Dados e impressões sobre o plenário virtual do STF na pandemia

Se o plenário virtual veio para ficar, relatório do Supremo demonstra preocupação com seus modos de julgar

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY e EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO

O Supremo Tribunal Federal (STF), neste último mês de fevereiro, lançou a pesquisa “O plenário virtual na pandemia da Covid-19”. Uma iniciativa importante da Secretaria Geral da Presidência e da Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, que, em particular, já vinha promovendo uma série de encontros para debater justamente o plenário virtual do STF. Uma secretaria, aliás, que tem de se destacado pelos inúmeros trabalhos de qualidade técnica e institucional produzidos.

O relatório, para além do histórico das mudanças regimentais que culminaram na gradual expansão do ambiente eletrônico para todos os processos de competência do STF e dados referentes à sua utilização desde 2008 até 2021, apresenta dados referentes à sua utilização em dois períodos específicos: o primeiro, pré-pandemia, de 19/06/2019 a 19/03/2020, e o segundo, posterior ao início da pandemia, de 20/03/2020 a 31/12/2020.

Esses marcos temporais, porém, não foram escolhidos em função da Covid-19, mas sim da entrada em vigor de duas emendas regimentais que ampliaram o plenário virtual: a ER nº 52, de 14/06/2019, que permitiu o julgamento de medidas cautelares em ações de controle concentrado de constitucionalidade, referendo de medidas cautelares e tutelas provisórias e demais classes processuais cujo objeto da controvérsia já tenha entendimento pacífico no STF, e a ER nº 53, de 18/03/2020, coincidente, portanto, com o início da pandemia, que abriu o plenário virtual para o julgamento de todo e qualquer processo.

E é justamente por seu recorte temporal que o relatório é importante para a compreensão do impacto do plenário virtual sobre a dinâmica decisória do STF, permitindo a comparação entre seu uso antes e depois da completa expansão.

Daí a relevância dos dados sobre as decisões colegiadas por ambiente decisório (fls. 37 e 38), as classes processuais julgadas (fls. 41 e 42), o perfil decisório das decisões (fls. 46, 47, 48, 50 e 51), à sustentação oral (fl. 52) e ao pedido de destaque do ambiente virtual para o presencial (fl. 52).

Como noticiado, a ampliação do plenário virtual encontrou forte resistência entre advogados, que chegaram até mesmo a pedir a revogação da ER nº 53/20 em carta aberta ao então presidente do STF, ministro Dias Toffoli. A academia vem se debruçando sobre o plenário virtual, analisando seu uso sob as mais diversas perspectivas, como da fundamentação das decisões e da mitigação do poder de agenda do presidente.

Então, considerando tanto o seu impacto na dinâmica decisória do STF quanto a sua repercussão entre os pesquisadores e operadores do direito, o relatório nos é apresentado como uma “espécie de prestação de contas a respeito da governança do Tribunal” (fl. 16).

Mas é, em igual medida, apresentado também como um convite para que, “a partir da publicação do estudo, outras contribuições sejam apresentadas por pesquisadores” (fl. 16). Trata-se, portanto, de um convite, um “ponto de partida para fomentar reflexões futuras” (fl. 20).

Pois aceitamos o convite e apresentamos nossas primeiras impressões.

Deparamo-nos com uma ausência que já havíamos apontado em nossa primeira análise sobre o funcionamento do plenário virtual após a ER nº 53/20: os processos que, antes do início da sessão virtual, foram destacados para o plenário físico, sem qualquer justificativa e sem que se possa controlar esses destaques, pois eles simplesmente desaparecem da pauta do plenário virtual.

Este dado certamente agregaria à prestação de contas, sobretudo em um tribunal que profere 98,4% de suas decisões no ambiente eletrônico (fl. 33), na medida em que permite o controle das razões pelas quais determinados processos, mas não outros, foram levados a julgamento presencialmente – ou, remotamente, por videoconferência – com os ministros deliberando in loco e com as partes aptas a formular questões de ordem ou de fato.

Ainda em relação às ausências por nós constatadas, embora o relatório apresente os números de pedidos de destaque e decisões tomadas por unanimidade ou por maioria, não traz os dados dos pedidos de vista e do quórum das correntes vencedoras e vencidas.

