possibilidade de permanência indefinida da situação.
À ausência de parâmetros jurídicos excepcionais aplicáveis somam-se as incertezas provenientes de conflitos federativos e “declarações governamentais de Schrödinger”: que corroboram e, simultaneamente, minimizam a crise e as medidas adotadas. Essa constância inconstante inibe as respostas jurídicas, pois delas se espera o enfrentamento do desafio da permanência e provisoriedade.
O importante está em medidas jurídicas capazes de diminuir o impacto da pandemia, mas, ao mesmo tempo, democráticas e coerentes – para que possam perdurar só enquanto durar a crise, sem risco de ameaça ao estado constitucional. Pactos fáusticos, fora da constituição, devem ser refutados de plano, a fim de que a crise temporária não engendre a exceção permanente.
As respostas não estão prontas, mas demandam construção coerente para, quem sabe, encontrar o inexistente gato preto no quarto escuro. O direito público excepcional fornece instrumentos jurídicos hábeis à construção de perguntas adequadas. Mas exige que a urgência por respostas não oblitere o fato de que as soluções dadas neste momento têm enorme potencial de permanecer muito tempo no horizonte.
HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
EGON BOCKMANN MOREIRA – Professor de Direito Econômico da UFPR. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB/Federal.
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021