O PGR Augusto Aras: a representação absurda e a queixa inepta

Em Brasília, a PGR tramita procedimentos como quem troca vasos de lugar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

Depois da representação por suposta violação ética, o procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, apresentou queixa-crime contra o professor Conrado Hübner Mendes (USP).

Os fatos são os mesmos: as críticas que o professor Conrado fez em sua coluna semanal,  na Folha de S. Paulo e em sua conta no Twitter, a Augusto Aras, por sua atuação como PGR. Ou melhor, pela sua falta de atuação, por sua conivência com as seguidas violações que o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e sua administração cometem contra a Constituição e o país. Não custa lembrar, já são mais de 440 mil mortes, boa parte delas, como estimam cientistas, evitáveis. E mortes evitáveis têm responsabilidades atribuíveis.

Conrado pontuou diversas ações e omissões do PGR Augusto Aras. E se chegamos até aqui, com mais de 440 mil vidas perdidas, com uma atuação parca da PGR, é porque há muito mesmo o que se discutir. Seus colegas no Amazonas fizeram mais e melhor do que o PGR em Brasília. No Amazonas, o general Eduardo Pazuello responde por improbidade administrativa. Em Brasília, a PGR tramita procedimentos como quem troca vasos de lugar. Mexe aqui, ali, para manter tudo em ordem. Ou sob às ordens.

Se a representação já era uma peça absurda, ao buscar punir quem defende suas ideias na Universidade, templo da ciência e destas mesmas ideias, a queixa-crime é uma peça despropositada, pela ausência do crime cuja existência acusa.

Não houve crime porque não se violou a honra daquele que, sendo membro do Ministério Público Federal, ocupante do cargo de PGR, sujeita-se à crítica pública e transparente sobre os atos que pratica, ou deixa de praticar, no exercício deste mesmo cargo. O relevante múnus público sujeita o PGR a um nível mais intenso de escrutínio público de sua atuação, pois o que faz ou deixa de fazer interessa a todos nós, inclusive à sua instituição (o MPU em geral e o MPF em particular). É esse o posicionamento da Comissão[1] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos[2]. E também do Tribunal Europeu de Direitos Humanos[3]. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) tem reafirmado a importância da liberdade de expressão e crítica a autoridades públicas[4].

Logo, ainda que Aras se sinta ofendido, não houve crime se as críticas lhe foram dirigidas pelo exercício do cargo, em razão do que faz, do que não faz, e que vêm sendo objeto da discussão e crítica públicas feitas pelo professor Conrado Hübner Mendes. Se uma pessoa exerce um dos cargos mais relevantes do País – o de PGR, sua atuação está sujeita a um debate público intenso, profundo, crítico, e que pode sim lhe imputar qualificações negativas que, fundamentalmente, demonstrem os erros e déficits de sua atuação.

Trocando em miúdos, se a liberdade de expressão já nos garante a todos a possibilidade de exprimirmos nossas ideias e críticas, tanto mais quando ela é dirigida ao debate público e ao escrutínio de um agente público como o Procurador-Geral da República, aquele que deveria proteger a ordem jurídica e o regime democrático. Mas tem sido o primeiro a se levantar contra um professor e pesquisador.

Que pesado é o giz do professor Conrado para sobrecarregar um PGR que não sente o fardo de mais de 440 mil mortes em torno de si e nem busca ver quem, como e porque debilita as instituições e a democracia do país.

Se a representação perante a USP é absurda, a queixa é manifestamente inepta. Não há ilícito, apenas o que se parece desconhecer: o exercício do direito fundamental à liberdade de expressão.

[1] Vide a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm

[2] Vide o caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_107_esp.pdf

[3] Vide o caso Dichand and Others v. Austria: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60171

[4] Vide, por exemplo, a ADI 4.451

MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: Fundamentos de Direito Constitucional (Ed. Juspodivm, 2021); Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais (Ed. Fórum, 2017); Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica (Ed. Juruá, 2017); Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de Ministro do STF. Advogado..

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/o-pgr-augusto-aras-a-representacao-absurda-e-a-queixa-inepta-24052021