A nosso ver, ambos os dados seriam relevantes para corroborar, ou para infirmar, a tese sustentada pelo relatório de que o plenário virtual é “um espaço de densificação argumentativa, em que são apresentados contrapontos de outros ministros aos argumentos do relator, principalmente no período posterior ao início da pandemia” (fl. 46).

E “espaço de densificação argumentativa” é como o relatório caracteriza o plenário virtual a despeito de ele principiar a exposição dos dados alertando que “não se destina a analisar a satisfatoriedade do Plenário virtual enquanto mecanismo deliberativo” (fl. 20).

O argumento de densificação argumentativa é apresentado após os dados revelarem um incremento no número de decisões em que houve divergência. Em sua parametrização, o relatório toma como divergente o voto cujo dispositivo é distinto do voto do relator (fl. 19), desconsiderando que os votos podem divergir na fundamentação, mas não em seu resultado.

Ou seja, a nosso ver, o incremento de votos divergentes autoriza somente a conclusão de que há contraposição de teses, mas não necessariamente a densificação argumentativa. Argumentos somente são densificados, isto é, apurados e afinados, por meio da deliberação – o que não acontece no plenário virtual até aqui.

Adiante na análise do que está no relatório, é curioso que o aumento na proporção de julgamentos virtuais não tenha ensejado o aumento na proporção de decisões colegiadas. A despeito de, entre 2016 e 2021, os julgamentos virtuais terem saltado de 34,9% para 98,4% (fl. 30), a proporção de decisões colegiadas manteve-se praticamente estável, variando de 10% em 2019 a 18% em 2020 (fl. 30). Em 2021, ficou em 15%. Esses dados então parecem contrariar o que foi dito pelo ministro Dias Toffoli, em seu último discurso na presidência do STF: “Graças aos julgamentos virtuais, conseguimos avançar sobre a longa pauta de julgamentos colegiados”.

Por fim, é o próprio relatório que confirma a utilização do plenário virtual como verdadeiro mecanismo de vazão do acervo: “processos prontos para o julgamento e que aguardavam calendarização do plenário físico migraram para o ambiente virtual de votação” (fl. 38). Daí, por exemplo, terem sido julgadas 490 ADIs e 93 ADPFs após o início da pandemia quando, antes do início, foram, respectivamente, 274 e 27 (fl. 41).

Vazão de processos, julgar muito, não significa necessariamente julgar bem.

Tampouco significa julgar bem a ocorrência de julgamentos “por inércia”, em que o voto do relator é acompanhado automaticamente pelos demais ministros, sem acréscimo na fundamentação. Identificar se, ao lado do volume exorbitante dos processos, a proliferação de decisões “acompanho o relator” impacta em igual medida a prestação jurisdicional no ambiente eletrônico é pesquisa que também merece ser realizada.

Por falar em julgar muito, uma investigação que aguarda ser realizada é saber se a queda na qualidade argumentativa no plenário virtual resulta, em igual medida, de “votos secos” – ministros que acompanham, por inércia, o voto do relator.

Se o plenário virtual veio para ficar, o diagnóstico feito pelo próprio STF por meio de sua Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação demonstra uma preocupação do tribunal consigo próprio, seus meios e modos de julgar. E o faz com celeridade e qualidade. Não se furta ao debate ao discutir o relatório com diversos especialistas e colocá-lo para escrutínio público. Exemplo de prática institucional engajada com aprimoramento.

Esperamos que os apontamentos críticos que fizemos deem continuidade ao debate e ao aperfeiçoamento do plenário virtual do STF. Afinal, se nós todos já somos outros depois da pandemia, também e tanto mais o STF depois dela e de seu plenário virtual ampliado.

 

EDUARDO BORGES ESPÍNOLA ARAÚJO – Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-assessor de presidente nacional da OAB. Advogado
MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFPR, com período de estudos e pesquisas na Harvard Law School e Universidade de Buenos Aires (UBA). Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: “STF e Processo Constitucional: entre a ministrocracia e o Plenário mudo” (Ed. Arraes, 2021); “Fundamentos de Direito Constitucional” (Ed. Juspodivm, 2021); “Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais” (Ed. Fórum, 2017); “Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica” (Ed. Juruá, 2017); “Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella” (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de ministro do STF. Advogado

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/plenario-virtual-stf-pandemia-dados-impressoes-10032022