Responsabilidade social da empresa e vidas negras

Por Danielle Anne Pamplona, Inês Virgínia Soares e Melina Girardi Fachin

“Do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos /(E são quase todos pretos) / E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados” (Haiti, Caetano Veloso)

Nas últimas semanas, a violência policial que ceifou a vida de um homem negro nos Estados Unidos urdiu a ferida aberta do racismo e da desigualdade. E, desde então, a atenção mundial em relação à pandemia da Covid-19 tem dividido espaço com protestos pela igualdade racial, que acontecem em diversos países, inclusive, no Brasil.

A imprensa local, especialmente os telejornais, noticiaram os protestos em diversas cidades americanas e ao redor do mundo. O fato de os programas jornalísticos serem apresentados por profissionais não negros chamou a atenção do público e o debate do programa “Em Pauta”, da GloboNews, sobre racismo, foi alvo de críticas e polêmicas. A resposta do canal por assinatura foi rápida: no dia seguinte, houve uma edição composta apenas por jornalistas negras, com um negro como âncora; e duas das jornalistas negras passaram a integrar permanentemente o programa. Além disso, a edição especial do “Em Pauta” foi veiculada, na mesma semana, na TV aberta, no tradicional “Globo Repórter”.

Não foi a primeira vez que as Organizações Globo vieram a público pedir desculpas por práticas violadoras dos direitos humanos, com ações que demonstram compromisso com a mudança de postura. Em 2013, a empresa reconheceu que foi um erro ter apoiado a ditadura brasileira (1964-1985). Esse pedido de desculpas, embora seja um gesto desejado e importante para democracias que passaram por períodos autoritários no passado recente, foi recebido com desconfiança e como algo insuficiente. E até hoje o apoio da Globo à ditadura é lembrado e relembrado, tanto pela esquerda como pela direita, inclusive pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, quando era candidato ao cargo que hoje ocupa.

Em 2018, o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que marcou a gestão do presidente militar Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e o período de maior endurecimento da repressão à resistência política, figurou como propaganda veiculada em rede de canal aberto pela empresa de telecomunicações SBT. Diante da reação negativa do público, a empresa tirou a vinheta do ar, alegando não ter tido a intenção de lembrar a ditadura, mas sim de passar uma mensagem de união.

Não são as telecomunicações o único setor da economia alvo de protestos e reações. A indústria da moda também tem tido prejuízos e desgastes das marcas em decorrência de práticas consideradas racistas. Em 2016, o repúdio nas redes sociais a uma marca de roupa feminina que lançou coleção com estampa que retratava uma negra, provavelmente escravizada, com cesto na cabeça vendendo produtos ou conversando, e uma branca, sentada e parecendo se sentir confortável levou à decisão da empresa de retirar todas as peças das prateleiras. Houve pedidos de desculpas e justificativa de que a estampa se inspirava em Debret. No entanto, dias depois, pesquisadora mostrou que a estampa pivô da polêmica foi inspirada reprodução da litografia “Negras no Rio de Janeiro”, de autoria de Johann Moritz Rugendas, de 1835. Na imagem de Rugendas, no entanto, as duas mulheres, tanto a sentada como a que está com o cesto na cabeça, são negras. Nesse ano, a marca também foi acusada de nunca veicular, em seus catálogos, modelos negras para apresentação de seus produtos.

Em 2017, novamente por conta da estampa com imagens cotidianas do século XIX que traziam mulheres escravizadas, outra marca nacional foi criticada fortemente nas redes sociais e imediatamente veio a público pedir desculpas e informar o recolhimento e não comercialização das peças. Em 2019, essa marca criou um comitê de igualdade racial e consta na página que se trata de um “comitê majoritariamente preto dentro de uma empresa majoritariamente branca. Juntar nossas vozes foi o ponto de partida pra abertura de um maior diálogo interno sobre o racismo estrutural e institucional que vivemos dentro e fora da marca”. Também é dito que a marca “reconhece que ainda não é uma marca antirracista, mas quer ser”.

Os exemplos de empresas de comunicação e da indústria da moda se estendem para outras áreas, indicando que há necessidade de uma mudança de postura empresarial já que a ocupação dos espaços físicos e virtuais por imagens, monumentos, mensagens ou veiculação de estereótipos que ferem direitos e reforçam injustiças históricas não é mais aceita com passividade ou indiferença.

As empresas têm se preocupado em não vincular suas marcas a práticas racistas ou que violem outros pilares dos direitos humanos.

A preocupação chega em bom momento. Toda a comunidade é impactada por decisões tomadas no setor privado, mas há grupos mais vulneráveis que absorvem esses impactos — positivos ou negativos — de modo mais profundo. Ao direcionar luzes para o papel que as empresas (não) podem ter no combate ao racismo, as manifestações inevitavelmente provocam a reflexão sobre a participação de corporações na violação de direitos humanos no Brasil e sua contribuição para manutenção (ou não) das desigualdades.

Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-13/opiniao-responsabilidade-social-empresa-vidas-negras