Virando o jogo no STF: plenário virtual, destaque e caso da revisão da vida toda

Medida do ministro Nunes Marques fere a colegialidade e coloca o STF como refém de sua estratégia individual

Por MIGUEL GUALANO DE GODOY

 

Às 23h30 da último dia 8, faltando apenas 30 minutos para o julgamento virtual se encerrar, o ministro Nunes Marques pediu destaque do julgamento do caso previdenciário de revisão da vida toda (RE 1.276.977).

Ocorre, no entanto, que o julgamento virtual já tinha colhido o voto de todos os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo havido maioria formada de 6 a 5 em 25/02/2022, a favor da revisão da vida toda. A maioria tinha sido formada com voto do então relator, ministro Marco Aurélio Mello, que se aposentou no curso do processo e foi substituído pelo novel ministro André Mendonça, ex-AGU e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. Assim, a decisão do ministro Nunes Marques aos 45 minutos do segundo tempo, que também já tinha votado e estava vencido, zerou o julgamento e levou o caso para o plenário físico. Mas, com o julgamento zerado, o voto do então ministro relator Marco Aurélio Mello ficará desprezado. E valerá para o julgamento em plenário físico o voto do novo ministro — André Mendonça.

O pedido de destaque do plenário virtual zera o julgamento e leva o caso para apreciação do plenário físico, conforme previsão do regimento interno do STF (art. 21-B, § 3º). É um bom instrumento, já que os julgamentos virtuais no plenário virtual do STF têm acontecido aos montes, com colegialidade meramente formal, pouca ou nenhuma deliberação, com uso opaco do plenário virtual e resultados decididos quase sempre por ampla maioria acompanhando o voto do relator[1].

Assim, o destaque surge como instrumento possível de utilização por qualquer ministro que queira conferir ao caso maior atenção e tempo para julgamento. Como o destaque retira o caso do plenário virtual e zera o julgamento, inevitavelmente todos os ministros deverão se debruçar novamente sobre o caso. Faz com que ele leve mais tempo para ser julgado, pois uma vez destacado do plenário virtual dependerá de inclusão em calendário de julgamento pelo presidente do STF.

Faz com que o caso receba mais atenção porque as partes ou entidades envolvidas poderão ter novas rodadas de convencimento com os ministros, por meio de petições, pareceres, memoriais e audiências. O destaque é, assim, um instrumento à disposição dos ministros para fomentar colegialidade, deliberação, atenção mais detida a um certo caso. Rubens Glezer e Ana Laura Barbosa mostraram como não se pode culpar o destaque pelo mau uso que dele fez o ministro Nunes Marques.

No entanto, no STF, toda regra parece poder ser driblada, todo instrumento de fomento à colegialidade parece poder ser usado como arma individual por um ministro para emparedar o plenário, toda individualidade parece poder se sobrepor ao colegiado.

O que o ministro Nunes Marques fez ao destacar o caso não foi se valer de um uso possível de um instrumento à sua disposição. Foi, ao contrário disso, driblar o sentido da norma regimental que permite o destaque de casos para colocar abaixo um julgamento colegiado em que todos os 11 ministros já haviam votado. Foi colocar o plenário do STF como refém de sua estratégia individual para poder criar a chance de reversão do julgamento. Foi fazer o seu entendimento individual, até aquele momento vencido, se sobrepor ao colegiado.

E tudo isso sem nenhuma justificativa. Uma decisão que afeta milhões de pessoas, todo o Poder Judiciário e suas instâncias inferiores, sem nenhum argumento. Nenhuma razão pública que justificasse sua decisão de destaque, sua postura individual (e individualista).

Infelizmente, esse tipo de decisão e de postura não são novidade no STF. Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhano Ribeiro já mapearam esse tipo de manipulação e mostraram que há algum tempo já pulamos de etapa: não vivemos mais o tempo da “supremocracia” (mostrada por Oscar Vilhena Vieira), e sim o tempo da “ministrocracia”.

Ministros do STF sabem disso. São constrangidos muitas vezes por isso. Já tentaram tomar medidas que mitigassem os poderes individuais de cada um e privilegiassem o colegiado. Uma reforma regimental foi tentada ao longo da pandemia, mas não avançou em quase nada.

O problema dessa cultura da “ministrocracia” é que ela vai se enraizando. E quando vem, sem nenhuma desfaçatez como ocorreu no destaque do caso da revisão da vida toda, passa uma mensagem dos ministros e do STF muito ruim: a de que decisões inesperadas sempre são possíveis, e sem que nenhuma justificativa tenha que ser dada para isso. E, assim, o STF vai deixando de atuar como uma corte cujas decisões têm efeitos políticos para se caracterizar por uma corte que se vale de decisões judiciais para tomar decisões políticas.

É preciso ressaltar: o destaque em si não é ruim. Pode e deve existir como instrumento à disposição dos ministros nos julgamentos do plenário virtual. Mas não deveria ser usado para mitigar o que ele deveria fomentar: colegialidade e deliberação.

O plenário poderá vir a enfrentar essa controvérsia em questão de ordem. Ou mesmo no julgamento presencial do caso. E a postura e decisão do ministro André Mendonça também dirão muito sobre como ele encara esse estado de coisas do tribunal que agora compõe.

Enquanto isso, os aposentados seguem esperando as voltas, reviravoltas e aparentes dribles do STF nas normas que deveriam lhe reger.

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[1] Vide: GODOY, Miguel Gualano de. STF e Processo Constitucional: caminhos possíveis entre a ministrocracia e o Plenário mudo (Ed. Arraes, 2021). Vide ainda os diagnósticos que vêm sendo feitos por Miguel Godoy e Eduardo Borges sobre o Plenário Virtual: Coronavírus e a ampliação do Plenário Virtual do STFPlenário virtual ampliado: o que temos e vemos até agora?O plenário virtual no STF: individualismo, vazão e outras tendênciasGestão Toffoli e os números: há mesmo o que comemorar?Dados e impressões sobre o plenário virtual do STF na pandemia.

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MIGUEL GUALANO DE GODOY – Professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFPR, com período de estudos e pesquisas na Harvard Law School e Universidade de Buenos Aires (UBA). Pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP. Autor dos livros: “STF e Processo Constitucional: entre a ministrocracia e o Plenário mudo” (Ed. Arraes, 2021); “Fundamentos de Direito Constitucional” (Ed. Juspodivm, 2021); “Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais” (Ed. Fórum, 2017); “Caso Marbury v. Madison: uma leitura crítica” (Ed. Juruá, 2017); “Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella” (Ed. Saraiva, 2012). Ex-assessor de ministro do STF. Advogado

 

Originalmente publicado em: https://www.jota.info/stf/supra/virando-o-jogo-no-stf-plenario-virtual-destaque-revisao-da-vida-toda-21032022