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Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Entre a frustração e a esperança enquanto massacre em Jacarezinho ainda acontece

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública

Por HELOISA FERNANDES CÂMARA e MELINA GIRARDI FACHIN

Vivemos a persistência da violência institucional no Brasil. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020[1] mostram que o número de vítimas de intervenções policiais também aumentou; vítimas estas que têm cor e classe – negros e pobres. O lamentável episódio em Jacarezinho corrobora os dados de truculência da violência policial no Brasil, situação que já foi reconhecida pela comunidade internacional.

A condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília, em 2017, assinalou a demora injustificada na investigação e punição dos responsáveis envolvidos na execução extrajudicial de 26 pessoas e na prática de tortura e estupro, por parte de agentes policiais, na Favela Nova Brasília, no município do Rio de Janeiro.[2] Neste caso, o Estado foi condenado às medidas necessárias para que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial. Vinte e sete anos separam as operações policiais na Favela Nova Brasília e em Jacarezinho; o que mudou parece ser apenas o aumento do número de mortos!

O cenário ainda enfrenta ameaças de retrocessos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em recente relatório, demonstrou preocupação com a militarização da segurança pública, principalmente com o emprego das Forças Armadas em atividades típicas da segurança pública, e com o aumento da impunidade a partir de leis em discussão no Legislativo Federal. A Comissão também mencionou um aumento nas mortes em operações policiais, sendo que as ações de integração e inteligência não resultaram em uma maior efetividade no combate ao crime organizado. Ou seja, as operações matam muito e são ineficientes[3].

É urgente que a segurança pública seja estruturada a partir de uma concepção constitucionalmente adequada, centrada na proteção de direitos, com proporcionalidade no uso da força e transparência na condução das políticas, dados dos resultados e de procedimentos investigatórios. As Polícias, como instrumento de realização da segurança pública, devem comprometer-se com os direitos humanos e fundamentais, previstos nacional e internacionalmente, e não serem os agentes de violação de tais direitos.

Como todas as atividades da administração pública, é fundamental que o controle – sobretudo de ângulo externo – sobre a atividade policial seja efetivamente desempenhado. Ao mandamento constitucional de controle soma-se a jurisprudência da Corte IDH, pacífica no sentido de que o Estado é responsável pela apuração de crimes, tendo o Ministério Público papel central, pois a apuração deve ser feita de forma independente e imparcial, assegurando às vítimas e aos seus familiares os direitos à proteção e às garantias judiciais.

Apesar da disposição constitucional que impõe a competência do MP no controle externo da atividade policial, há severas lacunas nessa atividade, impondo a necessidade de estruturação de mecanismos eficazes.

Mesmo com as condenações internacionais, o sentimento é de frustração de que pouco ou nada mudou. Talvez o grande diferencial seja o impacto do direito internacional dos direitos humanos no poder judiciário, sendo a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 exemplo marcante. Em agosto de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou liminar proferida pelo relator da ADPF, determinando que as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, devem ser restritas aos casos excepcionais e informadas e acompanhadas pelo Ministério Público estadual (MPRJ).

Uma das maiores e mais impactantes audiências públicas no STF, a audiência para a redução da letalidade policial foi conduzida no contexto da ADPF em abril de 2021 e conferiu oportunidade histórica de manifestação da sociedade e das instituições sobre as causas e consequências da letalidade policial. Menos de um mês depois, sobreveio a chacina de Jacarezinho; que a CIDH reconheceu esta como a ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.

Justamente em função do massacre, o STF foi novamente instado a se manifestar no bojo da ADPF citada a fim de determinar, o conceito de excepcionalidade a justificar as operações policiais nas comunidades – e aqui o nome dado à operação em Jacarezinho, Exceptis, parece ser desrespeito à institucionalidade do decidido pelo plenário do STF – e, além disto, cobrar a investigação e responsabilidade sobre o ocorrido. Em voto de 21 de maio deste ano, o relator circunscreveu os requisitos de excepcionalidade para fins de operação policial: número suficiente de agentes para minimizar as chances de se utilizar a força, acompanhamento de equipe pericial e número suficiente de agentes para assegurar a realização da perícia conforme o Protocolo de Minnesota. Sempre com atenção ao planejamento e inteligência.

O que nos resta é a esperança de quando vier a condenação internacional do Estado brasileiro sobre a Chacina de Jacarezinho – que virá! –  tenhamos já melhorado na democratização da segurança pública. Entendê-la a partir de sua função pública, implica em estabelecer controles internos, externos e sociais, para que a segurança se faça com a proteção de direitos humanos e das pessoas mais vulneráveis que, muitas vezes, só conhecem o Estado na atuação policial. Até lá, o massacre em Jacarezinho ainda persistirá!

 

[1] BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo, 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP.

[2] CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília Vs Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 28 jan. 2021

[3] G1. Estudo aponta que apenas 1,7% das operações policiais no Rio são eficazes. Disponível em:< https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/05/09/estudo-aponta-que-apenas-17percent-das-operacoes-policiais-no-rio-sao-eficazes.ghtml>. Acesso em 18 de mai. 2021.

 

HELOISA FERNANDES CÂMARA – Professora na Universidade Federal do Paraná. Doutora e mestre em Direito do Estado (UFPR), pesquisadora visitante no King´s College London. Pesquisadora no Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-frustracao-e-esperanca-enquanto-massacre-em-jacarezinho-ainda-acontece-25052021

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