Gestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?

Dados mostram que colegialidade e deliberação, por ora, não passam de uma promessa no Supremo

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

 

Em seu último discurso na Presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli destacou que, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, o STF continuou sendo o tribunal constitucional de maior produtividade no mundo: “graças aos julgamentos virtuais, conseguimos avançar sobre a longa pauta de julgamentos colegiados”. O total de processos na pauta do Plenário foi reduzido em 70%, caindo de 1.200 para 369, e o acervo do Tribunal ficou em torno em 28.361 processos, o menor dos últimos 24 anos. Esses números foram melhor explicados e explorados nrelatório da gestão Dias Toffoli.

Ali, constam com detalhes o número de processos registrados na presidência (74.090) e distribuídos aos ministros (75.254), de decisões monocráticas (169.608) e colegiadas (31.677), de sessões presenciais (143) e virtuais (75) do Plenário e das Turmas (283), entre outros que em muito podem interessar a quem trabalha com a dinâmica interna do STF.

Não foram só os julgamentos virtuais que tornaram possível o ganho de produtividade de que tanto se orgulha o ministro Dias Toffoli. Ao lado da expansão do Plenário Virtual, sobre a qual escrevemos eoutras ocasiões, contribuiu ao avanço sobre o acervo a ampliação da competência da presidência do STF no juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e dos agravos em recurso extraordinário.

A estruturação e consolidação do Núcleo de Análise de Recursos, a exemplo do que já existia com o Núcleo de Análise e Recursos Repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, permitiu maior filtragem dos recursos inadmissíveis e a consequente distribuição apenas dos recursos que versassem sobre questões constitucionalmente relevantes. Um filtro de chegada ao STF e uma verdadeira barreira de contenção de chegada aos gabinetes dos ministros do Supremo.

O resultado foi uma queda de 60% na distribuição de processos recursais aos ministros.

É inegável que a redução do acervo processual via ampliação do Plenário Virtual e filtragem realizada pela presidência possuem um aspecto positivo: criar o ambiente para uma jurisdição concentrada dedicada principalmente aos temas constitucionais. E não aos temas e, também, à gestão do acervo processual. O ministro Dias Toffoli, durante sua presidência, efetivamente tomou medidas importantes para a desobstrução da pauta do Tribunal.

Acerta, portanto, o relatório quando afirma que estas medidas contribuem à vocação constitucional do STF, pois “o Tribunal pode se dedicar às questões de maior relevância e complexidade e às matérias com repercussão geral”. Contudo, há dois aspectos negativos.

Em primeiro lugar, esse “avanço” na prestação de jurisdição é, efetivamente, em sua maior parte, para denegar jurisdição. É, assim, a celebração de produção massiva de decisões que apenas decidem não decidir. E celebrar não decidir, ou exaltar alto número de decisões que nada fazem, é comemorar o que sequer deveria estar lá. É enaltecer uma prestação jurisdicional que foca a produção do que sequer deveria estar lá e que a toma como grande produto, quando, em realidade, outras ações, recursos e temas deveriam ocupar a gestão do Tribunal e a prestação jurisdicional pelos ministros.

Afinal, cabe lembrar, a função precípua do STF é de guarda da Constituição e, assim, decidir sobre temas constitucionais.

Segundo o citado relatório do STF, em 2018 o STF recebeu 101.497 processos. Desse total, 66.652 eram agravos em recurso extraordinário – mais da metade, portanto. Mas foi negado seguimento ou provimento a 99,4% de todos os ARE’S, mantendo-se o acórdão recorrido.

Os dados relativos aos recursos – quantidade em tramitação, participação no acervo e taxa de sucesso – revelam como os filtros processuais têm sido insuficientes ou até mesmo obsoletos. Exaltar, pois, esses números é celebrar o que tem dado errado. E esse diagnóstico nem de longe é estranho a integrantes do STF.

Em segundo lugar, o “avanço” na prestação jurisdicional perpassou pela ampliação da atuação individual e individualista dos ministros.

Ao lado da competência da Presidência na filtragem de agravos em recurso extraordinário, a forma como vem sendo utilizado o Plenário Virtual foi fator que em muito contribuiu à manutenção do STF como uma corte de solistas.

Quando analisamos os processos de controle concentrado levados a julgamento em ambiente eletrônico nos meses dabril e de maio e junho, adiantamos que o PV estava sendo empregado para dar vazão a ações até então “represadas” pela escassez da pauta presencial. Das 209 que foram para o PV, 158 já tinham constado em pauta do plenário físico.

Essa impressão é corroborada quando consideradas as listas virtuais.

Segundo dados disponibilizados no próprio site do STF, em 2019, o volume médio semanal de feitos em lista era de 88 no Plenário e 151 na Segunda Turma. Em 2020, ao menos nas 30 primeiras semanas, essa média saltou para 145 no Pleno e 152 na Segunda Turma. Na pauta do PV de 14/08 a 21/08, aguardavam julgamento 437 processos no Pleno e 378 na Segunda Turma. E desde então, o volume no Pleno vem caindo: 352; 271; 284; 74; 85; 49; 147.

Atribui-se o inchaço em agosto/setembro à troca de gestão na Presidência. A título de comparação, em setembro de 2018, ao término da gestão da ministra Cármen Lúcia, mais do que o dobro da média de processos estava na pauta do Pleno (194).

Esses dados mostram que boa parte dos processos que estavam liberados para pauta do plenário físico (ou seja, dependiam apenas de decisão do presidente do STF para entrarem no calendário de julgamento) foram julgados no Plenário Virtual ampliado, por meio de listas virtuais. Daí o ministro Dias Toffoli comemorar que o menor número histórico de processos na pauta do Plenário.

Houve mesmo, então, uma aceleração (celeridade) de julgamentos via Plenário Virtual. Mas isso não significa necessariamente deliberação e coerência. E a colegialidade tem sido meramente formal.

Como mostramos na análise sobre o uso do Plenário Virtual, na pauta do PV, prevalece o voto do relator, há poucos destaques e vistas. E se somarmos agora as listas virtuais, então vemos que a colegialidade é mesmo meramente formal. Mais do que isso, fica evidente que a deliberação (seja no PV mérito, seja no PV listas virtuais) é praticamente inexistente. E que a celeridade impede mesmo qualquer colegialidade deliberativa em razão do alto volume de processos nas listas virtuais.

Por mais que o ministro Dias Toffoli, ao longo de sua gestão, tenha por diversas vezes afirmado que o Tribunal decide cada vez mais de forma colegiada, os dados são teimosos em revelar que a colegialidade e a deliberação, tão necessárias quanto exigidas pela Constituição, por ora, não passam de uma promessa no Supremo de hoje.

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado.
EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-Assessor de Presidente Nacional da OAB. Advogado.

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/stf-gestao-toffoli-numeros-comemorar-21102020